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Ricardo Ferracini Neto A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA contra a mulher e a TRANSVERSALIDADE DE GÊNERO 2ª edição revista, atualizada e ampliada 2019

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Ricardo Ferracini Neto

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA contra a mulher e a TRANSVERSALIDADE

DE GÊNERO2ª edição

revista, atualizada e ampliada

2019

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CAPÍTULO 1

O REFLEXO DA NOVA PERSPECTIVA DE GÊNEROS E O DIREITO

1.1. A DIFERENCIAÇÃO TERMINOLÓGICA ENTRE GÊ-NERO E SEXO

A história da desigualdade de gêneros e a inserção da violência doméstica contra a mulher neste contexto lidada pelo Direito, prin-cipalmente com o cunho repressivo penalista que se assevera com o passar dos anos, para ser compreendida, leva à necessidade de uma reflexão prévia sobre o estudo do termo “gênero”.

A ideia de discussão da diferenciação entre as terminologias sexo e gênero tem se solidificado, mostrando grande repercussão exemplificada principalmente por meio dos reflexos originados so-bre o tema no Direito anglo-saxão1. Essa diferenciação traz uma ló-gica de significados entre a figura dos termos sexo, com seu aspecto meramente biológico, e a de gênero como uma composição social surgida por meio da inserção de modificações de comportamentos que a pessoa sofre desde seu nascimento até sua firmação como cida-dão, já inserido nos moldes trazidos pela sociedade em que convive. Quando do nascimento existe uma formação biológica determinando que o nascituro tenha o sexo masculino ou feminino. Durante todo o

1. RAPOSO indica que o Direito Anglo-Saxão discute qual seria a terminologia cor-reta entre gênero e sexo reportando que a sex discrimination e a gender discri-mination são considerados vocábulos com significados diferenciados citando a obra The Gender Agenda – Redefining Equality (1997) de Dale O’Leary comouma contraposição aprofundada sobre o tema (RAPOSO, Vera Lúcia Carpeto. O Poder de Eva: O princípio da igualdade no âmbito dos direitos políticos. Pro-blemas suscitados pela discriminação positiva. Coimbra: Almedina, 2004. p. 33-34). Ainda sobre o tema ARAÚJO, Maria de Fátima; FERRAZ, Dulce de Souza. Gênero e Saúde Mental: Desigualdades e Iniqüidades. In: Gênero e Violência.São Paulo: Arte e Ciência. UNESP, 2004. p. 54/57.

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seu desenvolvimento e implementação cultural, novas perspectivas surgem e se inserem em sua forma de comportamento perante a so-ciedade, fazendo com que aquela pessoa, independentemente do seu sexo, encaixe-se em um dos gêneros sociais predeterminados: gênero masculino ou gênero feminino.

Na maioria absoluta das vezes, existe uma correspondência en-tre o encaixe do sexo e do gênero da pessoa, mas, segundo tal pers-pectiva anglo-saxônica, essa correspondência não é obrigatória e pode gerar discrepâncias entre ambos os conceitos2.

Raposo, baseando-se em estudo de O’Leary, destaca que a pers-pectiva social acima discutida não é unanimidade nos estudos feitos pelo tema. Grande parte da doutrina ainda insistiria que o fator bio-lógico é primordial para a diferenciação não apenas de sexo como também de gênero3. A cultura e as perspectivas sociais seriam im-portantes para tal corrente, mas não teriam como alterar fatores biológicos como força, velocidade, explosão, capacidade de gestação e outros que diferenciam de maneira inconfundível um homem de uma mulher. Tal visão defende a impossibilidade da assertiva na qual a cultura de uma pessoa alteraria o seu encaixe em determina-do gênero, suplantando tais diferenciações biológicas. Essa corrente atualmente, porém, vem se enfraquecendo diante das indicações de inserções sociais na caracterização do gênero e do comportamento feminino como um todo na sociedade.

Baratta vai além a tal explanação4. Reporta que com o cresci-mento da literatura feminista, após 1970, formou-se uma padroni-zação de um metadiscurso que encampou a pesquisa criminológica. Com o surgimento da obra de Sandra Harding, que buscou a crítica da ciência androcêntrica e a fundação de uma teoria feminista da cons-ciência5, conclui-se, para tal grupo de criminólogas, que o paradigma

2. idem.3. ibidem;4. BARATTA, Alessandro. O paradigma do Gênero da Questão Criminal a Questão

Humana. In: Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 20-21;5. “Harding mostrou como a ciência moderna, o modelo hegemônico “normal” da cons-

ciência científica, baseia-se na oposição entre sujeito e objeto, entre razão e emoção,entre espírito e corpo. Em qualquer destas oposições, o primeiro termo deve pre-valecer sobre o segundo, sendo que aquele corresponde à qualidade “masculina” e

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da ciência moderna assegura a dominação masculina, mas ao mesmo tempo a camufla, fazendo com que a diferença real, que é a diferença de gênero e não de sexo, seja ignorada pela sociedade.

Para que tal teoria prevaleça existe a necessidade da demolição do modelo androcêntrico anterior, para a construção de uma nova concepção que necessariamente passa pela descoberta do gênero, sendo impossível que se mantenha a perspectiva fundada apenas nas concepções biológicas próprias do sexo. A questão social passa a ser fundamental para a alteração de paradigma. Não importa mais sim-plesmente a diferenciação biológica. A concepção de ocupação de po-sição de espaços perante a sociedade inclui a diferenciação de papéis que serão atribuídos a gêneros diferenciados. Já a diferença biológica própria do sexo dependerá muito mais das qualidades que são dife-renciadas entre os gêneros em uma sociedade do que o contrário6.

Para Silveira, o defeito dos críticos desta última corrente está na não admissão da utilização da terminologia gênero vinculada à inserção de fatores sociais para a definição de seu conceito. Entende que, na diferenciação da construção social, “gênero reflete em muito a questão de tratamento desigual dado a homens e mulheres”.7

O dualismo destas perspectivas passa pelas concepções trazidas pelo feminismo em suas variantes. O chamado feminismo cultural bus-ca a diferenciação entre homens e mulheres por meio da ideia de exis-tência de uma “conexão existencial com outra vida humana, coisa que os homens não têm. Por isso a visão feminina seria mais adequada que a

este àquela “feminina”. Desta maneira, o paradigma da ciência moderna assegura a dominação masculina e, ao mesmo tempo, a esconde mantendo assim, a diferença de gênero ignorada. Ainda segundo Harding, a separação entre produção científi-ca e sua aplicação tecnológica na sociedade, separação esta imposta pelo cânone epistemológico androcêntrico, presta-se à reprodução da dominação masculina, bem como da realidade social que a condiciona. Entretanto esta separação por seu turno reflete aquela entre pensamento abstrato (atribuído ao homem) e sentimento dirigido a situações concretas (atribuído á mulher). Assim, a ciência ‘normal’ não apenas assegura o poder aos homens, mas também os libera da carga da responsa-bilidade pública pelas suas conseqüências terminológicas, e confina, em boa parte, na esfera privada, a esfera pessoal da atenção e do cuidado reservada às mulheres” (BARATA, Alessandro. O paradigma do Gênero...op. cit., p. 20);

6. idem;7. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Sexual ou Direito Penal de Gêne-

ro. In: Mulher e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 333;

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própria observação masculina”.8 Já o feminismo radical entende que a conexão da mulher na sociedade é a real causa de sua miséria. Voltado materialmente para as relações sexuais e para a própria gravidez, re-tratando, assim, a ideia invasiva do corpo feminino, ele tende a agravar pontos que, em um passado recente, eram vistos com maior brandura.9

A busca pelo radicalismo conceitual feminista se fixa em dife-renças biológicas como ponto marcante da caracterização da mulher, tratando-as como motivos de discriminações enraizadas na socieda-de de maneira praticamente imutável com a evolução dos tempos, fator que acentua a impossibilidade de reconhecimento da caracte-rização de um conceito de gênero na formação da própria concepção do que é ser feminino.

Silveira ainda reporta que as críticas trazidas pela adoção do termo gênero para a diferenciação da palavra sexo acabam se per-dendo dentro do contexto da utilização internacional dos termos como sinonímias. Acrescenta que grande parte do feminismo atual prefere a utilização do conceito de gênero buscando demonstrar a verdadeira análise da desigualdade existente entre homens e mulhe-res perante a aplicação do Direito, e indicando uma diferenciação de aplicabilidade principalmente perante o Direito Penal.10

Izumino salienta que a categoria gênero fora importada da gra-mática pelas ciências sociais no sentido de que gênero serviria para classificar conjuntos de elementos com uma série de características comuns, sendo o mais importante a identificação dos membros de cada grupo a partir do sexo, com definição socialmente aceita. Men-ciona que o pioneirismo na utilização do termo teria sido feito pelas feministas americanas no sentido de espantar o determinismo bio-lógico do termo sexo, fazendo com que a expressão gênero viesse in-dicar diferenças sociais e culturais que definissem os papéis sexuais destinados a homens e mulheres de cada sociedade.11

8. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes Sexuais. São Paulo: Quartier Latin,2008. p. 66;

9. idem;10. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes Sexuais. Ob.cit., p. 332-333;11. IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e Violência Contra a Mulher. 2. ed. São Pau-

lo: Anna Blume. FAPESP, 2004, p. 83-84;

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Porto entende que a utilização do termo gênero não mais pode ser observada como um mero significado de conjunto de seres que detêm uma ou várias características em comum, dentro de uma pers-pectiva meramente gramatical, e sim dentro da construção elabora-da pela teoria crítica feminista ao empregá-lo para se referir à cons-trução social elaborada sobre a base dos sexos biológicos, para dar conta das características psicossociais e históricas que se impõem como pautas de identidade e diretrizes dos seres humanos segundo o sexo que lhes foi incorporado ao nascer.12

Também nesse sentido a Organização das Nações Unidas tem tratado a questão dos Direitos da Mulher dentro do que coloca como “gender perspective”. Essa denominação vem claramente em contra-posição à colocação de existência da denominação “discriminação com base no sexo”.13

Para as Nações Unidas gender perspective é aquela que se distin-gue “entre o que é natural e biológico e o que é social e culturalmen-te construído, e no processo para renegociação dos limites entre o natural e, portanto, relativamente inflexível, e o social – e, portanto, relativamente transformável”.14

Trata-se de uma concepção inclusa em uma visão sexualizada dos relacionamentos comportados pela sociedade admitindo uma inserção de valores, desta própria sociedade, para a definição do que seria a perspectiva de gênero.

1.2. A INCORPORAÇÃO DA EXPRESSÃO “GENDER MAINSTREAMING”

Essa estrutura de conceito do termo gênero abre novos caminhos para um debate diferenciado, indicando uma variação de análises, dentro daqueles que admitem a gender perspective. A inserção de um conceito baseado na disputa de espaços sociais com base na dualidade

12. PORTO, Célia Pereira. El Princípio de “gendermainstreaming”: logros y dificuldta-des em su adopción y aplicacion. In: Igualdade de Oportunidades e Igualdade de Gênero: Una relación a debate. Madrid: Dykinson, 2005, p. 66;

13. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes Sexuais, op. cit, p. 332-333;14. RAPOSO, Vera Lúcia Carapeto, ob. cit. p. 34;

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a ter uma participação política efetiva, angariando cargos eletivos e uma maior introdução de sua presença na Administração Pública.

A situação social da mulher brasileira nos anos 70 do século XX se modificava gradualmente. A mulher se inseria no mercado de trabalho de maneira crescente. Sua participação que indicava 13,5% em 1950 havia atingido 28,8% em 1976 e mostrava que sua partici-pação direta no crescimento econômico do país era absolutamente significativa.57 O mercado de trabalho absorvia cada vez mais a mão de obra feminina e os anseios que anteriormente eram buscados pe-los grupos feministas, como a possibilidade de creches para que os filhos pudessem ser mantidos durante o período em que a mulher também trabalhasse – rompimento da figura mãe/dona de casa – passaram a ser encampados pela legislação, demonstrando indubi-tavelmente um reflexo da evolução dos direitos da mulher. Fato é que em 1985 este patamar já havia crescido para 37% do mercado de trabalho.58

A situação social da mulher assim ganhava cunhos jamais vis-tos no país e, por conseguinte, a participação política de mulheres fazia com que o desenvolvimento de questões que entendiam como prioritárias chegassem a ganhar patamares diferenciados dentro da Administração Pública. Em 1983, o então governador de São Paulo André Franco Montoro cria o Conselho Estadual da Condição Femini-na, sendo seguido em 1985 pelo Governo Federal ao criar o Conselho Nacional do Direito da Mulher, que seguiu até o início do Governo Fernando Collor de Mello, em 1989.59

3.6. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DENTRO DO FEMINIS-MO NO BRASIL

Como referido, com a “abertura política” e o atrelamento do movimento feminista aos partidos foi possível a discussão isolada de temas até então impossibilitados dentro do contexto em que se desenvolvia o movimento feminista no país, diferentemente do que

57. TELES, Maria Amélia de Almeida, op. cit., p. 57;58. idem, p. 57;59. PINTO, Céli Regina Jardim, op. cit., p. 69-72;

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ocorria na Europa e principalmente nos Estados Unidos, onde gran-des avanços eram obtidos pelas mulheres.

A questão da violência doméstica foi um dos temas de maior reper-cussão e interesse do feminismo e aos poucos passou a ganhar patama-res de destaque dentro do cenário político e da Administração Pública.

Ganha destaque histórico neste contexto o surgimento, em 1981, do primeiro SOS Mulher criado no Rio de Janeiro60, que buscava man-ter o atendimento de mulheres vítimas de violência e também discu-tir a questão de como tratar a situação da violência contra a mulher. Em sequência surgem os SOSs Mulher de São Paulo, Campinas, Recife, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte e São José dos Campos.61

As introduções dos SOSs Mulher geravam um contato direto da vítima de violência doméstica com as feministas militantes nos atendimentos diretos62, o que trazia um dinamismo concreto do qual teria se afastado o movimento na década de 1970, diante da necessidade de se embrenhar no combate político em face da dita-dura militar. Este combate direto à violência pelos SOSs gerou pro-fundas evoluções no enfrentamento à violência doméstica no Brasil, mas era impossível manter-se atrelado ao discurso feminista radical e de confronto com o homem, como se mantendo este em um plano diferenciado do convívio da mulher.

Não mais se buscava por meio destes projetos o confronto e sim a conscientização da mulher e o estudo da situação social em que se envolvia. “Esta conscientização, é claro implicava que a mulher to-masse consciência de sua situação, isto é, que reconhecesse sua po-sição de subalternidade na sociedade, sua dependência do homem, seu conformismo de completa impotência por haver delegado seu poder ao homem”63.

60. O início da discussão sobre violência doméstica pelo movimento feminista brasilei-ro deu-se no II Congresso da Mulher Paulista realizado no município de Valinhos/SP, em 1980. Logo após o congresso, no ano de 1981, surge o primeiro SOS Mulher,no Estado do Rio de Janeiro, sendo seguido pela criação do Centro de Defesa daMulher, em Minas Gerais (TELES, Maria Amélia de Almeida, op. cit., p. 130);

61. RAGHINI, Lucélia. Cenas Repetitivas de Violência Doméstica. Campinas, SP: Editora da Unicamp. Imprensa Oficial, 1999. p. 18;

62. idem, p. 18/20;63. ibidem, p. 20;

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Entendia-se que apenas com a conscientização desta situação seria possível à mulher buscar seus direitos.

A busca era exatamente a percepção da situação de infelicidade vivida pela mulher dentro da subalternidade que lhe assolava, vi-sando a conscientização da necessidade de buscar prazeres na vida, libertando-se de seus sofrimentos, independentemente da necessi-dade do confronto com o homem de uma forma mítica. Esta vertente do feminismo e esta forma de pensar ganharam espaços dentro do movimento universitário, englobando projetos que contaram com o apoio do Governo, como foi o caso do convênio montado entre o SOS Campinas e a Universidade de Campinas – Unicamp, e do apoio gera-do a este mesmo SOS por parte do Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento das Mulheres. 64

O feminismo brasileiro neste momento recebe um choque cul-tural diante do contato direto com a vítima de violência doméstica. Não mais havia espaço para a retórica, sendo necessário que aquela mulher que se apresentava no SOS recebesse o auxílio direto das fe-ministas para que ao menos minimizassem a situação de violência doméstica que lhe afligia.

Diante desta situação vivenciada os passos começaram a ser dados de maneira direta para o enfrentamento da situação da vio-lência doméstica no país. Altera-se a visão meramente discursiva da contraposição entre o direito do homem e da mulher. A procura ao SOS trouxe à mostra uma realidade que indicava que a questão da violência doméstica era muito mais urgente do que a necessidade de manutenção apenas de uma discussão mais ampla dos projetos tra-zidos pelas feministas que se pautavam na introdução de seus ideais como uma questão macro, inserida em anseios sociais e políticos que se confundiam com as políticas partidárias.

Essa alteração foi uma tendência mundial, principalmente nos países do Sul, dentre os quais o Brasil, o que gerou entre outras situa-ções as criações das Organizações Não Governamentais.

Na academia, formaram-se grupos de estudos e pesquisas que buscavam uma compreensão científica à questão feminista que se

64. ibidem, p. 21;

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CAPÍTULO 4

DISCREPÂNCIA SOCIAL, IGUALDADE E A TRANSVERSALIDADE DE GÊNERO NO

BRASIL

4.1. A NORMA E O ALCANCE DE SUA FACTICIDADE NA QUESTÃO DE GÊNERO

O terapeuta familiar argentino Reynaldo Perrone entende que a lei é uma das formas de sair do caos, da anarquia e da barbárie, buscando a introdução da igualdade e da proteção entre os mem-bros do grupo, por meio de um mandamento de autoridade. Indica a socialização como a adoção de modelos de comportamento aceitos pela sociedade, buscado e imposto por esta mesma sociedade, e a lei como um instrumento de modelação e de normatividade. A lei, assim, busca interpor-se contra a arbitrariedade de um indivíduo.1

A evolução da socialização histórica traçada indica uma percep-ção de inserção da mulher cada vez maior na sociedade, embora a efetividade desta ocupação de espaço paritário com o homem esteja longe de ocorrer em termos fáticos.

Se se transmite um modelo de mulher “lastreado” será impos-sível o desenvolvimento de uma cidadania completa, e, portanto, o paradigma da igualdade estará condenado a residir no mundo das quimeras e dos impossíveis, a que pese os formalismos jurídicos. Para poder mitigar esta situação que se retroalimenta e eterniza, se-ria necessária “uma mentalidade muito flexível altamente crítica e autocrítica”...2.

1. NANNINI, Martine; PERRONE, Reynaldo. Violencia e Abusos Sexuais en la Famí-lia. Un abordaje sitémico y comicacional, apud CÁRDENAS, Eduardo José. Violên-cia em La Pareja. Buenos Aires: Granica, 1999. p. 27;

2. RUIZ, Juana Maria Gil. Los Diferentes Rostros..., op. cit., p.63;

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A manutenção de uma forma de cultura erradicada leva a uma forma de comportamento para as próprias mulheres e para aqueles que se dispõem a debater sua situação encampada pela questão de gênero na sociedade.

“Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, seu destino normal é o casamento que ainda as subordina praticamen-te ao homem; o prestígio viril está longe de se ter apagado: assenta ainda em sólidas bases econômicas e sociais. É, pois, necessário es-tudar com cuidado o destino tradicional da mulher. Como a mulher faz o aprendizado de sua condição, como a sente, em que universo se achar encerrada, que evasões lhe são permitidas... Só então podere-mos compreender que problemas se apresentam às mulheres que, herdeiras de um pesado passado se esforçam por forjar um futuro novo”3.

A necessidade passa pela própria alteração do modelo de ciên-cia estabelecido por um lado com a demolição do dito modelo andro-cêntrico e a reconstrução de um modelo alternativo e, de outro, com a introdução do ponto de vista da luta emancipatória das mulheres do novo modelo.4 Muito disso se conseguiu com a introdução do modelo normativo surgido desde 1948 com a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, sendo seguido pela Convenção do México de 1975 e a criação da CEDAW.

É certo que o modelo teórico não atingiu ainda completo respal-do dentro da contextualização inserida pelas novas idealizações tra-zidas pelas evoluções normativas do pós-guerra. O modelo anterior, como vimos, advém de uma estrutura solidificada desde a formação da sociedade industrial em que os papéis do sexo, da unidade fami-liar e das classes formavam uma mesma corrente que impulsionava o motor da sociedade industrial5, conforme estabelecida previa-mente pelos cidadãos que a compunham.

As reconstruções do estado social pós 2ª guerra, com a expan-são da educação, principalmente atingindo a mulher que passa a se

3. BEAUVOIR, Simone, op. cit. p. 357;4. BARATTA, Alessandro, “O Paradigma do gênero...”, op. cit., p. 21;5. BECK, Ulrich. La Democracia y sus Enemigos. Tradução para o espanhol Daniel

Romero Alvarez. Barcelona: Paidós, 2000. p. 14-15;

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CAPÍTULO 6

A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL COMO ELEMENTO DA EQUIVALÊNCIA

DE GÊNEROS

6.1. O DIREITO PENAL E SUA FUNÇÃO SANCIONADO-RA NA QUESTÃO DE GÊNEROS

A transposição da aplicação das ações positivas para uma apli-cação punitiva em caso de descumprimento baseando-se no Direito Penal foi um passo quase que automático. A ideia de uma alteração imediatista na inserção do que se trazia em teoria como significado de transversalidade de gêneros levou com que o discurso feminista buscasse o amparo no Direito Penal para a efetivação do projeto tra-zido da Conferência de Beijing, 1995.

Célia Pereira Porto, por exemplo, defende que “o principal problema que se assevera com o princípio da transversalidade de gênero – em todos os níveis de atuação (internacional, regional, estatal, autônomo ou local) – é a ausência de controles eficazes, capazes de garantir sua aplicação ou de sancionar seu descumpri-mento”.1

Não há dúvidas de que a evolução para a busca da transversa-lidade de gêneros é produto da ideologia feminista e trata-se “talvez da mudança estrutural mais profunda do período pós-guerra”2, no entanto, o passo trazido na busca do Direito Penal como consequên-cia de garantia imediata para a efetivação da equiparação de gêneros parece ser um equívoco, incluindo em tal raciocínio a questão da vio-lência doméstica.

1. PORTO, Célia Pereira, op. cit., p. 78;2. YOUNG, Jock, op. cit. p. 32;

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A intromissão do Direito Penal como o principal método de garantia de imposição da transversalidade indica um contrafluxo histórico da própria ideia empregada pelo feminismo. A ideia do feminismo é pautada na busca plena da cidadania e da equidade de gêneros. A teoria política feminista “se rebela sem embargo, com maior potencialidade explicativa da realidade social que o Libera-lismo ou a Social Democracia; e postula alternativas de alterações inclusivas e não tencionais entre autonomia dos sujeitos e igualda-de social para satisfazer as exigências e expectativas da cidadania, tanto em sua vida individual como social”.3 A partir do momento em que se transpõe à utilização do Direito Penal, tal estrutura é rompida.

A introdução das políticas públicas de direito antidiscriminató-rio como um todo parte da busca de uma “igualdade de reconheci-mento”4 devendo, em suas formas mais radicais de ações positivas, como no caso das quotas, ser absolutamente estudadas para que o efeito social da busca de equiparação não se torne uma questão dis-criminatória. Se este risco já se encontra exacerbado na aplicação de uma política de sancionamento de espaços constitucionais, o que en-tão se dizer quando da aplicação disseminada do Direito Penal como mecanismo de igualação de gêneros?

O grande foco para que se chegue à ideia de transversalidade é a alteração sistemática de comportamento cultural e educacional de uma população. A não alteração do pensamento patriarcal do-minante e que é impregnado em toda a população, incluindo par-cela do pensamento feminino, contribui para uma subordinação e hierarquização de gêneros que impede a evolução dos próprios di-reitos humanos. Ao se entender que a ausência de sancionamento é a principal causa dessa alteração de comportamento cultural e educacional, firma-se a ideia de que o Direito Penal detenha esta possibilidade de critério transformador de uma sociedade. Inclui--se na sanção e na pena um caráter primordialmente educativo,como sendo um mecanismo de alteração de cultura, o que se mos-tra equivocado.

3. RUIZ, Maria Juana Gil. Los Diferentes rostros de la Violência..., op. cit. p. 40-41;4. idem, p. 40-41;

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A pena, antes de qualquer coisa, é uma “intervenção na dignida-de humana do condenado”5 e efetivamente vai causar-lhe repulsa diante da invasão em sua possibilidade de comportamento social li-vre. O caráter educativo e de alteração cultural certamente não é o primordial presente como características de uma pena. Assim basear a dificuldade na implantação da ideia de paridade de gêneros ou de transversalidade na “ausência de controles eficazes de garantir sua aplicação ou de sancionar seu descumprimento“, como defendido por Célia Porto, gera um equívoco cíclico, dando uma qualidade ao Direito Penal e à pena, mais especificamente, que esta não suporta.

6.2. A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO

Conforme já debatido neste trabalho, a ideia de igualdade passa pela concepção de igual dignidade social ou de igual dignidade da pessoa humana.6 A dignidade da pessoa humana é assim a base de sustentação para que exista o exercício da igualdade formal e mate-rial e, por conseguinte, para que ocorra a abertura de espaços para a igualdade de oportunidades.7

A dignidade da pessoa humana é o cerne de todo Direito Fun-damental de um Estado Democrático de Direito e, portanto, assim como sustenta o direito de igualdade, também submete limites ao

5. CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistemas de Penas, Dogmática Jurídico-Pe-nal e Política Criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002. p. 28;

6. item 5.3 do trabalho;7. Para ANTONIO LUIS CHAVES CAMARGO a “compreensão desta dignidade hu-

mana, no Brasil, exigirá, em primeiro lugar o abandono de uma formulação apriorística de direitos humanos, ou direitos fundamentais, universalizando seu conceito a todo território nacional e atribuindo, indiscriminadamente, ao Estado, o dever de garantia e asseguramento desta dignidade. O que se pode afirmar, neste ponto, é que a dignidade humana representa o próprio ser, como integrante de um grupo social, que merece o respeito do outro e do próprio Es-tado, independentemente de qualquer atributo de ordem pessoal, tais como: tí-tulo, cargo público, patrimônio, função social, etc. É a consideração do ser como pessoa humana, com sua competência comunicativa no que se denomina, seu mundo de vida. Lenswelt, na expressão habermasiana do agir comunicativo” (CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Direitos Humanos e Direito Penal: Limites da Intervenção Estatal no Estado Democrático de Direito. In: Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001, p. 74);

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CAPÍTULO 7

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER

7.1. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E TRANSVERSALI-DADE DE GÊNEROS

O combate à Violência contra a mulher ascendeu como proble-ma de concepção mundial formalmente em decorrência das discus-sões da busca de equiparação de gêneros, como não poderia deixar de ser, conforme todo o desenvolvido anteriormente, em decorrência dos efeitos trazidos pela CEDAW.

A Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena de 1993 foi a primeira a taxar a Violência Doméstica contra a Mulher como uma violação aos Direitos Humanos, invocando assim não apenas a Convenção do México de 1975, como também a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem. Foi ali adotada a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência con-tra a Mulher, tendo a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas designado um relator especial para a captação de informa-ções e repasse de recomendações no intuito de combater a violência doméstica contra a mulher.1

Esta Declaração da ONU serviu como base para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará2, ocorri-da em 1994, e aprovada pela Organização dos Estados America-nos - OEA. A dita Convenção complementa a Declaração da ONU

1. HERMANN, Lois. Violência Doméstica: Estratégias de Intervenção. In: Violência Doméstica: Bases para a formulação de Políticas Públicas. Rio de Janeiro: Re-vinter, 2003, p. 13;

2. nota de rodapé 52;

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vez que se trata do primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer a violência contra a mulher em ter-mos gerais.3

Não por acaso, na sequência da Convenção de Viena, em Bei-jing 1995, foi encampada a ideia de transversalidade de gêneros, renovando-se, como já indicado, o compromisso da comunidade in-ternacional de membros das Nações Unidas no intuito de busca da equiparação de gêneros, sendo salientada a necessidade de combate à violência doméstica contra as mulheres para que esta equiparação seja atingida, situação ratificada em Beijing +5. Neste mesmo ano de 2000, a Conferência Internacional de Lisboa tratou do tema “Violên-cia contra as Mulheres: Tolerância Zero”, ocasião em que na União Europeia4 firmou-se o entendimento de que dentro da questão da transversalidade de gêneros a violência contra a mulher há de ser re-conhecida como uma grave violação dos Direitos Humanos, visto que a própria ausência de equiparação de gêneros, independentemente de ser ou não produzida com violência, já seria caracterizada como violação aos preceitos fixados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.

A violência contra a mulher é uma espécie do gênero “violação dos direitos de igualdade de gêneros”. Para ser assim tratada, quando se dá ensejo à discussão da violência contra a mulher, impõe-se a ideia de que toda uma sociedade formada pratica este tipo de dis-criminação em todos os seus âmbitos. A ideia de desequiparação de gêneros como debatido anteriormente não vincula apenas e tão so-mente a figura masculina em face da figura feminina, mas sim toda uma formação e atuação de uma sociedade com princípios patriar-cais em detrimento dos direitos da mulher.

Por ser espécie de um gênero, a violência contra a mulher não foge de tal conceito e a vítima, a mulher, deve ser entendida como atingida por todo um contexto social, independentemente do fato de ser ou não agredida por um homem diretamente, em quaisquer das formas previstas como violência contra a mulher.

3. CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias, op. cit. p. 91;4. RODRIGO, Virgínia Mayordomo. La Violência Contra la Mujer. Madrid: Dilex

S.L., 2005. p. 24;

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de reabilitação e insere as pessoas em programas educacionais so-bre a violência doméstica.159

Ainda assim, porém, a pressão do movimento feminista ameri-cano para o uso do Direito Penal é bastante grande160 e faz com que tal parâmetro esteja longe de ser abandonado nos EUA.

7.8. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

7.8.1. A violência doméstica na Constituição Federal A questão da Violência Doméstica contra a Mulher no país ga-

nha um grande impulso a partir do início da década de 1980 com a criação de vários SOSs Mulher primeiramente em algumas cidades do Estado de São Paulo e, posteriormente, desenvolvendo-se por todo o país. A influência da visão americana sobre o tema, que havia iniciado sua posição na legislação desde a década anterior, passou a finalmente ser incorporada não apenas pelo feminismo, mas tam-bém pelo governo, com a queda da ditadura militar e após a eleição de 1982.

Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, foi in-cluída no artigo 226, § 8º do seu texto a menção de que “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a in-tegram criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

Há de se notar a preocupação do constituinte em manter a ideia de equivalência de gêneros não fazendo qualquer tipo de diferencia-ção qualificativa ou quantitativa entre eles no que toca à vulnera-bilidade, mesmo quando se refere à violência na família, que limita a possibilidade de tal desnivelamento apenas para as questões nas quais a vulnerabilidade realmente é assumida dentro do contexto

159. idem, p. 17;160. Existem grupos de acompanhamento dos processos criminais nas cortes conhe-

cidos como Court Watch formados por membros de grupos feministas com ointuito de “fiscalizar” o andamento dos processos que detenham as mulheres como vítimas de violência doméstica (HERMANN, Lois, op. cit. p. 17-18;

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constitucional, como se dá nos casos de crianças e idosos. Pelo con-trário, a Constituição traz preceitos que primam pela igualdade de gêneros (artigo 226, § 5º), indicando que todo o planejamento fa-miliar e, portanto, a consistência do desenvolvimento familiar, será “fundado no princípio da dignidade humana” (artigo 226, § 7º). Des-taca dentro do cenário familiar, como obrigação diferenciada frente à vulnerabilidade, a proteção apenas para crianças e adolescentes (ar-tigo 227 e seus parágrafos) e idosos (artigo 230 e seus parágrafos).

A situação não poderia ocorrer de modo diverso. Fundada no princípio da dignidade humana, a Constituição Brasileira não pode-ria fazer qualquer diferenciação entre os gêneros, ainda que em âm-bito da Violência Doméstica, dentro de seu contexto, pois permitiria a análise de maneira discriminatória de um dos gêneros caso o colo-casse em situação de vulnerabilidade presumida.

7.8.2. A violência doméstica contra a mulher e o Direito Penal no Brasil

O Código Penal de 1940 não trouxe qualquer diferenciação na legislação quanto a Violência Doméstica, mas detinha uma série de análises morais diferenciadoras de gênero que não foram recepcio-nadas pela Constituição de 1988 e passaram a ferir o princípio de equiparação de gêneros. Estas previsões discriminatórias apenas passam a ser alteradas no final da década de 1990 e no início do sé-culo XXI. A reforma de 1984 também não alterou qualquer conteúdo contra a Violência Doméstica em Direito Penal.

A Violência Doméstica era assim encaixada dentro das varia-ções de tipos penais existentes no Código Penal de acordo com suas práticas contra a incolumidade física (crimes contra a vida, lesões corporais, crimes de periclitação da vida e da saúde, crimes contra a assistência familiar, crimes de perigo comum), psíquicas (crimes contra a honra, crimes contra a liberdade individual, crimes contra assistência familiar, crimes contra o pátrio poder), sexuais (crimes contra a liberdade sexual).

A diferenciação quanto à questão doméstica ocorreu apenas com a edição em 2004 da lei 10.886 que incluiu os parágrafos 9º e 10º no artigo 129 (lesões corporais) no Código Penal. Os parágrafos

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completa de valores, ou seja, os princípios de um sistema de direito deixam de existir para sofrerem a maleabilidade de dados estatísti-cos que na realidade nada mais são do que decorrência de ferimen-tos deste sistema. Segundo porque, no caso específico, a Violência Doméstica contra a Mulher é decorrência da desigualdade de gêne-ros que apenas se acentua quando a política de discriminação é apli-cada em âmbito negativo, como o realizado pela lei 11.340/2006. A busca de equivalência de gêneros como regra social é o caminho para o combate da Violência Doméstica e não o contrário.

7.8.6. Da inconstitucionalidade da Lei 11.340/2006 em matéria processual e penal

A Lei 11.340/06 criou o Juizado de Violência Doméstica e Fami-liar contra a Mulher e transformou o sistema processual penal para a mulher em situação de violência doméstica em um sistema absolu-tamente particularizado.

A Lei 13.505/2017, ao inserir o art. 10-A ao texto da lei 11.340/06, traz mecanismos que são salutares à apuração de crimes praticados contra a mulher em situação de violência doméstica fami-liar. Parte de suas previsões estão dentro do contexto da perspectiva de gênero e do que Baratta chama de “sociedade andrógena”. No en-tanto, outra parte, recai nos erros tratados acima.

Absolutamente aceitável a previsão de atendimento da mulher vítima de violência doméstica por agentes policiais judiciais e cien-tíficos de preferência do “sexo feminino”172. Neste caso, embora o melhor seria a utilização do termo gênero e não sexo, indica a possi-bilidade de atendimento mais confortável da vítima dentro de con-dições inerentes à situação de toda a mulher, independente de estar em situação de vulnerabilidade ou não. A presunção inaceitável de vulnerabilidade é que decorre, posteriormente, mais uma vez dife-renciando a mulher vítima de violência doméstica de todos os outros entes familiares (homem, criança, idoso, etc.).

Trata-se de um rol de procedimentos a serem tomados quando da apuração de violência doméstica sofrida pela mulher que apenas

172. Art. 10-A, caput da lei 11.340/06 com a redação que lhe deu a lei 13.505/2017.