A virada da teologia cristã

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O artigo fala a respeito dos paradigmas quebrados pela teologia cristã na atualidade.

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    A VIRADA DA TEOLOGIA CRIST

    Jos Comblin*

    RESUMOA teologia crist nasceu no sculo XIII sob o impulso dos filsofos gregos. O texto traz, de maneira crtica, a histria da teologia, mos-trando que ela sempre quis atingir a realidade por meio de conceitos abstratos e raciocnios lgicos. No entanto, ouvir a palavra de Deus sempre exigiu compreender e seguir a vida de Jesus e a de seus discpulos olhando a realidade da humanidade no tempo presente. Segue a longa histria do legado da teologia crist observando que hoje, em uma Igreja missionria, evangelizadora, h falta de coragem para fazer as mudanas necessrias.Palavras-chave: teologia crist; vida de Jesus; humanidade.

    EL GIRO DE LA TEOLOGA CRISTIANA

    RESUMENLa teologa cristiana naci en el siglo XIII bajo el impulso de los filso-fos griegos. El texto trae, de manera crtica, la historia de la teologa, mostrando que ella siempre quiso afectar la realidad a travs de conceptos abstractos y razonamientos lgicos. Sin embargo, or la Palabra de Dios siempre exigi comprender y seguir la vida de Jess y sus discpulos, mirando la realidad de la humanidad en el presente. Sigue la larga historia del legado de la teologa cristiana, haciendo notar que hoy, en una Iglesia misionera, evangelizadora, hace falta coraje para realizar los cambios necesarios.Palabras clave: teologa cristiana, vida de Jess, humanidad.

    * Jos Comblin, padre de origem Belga, trabalhou desde 1957 no Brasil como autor e ativista poltico, vivendo a maior parte do tempo no Nordeste. Foi um dos lderes da teologia da li-bertao desde o incio desta teologia. Viveu no Chile de 1962 at 1965, quando voltou para o Brasil para trabalhar com Dom Helder Cmara, em Recife. Faleceu no ms de maro 2011, aos 88 anos, pouco tempo depois da finalizao deste artigo em homenagem a Ivone Gebara.

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    THE TURNING POINT OF THE CHRISTIAN THEOLOGY

    ABSTRACTChristian theology came into existence in the 13th century with the impulse of Greek philosophy. This text critically addresses the his-tory of theology, showing that it always wanted to approach reality through abstract concepts and rational reasoning. However, listening to the word of God means understanding and following the life of Jesus and his disciples by looking at the present reality of humanity. It follows the long history of the legacy of Christian theology noting that today, in a missionary, evangelizing Church, there is a lack of courage to make the necessary changes.Keywords: Christian theology, life of Jesus, humanity.

    No cristianismo, a teologia nasceu no sculo XIII, sob o impulso dos filsofos gregos, sobretudo Aristteles. Ento apareceu uma classe de telogos profissionais. Nasceram as faculdades de teologia dentro do estilo universitrio que estava nascendo. Essa teologia imitou o modo de proceder dos filsofos gregos. A teologia foi uma exposio siste-mtica de conceitos, na forma de pensamento logicamente organizado. At hoje, a teologia conserva essa forma. Por isso tem seu lugar nas universidades, especialmente no meio das cincias ditas humanas.

    Essa teologia elaborou seus conceitos a partir da filosofia apli-cada Bblia. Pretendeu expressar os contedos da Bblia por meio dos conceitos abstratos e de raciocnios lgicos usados pela filosofia. Porm a Bblia no se expressa em forma de conceitos abstratos, mas, geralmente, em forma de metforas ou parbolas, em forma de narra-es. Quando os profetas, o prprio Jesus ou os apstolos falam, no enunciam doutrinas universais, mas dirigem-se a pessoas particulares que vivem em um contexto bem particular, e a propsito de casos especiais determinados pelo contexto histrico. Suas palavras querem uma mudana em uma vida particular, a vida de tal indivduo ou tal grupo humano bem contextualizado. So atos que fazem histria a historia de Israel, de Jesus, da Igreja primitiva , como os gestos que mudam as coisas.

    Os telogos achavam que o seu trabalho consistiria em tornar mais compreensvel o contedo da Bblia, em expressar mais claramente o

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    essencial dos conhecimentos que ela fornecia. A teologia teria a vanta-gem da preciso dos conceitos: de escritos de literatura popular ela faria uma elaborao cientfica, tirando dessa literatura o conhecimento real que ela envolve. Faria isso por meio de conceitos, porque os conceitos fornecem o verdadeiro conhecimento da realidade. A teologia pretende atingir a realidade daquilo que a Bblia quer expressar, mas no conse-gue, porque ela escrita de uma maneira vulgar, no cientfica.

    Os filsofos tm a pretenso de atingir a realidade a partir de con-ceitos abstratos e de raciocnios lgicos. Porm, sua realidade fictcia, criada pelo esprito humano; no a realidade criada por Deus na com-plexidade da histria humana. Os conceitos simplificam e endurecem, e deixam de lado a vida vivida no desenrolar da histria.

    A consequncia da metodologia adotada que os telogos, como os filsofos gregos, tendem a formar um mundo fechado. Somente ou-tros telogos podem entender o que um telogo ensina. Os discursos dos telogos dirigem-se a outros telogos. Trata-se de um dilogo entre membros de uma corporao de iniciados. Os no iniciados sentem-se perdidos nesse mundo, assim como acontece com as outras cincias. A teologia afasta os telogos da humanidade comum. Para a humanidade comum, os telogos so uma raa estranha, somente respeitada porque tem prestgio social. Lutaram durante sculos para conquistar esse pres-tgio. Inventaram ttulos de doutores ou mestres para impressionar os no iniciados. Falam uma linguagem que os outros no entendem, mas do a entender que esse linguajar secreto um sinal de superioridade. Com sua teologia, eles supostamente sabem mais e melhor o que, para os outros, ainda confuso e at infantil.

    Nos tempos da cristandade, o prestgio dos telogos era ainda maior porque eles representavam um poder na sociedade. Tpico foi o prestgio da Universidade de Paris, ou seja, da faculdade de teologia de Paris, desde o sculo XIII at a Revoluo Francesa. Os telogos detinham um verdadeiro poder social e poltico. Eram um dos poderes do Estado e da Igreja.

    Hoje em dia, os telogos perderam todo o poder na sociedade civil e quase todo na Igreja. Mas, entre si, cultivam os restos do prestgio anterior e felicitam-se mutuamente, como faz qualquer corporao. No

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    meio do clero, ainda conservam certo respeito, ainda que poucos leiam seus escritos. So respeitados, no por seu pensamento, mas porque pertencem a uma categoria respeitvel. O que se respeita o ttulo de doutor, que no mundo eclesistico ainda conserva uma importn-cia. Nisso esto em oposio total a Jesus, que proibiu que se desse o ttulo de doutor aos seus discpulos, que so sempre discpulos, e nunca doutores, porque h somente um doutor. E Jesus passou todo o tempo de seu ministrio brigando com os doutores. Esta uma das inconsequncias que se encontram na Igreja.

    A importncia da teologia na Igreja que ela fornece auxlios apreciveis ao magistrio. Com a aspereza de seus conceitos, a teologia serve para definir claramente as heresias e facilitar sua condenao. O telogo define a heresia tirando-a da multiplicidade de ditos e escritos dos hereges; chega a enunciar o contedo da heresia e, assim, fornece o instrumento necessrio para que o magistrio possa condenar. No se pode condenar o que no est bem definido. Assim fizeram com a teologia da libertao. O padre R. Vekemans definiu claramente a heresia e, com isso, o magistrio pde condenar. um grande servio que se presta ao magistrio. Nos Conclios anteriores ao Vaticano I, os telogos tiveram um papel indispensvel. No Vaticano II, Joo XXIII pediu que no houvesse condenaes e, por isso, alguns telogos elaboraram a nova orientao da Igreja desejada pelos papas da poca. Os telogos, acostumados a buscar heresias, tiveram que se limitar tarefa de res-tringir as novas doutrinas, como se fossem heresias ocultas, no que ainda muitos acreditam atualmente.

    Claro est que os prprios telogos podem tambm criar heresias, o que as torna mais perigosas, porque so ensinadas por pessoas pres-tigiadas. Por isso, o magistrio exerce sobre os telogos uma vigilncia que nunca se deixa surpreender. Centenas de telogos foram condena-dos, e ainda hoje h condenaes frequentes, embora o controle seja um pouco mais permissivo. Nos ltimos tempos, as heresias condenadas foram todas produtos de telogos.

    Outra ajuda que a teologia presta hierarquia eclesistica a formao intelectual do clero. Um dos objetivos principais do Conclio de Trento foi a reforma do clero. Durante toda a Idade Mdia houve

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    queixas sobre a ignorncia do clero. Naquele tempo no havia nenhuma preparao. O proco escolhia um jovem para ser seu sucessor. Muitas vezes, escolhia um sobrinho para que o benefcio da parquia ficasse na famlia, j que uma parquia era um benefcio, um conjunto de proprie-dades e de direitos financeiros que assegurava a subsistncia do padre e, muitas vezes, tambm de sua famlia, quando era mais importante.

    Na vspera da ordenao, o proco apresentava seu candidato, que s vezes mal sabia ler, acompanhado pelos padrinhos que davam teste-munho do valor desse candidato ao bispo, e o bispo ordenava-o. Havia sacerdotes cheios de zelo e boa vontade que procuravam aprender, mas muitos s se preocupavam com os bens da parquia e mal sabiam mi-nistrar os sacramentos. Ainda no sculo XVII, recomendava-se s damas da boa sociedade que, quando fossem se confessar, entregassem ao confessor a frmula da absolvio, porque, s vezes, acontecia de ele no a conhecer. Ento o Conclio de Trento decidiu fundar seminrios. A aplicao do decreto foi lenta. Na Frana, os primeiros seminrios foram abertos por volta de 1650, ou seja, 80 anos depois do decreto de Trento.

    Mas uma vez fundado, o que fazer nesse seminrio? Claro, em primeiro lugar os exerccios de piedade e as normas de administrao dos sacramentos. Mas, alm disso, era preciso tambm dar uma for-mao intelectual. A estava a teologia. A teologia foi o ensino dado aos seminaristas. Assim at hoje. Acreditava-se de que a teologia seria a melhor maneira de preparar os futuros sacerdotes para o mi-nistrio, principalmente o da palavra. Talvez no houvesse alternativa. Ainda hoje, as autoridades eclesisticas pensam, ou fazem de conta que pensam, assim. Em todo caso, ainda hoje a teologia a ocupao principal nos seminrios.

    Atualmente, aparecem srias dvidas. A teologia seria realmente a melhor preparao para o ministrio da palavra? A teologia uma cincia entendida somente pelos telogos. Os leigos que no a enten-dem, no esto interessados, salvo alguns letrados com formao muito especial. Se o sacerdote ensina a teologia que aprendeu no seminrio, ningum se interessa, ningum entende, nem v que relao h entre essa cincia, que o sacerdote ensina, e a vida que realmente deve viver. A teologia forma telogos, no forma evangelizadores. Forma, muitas

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    vezes, telogos de segunda categoria, que assimilaram mais ou menos a teologia que se lhes ensinou e, muitas vezes, j esqueceram-se dela porque no lhe descobrem nenhuma utilidade.

    Por isso, os melhores sacerdotes recorrem a associaes de espiri-tualidade sacerdotal, como Jesus-Caritas, da espiritualidade de Carlos de Foucauld, ou do Prado, do Pe. Chevrier, e tantas outras. Ou, ento, entram em associaes de espiritualidade leiga, como os focolarinos e outros. Ali encontram o que no encontram na teologia, e descobrem o que devem expressar em seu ministrio da palavra. Muitos sacerdo-tes quase no exercem o ministrio da palavra a no ser por homilias sem contedo, sem mensagem, justamente porque ficaram s com a teologia do seminrio, e essa no prepara para o ministrio. Por isso, h pouca formao de leigos: so os sacerdotes que se sentem inseguros ou mal preparados para orientar cursos ou retiros ou outros mtodos de formao de leigos.

    A teologia muito importante para o prprio telogo; ela enriquece a personalidade, como faz qualquer cincia. Mas no torna mais cristo ou mais santo. Ela uma atividade que enriquece a personalidade hu-mana de quem a pratica. No santifica. Houve telogos santos, como Alberto Magno, Toms de Aquino, Boaventura e outros, mas no foi a teologia que os tornou santos. Assim mesmo, sempre haver telogos, como sempre haver filsofos, artistas, inventores.

    Depois destas consideraes sobre a teologia, voltemos s origens do cristianismo. Deus falou. Sua palavra foi Jesus. Antes, Deus falou aos profetas, disse palavras que os profetas repetiram. Agora, Deus falou por meio da vida de Jesus, e no por meio de palavras; falou por meio de uma vida: a de Jesus, suas andanas, seus gestos, suas atitudes, seus relacionamentos, suas palavras, que nunca so discursos abstratos, mas sempre palavras de nimo aos doentes, de denncias aos douto-res, conselhos aos discpulos, tudo sempre aplicado a um caso muito particular. Tudo isso constituiu a trama de uma histria. Deus fala pela histria de Jesus, pelo desenvolvimento de sua ao.

    Escutar a palavra de Deus olhar o que Jesus fez, prestar ateno s suas palavras e aos seus atos, assimilar, procurar compreender sua vida. Ora, ela entendida na medida em que a pessoa entra na mesma

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    vida, segue o mesmo caminho, embora seja numa situao muito dife-rente, mas com a mesma inspirao e os mesmos objetivos.

    A cincia da palavra de Deus aprende-se fazendo, agindo como Jesus agiu, pois no se trata de aprender conceitos para guardar na inteligncia e na memria, mas, sim, de aprender a viver, e no simples-mente a conservar cincias ou exercer o intelecto. No se aprende a viver recebendo conceitos abstratos ou raciocnios lgicos, recebendo uma doutrina. Uma pessoa no tem uma conduta moral por ter apren-dido teologia moral. algo bem diferente. No caso da palavra de Deus, a distncia muito grande.

    Jesus teve, e ainda tem, muitos discpulos que aprenderam estu-dando a e entendendo sua vida, praticando-a em sua prpria existn-cia. Essa vida de Jesus reproduz-se na dos discpulos. Criou-se, assim, a tradio da vida de Jesus, diferente da tradio de doutrinas ou de uma doutrina de Jesus, que no existiu.

    De gerao em gerao, a vida de Jesus recomea assumindo sem-pre formas novas, de acordo com a multiplicidade das personalidades humanas e das situaes em que estas esto colocadas mas sempre a mesma vida de Jesus. Ela se transmite e se torna mais compreensvel na existncia de tantos discpulos. A vida de Jesus ns a conhecemos de modo mais concreto e significativo na histria dos discpulos. Apren-demos pelo conhecimento da existncia deles. Os discpulos esto mais perto de ns no tempo e no espao e, por isso, eles nos oferecem um ensino mais acessvel e uma forma de vida mais imitvel em certos aspectos.

    Conhecemos a vida de Jesus nos discpulos, primeiro pelo contato humano, pelo encontro fsico de pessoas. Assim, as crianas podem re-ceber o ensino da vida de Jesus pelo modo de vida de seus pais (ou um deles) ou, eventualmente, de outro membro da famlia mais ampla, pelo contato com pessoas da redondeza ou por educadores. Como adultos, podemos tambm encontrar a vida de Jesus vivida por pessoas excep-cionais que a aplicam mais intensamente. Podemos ter o privilegio de ter conhecido ou convivido com algumas dessas pessoas, como aconteceu comigo. Pude conviver com vrios desses discpulos que manifestavam de modo excepcionalmente claro a vida de Jesus vivida por eles tal

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    como foi narrada pelos evangelhos. Assim recebi a tradio da palavra de Deus, muito mais do que pela teologia. So aquelas pessoas a quem o povo chama de santas, embora ainda estejam nesta terra. Depois sua morte, algumas podero ser canonizadas oficialmente pelo papa, mas claro que a grande maioria nunca o ser.

    A imensa maioria desses discpulos de Jesus no deixou docu-mentos sobre sua vida. No entanto, alguns tiveram a sorte de algum escrever e assim deixar testemunhos sobre sua existncia ou alguns aspectos dela. Alguns, excepcionalmente, tiveram seus prprios disc-pulos, e estes conservaram sua memria.

    Quem no deixou nenhum documento escrito pode ter deixado uma pequena tradio oral durante algumas geraes. Somente Deus sabe a totalidade da tradio vivida realmente pelos discpulos de Jesus.

    Assim mesmo, depois de 2.000 anos, contamos com uma imensa documentao. Alm disso, podemos ter acesso a pessoas que so nossas contemporneas e vivem a vida de Jesus neste momento, dando a muitos o testemunho da palavra de Deus. Alguns so conhecidos em um setor limitado da Igreja, e alguns alcanam uma notoriedade maior. Olhando bem e buscando com um pouco de perspiccia, todos podem ter a opor-tunidade de entrar em contato com essa tradio viva da palavra de Deus.

    J que a tradio imensa, alguns estudiosos podem dedicar seu tempo e aplicar sua capacidade intelectual para recolher, sintetizar, apresentar uma viso de conjunto, dar princpios de interpretao, cha-mar a ateno sobre testemunhos tpicos ou significativos para nossos tempos. No podemos viver toda a diversidade do Evangelho. Cada etapa da histria destaca algumas expresses da tradio de acordo com as personalidades das testemunhas, com sua situao cultural e seu lugar na histria. Em lugar de uma teologia, podemos ter uma viso da tradio que seja significativa, que seja realmente uma palavra para os contemporneos, que seja a vida de Jesus em uma poca determinada.

    O objeto dessa teologia, em se querendo manter a palavra, a vida de Jesus manifestada na imensa variedade de suas realizaes, na vida vivida na tradio. Trata-se da Escritura sagrada lida pela tradio. Essa tradio foi autenticada pelo magistrio, que afastou as deforma-es da vida de Jesus ou as falsas realizaes.

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    A hierarquia no fabrica os santos, mas pratica um discernimento em nome do conjunto da tradio e luz da Escritura. Claro que, s vezes, pode haver erros depois corrigidos, como sucedeu quando cris-tos condenados foram posteriormente reabilitados. Joana dArc foi condenada por um tribunal eclesistico como herege e relapsa. Depois foi reabilitada e inclusive canonizada. Savonarola foi condenado por ordem do papa, mas muitos hoje reconhecem que esse julgamento foi errado e percebem nele um verdadeiro santo. J se falou bastante da possibilidade de uma canonizao.

    O objetivo desse estudo sobre a vida de Jesus vivida atravs dos sculos mostrar onde est a palavra de Deus, palavra pela qual ele fala humanidade de hoje. Dentro da percepo do mundo atual, podemos descobrir no passado palavras que ainda so significativas nesta nossa poca, e salientar as palavras vividas por cristos (ou no cristos) hoje, pois Deus fala por meio de nossos contempor-neos. Trata-se de entender o alcance das narraes evanglicas para nosso tempo. No podemos descobrir isso por meio de um exerccio intelectual porque o significado da vida de Jesus no se revela por um trabalho intelectual, mas encontrado na vida de testemunhas contemporneas ou de geraes passadas.

    Nossa misso de cristos consiste em transmitir essa tradio, ou seja, esse Evangelho traduzido na histria e no presente. Consiste em pronunciar e anunciar a palavra de Deus, e isto se realiza por nossa vida, no conjunto das nossas atividades.

    E agora, o que acontece com tudo aquilo que objeto da teolo-gia tradicional? O que acontece com os dogmas e os documentos do magistrio, com a liturgia e todas as expresses de culto desenvolvidas na histria do cristianismo como fenmeno histrico? O que acontece com a instituio com toda a sua organizao e todo o seu direito cannico? Tudo isso ficaria fora da considerao? Evidentemente no pode ser assim. No entanto, muda a perspectiva pela qual enxergamos e valorizamos tudo isso, todo esse sistema institucional construdo por vinte sculos de histria crist.

    Vejamos primeiro a doutrina oficial, ou seja, os dogmas ou a dou-trina de f catlica que foram durante os sculos ps-tridentinos a base

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    da teologia. Foram elaborados sistemas de teologia com raciocnios tomando os dogmas como ponto de partida. Ora, os dogmas no po-dem ser ponto de partida. O ponto de partida a palavra de Deus, e os dogmas no o so. So frmulas que afastam falsas interpretaes da palavra de Deus. Mas no so sua palavra viva, que a vida de Jesus e de seus discpulos.

    Os dogmas so acidentes da histria que so importantes, mas no merecem todo o destaque que a hierarquia lhes deu, pois so expresses do poder da hierarquia e entende-se que esta lhes d um destaque particular. No entanto, para o povo cristo eles no tm tanta importncia. O povo recebe dentro da instituio uma ima-gem do cristianismo em que esses dogmas esto no centro, mas no momento de viver, o que vale a tradio de vida que lhes vem por outros canais, por comunicao oral ou escrita, que pode emanar de pessoas da hierarquia, mas no necessariamente. No houve muitos papas santos nem muitos bispos santos. Seu papel necessrio, mas no so eles fonte de vida nem realmente transmitem a palavra viva. Devemos rezar para que apaream papas ou bispos santos, mas no recebemos nenhuma garantia de Jesus. Temos, sim, a garantia de que sempre haver verdadeiros discpulos que prolongaro a cadeia da tradio.

    Os dogmas fundamentais foram definidos pelos quatro primeiros conclios ecumnicos nos sculos IV e V. Tiveram por objeto a defesa da f no que se refere a Jesus e sua relao com Deus. Definiu-se que o Filho igual ao Pai, e que, sendo Deus, foi tambm verdadeiro homem. Tudo isso era claro para o povo cristo, mas alguns intelectuais quiseram aprofundar com conceitos abstratos e tornaram as coisas mais confusas. Estes imaginaram representaes das relaes entre o Pai, o Filho e o Esprito Santo, e tambm a humanidade, que no podiam concordar com o que aparece nas Escrituras. Foram condenados e enunciou-se oficialmente uma doutrina obrigatria formulada pelo Credo de Niceia (325) e Constantinopla (381), e pelas definies de feso (431) e de Cal-cednia (453). Esses textos expulsaram da Igreja os fautores de heresias. Foi uma resposta a um acidente da histria, um problema nascido em uma circunstncia particular: o surgimento de hereges. Essas definies

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    foram celebradas em toda a histria ulterior e forneceram, mais tarde, a base dos sistemas teolgicos.

    Todas as condenaes feitas pelos Conclios foram celebradas como vitrias sobre as heresias, ou seja, sobre os inimigos da Igreja. No entanto, hoje estamos muito sensveis a certos aspectos negativos dessas definies. Em primeiro lugar, o preo das definies, tais como foram formuladas, foi alto: foram expulsos da Igreja com o patriarcado de Alexandria todo o Egito e os pases vizinhos, e com o patriarcado de Antioquia, toda a Sria, com muitas das primeiras Igrejas crists. Tais excluses provocaram a formao de Igrejas separadas, que ainda sub-sistem, e que tiveram uma expanso missionria grande somente freada pela conquista muulmana. O preo foi a perda de muitas das Igrejas mais gloriosas do Oriente. No havia maneira de resolver o problema de modo diferente do que por uma condenao que expulsou para sempre milhes de fiis das Igrejas mais venerveis? No houve muitas interferncias polticas numa Igreja to dominada pelos imperadores? Era to urgente a condenao? No houve interferncia de rivalidades pessoais por parte dos prelados das Igrejas rivais? No houve influncia das oposies tnicas dentro do Imprio Romano?

    Em segundo lugar, os documentos gerados pelos Conclios fizeram uma formulao solene da mensagem sobre Jesus em termos abstratos, de acordo com o modo grego de pensar. Formulou-se uma cristologia na qual a vida de Jesus, toda a sua histria, ficou esquecida. Afirmou-se a natureza humana de Jesus, mas foi somente a abstrao da natureza. Nada foi dito de sua vida humana, como se um ser humano fosse apenas uma natureza. A natureza no mostra nada, no pode ser a palavra de Deus. Palavra de Deus foi a vida de Jesus, e esta no aparece no do-cumento oficial, nem na cristologia teolgica, at o sculo XX. Nunca apareceu nos documentos oficiais do magistrio. Somente se falou da morte de Jesus, mas fazendo abstrao de seu sentido histrico e so-mente mostrando nela um mistrio religioso.

    Os Conclios medievais foram recapitulados no Conclio de Trento, no sculo XVI. Este definiu uma doutrina da justificao que quis ser uma condenao da doutrina protestante. No entanto, hoje foi poss-vel chegar a um entendimento com os luteranos, de tal sorte que essa

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    condenao da doutrina protestante poderia ter sido evitada, e outra formulao preferida, se houvesse um desejo de dilogo, o que no prevaleceu em Trento. Em Trento prevaleceu a linha dura, que desejava uma separao e uma condenao radicais.

    Trento definiu a doutrina dos sete sacramentos elaborada durante a Idade Media. Quis definir que os sacramentos tinham sido institudos por Jesus, o que hoje insustentvel. Teria sido melhor dizer que a Igreja tinha poder de fundar sacramentos, como fez com a confirmao, a extrema uno, a ordem ou o matrimnio, ou de mud-los, assim como fez com a penitncia ou a eucaristia, cujo sentido variou ao longo dos sculos.

    Claro est que os sacramentos tiveram um papel relevante na vida de todos os cristos, mas no se pode fazer deles a fonte de toda a vida crist. A concepo do sacramento como agindo ex opere operato (automaticamente) pelo poder do sacerdote perdeu de vista o Esprito Santo. O sacramento substituiu o Esprito Santo, como se o sacramento produzisse a graa. Da resultou uma teologia segundo a qual o sacerdote age como substituto da pessoa de Cristo. Mas quem age como substituto da pessoa de Cristo o Esprito Santo enviado por ele para substitu-lo.

    Trento salvou os sacramentos da rejeio protestante, mas pode-riam ter sido salvos de outro modo, deixando de defender sua instituio por Jesus e defendendo o poder que a Igreja tem sobre eles.

    Uma terceira etapa importante na historia dos dogmas foi o Con-clio Vaticano I, que definiu a infalibilidade e a jurisdio universal do papa sobre a Igreja toda. Esta doutrina foi enunciada de tal modo que levantou uma indignao generalizada em uma parte da Igreja e dos bis-pos e fora da Igreja Catlica. No havia possibilidade de dizer a mesma coisa de modo menos agressivo? Mas Pio IX queria que fosse agressivo, como arma de guerra contra todo o mundo moderno. Ainda pagamos as consequncias pelo isolamento da Igreja na cultura ocidental. Isso continua, apesar dos esforos do Vaticano II, que no foram suficientes para convencer o mundo, mesmo pessoas de boa vontade.

    O estudo da tradio no pode deixar de lado toda essa histria dos dogmas. No entanto, precisa colocar esses documentos em seu con-texto histrico, porque so sempre respostas a problemas particulares

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    bem situados. Tinham todo o seu valor na circunstncia em que foram emitidos. Sempre tiveram a desvantagem de concentrar a ateno sobre alguns aspectos limitados da palavra de Deus e de deixar de lado outros aspectos que, em nossa poca, so mais fundamentais.

    Os dogmas cristolgicos deixam na sombra a vida humana de Jesus, que exatamente o que hoje mais importante. A teoria dos sacramentos deixa de lado a prioridade do Esprito Santo e da f, assim como o amor como nico caminho de salvao. A infalibilidade do papa deixa na sombra o povo de Deus com seu sacerdcio e sua realeza, como se o povo tivesse que receber tudo passivamente da hierarquia. O Conclio Vaticano II abriu as portas para uma reflexo j inaugurada por telogos do sculo passado e deste sculo XXI.

    Precisamos avaliar tambm o valor dos textos do magistrio, inclusive dos Conclios, porque nem todos so textos infalveis ou irre-formveis. Este o caso, sobretudo, do Conclio de Trento, que precisa ser reinterpretado luz das prprias atas conciliares e do contexto. Os textos oficiais da Igreja so escritos com os conhecimentos que se tem no seu tempo. A histria da Igreja comeou a ser estudada seriamente no sculo XVII, mas de modo mais cientifico e com mais documentos a partir do sculo XIX, e em muitas partes da Igreja somente depois de Vaticano II. Antes disso, a histria uma realidade muito fragmentria e a crtica dos documentos, muito fraca. A histria dos manuais narra a srie de vitrias da Igreja sobre seus adversrios graas sabedoria da hierarquia. Naquele tempo, ainda no tempo do Conclio de Trento, a historia, em geral, assim: ainda herdeira das antigas inscries dos reis orientais, enumerando todas as suas vitrias. Os padres do Conclio de Trento estavam convencidos de que Jesus tinha fundado os sacramentos porque ignoravam a crtica histrica.

    Precisamos tambm estudar as liturgias, porque muitas vezes elas enunciam a doutrina dominante. Ora, a reforma dos textos litrgicos lenta. Um bom trabalho foi feito depois de Vaticano II, mas ainda subsis-tem muitos textos que procedem da teologia tridentina. Muitos textos ainda conservam a tonalidade de majestade que se introduziu na liturgia depois da entrada da Igreja no imprio e na ideologia imperial. O estilo foi o da corte. A representao de Deus evoca o poder, a majestade, o

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    que provoca frmulas de pedidos com grande humildade, semelhantes s expresses de humildade dos sujeitos diante de seus senhores.

    Muitos textos ainda expressam a teoria do sacrifcio na apresentao da paixo e da morte de Jesus ou na eucaristia. Seguindo a linha de santo Anselmo, apresentam a morte de Jesus como um sacrifcio de expiao pelos pecados. Da a insistncia no pecado. Esta reflete a religio medie-val, marcada por uma conscincia muito forte do pecado e pelo medo do castigo. Os atos religiosos expressam esse medo do castigo e essa permanente conscincia do pecado. O perdo de Deus aparece como subordinado penitncia, aos sofrimentos, aos sacrifcios oferecidos que incluem sempre privaes, sofrimentos voluntrios, como se Deus quisesse humilhar os homens pecadores antes de perdoar. Isto total-mente alheio ao Novo Testamento, que celebra a gratuidade do amor divino. Atualmente, a teoria do sacrifcio incompreensvel, e somente pode afastar, ou ento aproveitar a insegurana humana, para conseguir efeitos de submisso. Alguns movimentos integristas cultivam ainda a teoria do sacrifcio e suas aplicaes ascticas, mas parece que o fazem como um desafio mentalidade moderna, mais do que por amor a Deus.

    Por fim, o estudo do direito cannico inclui uma reflexo sobre a prpria constituio desse direito. Este est inspirado at hoje pelo direito romano, ou seja, pelo direito imperial, enunciando todos os direitos da hierarquia e todos os deveres do povo cristo. No reco-nhece praticamente nenhum direito aos leigos. Est no extremo oposto da mentalidade contempornea, que atribui um valor primordial aos direitos humanos.

    Estudando a estrutura institucional da Igreja, no podemos silenciar as necessidades de reformas. Paulo VI e Joo Paulo II fizeram algumas aluses necessidade de uma reforma da funo do papa, ou seja, da relao de seu poder com a Igreja. A questo da relao entre o papa e os bispos no foi solucionada pelo Vaticano II porque nada foi definido na prtica. Na prtica, ainda no h colegialidade, e a concentrao dos poderes do papa somente aumenta com a extenso da cria romana, cujo papel nunca foi definido teologicamente. Tudo sucede como se os privilgios do papa fossem extensveis a toda a administrao do Vaticano. Ignora-se a crtica de toda a administrao.

  • Mandrgora, v.20. n. 20, 2014, p. 85-100 99

    Faz pelo menos 100 anos que se sabe que a parquia urbana est falida. Ela impede a presena da Igreja na sociedade e na cultura ur-bana, criando no meio da cidade ilhas que so como guetos religiosos que atraem cada vez menos pessoas e no exercem influncia na vida da cidade. As parquias urbanas aumentam a invisibilidade da Igreja, ao invs de diminu-la. Outras estruturas devem surgir para assegurar uma verdadeira visibilidade no conjunto das atividades que animam uma cidade. Isto supe outra distribuio do clero, outra repartio de ministrios e o surgimento de novos ministrios leigos que constituam verdadeiras responsabilidades dotadas de verdadeiros poderes. Uma pastoral urbana supe uma reforma total da formao dos sacerdotes, dos religiosos e dos leigos. Tudo isso parte do estudo do direito can-nico porque prepara outro direito de inspirao radicalmente diferente. O direito da humanidade contempornea um direito que enuncia e defende os direitos dos cidados, assim como sua participao nos poderes da sociedade.

    CONCLUSOTudo aquilo a tarefa dos pensadores cristos e de todos os que

    querem perscrutar a mensagem de Jesus. A prioridade a descoberta da tradio de vida pela qual a vida de Jesus se reproduz atravs dos sculos formando um povo. Pois a palavra de Deus a vida de Jesus. Os elementos da teologia tradicional precisam ser submetidos a uma reviso crtica. Esta j est sendo feita por vrios telogos, ainda que de modo discreto, para no assustar. Tudo aquilo est mais ou menos consciente em muitos membros da hierarquia, em muitos sacerdotes e muitos religiosos, sem falar dos leigos. Mas no se expressa por um sentimento de respeito pela autoridade, como se tudo tivesse que comear com iniciativas da autoridade suprema. Joo XXIII abriu o ca-minho quando decidiu que o Conclio no faria condenaes, mudando assim uma tradio que comeou em Niceia. Era a porta aberta para uma teologia que deixa de estar preocupada pelas heresias e pelos ensinamentos do magistrio lutando contra as heresias.

    Hoje h a prioridade da evangelizao e de uma Igreja mission-ria. A realizao prtica desse projeto lenta porque supe reformas

  • 100 Mandrgora, v.20. n. 20, 2014, p. 85-100

    importantes e falta audcia para inici-las. Fala-se de misso e evange-lizao, mas falta a coragem para fazer as transformaes necessrias, por exemplo, na teologia e na formao crist em geral. No podemos perder a esperana. Um dia chegar quando teremos a coragem de voltar s origens para reunirmo-nos de novo com a tradio de vida que a palavra de Deus.