A VIRGEM MARIA NA PATRÍSTICA - Editora da PUCRS€¦ · 1 Primeiro período da Patrística . 1.1....

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A VIRGEM MARIA NA PATRÍSTICA Profa. Dra. Maria Rodica Tutas * Introdução Estimados docentes, alunos e amigos! Recebi o convite de Dom Leomar Brustolin, Bispo Auxiliar de Porto Alegre e Coordenador da Pós-Graduação da PUCRS para apresentar neste Congresso de Mariologia o tema A Virgem Maria na Patrística. É uma bela oportunidade, poder testemunhar o amor que tenho pela Virgem Maria, amor recebido ainda na família e transmitido por minha mãe. Sempre tive grande devoção à Virgem Maria. Sua presença materna e espiritual é um farol que ilumina minha vida de monja e missionária além-fronteiras. “A nossa vocação é virginal e mariana. Maria não teve de condenar o mundo, este é que veio quebrar-se de encontro à mansidão. Assim deve ser a alma contemplativa, cuja missão não é julgar os homens, mas repousar em Deus.” 1 Diante da grandeza e profundidade do tema que me foi confiado, de sua importância que tem para o estudo da teologia e a vida da Igreja, desde já sei que não será possível expor toda a riqueza que a Patrística oferece do ponto de vista literário, teológico, dogmático, espiritual e artístico. O pensamento dos Padres da Igreja é de uma extraordinária riqueza! Suas obras teológicas requerem muito mais tempo e me sinto pequena diante do tamanho desafio. No entanto, tentarei partilhar pinceladas do tão riquíssimo patrimônio teológico e espiritual que a Patrística oferece sobre a Virgem Maria. O período patrístico inicia com a segunda metade do século I e se estende até o século VI, no Ocidente, com Isidoro de Sevilha (c. 570-636), e o século VIII, no Oriente, com João Damasceno (750). Os testemunhos, as cartas, os rituais, as doutrinas foram elaboradas, constituindo o tesouro da fé cristã. Os primeiros escritos patrísticos são contemporâneos a uma parte dos textos do Novo Testamento. Eles mostram como a fé cristã foi plantada no coração dos discípulos de Jesus e transmitida aos seus seguidores que assumiram seu projeto, difundiu-se até os confins do mundo. No segundo período da Patrística o pensamento teológico sobre a Virgem Maria encontra- se relacionado com a elaboração dos dogmas cristológicos. Seus protagonistas são Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Basílio Magno, assim como: Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona, Cirilo de Jerusalém. * Romena, monja eremita e iconógrafa. Possui Doutorado em Ciências Eclesiásticas Orientais pelo Pontifício Instituto Oriental de Roma. É professora na Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília, no Instituto São Boaventura de Brasília e Professora de Patrística no Instituto Redemptoris Mater. Contato: [email protected]. 1 UM CARTUXO. A Vida em Deus, p. 101. Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1

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  • A VIRGEM MARIA NA PATRÍSTICA

    Profa. Dra. Maria Rodica Tutas*

    Introdução

    Estimados docentes, alunos e amigos!

    Recebi o convite de Dom Leomar Brustolin, Bispo Auxiliar de Porto Alegre e Coordenador

    da Pós-Graduação da PUCRS para apresentar neste Congresso de Mariologia o tema A Virgem

    Maria na Patrística. É uma bela oportunidade, poder testemunhar o amor que tenho pela Virgem

    Maria, amor recebido ainda na família e transmitido por minha mãe. Sempre tive grande devoção

    à Virgem Maria. Sua presença materna e espiritual é um farol que ilumina minha vida de monja e

    missionária além-fronteiras. “A nossa vocação é virginal e mariana. Maria não teve de condenar o

    mundo, este é que veio quebrar-se de encontro à mansidão. Assim deve ser a alma contemplativa,

    cuja missão não é julgar os homens, mas repousar em Deus.”1

    Diante da grandeza e profundidade do tema que me foi confiado, de sua importância que

    tem para o estudo da teologia e a vida da Igreja, desde já sei que não será possível expor toda a

    riqueza que a Patrística oferece do ponto de vista literário, teológico, dogmático, espiritual e

    artístico. O pensamento dos Padres da Igreja é de uma extraordinária riqueza! Suas obras

    teológicas requerem muito mais tempo e me sinto pequena diante do tamanho desafio. No

    entanto, tentarei partilhar pinceladas do tão riquíssimo patrimônio teológico e espiritual que a

    Patrística oferece sobre a Virgem Maria.

    O período patrístico inicia com a segunda metade do século I e se estende até o século VI, no

    Ocidente, com Isidoro de Sevilha (c. 570-636), e o século VIII, no Oriente, com João Damasceno

    (750). Os testemunhos, as cartas, os rituais, as doutrinas foram elaboradas, constituindo o tesouro

    da fé cristã.

    Os primeiros escritos patrísticos são contemporâneos a uma parte dos textos do Novo

    Testamento. Eles mostram como a fé cristã foi plantada no coração dos discípulos de Jesus e

    transmitida aos seus seguidores que assumiram seu projeto, difundiu-se até os confins do mundo.

    No segundo período da Patrística o pensamento teológico sobre a Virgem Maria encontra-

    se relacionado com a elaboração dos dogmas cristológicos. Seus protagonistas são Gregório de

    Nissa, Gregório de Nazianzo, Basílio Magno, assim como: Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona,

    Cirilo de Jerusalém.

    * Romena, monja eremita e iconógrafa. Possui Doutorado em Ciências Eclesiásticas Orientais pelo Pontifício Instituto

    Oriental de Roma. É professora na Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília, no Instituto São Boaventura de Brasília e Professora de Patrística no Instituto Redemptoris Mater. Contato: [email protected].

    1 UM CARTUXO. A Vida em Deus, p. 101.

    Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1

  • 50 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    No terceiro período da Patrística, a mariologia alcança seu auge com João Damasceno,

    Andréa de Creta, Teodoro Estudita, Germano de Constantinopla e Epifânio, o Monge. Este último,

    inclusive escreveu um tratado intitulado A Vida de Maria. Todos eles deram uma grande

    contribuição à fundamentação dos quatro dogmas marianos.

    1 Primeiro período da Patrística

    1.1 Maria, Mãe de Jesus2

    Na transição da tradição bíblica para a Patrística constata-se que nem o Novo Testamento

    nem os escritos dos Padres da Igreja oferecem uma mariologia sistemática, mas apenas peças de

    mosaico sobre pontos doutrinais individuais e sobre a figura de Maria, que o Evangelista Lucas

    delineara.

    Nos primórdios do cristianismo, os testemunhos sobre a Virgem Maria no Novo Testamento

    e na literatura apócrifa, como também a preeminência cristológica nas controvérsias teológicas

    tornaram a figura de Maria um tema da Patrística. A posição dos Padres da Igreja expressou-se,

    sobretudo no âmbito de outros temas, a serviço seja do ensinamento da fé (catequese), seja de sua

    defesa (apologia) contra as várias heresias, principalmente contra o judaísmo e a gnose.

    1.2 O surgimento das heresias

    No século II, Valentin é o primeiro a adaptar as suas doutrinas tiradas da heresia gnóstica.

    Ele afirmava que Cristo nasceu por meio de Maria e não de Maria. Na verdade os judeus

    inventaram que a mãe de Jesus foi expulsa pelo carpinteiro por ter sido culpada de adultério com

    o soldado chamado Pantera. A invenção desta lenda objetivou “negar a conceição milagrosa pelo

    Espírito Santo”3.

    O primeiro livro do tratado de Ireneu de Lião, Contra as heresias mostra o contexto histórico

    e religioso marcado por muitas controvérsias e proliferação das falsas doutrinas. Apesar de

    extensa, a citação abaixo oferece uma ideia do desafio que os Padres da Igreja enfrentaram na

    elaboração da cristologia e da mariologia da época.

    Há uma Díada inefável, um dos elementos chama-se Inexprimível, o outro Silêncio. Esta Díada emitiu outra Díada, um elemento dela chama-se Pai e o outro Verdade. Esta Tétrada frutificou o Logos e a Vida, o Homem e a Igreja: eis então formada a primeira Ogdôada. Do Logos e da Vida emanaram dez Potências: uma delas se afastou, foi degradada e fez o restante da obra da fabricação. Valentin estabelece depois dois Limites, entre o Pleroma e o Abismo que separa os Éões gerados do Pai ingênito e o outro que divide a sua Mãe do Pleroma. O Cristo não foi produzido pelos Éões que estão no Pleroma, mas pela Mãe que estava fora dele e se lembrava das realidades superiores, mas não sem alguma sombra. Sendo o Cristo masculino, tirou de si mesmo esta sombra e voltou para o Pleroma. A Mãe, então deixada na sombra e esvaziada da substância pneumática, gerou outro filho, o Demiurgo, onipotente sobre todas as coisas submetidas a ele. E diz, de forma semelhante àquela dos que nós chamaremos gnósticos, que, junto com ele, foi também gerado Arcontes da esquerda. Quanto a Jesus, ele o faz derivar ora do Éon que se separou da Mãe e se reuniu com os outros, isto é, Desejado; ora daquele que voltou ao Pleroma, isto é, Cristo; ora do Homem e da Igreja. Diz que o Espírito Santo foi emitido pela Verdade para

    2 Por quanto segue, cf. SÖLL, G. I. Maria, p. 885-887. Para esta informação, p. 885. 3 ORÍGENES. Contra Celso, p. 73.

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    julgar e fecundar os Éões, entrando invisivelmente neles e por seu meio os Éões produziram frutos de verdade. Isto é o que ensina Valentim.4

    Marcião mutilou o Evangelho de Lucas, eliminando tudo o que se refere à geração do Senhor.

    Também excluiu passagens dos escritos paulinos referentes às profecias sobre a vinda de Jesus.

    Segundo Marcião Jesus não teve alma humana nem um corpo terreno, nem nasceu de Maria, a não

    ser que repentinamente apareceu em Judéia com a idade de trinta anos num corpo imaginário

    (como uma fantasia). Sua doutrina elimina a matéria5.

    Apeles6, discípulo de Marcião, aceita que Cristo teve carne verdadeira, mas celestial, não de

    Maria, e refuta simplesmente que a Sagrada Escritura chama Cristo de “Filho do Homem”; teve

    paixões humanas, emoções humanas; menor escândalo é seu nascimento que sua morte.

    As falsas doutrinas levaram a um gradual desenvolvimento da mariologia. Sobretudo os

    escritos dos Padres Orientais oferecem uma ampla reflexão sobre a figura de Maria vista como

    Nova Eva. É possível delinear a vida de Maria segundo três momentos: antes da encarnação do

    Verbo, a partir da anunciação até a vida pública de seu Filho Jesus e durante o ministério público

    de Jesus Cristo.

    Hipólito de Tebas, escritor grego, que viveu no final do século VII e inicio do século VIII,

    apresenta uma cronologia exata sobre a vida de Maria, porém sem indicar as fontes. Assim relata:

    A Santa Theotokos viveu, de fato, entre os homens, cinquenta e nove anos, que se dividem desta forma: quatorze anos no templo, na casa de José quatro meses e no entanto foi evangelizada pelo anjo; concebeu e deu a luz Nosso Senhor Jesus Cristo o dia 25 de dezembro, tinha em torno de quinze anos; viveu trinta e três anos após a Encarnação de Nosso Senhor, e após a Assunção de Nosso Senhor viveu com os discípulos na casa de João o Evangelista durante onze anos, total de anos de sua vida foram cinquenta e nove anos7.

    No pensamento dos Padres Orientais, as temáticas abordadas sobre a figura da Virgem

    Maria tratam: o paralelismo Eva-Maria, Maria é a nova Eva; a virgindade perpétua de Maria; a

    maternidade divina de Maria; a santidade de Nossa Senhora e a morte e assunção de Maria.

    Os escritos dos Padres Apostólicos e Apologistas, assim como os escritos apócrifos, colocam

    as bases do pensamento mariologico.

    1.3 Inácio de Antioquia (†110)

    No início do segundo século, a primeira testemunha da inserção da doutrina mariológica no

    patrimônio dogmático da Igreja é Inácio de Antioquia. Na sua viagem para Roma, onde ia ser

    martirizado, escreveu sete cartas nas quais mostra como o evento salvífico de Cristo apoia-se na

    real maternidade da Virgem Maria. A concepção virginal de Jesus, seu nascimento real e sua morte

    na cruz são três mistérios que se realizam no silêncio de Deus8.

    No confronto dialético do humano e do divino em Jesus Cristo, Inácio preparou as

    posteriores declarações do Concílio de Calcedônia (Aos Efésios 7,2), deu à virgindade de Maria, à

    sua concepção e à morte do Senhor o nome de “três grandiosos mistérios” (Aos Efésios 19,1).

    4 IRENEU. Contra as Heresias, I, 11.1, p. 64-65. 5 Cf. IRENEU. Contra as Heresias, I, 27,2, p. 109. 6 Cf. GIANOTTO, C. Apeles, p. 126. 7 EPIFANIO MONJE. Vida de María, p. 158. 8 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Aos Efésios 18-19. In: Padres Apostólicos, p. 88.

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  • 52 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    Segundo Inácio, Cristo é da Estirpe de Davi e de Maria; verdadeiramente nasceu, comeu e

    bebeu; verdadeiramente foi crucificado e morreu. O evento salvífico de Cristo apoia-se na real

    maternidade de Maria. A concepção virginal de Jesus, seu nascimento verdadeiro e a morte de

    cruz são três mistérios que se realizaram no silêncio de Deus9:

    O nosso Deus, Jesus, Cristo, foi trazido no seio de Maria, segundo o plano de Deus, nascido da descendência de David e do Espírito Santo, Nasceu e foi Batizado para purificar a água pela sua paixão (Aos Efésios, 18). E permaneceram ocultos ao príncipe desse mundo a Virgindade de Maria e seu parto, bem como a morte do Senhor: três mistérios de clamor, realizados no silêncio de Deus (Aos Efésios, 19).10

    Para compreensão destes mistérios o cristão é desafiado entrar no silêncio de Deus.

    Os Padres da Igreja ensinam que se Jesus nasceu da Virgem Maria, ninguém senão ela pode

    gerar Jesus. Assim como no “sim” de Abraão foi selada a antiga aliança, pelo “sim” de Maria Deus

    instaurou uma nova aliança. Ambos acreditaram e geraram a vida. Maria gerou Àquele que se

    identificou com o “Caminho, a Verdade e a Vida”. Curioso é que nunca foi negado a Nossa Senhora

    a prerrogativa de Mãe de Deus, seus contemporâneos nunca negaram que ela fosse a Mãe de Jesus

    (cf. Mc 6,1-3). A crise partiu dos ebionitas11 e docetistas12.

    O docetismo afirmava que o Salvador não teve um verdadeiro corpo humano, a menos que

    passou através do corpo da Virgem sem ser formado de sua substância. Há outra negação: os

    gnósticos distinguiam entre Jesus nascido de Maria e Cristo descido em Jesus no momento do

    batismo; aqui se nega implicitamente que o filho de Maria foi Deus.

    A reação cristã dos primeiros três séculos foi categórica, mesmo que não se trata de atribuir

    o título de Mãe de Deus a Nossa Senhora, pois ainda não se tinha certeza do título antes do século

    IV. Contudo, os Padres Orientais se posicionaram com firmeza afirmando que Jesus

    verdadeiramente nasceu de Maria e Jesus, nascido de Maria, é Deus.

    Na sua Carta aos Tralianos, Inácio de Antioquia, refuta os hereges afirmando que Jesus

    Cristo é descendente de Davi e Filho de Maria; verdadeiramente nasceu, comeu e bebeu13. Mas

    ainda, Jesus Cristo “nascido de Maria é Deus”14. Como esta última expressão induzia a imaginar

    dois indivíduos em Cristo, um humano (nascido de Maria) e outro divino (de Deus), Inácio afirma:

    “O nosso Deus Jesus Cristo, segundo a economia de Deus, foi levado no seio de Maria, da

    descendência de Davi e do Espírito Santo. Ele nasceu e foi batizado para purificar a água na sua

    paixão”15.

    Pápias, bispo de Hierápolis, (70 a 140 d. C.) teria sido discípulo de João e contemporâneo de

    Inácio de Antioquia16. Num trecho em que estabelece um paralelo entre os sete dias da criação e

    9 Cf. KRIEGER, M. Com Maria, a Mãe de Jesus, p. 73. 10 INÁCIO DE ANTIOQUIA. In: Padres Apostólicos, p. 88. 11 Trata-se de um número indefinido de seitas judeu-cristãs que acolheram Jesus como um simples homem, viviam

    segundo a lei judaica e rejeitaram os escritos de Paulo. Ireneu é o primeiro a citá-los como um grupo herético. Cf. KLIJN, A. F. J. Ebionitas, p. 437.

    12 O docetismo professa o modo dualista, espiritualista de explicar a encarnação e a paixão, excluindo tudo que parece indigno de Deus; é uma tendência a subestimar a realidade histórica da obra de Cristo. Despreza a verdadeira humanidade de Jesus, base da salvação. Cf. STUDER, Basílio. Docetismo, p. 421.

    13 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Aos Efésios. In: Padres Apostólicos, p. 84. 14 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Aos Efésios 7,2. In: Padres Apostólicos, p. 84. 15 Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Aos Efésios 18,2. In: Padres Apostólicos, p. 88. 16 Cf. Padres Apostólicos, p. 321.

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    os sete dias da atividade redentora, afirma que o “anjo trouxe a Maria a nova alegria num dia em

    que o dragão seduziu a Eva”17. Essa afirmação foi desenvolvida também por Justino e mais tarde

    no Concílio de Éfeso. “É possível para ti alcançar a felicidade, reconhecendo o Cristo de Deus e

    iniciando-te em seus mistérios”18.

    1.4 A Virgem Maria nos Padres Apologistas

    O período pós-apostólico até o Concílio de Nicéia (325) é marcado pela evolução do

    pensamento mariológico. Maria concebeu a Deus! Esta é a verdade que os Padres Apologistas

    defenderão em contraposição ao paganismo, judaísmo e surgimento das inúmeras heresias19.

    Um precioso escrito da literatura apologética conhecido como Carta a Diogneto mostra a

    iniciativa divina na obra da salvação e a superioridade do cristianismo em relação ao paganismo

    e ao judaísmo.

    Nenhum homem viu, nem conheceu, mas ele próprio se revelou a nós. Revelou-se mediante a fé, unicamente pela qual é concedido ver a Deus. [...] Quando, por meio de seu Filho amado, revelou e manifestou o que tinha estabelecido desde o princípio, concedeu-nos junto todas as coisas: não só participar dos seus benefícios, mas ver e compreender coisa que nenhum de nós teria jamais esperado20.

    A dimensão do mistério na vida de Maria permeia toda a Patrística. Percebe-se essa

    realidade nos primeiros escritos da literatura cristã antiga, tanto dos Padres Apostólicos como

    dos Apologistas no século II.

    Na sua Apologia segundo os fragmentos Gregos, Aristides defende a verdadeira religião e a

    fé dos cristãos em Cristo como Filho do Deus Altíssimo no Espírito Santo que nasceu de uma

    virgem santa, sem germe de corrupção e apareceu aos homens, para afastá-los do erro do

    politeísmo21.

    No Discurso aos Gregos, Taciano, o Sírio, explica o mistério da geração do Verbo por

    participação: “Da mesma forma que de uma só tocha se acendem muitos fogos, mas o fato de

    acender não diminui a luz da primeira, assim também o Verbo, procedendo da potência do Pai,

    não deixou sem razão aquele que o havia gerado”22.

    São Justino de Roma († 165) defendeu a concepção virginal de Jesus, que, embora atestada

    nos Evangelho, foi contestada pelos contemporâneos. Para Justino, entre Eva e Maria há um

    paralelo e um contraste: nos dois casos, uma mulher tomou uma decisão que teve consequências

    para toda a humanidade. Eva desconfiou de Deus e lhe desobedeceu, enquanto Maria acreditou e

    lhe obedeceu. O resultado foi, de um lado, o pecado e a morte; de outro, a salvação e a vida (cf. PG

    7, 958-960).

    Deus se fez homem de Maria! Justino não mostra interesse em ressaltar o papel redentor da

    Virgem, seu pensamento centra-se sobre Cristo. “Jesus Cristo é Filho e embaixador de Deus, e antes

    17 BURGHARDT, J. W. Maria en el pensamento de los Padres Orientais, p. 489. 18 JUSTINO. Diálogo com Trifão, n. 8, p. 123. 19 Cf. SÖLL, G. I, Maria, p. 885. 20 Padres Apologistas, p. 51. 21 Cf. Padres Apologistas, p. 51. 22 Padres Apologistas, p. 69-70.

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    era Verbo, que apareceu algumas vezes em forma de fogo, outras em imagem incorpórea e agora,

    feito homem [...] nasceu de uma virgem por vontade do Pai”23.

    Além de defender a virgindade de Maria antes do parto, Justino foi o primeiro a introduzir

    o paralelismo Eva-Maria:

    De fato, quando ainda era virgem e incorrupta, Eva tendo concebido a palavra que a serpente lhe disse, deu à luz a desobediência e a morte. A virgem Maria, porém, concebeu fé e alegria, quando o anjo Gabriel lhe deu a boa notícia de que o Espírito Santo viria sobre ela e a força do Altíssimo a cobriria com sua sombra”24.

    A intuição de Justino é mostrar que o caminho da redenção do ser humano caminha em

    paralelo com sua queda. Em ambos interveio uma virgem. Maria deu à luz obediência e alegria.

    “Foi demonstrado que tudo isso foi ordenado por causa da dureza de vosso coração, do mesmo

    modo, por vontade do Pai, tudo teria terminado em Cristo, Filho de Deus, nascido da virgem da

    descendência de Abraão, da tribo de Judá e de Davi.”25 Mais uma vez aparece a dimensão do

    mistério: Justino, evocando as profecias do Antigo Testamento, deixa claro que a descendência de

    Cristo não admite explicação humana.

    “Quem cantará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra. Pelas iniquidades do meu povo ele foi conduzido à morte” (Is 53,8). O Espírito profético disse isso por ser inexplicável a descendência daquele que morreria para curar a todos nós, homens pecadores, com as suas chagas. [...] Vede que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado com o nome de Emanuel (Is 7,10-16; 8,4; 7,16-17)26.

    O Diálogo com Trifão representa a mais antiga controvérsia entre o cristianismo e judaísmo.

    Nele, Justino mostra o universalismo do cristianismo, suplantando o judaísmo, realizando

    plenamente as profecias do Antigo Testamento. Trata-se da derrogação da lei antiga e o advento

    da nova. Justino defende que no Antigo Testamento quem falou a Moisés não foi o Pai, e sim Cristo,

    Filho de Deus, o Verbo que “nasceu homem de uma virgem, conforme o designo do Pai”27. Por fim,

    o esforço de Justino é explicar que a encarnação só é compreendida a partir das Escrituras28.

    O paralelismo de Justino sobre Eva e Maria foi retomado e desenvolvido por Ireneu de Lião

    (†202) a partir do qual foi possível esclarecer tanto a dimensão soteriologica quanto ética da

    Virgem Maria.

    1.5 A Virgem Maria no pensamento de Ireneu de Lião

    Ireneu de Lião é considerado protagonista chave da mariologia. Seu pensamento ressalta o

    caráter soretiologico do consentimento de Maria no momento da anunciação: o objetivo não foi

    só a encarnação, e sim a encarnação manifestamente redentora. O fato indica que a analogia Eva-

    Maria, destinada a ser tema principal da mariologia bizantina na época posterior, surgiu na Ásia

    Menor, e o centro principal foi a comunidade cristã de Éfeso e arredores. Sua teologia é fruto da

    23 JUSTINO. Apologia I, n. 63, p. 123. 24 JUSTINO. Diálogo com Trifão, n. 100, p. 265. 25 JUSTINO. I e II Apologias. Diálogo com Trifão, n. 43, p. 172. 26 JUSTINO. I e II Apologias. Diálogo com Trifão, n. 43, p. 172-173. 27 JUSTINO. I e II Apologias. Diálogo com Trifão, p. 80. 28 JUSTINO. I e II Apologias. Diálogo com Trifão, n. 68, p. 216-218.

    Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1

  • A Virgem Maria na Patrística 55

    intimidade com a Palavra de Deus, donde tira profunda compreensão do mistério da redenção. As

    temáticas centrais de sua teologia são:

    1. Recapitulação (Adv. Haer. II, 22,4),

    2. Maria como Advocata Evae (Adv. Haer. V, 19,1)

    3. Maria Causa salutis (Adv. Haer. III, 22,4)

    4. Introduziu o uso dos outros nomes (epitheta ornantia) que confluirão mais tarde nas ladainhas.

    5. Abriu a via da inserção de Maria no Símbolo (Adv. Haer. I, 10,1).

    Entre Eva e Maria há um paralelo e um contraste com profundas consequências para

    humanidade. Eva desconfiou de Deus e lhe desobedeceu, enquanto Maria acreditou e lhe

    obedeceu. Eva trouxe o pecado e a morte, Maria tornou-se causa de salvação e vida (cf. PG 7, 958-

    960)29.

    O título “Mãe de Deus” ainda não aparece no pensamento de Ireneu. No entanto, existem aí

    os dois componentes deste conceito: o reconhecimento da preexistente divindade de Cristo e a

    realidade de seu nascimento terreno. Assim ele ressalta a vitória de Cristo e a economia da Virgem

    Maria.

    Quando o Senhor veio de modo visível ao que era seu, levado pela própria criação que ele sustenta, tomou sobre si, por sua obediência, no lenho da cruz, a desobediência cometida por meio do lenho. A sedução de que foi vítima, miseravelmente, a virgem Eva destinada a varão, foi desfeita pela boa-nova da verdade, maravilhosamente anunciada pelo anjo à Virgem Maria, já desposada a varão. Assim como Eva foi seduzida pela fala de anjo e afastou-se de Deus, transgredindo a sua palavra, Maria recebeu a boa-nova pela boca de anjo e trouxe Deus em seu seio, obedecendo à sua palavra. Uma deixou-se seduzir de modo a desobedecer a Deus, a outra deixou-se persuadir a obedecer a Deus, para que, da virgem Eva, a Virgem Maria se tornasse advogada. O gênero humano que fora submetido à morte por uma virgem, foi libertado dela por uma virgem; a desobediência de uma virgem foi contrabalançada pela obediência de uma virgem; mais, o pecado do primeiro homem foi curado pela correção de conduta do Primogênito e a prudência da serpente foi vencida pela simplicidade da pomba: por tudo isso foram rompidos os vínculos que nos sujeitavam à morte30.

    Na teologia de Ireneu, Maria, como segunda Eva tem uma função determinada dentro do

    plano de Deus para a redenção do homem. A cooperação da primeira Eva trouxe a morte espiritual

    do homem, a cooperação de Maria com Deus repercutiu na obra da redenção e no retorno do

    homem à vida. Sua cooperação implica uma atividade de ordem moral: deu ao anjo Gabriel e a

    Deus seu livre consentimento determinante para a soteriologia.

    Consequência da última transgressão do mandamento de Deus (Gn 2,17) foi a morte – moris

    carne – da qual o Criador havia gratuitamente isentado o homem. Consequência da vitória do

    inimigo foi a escravidão de Adão e de sua estirpe sob o poder do diabo.

    Mais do que a relação da criatura para com seu Criador, Ireneu, no delito de Adão, sublinha a vitória do inimigo: diretamente sobre a obra predileta de Deus e indiretamente sobre o próprio Criador. Este não se contenta com apenas reabilitar o homem só diante de Deus; intenta reabilitá-lo também com uma vitória justa e definitiva sobre o inimigo31.

    29 Cf. IRENEU, Contra as Heresias. III, 19,3, p. 338. 30 IRENEU, Contra as Heresias. V, 19,1, p. 569. 31 ORBE, A. Ireneu, p. 716-720. Para esta informação, p. 719.

    Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1

  • 56 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    Ireneu, ao falar da gnose verdadeira e gnose falsa, destaca o perfil do verdadeiro discípulo

    espiritual que saberá discernir as heresias e as falsas opiniões gnósticas, sobretudo os ebionitas.

    Adiantando-se com oportuna prudência, pôs como eixo a palavra “fides” para o paralelismo Maria

    – Igreja: “Mas como [os homens] irão abandonar o nascimento de morte, se, por meio da fé, não

    forem regenerados por um novo nascimento, dado inopinadamente por Deus, como sinal de

    salvação, aquele que se realizou pela Virgem?”32.

    Como podem os homens se salvarem, se Deus não é quem opera a salvação na terra? Ou como o homem irá a Deus, se Deus não veio ao homem? Como poderão eles abandonar a geração da morte, se não for por novo nascimento dado por Deus de maneira inesperada e maravilhosa em sinal de salvação, aquele que aconteceu no seio da Virgem, e serem regenerados pela fé? [...] Por isso, no fim, o próprio Filho de Deus mostrou esta semelhança, fazendo-se homem assumindo em si a antiga criatura33.

    Ireneu cita o cumprimento das profecias a respeito do nascimento de Cristo como mistério

    inefável, tendo uma origem inexprimível a linguagem humana: “o puro que abre de modo puro o

    seio puro que regenera os homens em Deus, que ele fez puro; e tendo-se feito aquilo mesmo que

    nós somos, é o Deus forte e possui origem inexprimível”34. Sua afirmação de que Cristo veio à luz

    “purus purê puram aperiens vulvam” (IV, 33,11) não evoca o sentido da virginitas in partu e post

    partum.

    Em 333, o persa Afraates, lembrou por sua vez que por meio de uma mulher, o demônio teve

    acesso sobre os homens. Por causa de Eva a terra foi amaldiçoada e produziu espinhos, mas “pela

    vinda do Filho de Maria, os espinhos foram arrancados, a maldição foi pregada na cruz, a ponta da

    espada foi atirada na arvore da vida, (a qual) deu-se como alimento aos fieis”35.

    2 Segundo período da Patrística

    Com o Edito de Milão (313) o cristianismo recebeu liberdade de culto sob o imperador

    Constantino. Ao cessar as perseguições externas, a Igreja deparou-se com dificuldades internas

    surgidas pelas heresias (arianismo, nestorianismo, pneumatomacos, monofisimo etc.), o que

    resultou num enorme progresso na elaboração doutrinária da fé. Este período da Patrística é

    considerado época de ouro. Nos Concílios Ecumênicos de Nicéia (325), Constantinopla I (381),

    Éfeso (431) e Calcedônia (451) os debates teológicos tiveram como centro de suas discussões a

    pessoa divina e humana de Jesus Cristo, a divindade do Espírito Santo e a pessoa da Virgem Maria,

    como Mãe de Jesus Cristo e Mãe de Deus.

    No campo da mariologia, a Igreja assistiu à definitiva afirmação dos dois mais antigos

    dogmas marianos: maternidade divina e virgindade perpétua de Maria. O título Theotókos surge

    no ambiente alexandrino, com o bispo Alexandre de Alexandria e Atanásio, relacionado com a

    elaboração dos dogmas cristológicos.

    32 IRENEU, Contra as Heresias, IV, 33,4. 33 IRENEU, Contra as Heresias. IV, 33,4, p. 473-474. 34 IRENEU, Contra as Heresias. IV, 33,11, p. 477-478. 35 AFRAATES. Demonstratio 6. In: Patrologia syriaca, p. 1.a. t. 1. col. 265.

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  • A Virgem Maria na Patrística 57

    Os primeiros cristãos tinham um conceito de dogma diferente do que existe hoje, como se o

    dogma negasse a liberdade, algo irracional. Outros relacionam o conceito de dogma a uma

    mensagem da salvação aprisionada em conceito da razão.

    A origem etimológica do “dogma” vem do grego édoksen, e significa uma obediência de fé,

    isto é, uma abertura a Deus, um momento de encontro de Deus com o homem e do homem com

    Deus. O dogma é fruto de uma experiência de fé com clara referência ao mistério. Portanto, o

    dogma é uma proclamação da ação salvadora de Deus na história em favor dos homens. É um sinal

    que indica o que se conseguiu conhecer com certeza e não um obstáculo na vivência da fé.

    2.1 Dogma na Patrística36

    O uso patrístico do termo dogma reflete o uso do helenismo clássico. Neste, a ideia

    fundamental é: “aquilo que parece (δοκει) ser justo”. Aplica-se, por um lado, em sentido mais

    teórico: opinião, doutrina, princípio filosófico e, por outro, em sentido prático: decisão tomada e

    promulgada por uma autoridade (nunca religiosa), isto é, edito, decreto.

    Por influência das heresias, os Padres Apologistas descobriram no cristianismo a verdadeira

    filosofia retomando o segundo significado de dogma relacionado ao conceito de heresia (hairesis),

    distinguindo o dogma ou os dogmas dos filósofos, dos dogmas dos hereges e dos cristãos37.

    É notável como Cirilo de Jerusalém e Gregório de Nissa opõem a fidelidade ao dogma

    (doutrina, ensinamento) à conduta moral boa. Basílio Magno (†369) distingue a ideia de dogma

    ou doutrina a se considerar ainda secreta, e kerygma, ensino público38.

    Para a compreensão dos dogmas é necessário considerar a pregação, os textos litúrgicos, os

    testemunhos da devoção cristã, a hagiografia e a arte cristã. Essas fontes refletem a consciência

    da fé que se encontra na base das confissões, dos decretos e dos cânones sinodais. Assim, percebe-

    se que a reflexão teológica dos Padres da Igreja contribuiu para elaboração de quatro dogmas

    sobre a Virgem Maria: Virgindade perpétua, Maternidade divina, Imaculada Conceição e Assunção

    de Maria. Dentre eles, Atanásio, Basílio Magno, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa

    defenderam a virgindade e a maternidade divina de Maria.

    2.2 Maternidade divina de Maria

    A reflexão patrística que fundamenta o dogma da maternidade divina ensina que Maria é a

    Mãe de Deus, pois Jesus Cristo, seu Filho, é filho de Deus e Deus ele mesmo. Deus nesta expressão

    designa unicamente a pessoa do Filho. Naturalmente, Maria não é a mãe da divindade de Jesus.

    Desde a Encarnação, contudo, não se pode separar nele a divindade da humanidade (cf. Gl 4,4; Mc

    6,3; Mt 1,18.25; 13,55; Jo 6,42; Lc 1,35.39-44,56).

    O nestorianismo, que negava a maternidade divina de Maria, encontrou um feroz adversário

    em Cirilo de Jerusalém, o qual conjurou a Nestório a aceitar o título de Theotokos39. O dogma da

    maternidade divina de Maria foi proclamado no Concílio de Éfeso (431): Maria é a Theotókos

    36 Cf. STUDER, B. Dogma, p. 421-423. Para esta informação p. 422. 37 Cf. ORÍGENES. Contra Celso, 3.39, p. 238-239. 38 Cf. BASÍLIO MAGNO. Sobre o Espírito Santo, 27.66, p. 168. 39 Cf. DROBNER, R. H. Manual de Patrologia, p. 451.

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  • 58 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    (θεοτοκος), a Mãe de Deus. Deus, na pessoa de Jesus, entrou no mundo e na história da

    humanidade.

    Maria é vista sempre em relação com seu Filho Jesus Cristo. Entre os protagonistas do

    segundo período da Patrística que merecem atenção estão os Padres Capadócios: Gregório de

    Nissa, Gregório de Nazianzo, Basílio Magno, assim como Epifânio, Bispo de Salamina (†402),

    Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona. Seus tratados enraízam o conceito de “Mãe de Deus”

    (Theotokos) na consciência cristã40. A mariologia alcançará seu ápice com João Damasceno,

    Andréa de Creta, Teodoro Estudita, Germano de Constantinopla e Epifânio, o Monge. Este último

    escreveu, inclusive, um tratado intitulado A Vida de Maria.

    Todos eles deram uma grande contribuição à fundamentação dos quatro dogmas marianos:

    Maternidade divina de Maria (Concílio de Éfeso, em 431); a Virgindade perpetua de Maria,

    (Concílio de Calcedônia, em 451 e de Constantinopla II, em 533); Imaculada Conceição, “a santa e

    sempre virgem e imaculada Maria” (Concílio Lateranense, em 649), e o dogma da Assunção de

    Maria, declarada por Pio XII. Este último cita João Damasceno como pregoeiro da Tradição:

    “Convinha que morasse no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara (Munificentíssimus

    Deus, 21)41.

    2.3 Reflexões marianas

    Ambrósio de Milão († 397) apresentou Maria como modelo das jovens que consagram sua

    virgindade a Deus42. “A vida de Maria representa para vós a imagem da virgindade: nela refulge

    como num espelho a beleza da castidade e o modelo das virtudes”43.

    O monge Efrém Sírio (306-373) contemplou Maria com um olhar penetrante e compôs

    poemas a serem cantadas pelas crianças. “Tua Mãe, Senhor, ninguém sabe como chamá-la. Vamos

    chamá-la de Virgem? Mas eis o seu Filho! Esposa? Mas nenhum homem a conheceu! Se é difícil

    descrever tua mãe, quanto não será difícil, então, te descrever?”44

    São Gregório de Nissa († 394) ressaltou a resposta de Maria ao anjo como expressão do voto

    de virgindade que teria feito.

    Alegra-te, tu que tens o favor de Deus, o Senhor está contigo. De ti nasceu aquele que é perfeito em dignidade, e no qual reside a plenitude da divindade. Alegra-te, tu que tens o favor de Deus, o Senhor está contigo. Com a serva (Lc 1,38), o rei; com a Imaculada, aquele que santifica o universo; com a bela, o mais belo dos filhos dos homens, para salvar o homem feito à sua imagem45.

    Epifânio (365/403), intransigente no que diz respeito aos fundamentos da fé, viu a Virgem

    Maria significada em Eva: “Nossa Senhora é mãe dos viventes” no mais profundo sentido da

    palavra, porque, “obedecendo à graça, deu a luz ao que vive, a Vida mesma, o Cordeiro, de cuja

    40 Cf. SÖLL, G. I, Maria, p. 885-887. Para esta informação p. 885-886. 41 JOÃO DAMASCENO, Panerigico II, 14, p. 171. 42 AMBRÓSIO. De Virginitatibus 2,2,7. 43 Liber de Institutione Virginis 7,49, PL 16, col. 333. 44 1a Estrofe do “Hino sobre o Nascimento”. In: Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, 186, Syr. 82, p. 69-70. 45 GREGÓRIO DE NISSA. Homilia. PG 46,1136.

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  • A Virgem Maria na Patrística 59

    glória, como de um véu, nos foi feito uma veste de imortalidade. Eva foi a causa da morte para os

    homens (πρόφασις), porque por ela ‘a morte veio ao mundo’ (Rm 5,12); porém Maria foi causa

    (πρόφασις) de vida: por ela, a Vida nos gerou”46. Epifânio acrescentou aos títulos Theotókos e

    Sempre Virgem, o de “Mãe dos Viventes”, em oposição ao papel desempenhado por Eva.

    2.4 Maria no pensamento de Agostinho

    No seu tratado Dos bens do matrimônio, A santa virgindade, Dos bens da viuvez,47 Agostinho

    ressalta a virgindade e a fecundidade de Maria em relação a Cristo e a Igreja. Jesus Cristo e a

    Virgem Maria são modelos de virgindade fecunda. Cristo é o esposo da Igreja, virgem e mãe. Aí

    está a finalidade do seu tratado. Agostinho suplica ajuda ao próprio Cristo, filho da Virgem e

    esposo das virgens, nascido corporalmente de seio virginal, e esposo espiritual das virgens.

    Ora, já que a Igreja universal é uma virgem desposada a um único esposo, que é Cristo, como diz o Apóstolo (2Cor 11,2), quão dignos de honra não hão de ser aqueles seus membros que guardam, em sua carne, o que toda a Igreja guarda na fé? Ela, que toma como modelo a mãe de seu esposo e Senhor. Pois a Igreja também é mãe e virgem. Se a Igreja não fosse virgem, por que haveríamos de zelar por sua integridade? E se ela não fosse mãe, de quem seriam filhos aqueles a quem dirigimos a palavras? Maria deu à luz corporalmente a Cabeça desse corpo. A Igreja dá à luz espiritualmente os membros dessa Cabeça. Nem em Maria nem na Igreja a virgindade impediu a fecundidade. E nem em uma nem em outra a fecundidade destruiu a virgindade. Portanto, se a Igreja universal é santa de corpo e espírito, sem contudo ser virgem universalmente pelo corpo, mas só pelo espírito, quanto mais excelente deve ser a santidade naqueles membros em que ela é virgem, e pelo corpo e pelo espírito48.

    Agostinho denomina a Igreja “virgem” com tal insistência que supõe uma doutrina firme e

    sólida. Porém, é necessário compreender o contexto, pois refere-se ao conceito de Igreja como

    “Corpo Místico”, isto é, à humanidade santificada por Cristo, vivendo de sua graça, fazendo um só

    com ele. A Igreja é a verdadeira Cidade de Deus, toda animada pelo Espírito de Deus. Mas a Igreja

    é também a Esposa de Cristo (cf. Paulo). É justamente por esse último título que a Igreja é chamada

    virgem. Com frequência ele a compara a Igreja com Maria, tanto mais que também é Mãe, como

    Maria, nossa Mãe pelo espírito.

    Diz Agostinho no Enchiridion (X,35): “A Igreja, imitando a mãe de Jesus, cada dia dá à luz

    novos membros, e permanece sempre virgem”. Essa virgindade da Igreja consiste na perfeita

    integridade da fé, da esperança e da caridade49.

    “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E, apontando para os discípulos com a mão,

    disse: “Aqui estão a minha mãe e os meus irmãos...” (Mt 12,46-50). Segundo Agostinho, o

    ensinamento de Jesus é um convite a antepor o parentesco espiritual ao parentesco carnal. Os

    bem-aventurados são os que seguem a doutrina e os exemplos dele50.

    46 EPIFÂNIO. Panarion 78, 18. 47 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, p. 101. 48 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 2, p. 102. 49 Cf. J. SAINT-MARTIN, A.A., Nota complementar n. 11, De sancta virginitate, t. III, p. 523. 50 Cf. AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 3, p. 102.

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  • 60 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    Assim, Maria tornou-se mais feliz recebendo a fé de Cristo do que concebendo a carne de Cristo. [...] Tampouco de nada houvera aproveitado o liame materno de Maria, se ela não tivesse sido mais feliz por ter trazido Cristo em seu coração do que em sua carne51.

    A virgindade de Maria, segundo Agostinho, já tinha sido consagrada a Deus antes da

    anunciação do anjo.

    O que tornou a virgindade de Maria tão santa e agradável a Deus não foi porque a concepção de Cristo a preservou, impedindo que sua virgindade fosse violada por um esposo, mas porque antes mesmo de conceber ela já a tinha dedicado a Deus e merecido, assim, ser escolhida para trazer Cristo ao mundo. É o que indicam as palavras de Maria em resposta ao anjo que lhe anunciava a maternidade: “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34)52.

    Agostinho explica que Maria não teria falado assim, se não houvesse consagrado

    anteriormente sua virgindade a Deus. A virgindade e a maternidade divina de Maria serviriam de

    inspiração para a vida consagrada na Igreja.

    Mas por estar destinada a servir de modelo às futuras virgens consagradas, era preciso não deixar parecer que unicamente ela deveria ser virgem, ela que merecera conceber fora do leito nupcial. Assim, consagrou sua virgindade a Deus, enquanto ainda ignorava de quem havia sido chamada a ser mãe53.

    Desse modo, Maria ensinava às outras a possibilidade de imitar a vida angélica (do céu) num

    corpo terrestre e mortal, em virtude de um voto e não de um preceito, e realizando-o por opção

    toda de amor, não por necessidade de obedecer54. A fecundidade espiritual de Maria e de suas

    imitadoras como adesão à vontade divina. “Pois elas também, unidas a Maria, são mães de Cristo,

    se fizerem a vontade do Pai”55.

    Hoje, o pensamento de Agostinho sobre a paternidade e a maternidade espiritual é de

    grande atualidade para a vida da Igreja. “Sua mãe é a Igreja inteira, pois, pela garça de Deus, ela

    dá à luz os seus membros que são os fiéis”56. A mãe de Cristo é também “toda alma piedosa que

    cumpre a vontade de seu Pai e cuja fecunda caridade manifesta-se naqueles que ela gera para ele,

    até que o próprio Cristo seja formado neles” (Gl 4,19)57. Ao fazer a vontade de Deus, Maria

    corporalmente só é a mãe de Cristo, mas espiritualmente é também sua mãe e irmã.

    Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum? (Lc 1,34). Como o celibato em si

    não era uma praxe entre os antigos, nem entre os judeus, o voto de virgindade do qual fala

    Agostinho foi uma novidade. Por isso, Maria foi confiada em casamento a “um varão justo, seu

    guardião”58.

    Mais tarde, Epifânio o Monge, no seu tratado sobre a Vida de Maria, vai mostrar que José e

    Maria (Theotokos) eram filhos de dois irmãos59. Anna Catarina Emmerich, uma mística

    51 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 3, p. 103. 52 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 4, p. 103. 53 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 4, p. 104. 54 Cf. AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 4, p. 104. 55 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 5, p. 105. 56 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 5, p. 105. 57 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 5, p. 105. 58 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 4, p. 103-104. 59 “Da estirpe de Natã, filho de Davi, procede Levi, que foi pai de Melqui e de Panter. Melqui casou e morreu sem filhos.

    [...] Joaquim e Eli, por parte de pai Panter, eram irmãos e Eli e Jacó o eram por parte de seu pai Mathan. Joaquim foi o pai da Theotokos e Eli o foi, segundo a lei, de José, de maneira que José e Maria eram filhos respectivamente de dois

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  • A Virgem Maria na Patrística 61

    agostiniana, fala dos antepassados de Nossa Senhora que tiveram relação com uma organização

    religiosa dos Essênios liderada pelo Arkos60, profeta do Monte Horeb e guia espiritual dos

    Essênios por 90 anos. Numa das visões relata como a avó de Santa Anna consultou o ancião sobre

    seu próprio casamento.

    É notável que era sempre sobre as meninas que estes profetas faziam previsões e que os antepassados de Anna, bem como ela própria, tinham filhas em sua maioria. Era como se o objeto de toda sua devoção e orações fosse obter de Deus uma bênção de mães piedosas de cujos descendentes a Bem-aventurada Virgem, a Mãe do Salvador, pudesse surgir, tanto quanto as famílias de Seu precursor e Seus servos e discípulos61.

    O lugar onde o líder dos Essênios orava e profetizava no Monte Horeb era a caverna em que

    o profeta Elias havia morado. Ali a avó de Santa Anna buscava conselhos do profeta Arcos.

    Agostinho ressalta a excepcional dignidade da Virgem Maria, a única a ser ao mesmo tempo

    virgem e mãe, não somente pelo espírito, mas também pelo corpo. Jesus não nasceu de relações

    matrimoniais normais, mas de uma concepção operada pelo Espírito Santo no seio da Virgem

    Maria (cf. Mt 1,18-25; Lc 1,16-38).

    O Protoevangelho de Tiago conta como José levou Maria para uma caverna no momento do

    nascimento de Jesus e, deixando seus filhos com ela (pois era viúvo), foi buscar uma parteira na

    região de Belém. O texto relata fenômenos extraordinários que encontra no caminho.

    É Maria, a que se criou no templo do Senhor, e ainda que me tivesse sido dada por mulher, não é, pois concebeu por virtude do Espírito Santo. E interrogou-lhe a parteira: “Isso é verdade?” José respondeu: “Vem e verás”. Então a parteira se pôs a caminho junto com ele. Ao chegar à gruta, pararam, e eis que estava sombreada por uma nuvem luminosa. E exclamou a parteira: “Minha alma foi engrandecida, porque meus olhos viram coisas incríveis, pois que nasceu a salvação para Israel”62.

    Ao sair a parteira da gruta, veio ao seu encontro Salomé, a qual não acreditou e, exigindo

    tocar com os dedos e examinar a natureza, foi punida pela sua incredulidade, tendo a mão

    carbonizada. Em seguida, orientada pelo anjo a aproximar a mão do menino, sentiu-se curada e

    exclamou: “Adorar-te-ei, porque nascente para ser o grande Rei de Israel”63.

    O dogma da Virgindade perpetua de Maria é citada em diversos concílios: Calcedônia (451):

    “Jesus é nascido da Virgem Maria”; Constantinopla II (553): “encarnou-se da gloriosa Theotókos e

    sempre Virgem Maria”; Lateranense (649): “a santa e sempre virgem e imaculada Maria”.

    No pensamento de Agostinho está delineada a grandeza de Maria, mas também da alma fiel

    a Deus tanto na vida consagrada como matrimonial.

    Maria é a mãe conforme o espírito, não de quem é nossa Cabeça, isto é, do Salvador do qual ela nasceu espiritualmente. Pois todos os que creram – e nesse número ela mesma se encontra – são chamados com razão “filhos do esposo” (Mt 9,15). Mas ela é certamente a mãe de seus membros – que somos nós – porque cooperou com sua caridade para que

    irmãos. José, era de profissão carpinteiro e por parte de Jacó teve como irmão de sangue Cléofas, que também se chama Cleopa”.

    60 Cf. EMMERICH, A. C. Santíssima Virgem Maria, p. 17-28. 61 EMMERICH, A. C. Santíssima Virgem Maria, p. 26. 62 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, p. 118-119. 63 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, p. 120.

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  • 62 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    nascessem os fiéis na Igreja, os membros desta divina Cabeça, da qual ela mesma é verdadeira mãe conforme a carne64.

    Para Agostinho, Maria é a Mãe de Cristo, e a Igreja é a mãe dos membros de Cristo. Se Cristo

    é a Cabeça do seu corpo, Maria é o membro mais santo, mais eminente deste (cf. PL 46, 938). Maria

    concebeu o Filho de Deus, a Palavra de Deus, mas o “concebeu antes de tudo no seu espírito e só

    depois em seu ventre” (PL 38,1074). Esse pensamento de Agostinho influenciará toda a tradição

    posterior. “Sua concepção te doou o dom da fecundidade e seu nascimento não tirou de ti a honra

    da virgindade”65.

    Cristologia, eclesiologia, mariologia e antropologia aparecem, na visão de Agostinho,

    intimamente interlaçadas. A vinda de Cristo da Virgem Maria é o reflexo do nascimento espiritual

    de seus membros de uma outra virgem, isto é, a Igreja. Somente Maria é mãe e virgem, o espírito

    e no corpo. É Mãe de Cristo e também Virgem de Cristo66.

    2.5 Santidade de Maria

    Após a morte de Agostinho (430), o pensamento patrístico direciona sua atenção sobre a

    santidade de Nossa Senhora. Alguns fatos antes do Concílio de Nicéia indicam a sensibilidade do

    Oriente Cristão sobre o tema que viu Nossa Senhora como causa de salvação. Seu consentimento

    na encarnação redentora não foi simplesmente um fato singular tanto que remediou a desgraça

    cometida por Eva; seu consentimento foi um ato de excepcional grandeza. Em diversos exemplos

    se prega a santidade de Maria sem especificar a natureza íntima desta santidade.

    Há um testemunho que parece sugerir que mais uma vez a piedade popular antecipou-se à

    ciência teológica. O Protoevangelho de Tiago (150-180)67 é testemunha. Maria é descrita como

    fruto de justiça. O tema da pureza virginal aparece com frequência no Protoevangelho de Tiago. O

    Protoevangelho sugere a concepção virginal de Maria e, por isso, imaculada. Joaquim se tinha

    retirado para o deserto para chorar a esterilidade de Anna, chora e reza. “Não sairei daqui (para

    minha casa), nem sequer para comer ou beber, até que não me visite o Senhor meu Deus; que

    minhas preces me sirvam de comida e de bebida”68.

    Após prolongada ausência, Joaquim primeiro recebe a saudação de um anjo e, em seguida,

    de Anna com o anúncio da concepção.

    “Ana, Ana, o Senhor escutou teus rogos: conceberás e darás à luz e de tua prole se falará em todo o mundo”. Ana respondeu: “Viva o Senhor meu Deus, que, se chegar a ter algum fruto de bênção, seja menino ou menina, levá-lo-ei como oferenda ao Senhor, e estará a seu serviço todos os dias de sua vida”69.

    Nesse ponto, os estudiosos encontram certa dificuldade textual e gramatical. Há escritores

    que sustentam que o anjo disse: “Tua mulher concebeu”. Alguns interpretam o tempo perfeito

    como relativamente antigo e que era muito difundido na época. Outros acham que o tempo

    64 AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 6, p. 106. 65 AGOSTINHO. Sermões 369, PL 39, col. 1655. 66 Cf. AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez, n. 6, p. 106. 67 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, p. 105-123. 68 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, p. 106. 69 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, 106.

    Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1

  • A Virgem Maria na Patrística 63

    perfeito não queira dizer uma “concepção virginal”. Por outra parte, a separação de Joaquim e Ana

    não devia ser mais de quarenta dias.

    A interpretação de Epifânio não é totalmente inaceitável: utilizando o tempo perfeito, o anjo

    predisse o iria acontecer para evitar qualquer incerteza. Embora alguns cristãos interpretaram o

    tempo perfeito e concluíram que se trata de uma concepção virginal, Epifânio indica que esta

    teoria não representa o pensamento da Igreja.

    Merece atenção a descrição do encontro de Joaquim e Ana à porta: “Ao vê-lo chegar, pôs-se

    a correr e atirou-se ao seu pescoço dizendo: ‘Agora vejo que Deus me bendisse copiosamente, pois,

    sendo viúva, deixo de sê-lo e, sendo estéril, vou conceber em meu ventre’. E Joaquim repousou

    naquele primeiro dia em sua casa”70. Contudo, a concepção de Maria é constatada como milagrosa.

    Pouco mais à frente, após o nascimento de Maria, o Protoevangelho colocou na boca de Ana

    um cântico. “Entoarei um cântico ao Senhor meu Deus, porque me visitaste, afastaste de mim o

    opróbrio de meus inimigos e me deste um fruto santo”71. O fruto é Maria, ela é digna da santidade

    de Deus.

    Os escritores alexandrinos fazem alusão à santidade de Maria. Clemente de Alexandria

    compara a Igreja com a Nossa Senhora. As duas são virgens e, portanto, incorruptas; as duas são

    mães e, portanto, amantíssimas72. Orígenes explica algo mais: argumenta que antes da anunciação

    Maria era santa e meditava diariamente a Sagrada Escritura73.

    Significativa é a viagem de Nossa Senhora “apressadamente a um lugar montanhoso”. Indica

    uma etapa muito significativa nos seus esforços para alcançar as alturas da perfeição74. A visitação

    foi manancial de notável progresso para Isabel e João Batista, “a causa da presença da Mãe do

    Senhor e da presença do próprio Salvador”. Pode Maria cantar o Magnificat. “Minha alma glorifica

    o Senhor”, não porque o Senhor era capaz de crescer, mas porque a semelhança de sua alma com

    o Senhor aumenta.

    Portanto, percebe-se que a vida espiritual é crescimento na imagem e semelhança com Deus.

    Aqui entra toda a teologia da divinização do ser humano que os Padres gregos elaboraram. A

    humildade de sua serva é interpretada por Orígenes como retidão, moderação, valor e sabedoria.

    Enfim, o retrato de Maria no pensamento de Orígenes corresponde ao conceito geral de uma

    alma que progride na vida espiritual e seus progressos refletem as qualidades da alma, as próprias

    disposições boas e, sobretudo a assistência do Espírito Santo. Sem dúvida, as provas existentes,

    ainda que escassas, indicam que para alguns escritores antinicenos do Oriente a pessoa de Maria

    tinha certa santidade. Para a maioria é insuspeitada a essência desta, apesar de Orígenes revelar

    que a prática da virtude, a intervenção de Deus e a ascese leva à perfeição. A evidência de que se

    trata não nos autoriza a concluir que o Oriente preniceno percebia uma rara e singular santidade

    da Mãe de Deus nem que, formalmente, acreditava que sua concepção era imaculada. Ressaltar

    que a Imaculada Concepção é dedução legitima da doutrina patrística da segunda Eva leva

    considerar que seria uma dedução e que não se tinha antes do concílio de Niceia.

    70 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, p. 108. 71 TRICCA, M. H. O. (Org.). Apócrifos, p. 109. 72 Cf. CLEMENTE, Pedagogo. 1.1. c.6. 73 Cf. ORÍGENES. Hom. 6. In: Id. Homilias sobre o evangelho de Lucas. 74 Cf. ORÍGENES. Hom. 7. In: Id. Homilias sobre o evangelho de Lucas.

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  • 64 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    2.6 A participação de Maria na obra da salvação

    No drama sobre A Paixão de Cristo, Gregório de Nazianzo destaca a missão da Virgem Maria

    no plano da redenção. Se Jesus é o protagonista no campo dogmático da salvação, Maria o é no

    campo da intercessão, pois ela enfrenta uma série de sofrimentos por ser a mãe do Filho de Deus75.

    Ela garante o perdão para as mais graves traições76; é a embaixadora permanente diante do

    Verbo77 e salvação suprema para todos78. Por natureza, Maria é igual a nós na sensibilidade, mas

    pela graça recebida de Deus, supera a todos no acesso ao Pai79.

    Ícone: Maria, salvação do povo romano (do séc. VIII, Basílica Santa Maria Maior de Roma)

    3 Terceiro período da Patrística

    As fontes que abordam a figura da Virgem Maria no terceiro período da Patrística variam de

    tratados teológicos, escritos de caráter pastoral, escritos apologéticos, homilias, hinos, orações,

    obras de arte etc. No final da Idade Patrística, a Mariologia alcançou o ápice, sobretudo no Oriente,

    e as expressões de entusiasmo e de arrebatamento aparecem não só na himnologia, mas também

    nas homilias dos ilustres monges e patriarcas, como Germano de Constantinopla, André de Creta

    e João Damasceno. A devoção mariana interessa-se também em coletar histórias sobre a vida da

    Virgem Maria e sobre as circunstâncias de sua Dormição.

    3.1 Vida de Maria

    No século VIII, quando já abundam esses materiais, que não carecem de interesse teológico

    e literário, alguns autores começam ordenar cronologicamente o desenvolvimento dos

    acontecimentos e dos mistérios da vida de Nossa Senhora.

    75 Cf. GREGÓRIO NAZIANZENO. La Pasión de Cristo, p. 21. 76 Cf. GREGÓRIO NAZIANZENO. La Pasión de Cristo, p. 86. 77 Cf. GREGÓRIO NAZIANZENO. La Pasión de Cristo, p. 183. 78 GREGÓRIO NAZIANZENO. La Pasión de Cristo, p. 184. 79 Cf. GREGÓRIO NAZIANZENO. La Pasión de Cristo, p. 23.

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  • A Virgem Maria na Patrística 65

    O monge bizantino Epifânio de Constantinopla, que viveu entre o final do século VIII e o

    início do século IX, escreveu a mais antiga Vida de Maria80 sob o título: Tratado sobre a vida e os

    anos da Santa Mãe de Deus. É uma das mais antigas vidas de Maria (PG 120,185-216)81. Trata-se

    de um relato importantíssimo para mariologia. Sua leitura e meditação que suscita na alma e no

    espírito do fiel uma moção interior semelhante à experiência do “escrever” um ícone seguindo os

    cânones da iconografia do Oriente cristão.

    O próprio autor é consciente de que antes dele ninguém escreveu um relato cronológico,

    que teria abarcado todos os dados conhecidos sobre o itinerário de vida da Virgem82. O monge se

    propõe recorrer somente às fontes que considera dignas de fé, sólidas e verdadeiras. O tratado

    oferece uma visão que se tinha sobre Maria no século VIII na Igreja bizantina do Oriente,

    sobretudo nos círculos monásticos.

    Influenciado pela crise iconoclasta, o autor provoca uma reação e renova os sentimentos do

    povo, engrandecendo-lhe a devoção à Theotokos e a veneração das imagens e relíquias, como por

    exemplo, o Maforion de Constantinopla. A Virgem Maria é apresentada como modelo das pessoas

    consagradas na vida ascética e por isso desenvolve com muito interesse o tema da presença de

    Maria no templo de Jerusalém, no grupo dos discípulos e das mulheres que seguiam Jesus e os

    apóstolos.

    É à luz dessa realidade que se torna possível a compreensão da evolução do celibato na

    Igreja. Merece atenção registrar a importância dada, conforme certas tradições mais antigas, ao

    vínculo da família de Maria com as famílias sacerdotais que serviam no templo de Jerusalém.

    A santidade de Maria, definida com a παναμωμος (Imaculada), é, para Epifânio, uma

    verdade que está fora de qualquer dúvida. A gloriosa Dormição da Theotokos é apresentada como

    a mais significativa realidade da vida da Igreja primitiva.

    Esta Vida de Maria servia de leitura edificante nas igrejas, sobretudo nos mosteiros. Assim

    se entende o fato de que o código que a conservou começa com as palavras ευλόγησον, Δὲσποτα,

    λογοσ-ρα, que são uma invocação de bendição para o leitor, igual ao Iube, Domine, benedicere do

    rito romano83.

    Segundo Epifânio Maria é “mãe dos viventes” em sentido mais profundo do que Eva: é causa

    de vida porque deu à luz a Vida. Será que isto não implica extraordinária santidade?

    Passando ao Novo Testamento: se as mulheres teriam sido destinadas por Deus para o ofício sacerdotal ou para exercer alguma função ministerial na Igreja, teria sido Maria que desempenhava o ofício de sacerdote no Novo Testamento. Foi considerada digna de receber no seu próprio ventre o Monarca absoluto e Deus celestial, o Filho de Deus, o seu seio estava preparado pelo amor de Deus ao homem e, por um mistério escondido, como templo e morada da encarnação do Senhor84.

    80 EPIFANIO MONGE. Vida de María, p. 19-180. 81 O código transcrito por Mingarelli: Num só código, e não plenamente satisfatório, foi conservada a Vida da Theotokos

    escrita por Epifânio. Leo Allatius, na sua coleção Symmicta (Colônia 1653), fez conhecer alguns fragmentos deste escrito. No entanto, quem, pela primeira vez, fez a sua transcrição completa e o traduziu para o latim foi o helenista italiano G. L. Mingarelli (1722-1793). Esse código, de origem grega, é parte da chamada Biblioteca Naniana, pertencente a uma família de patrícios venezianos.

    82 EPIFANIO MONGE. Vida de María, p. 20: “Em cambio, al mencionar algo de Ella, em seguida pasaban a otros asuntos, disponiéndolo así El Espíritu Santo”.

    83 Cf. EPIFANIO MONGE. Vida de María, Introducción, p. 13-14. 84 EPIFÂNIO MONGE. Panarion 79,3.

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  • 66 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    Uma das questões levantadas no final da palestra A Virgem Maria na Patrística neste

    Congresso da PUCRS foi relacionada a um dos mistérios do Santo Rosário que cita a apresentação

    ao templo e a purificação de Maria.

    O estudioso Walter J. Burghardt cita três teólogos da Patrística Oriental que abordam a

    questão: Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo e Efrem, o Sírio. Segundo eles a santificação e

    a purificação de Maria evocam uma conexão imediata com o pecado, seja original, seja atual. No

    caso da Virgem Maria, “se entende bem o contexto se o compreendemos como um crescimento na

    santidade, que o católico chama de graça, concedida por Deus na ordem da divina maternidade;

    tal santificação não teria como objeto o perdão, e sim, o aumento na intimidade da união”85.

    Portanto, em Maria é possível contemplar dois tipos de santidade: uma impecabilidade,

    fruto da natureza, e outra como fruto da graça. Antes do Concílio de Éfeso, o Oriente cristão era

    consciente da santidade de Maria, reconhecia-a como algo especial, e inclusive pode-se perceber

    passageiramente uma concepção que rivalizou com a de Cristo na sua pura ausência do pecado.

    Epifânio faz atenção quanto à expressão de que Maria foi “agraciada de todas as maneiras”,

    pois sabe que se deve tratar com cuidado. Ele censura os “coliridianos”86, que fizeram de Maria

    uma deusa oferecendo-lhe sacrifícios.

    Ao mesmo tempo em que a santidade de Nossa Senhora é fruto da natureza, é também fruto

    da colaboração com a graça que a faz progredir na intimidade com o Criador. A ideia que melhor

    explica a teologia de Epifânio sobre a santidade de Maria está contida na seguinte afirmação:

    “Embora Maria seja notavelmente boa, embora seja santa, embora deva ser honrada, não há de

    ser adorada”87.

    Isso quer mostrar a maneira correta de cultuar a Virgem Maria e os santos, como orienta

    também São João Damasceno. “Aquele que cai aos pés da Mãe de Cristo (Theotokos) certamente

    mostra honra a seu Filho. Não há senão um só Deus, Ele é conhecido e adorado na Trindade”.

    Antes de tudo (veneramos) aqueles entre os quais Deus descansou, Ele, único santo que mora entre os santos (cf. Is 57,15), como a Mãe de Deus e de todos os santos. Estes são aqueles que, enquanto possível, tornaram-se semelhantes a Deus com sua vontade e pela inabitação e a ajuda de Deus; são chamados realmente de deuses (cf. Sl 82,6), não por natureza, mas por contingência e por participação do fogo. Diz, de fato: ‘Sereis santos porque eu sou santo’ (Lv 19,2).88

    3.2 O culto à Virgem Maria

    A reflexão sobre mariologia encontra sua autêntica expressão na arte sacra. A Virgem Maria

    entrou no repertório da arte cristã como Mãe de Cristo. Como tal, ocupa um lugar exclusivo nas

    cenas da infância do Senhor, todas voltadas para a glorificação de Jesus Cristo, de sua encarnação,

    85 BURGHARDT, W. J. María em la patrística oriental, p. 531. 86 Coliridianismo era um movimento cristão obscuro, considerado herético pela Igreja Católica. Seus adeptos

    aparentemente adoravam a Virgem Maria, mãe de Jesus, como uma deusa. A principal fonte de informações sobre esta seita vem de Epifânio de Salamina, que escreveu sobre eles em sua obra intitulada Panarion (cerca de 375 d.C.). De acordo com Epifânio (Panarion, Haer. 79), algumas mulheres sauditas (em grande parte, pagãs) sincretizaram crenças indígenas com o culto de Maria, oferecendo a ela bolos e pães. Pouco se sabe sobre a origem do coliridianismo, mas Epifânio assegura que foi em Trácia e Cítia. Cf. Coliridianismo. In: Wikipédia. Disponível em: . Acesso em 18 set. 2017.

    87 EPIFÂNIO, Panarion 79,7. 88 PG 94, col. 1352 A.

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  • A Virgem Maria na Patrística 67

    de sua realeza, da universalidade de seu poder. Trata-se de figurações cristológicas, portanto, não

    marianas. Desde a arte das catacumbas até o triunfo da ortodoxia sobre os iconoclastas há um

    progresso desenvolvimento da iconografia mariana. A Virgem Maria aparece também na

    representação do milagre de Caná, embora raramente; depois, junto de Cristo, já nas mais antigas

    cenas da Crucifixão, com as piedosas mulheres perto do sepulcro, e nas imagens da Ascensão e de

    Pentecostes.

    Com o Concílio de Éfeso (431) e a solene proclamação da partenogênese, a iconografia de

    Nossa Senhora se afasta nitidamente do repertório existente. Glorificada como Rainha das virgens,

    a Theotokos, Maria assume entre as figurações um lugar sempre de maior realce até quando os

    iconoclastas, liderados pelos imperadores Leon III Isauro e Constantino V, tentaram derrubar seu

    culto e acabar com a veneração de suas imagens.

    João Damasceno é um dos maiores doutores da mariologia e grande defensor do culto das

    sagradas imagens. Além dos Panegíricos sobre a Assunção escreveu uma Apologia em favor da

    veneração das imagens sagradas. “Nós veneramos a tua imagem: nós veneramos tudo o que é teu,

    os teus ministros, os teus amigos e, antes desses, Tua Mãe, a Mãe de Deus”89.

    Damasceno observa como o diabo tolera as práticas da vida espiritual, assim como os

    elementos utilizados no culto litúrgico (luzes, incenso), no entanto, levanta uma tempestade

    contra as imagens.

    Sofrônio, o Patriarca de Jerusalém, no seu livro, Jardim Espiritual, narra o ciúme do demônio

    contra às imagens. O Abade Teodoro Aeliotes, citado por João Damasceno, narra a história de um

    santo eremita que, incomodado pelo demônio da fornicação, um dia começou a se queixar

    amargamente.

    “Quando você vai me deixar sozinho?”, ele disse para o diabo. “Vá embora de mim! você e eu envelhecemos juntos”. O diabo apareceu para ele, dizendo: “Jura-me que você vai guardar o que estou prestes a dizer-lhe a si mesmo, e eu não vou te incomodar mais.” E o velho jurou a ele. Então o diabo disse-lhe: “Não venere mais esta imagem, e eu não vou atormentá-lo”90.

    A imagem em questão representava Nossa Senhora, a Santa Mãe de Deus, tendo nos braços

    o nosso Senhor Jesus Cristo. Na verdade, o demônio da fornicação se esforçou para afastá-lo do

    culto à imagem de Nossa Senhora, em vez de tentar o homem velho a impureza, pois sabia que o

    antigo mal era maior do que a fornicação.

    3.3 A Virgem Maria na Iconografia

    Sobre os traços da Mãe de Deus, Dionísio de Furná91 apresenta um retrato que inspira a arte

    iconografica.

    A Santíssima Mãe de Deus era de estatura mediana [alguns dizem que também ela tinha de altura três braços], da cor do trigo, com os cabelos louros e os olhos claros e belos, as sobrancelhas longas, nariz médio, mão longa com os dedos delgados; era simples, humilde

    89 JOANNIS DAMASCENI, De Imaginibus Oratio I, Migne, PG 94, 1282D. 90 JOÃO DAMASCENO, De Imaginibus Oratio III, PG 94, 1336CD. 91 DIONÍSIO DE FURNÁ. Ermeneutica della pittura, p. 305.

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  • 68 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

    e natural, ativa, gostava de roupas de cor natural, como testemunha o maphorion [manto] que se encontra no templo a ela dedicado92.

    Na Liturgia bizantina da Semana Santa, canta-se a beleza da Virgem Maria: “Morada santa

    de Deus te revelaste, ó Virgem; em ti, com efeito, o Rei dos céus habitou corporalmente e de ti saiu,

    belo, depois de ter remodelado em si, divinamente, o homem”93. Epifânio oferece um retrato de

    suas caraterísticas:

    [Maria] era de estatura alta, embora alguns digam que apenas superava os limites da média. Sua cor, ligeiramente dourada pelo sol da sua terra, refletia a cor do trigo. Louros os cabelos, vivos os olhos, ou pouco olivácea a pupila. As sobrancelhas arqueadas e pretas, o nariz um pouco alongado, os lábios vermelhos e cheios de suavidade no falar. O rosto, nem redondo nem aguçado, mas elegantemente oval; as mãos e os dedos adelgaçados94.

    O terceiro cânone do IV Concílio de Constantinopla (8o ecumênico), na versão do

    bibliotecário Anastásio, n. 653-656, determina: “Decretamos que a sagrada imagem de nosso

    Senhor Jesus Cristo, libertador e salvador de todos, seja venerada com a mesma honra que o livro

    dos santos Evangelhos. [...] Do mesmo modo também a imagem da imaculada sua Mãe e Genitora

    de Deus, Maria”95.

    Conclusão

    Sem a pretensão de exaurir o tema sobre Virgem Maria na Patrística pode-se concluir que a

    reflexão mariologica na Patrística é um patrimônio espiritual comum da Igreja indivisa, dos

    Padres Orientais e Ocidentais dos primeiros oito séculos de cristianismo. Seus tratados teológicos

    fundamentam o pensamento mariológico. Trata-se de um patrimônio teológico e espiritual que

    ilumina e dá significado à vivência da fé, mostrando como o dinamismo das comunidades

    primitivas pode inspirar hoje o rumo da Igreja. Embora, nos primórdios do cristianismo, os Padres

    da Igreja não dispusessem ainda dos termos teológicos adequados para expressar o mistério

    cristológico e o significado salvífico da Mãe de Deus, desde o início, os testemunhos da Escritura e

    da Tradição apostólica foram por eles corretamente interpretados, preparando o caminho para os

    sucessivos desenvolvimentos da mariologia.

    A reflexão sobre a Virgem Maria na Patrística introduz o cristão na dimensão do mistério. A

    Virgem Maria foi uma mulher contemplativa e ativa na realização do projeto divino para com a

    humanidade. Quem bebe das fontes da Patrística, percebe como os textos dos Padres da Igreja

    possuem um dinamismo de moldar a alma e conduzi-la para a verdadeira meta da Teologia (gr.:

    Theoria) que é a contemplação do mistério de Deus. Hoje, a Patrística pode oferecer uma

    importante contribuição na recuperação da dimensão do mistério na vida da Igreja. O atual

    Pontífice orienta a Igreja aprender dos pescadores a dar espaço ao mistério de Deus:

    Uma Igreja que alberga de tal modo em si mesma esse mistério, para que ele possa encantar as pessoas, atraí-las. Somente a beleza de Deus pode atrair. [...] Penso nos

    92 GHARIB, G. Os ícones de Cristo, p. 72, apud KONTOGLOU, F. Ekpharasis tes ortodoxou eikonographias, p. 400. 93 GHARIB, G. Os ícones de Cristo, p. 62. 94 GHARIB, Georges. Os ícones de Cristo. História e culto. p. 68. Apud: Epifânio Monge, Discurso sobre a vida da SSma.

    Mãe de Deus, 15. Migne, PG 120,192-193. 95 DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos definições e declarações de fé e moral, n. 603, p. 238-239.

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  • A Virgem Maria na Patrística 69

    pescadores que chamam seus vizinhos para verem o mistério da Virgem. Sem a simplicidade do seu comportamento, a nossa missão está fadada ao fracasso96.

    O Papa Francisco observa que a Virgem Maria despertou os pescadores para a contemplação

    do mistério de Deus. “O povo simples tem sempre espaço para albergar o mistério. Talvez nós

    tenhamos reduzido a nossa exposição do mistério a uma explicação racional; no povo, pelo

    contrário, o mistério entra pelo coração”97. Isto atinge o método da ciência teológica. Os Padres da

    Igreja são testemunhas de uma experiência de fé e sua doutrina tem muito a dizer a quem estuda

    ou ensina teologia98. Por fim, o interesse pelo pensamento patrístico sobre a Virgem Maria neste

    Congresso Mariológico da PUCRS constitui, talvez, o reflexo de uma verdadeira “fome do

    patrimônio espiritual dos Padres; um fenômeno consolador que não deixa de refletir-se

    positivamente também nas Faculdades teológicas e nos Seminários”99.

    Referências

    AGOSTINHO. Dos bens do matrimônio. A Santa Virgindade. Dos bens da viuvez. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2007 (Patrística, 16).

    ______. Sermões 369, PL 39. BASÍLIO MAGNO. Sobre o Espírito Santo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005. BURGHARDT, Walter J. María en el pensamiento de los Padres Orientales. In: CAROL, Juniper B. (Org.).

    Mariología. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1964, 488-499. BURGHARDT, Walter J. María en la patrística occidental. In: CAROL, Juniper. B. (Org.). Mariología. Madrid:

    Biblioteca de Autores Cristianos, 1964, p. 112-119. BURGHARDT, Walter J. María en la patrística oriental. In: CAROL, Juniper. B. (Org.). Mariología. Madrid:

    Biblioteca de Autores Cristianos, 1964. CAROL, Juniper B. (Org.). Mariología. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1964. CEC. O estudo dos padres da Igreja na formação sacerdotal. DP 234. Petrópolis: Vozes, 1990. CNBB. Palavra do Papa Francisco aos Bispos do Brasil e do CELAM. JMJ – Arcebispado do Rio de Janeiro, 2013. Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, 186, Scriptores syri 82. Lovaina, 1959. DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos definições e declarações de fé e moral. Traduzido com base

    na 40ª edição alemã (2005). Aos cuidados de Peter Hünermann, por José Marino Luz e Johan Konings. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007.

    DI BERARDINO, Angelo (Org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. DIONÍSIO DE FURNÁ. Ermeneutica della pittura. A cura di Donato Grasso. Fiorentino, Napoli, 1971. DROBNER, R. Humbertus. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003. EMMERICH, Anna Catharina. Santíssima Virgem Maria. 2. ed. São Paulo: MIR, 2004. EPIFANIO MONJE. Vida de María. Introducción, traducción y notas de Guillermo Pons Pons. 3. ed. Madrid:

    Ciudad Nueva, 2011. GHARIB, Georges. Os ícones de Cristo: História e culto. Tradução de José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus,

    1997. GIANOTTO, Claudio. Apeles. In: DI BERARDINO, Angelo (Org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades

    Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. GREGÓRIO NAZIANZENO. La Pasión de Cristo. 2. ed. Madrid: Ciudad Nueva, 1995. IRENEU. Contra as Heresias. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995 (Patrística, 4). J. SAINT-MARTIN, A. A. Nota complementar n. 11. De sancta virginitate. Bibliotèque Augustinienne, t. III. JOÃO DAMASCENO, Oratio Apologetica Prior. Adversus eos’qui sacris imagines abjiciunt. PG 94, Migne, 1864. JOÃO DAMASCENO, Panerigico. In: La Dormizione vitale della Madona: Panegirici di S. Teodoro Studita, S.

    Germano di Constantinopoli, Pseudo-Modesto, Theotèknos, S. Andrea di Creta e S. Giovanni Damasceno. Trad. Mario De Rosa. S.l.: Atessa, 1976.

    96 CNBB. Palavra do Papa Francisco aos Bispos do Brasil e do Celam, p. 4. 97 CNBB. Palavra do Papa Francisco aos Bispos do Brasil e do Celam, p. 4. 98 Cf. CEC. O estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal, p. 9. 99 CEC. O estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal, p. 11.

    Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1

  • 70 Congresso de Mariologia – PUCRS 2017

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    Anais do Congresso de Mariologia: piedade popular, cultura e teologia 21 a 23 de agosto de 2017 ISBN: 978-85-397-1075-1