A vita activa em Hannah Arendt -...

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO-UFMT INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS-ICHS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    A vita activa em Hannah Arendt

    Svio Laet de Barros Campos Cuiab, 2010.

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    Svio Laet de Barros Campos

    A vita activa em Hannah Arendt

    Trabalho da disciplina Questes Filosficas IV, do Prof. Dr. Roberto de Barros Freire do Curso de Especializao em Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso.

    Cuiab, 2010

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    1. Introduo

    Este trabalho versa acerca do captulo 1 A Condio Humana do livro homnimo,

    da filsofa Hannah Arendt. O texto que contemplamos a edio brasileira, que conta com

    traduo de Roberto Raposo e reviso tcnica do Prof. Adriano Correia.

    O primeiro captulo trata da vida ativa e est dividido em trs tpicos. No item um,

    Arendt trabalha a relao entre vita activa e condio humana. No item dois, discute a vita

    activa a partir de uma anlise do termo. No item trs, procura ressaltar a oposio entre vida

    ativa e vida contemplativa, a partir da distino que faz entre imortalidade e eternidade. No

    desenvolvimento do presente texto, iremos seguir a ordem perfilhada no prprio captulo.

    Passemos a abordar a questo concernente relao entre vida ativa e condio

    humana.

    2. Desenvolvimento

    2.1. Vita activa

    Por vida ativa ela entende a atividade humana apresentada sob uma trplice diviso:

    trabalho, obra e ao. Escolhe estas trs atividades, por melhor corresponderem s condies

    bsicas pela qual a vida foi dada ao homem sobre a terra.

    O trabalho uma atividade que se tornou uma necessidade vital para o homem, ou

    seja, a ele esto ligados os fatores que tornam possvel a sobrevivncia do homem at o seu

    natural declnio: o crescimento espontneo e o metabolismo. A condio para o trabalho nasce

    com a vida, a qual exige que supramos certas necessidades orgnicas e fisiolgicas para que

    nos mantenhamos vivos.

    A obra uma atividade que transcende o que naturalmente dado. Ela consiste na

    capacidade de o homem construir um mundo artificial, ou seja, um mundo que transcenda o

    ambiente natural em que ele vive. Por meio da obra, o homem modifica o mundo e o ambiente

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    em que se encontra. Ele se torna artfice de um mundo que lhe prprio. E por isso que a

    condio humana para a obra o fato mesmo de estarmos no mundo, a mudanidade.

    A ao a ao propriamente poltica, porque a nica que, sem a mediao das

    coisas, coloca os homens em contato uns com os outros, sob o signo da pluralidade Mais do

    que uma atividade meramente social, a ao nasce da nossa capacidade de fazermos algo

    novo. Arendt a compara como uma natalidade, com um nascimento. Com efeito, a condio

    para haver ao a prpria existncia humana. Ora, esta existncia se manifesta na

    pluralidade dos indivduos que veem a este mundo, onde nenhum deles o que o outro , pois

    nenhum deles possui a mesma essncia ou natureza do outro. Por conseguinte, qualquer

    um deles pode dar incio a uma nova fase na vida do homem sobre a terra.

    Agora bem, os homens, a fim de se prepararem para receber estes novos habitantes,

    criam a ao poltica. De fato, a ao a atividade poltica por excelncia. Por ela, criam-se os

    organismos polticos com o fito de proporcionarem aos novos habitantes da terra um lugar

    para serem recebidos. Neste sentido, a ao como que prev estes novos seres; decerto, sem

    querer determin-los, ela os prev exatamente como novos homens, com a habilidade de

    criarem coisas novas. assim que a ao torna-se uma atividade que pressupe a alteridade e

    a possibilidade iminente do novo.

    Como lida com o tempo futuro procura levar em conta o nascimento de novos

    homens, com novas ideias tambm cria vnculos com o seu passado, pois tenta preservar os

    organismos que cria. Arendt acresce que estas condies, sob as quais a vida foi dada ao

    homem na Terra, no so as nicas e nem as exclusivas condies de sua existncia. Elas no

    so emanadas de uma natureza humana. De fato, se o homem viesse a viver num outro

    planeta, deveras encontraria novas condies para conduzir a sua vida, e nem por isso deixaria

    de ser homem.

    Na verdade, tudo aquilo com que o homem entra em contato, tudo o que recebido do

    mundo pelo homem, acaba tornando-se algo que passa a condicionar a sua existncia. A tal

    ponto assim, que a vida humana sem coisas que a condicionem, quaisquer que sejam elas,

    no seria sequer possvel, e as coisas, por sua vez, a menos que se tornem condicionantes da

    vida humana, no passariam de amontoados de artigos desconectados. A bem da verdade, o

    que chamamos de mundo, no seno o conjunto de coisas que condicionam a nossa

    existncia. Tudo o que no nos condiciona, para ns, um no mundo, sem significado.

    impossvel definir a natureza humana. Se que ela existe, no pode ser definida da

    mesma forma como definimos as coisas que nos rodeiam. Se que ela existe, tentar defini-la

    seria o mesmo que pular sobre nossas prprias sombras. S um deus que estivesse acima do

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    homem poderia defini-la, mas, neste momento, seriamos transformados em coisas, em

    objetos, ou seja, deixaramos ser um quem para sermos reduzidos a um que, tal como

    fazemos com as coisas que nos cercam.

    Todas as vezes que os homens tentaram definir o homem, criaram um deus. Por no

    ser o homem algo definvel, quando algum tenta defini-lo, ele escapa-lhe, e o que se lhe

    apresenta uma criatura sobre-humana. No h como definir os homens pela observao

    das suas atividades, porque nenhumas delas o condicionam de modo absoluto. Embora

    terrenos, porque condicionados por coisas terrenas, no somos absolutamente terrestres, pois

    poderamos viver em condies diferentes das quais vivemos agora, na terra.

    Agora passemos anlise do termo vida ativa dentro da tradio filosfica.

    2.2. O termo vita activa

    Acerca do termo vita activa, Arendt comea por mostrar como Aristteles distingue os

    trs modos de vida dignos do homem. Dignos do homem, porque todos eles o homem pode

    escolher livremente, sem nenhum constrangimento. Estes modos de vida opem-se a outros

    tantos que, para Aristteles, seriam os modos de viver prprios dos escravos. Com efeito, ao

    escravo atendia somente suprir as necessidades que os mantivessem vivos e submissos ao seu

    senhor. Ora, algo similar acontecia com os modos de vida dos artesos e dos mercadores. De

    fato, todos estes modos de vida, por cuidarem apenas de coisas necessrias e teis, no

    podiam ser considerados modos de vida condizentes com o modo de viver dos homens livres.

    Ao contrrio, os modos de vida prprios dos homens livres, so aqueles que se

    ocupam do belo, ou seja, do que no nem til, nem necessrio, e que, por isso mesmo,

    pode ser escolhido sem nenhuma coao, isto , livremente. So eles: a vida dedicada aos

    prazeres, onde o belo consumido; a vida poltica, onde se produzem os feitos; e, por fim, a

    vida do filsofo, onde a beleza contemplada em si mesma, e no pela mediao do homem.

    a vida dedicada s coisas eternas.

    interessante observar que Aristteles no coloca a vida poltica no mesmo plano do

    trabalho do arteso ou da vida do comerciante. Para ele, a vida do arteso e a do mercador no

    eram formas de vidas dignas de um homem livre. Sem embargo, tais modos de vida no

    faziam parte da ao poltica propriamente dita. A ao poltica, na verdade, tem que ser livre

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    de necessidade e utilidade, ou seja, no se coaduna com atividades movidas por algum fator

    coercitivo.

    Entretanto, mesmo antes do advento do cristianismo, o conceito de vida ativa,

    mormente da atividade poltica, sofreu considervel empobrecimento. Com o fim das cidades-

    estados, caiu-se num reducionismo e a vida ativa passou a significar, nica e exclusivamente,

    o engajamento nas coisas deste mundo. A vida do poltico era da mesma espcie da do arteso

    e da do mercador. O poltico teria que estar, doravante, envolvido em diversos assuntos

    sociais. Desta sorte, a ao propriamente poltica deixou de ser espontnea e transformou-se

    numa obrigao para a vida terrena. A misso do poltico era, ento, suprir necessidades e

    fazer coisas teis. De resto, s a vida contemplativa podia ser considerada uma vida

    verdadeiramente humana ou digna do homem.

    Ao se darem conta desta inverso de valores, os filsofos comearam a recomendar o

    afastamento de toda inquietude inerente ao que imaginavam ser a verdadeira vida poltica. Por

    isso, abandonar a vida poltica passou a ser conditio sine qua non para se viver uma

    verdadeiramente vida humana. De sorte que s a quietude da contemplao podia fazer com

    que o homem chegasse perfeio. O homem realmente livre j no era mais o poltico, mas

    o contemplativo. Destarte, a dignidade da vida ativa foi embaada pela vida contemplativa,

    pois a vida poltica, de resto j confundida com a vida social, deveria, doravante, estar a

    servio das necessidades da contemplao, fornecendo a ela o que lhe falta.

    Podemos passar anlise da diferena entre vida ativa e vida contemplativa, a partir

    da distino entre imortalidade e eternidade, ou entre a eternidade conquistada pela lembrana

    dos grandes feitos e palavras empreendidas pelo cidado na vida pblica, e a eternidade

    metafsica, oriunda da contemplao.

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    2.3. Eternidade versus imortalidade

    Que haja uma diferena fundamental entre o engajamento na ao e uma vida

    dedicada ao pensamento puro, pode-se perceber, claramente, pela diferena na vida dos

    homens que escolheram um destes dois caminhos. Arendt, no entanto, acredita poder acentuar

    tal oposio, a partir da distino que h entre eternidade e imortalidade.

    A eternidade remete-nos ao que, em metafsica, costumou-se chamar de

    transcendente. O transcendente o que no pertence a este mundo, e a eternidade

    uma expresso do transcendente, enquanto se define como aquilo que est alheio ao temporal;

    posto que no est sujeito ao fluxo do tempo, permanece fora dele.

    J a imortalidade continuidade no tempo, vida sem morte nesta terra, vida

    imanente a este mundo. Assim era a vida dos deuses do Olimpo e assim era o modo como

    os gregos entendiam a natureza. O homem, deste modo, era o nico mortal no meio de um

    mundo imortal, formado pela natureza e pelos deuses. A mortalidade do homem tornava-se,

    assim, o que o distinguia no cosmo.

    Mesmo os animais eram, de certo modo, imortais, porquanto, a despeito da

    mortalidade individual, pela procriao, a espcie perdurava. J o homem, em razo da sua

    vida ser a expresso mais eloquente daquilo que individual e no repetvel, no podia

    permanecer. A procriao no era, para ele, uma ao que o tornava imortal, pois a vida de

    cada homem singular, e no existe, propriamente, uma natureza humana, isto , uma

    humanidade que pudesse ser transmitida por gerao. Diferentemente da natureza, que

    cclica, o movimento da existncia humana uma linha reta, que comea com a natalidade e

    termina com a morte.

    Diante deste primeiro dado, por sinal um tanto trgico, irrompe a grande tarefa do

    homem, a saber, procurar algum modo de permanecer neste mundo, inobstante a sua morte. E

    ele descobriu que poderia permanecer neste mundo, apesar da sua mortalidade: atravs das

    suas obras, feitos e palavras. Por meio dos seus feitos e palavras, o homem poderia inserir-se,

    ento, numa natureza onde tudo permanece, onde tudo imortal.

    Pela sua habilidade de realizar feitos imortais, o homem se tornaria divino. Decerto

    que esta divindade do homem no seria um atributo que o tornaria transcendente, no se

    trata de uma divinizao metafsica. Este qu divino que o homem adquiriria pelos seus

    feitos imortais, torn-lo-ia divino como os deuses do Olimpo, que, conquanto fossem

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    deuses, tinham os mesmos predicados dos homens. Exceto pela sua imortalidade, eles em

    nada diferiam dos homens mortais.

    Alis, esta era a misso precpua dos homens: tornarem-se imortais e, por assim dizer,

    eternos: pelos seus grandes feitos e palavras. De modo que, aqueles que no empreendessem

    com zelo esta misso, permaneceriam aqum dos homens, morreriam como os animais,

    satisfeitos apenas com a saciedade que o prazer lhes oferece.

    Como se pode ver, pela vida ativa, e no atravs da vida contemplativa, que os

    homens poderiam alcanar a eternidade. De fato, so os seus feitos e palavras realizados na

    vida pblica que os tornariam eternos. E como eles se tornariam eternos? Tornar-se-iam

    eternos pela lembrana, isto , pela memria dos seus grandes feitos e palavras realizados na

    vida pblica os quais eles legariam posteridade.

    E assim foi at que, em Plato, ocorre uma substituio: o homem deixa de estar

    engajado na persecuo da eternidade dos grandes feitos, obras e palavras, que ele s

    conseguir alcanar pela participao na vida poltica, para voltar-se contemplao,

    preocupado com a consecuo de uma eternidade de outra ordem, de ordem metafsica.

    Doravante, a vida do filsofo torna-se o extremo oposto da vida do cidado.

    Na parbola da caverna, consignada na Repblica, Plato ilustra bem esta brusca

    mudana no ideal da vida do filsofo: o filsofo aquele que, tendo-se separado dos grilhes

    que o prendiam aos seus semelhantes, passaria a contemplar o sol, numa singularidade que

    exclui qualquer companhia ou sociedade com os outros homens. Desta sorte, se a morte

    deixar de estar entre os homens, a contemplao apresenta-se como uma morte em vida,

    cuja diferena da morte real o fato de ser momentnea, j que ningum pode permanecer em

    estado de contemplao por muito tempo. Portanto, a theoria ou contemplao, que o lugar

    onde se experimenta o eterno metafsico, o extremo oposto vida pblica e experincia

    daquela eternidade, que se adquire pela lembrana dos grandes feitos e palavras dos homens

    pblicos. preciso ainda acrescer que a derradeira vitria da contemplao sobre a vida

    poltica, do eterno metafsico sobre a eternidade conquistada na dinmica da vida pblica, no

    se deveu a nenhuma espcie de especulao filosfica, mas sobreveio com o advento da

    religio crist. Com a queda do Imprio Romano, e a consequente prevalncia do cristianismo

    no Ocidente, a nossa cultura adotou o seguinte paradigma: nenhuma obra ou ao humana

    pode perdurar para sempre; por conseguinte, o homem no pode conquistar a eternidade, que

    perdura na lembrana dos seus grandes feitos, obras e palavras realizados na vida pblica.

    Destarte, a vida ativa e a vida poltica passaram a ser servas da contemplao.

    Passemos concluso.

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    3. Concluso

    Algumas coisas Arendt deixa bem estabelecidas na sua abordagem do pensamento

    grego. No h uma natureza humana; o homem no um que, mas um quem, no pode

    ser coisificado num conceito que pretenda exprimir a sua essncia, uma suposta

    humanidade. O que h, na verdade, uma condio humana pela qual a vida foi dada ao

    homem na terra, mas, tampouco, esta condio humana absoluta. Com efeito, ela poderia ser

    outra, se o homem vivesse noutro lugar. O fato que o homem no pode viver sem ser

    condicionado pelas coisas ao seu derredor ou por suas prprias criaes. Estas condies

    humanas fizeram com que a vida humana irrompesse mediante certas atividades. Dentre estas,

    a ao importante, porque se d na relao direta e imediata do homem com o seu

    semelhante. A ao, que caracteriza propriamente a atividade poltica, se diferencia do

    trabalho e da obra, porque no est destinada a suprir nenhuma necessidade ou utilidade. Sem

    embargo, a ao poltica pode ser comparada a uma natalidade; por ela, cada homem expressa

    a sua individualidade aos seus semelhantes, e torna-se um ser poltico, o que o distingue, por

    sua vez, dos animais e dos outros homens, que permanecem imersos noutras atividades.

    A decadncia do homem comeou quando, por meio de complexo processo histrico,

    que envolveu o xito da filosofia platnica, a queda do Imprio Romano, e o advento da

    religio crist, o homem passou a confundir a atividade propriamente poltica, por

    antonomsia espontnea, com aes sociais destinadas a suprir meras necessidades

    fundamentais da sua subsistncia. Desde ento, os filsofos comearam a apregoar e aspirar a

    uma vida filosfica totalmente desvinculada da atividade poltica e voltada para a

    contemplao das coisas eternas. Antanho, o homem buscava a eternidade pelos grandes

    feitos e palavras, que se davam no seio mesmo do bios politikos e que no caiam no

    esquecimento da posteridade; depois, com a filosofia platnica e com a pregao do

    evangelho cristo, a eternidade relativa lembrana dos grandes feitos e palavras realizados

    na vida pblica, cedeu lugar a uma outra espcie de eternidade, a saber, a eternidade

    metafsica, que s podia ser alcanada por alguns minutos, atravs da contemplao

    transcendente (theoria).

    Para Arendt, no seu trabalho de reconstituio dos principais conceitos do pensamento

    poltico grego, h que se distinguir a vida ativa da vida contemplativa, e, no bojo da prpria

    vida ativa, h que se distinguir aquela que caracteriza propriamente a ao do bios politikos.

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    S assim o homem poder readquirir a sua conscincia de cidado, que consiste na luta pela

    eternidade, que no pode ser conquistada seno pelos grandes feitos e palavras realizados

    dentro do escopo da plis e que permanecem na recordao da posteridade.

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    BIBLIOGRAFIA

    ARENDT, Hannah. A Condio Humana. Trad. Roberto Raposo. Rev. Adriano Correia. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. pp. 8-25.

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