A volta do funk consciente - Cloud Object Storage anos, da primeira grande onda do funk carioca, que...

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E i! Vocês não vão trabalhar, não? Viraram MCs de novo?”, espanta- se Maria do Carmo Pereira, ou dona Car- minha, mãe de Leonardo Pereira Mot- ta e Francisco de Assis Motta Junior. “Ho- je à noite tem show”, explica Leonar- do, descendo com o irmão as escadas de sua casa de três andares na Favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro. Dona Carminha se lembra bem do ano de 1995, quando seus filhos formavam a dupla Junior e Leonardo, os primeiros funkeiros a lançar CD por uma grande gravadora, a Sony Music. Estouraram com sucessos como “Rap das Armas” e “Endereço dos Bailes”. Era o início, há dez anos, da primeira grande onda do funk carioca, que perdeu força poucos anos depois com as reiteradas denúncias de violência nos bailes da cidade. Ho- je, ficaram na memória dos irmãos os tempos de carros do ano, roupas chiques e hotéis de luxo nas viagens que fizeram por todo o país. Junior e Leonardo ga- nham a vida dirigindo um táxi arrenda- do. Mas ensaiam sua volta às paradas de sucesso pelas mãos do DJ Marlboro, o mesmo que os revelou. O táxi fica em se- gundo plano quando tem show – ultima- mente têm sido muitos – e dona Carmi- nha já precisa se acostumar de novo. Dez anos depois, a maioria desses ra- pazes – todos na faixa dos 30 anos – con- tinua tentando a sorte na música, na es- perança de reacender os holofotes de an- tigamente. Muitos ficaram no caminho, como Alexander Enéas da Silva, o Go- ró da dupla Márcio e Goró. Depois de gravar CD pela Universal em 1997 e re- ceber até R$ 2 mil de cachê por show, não agüentou a pressão das vacas ma- gras. Suicidou-se com um tiro em 2000. “Quando acaba a fama, fica difícil segu- rar a onda. Ainda mais para garotos po- bres, que nunca tiveram nada na vida. Chegaram ao céu e voltaram de manei- ra muito brusca”, explica o jornalista Síl- vio Essinger, autor de Batidão – Uma História do Funk, livro que conta his- tórias desses meninos pobres de favelas do Rio que, de uma hora para outra, transformaram-se em celebridades. O rapaz Carlos Eduardo Cardoso da Silva, morador da Favela do Borel, na 174 EFÊMERO Sílvio Essinger, autor do livro Batidão, diz que muitos jovens funkeiros não estavam preparados para o rápido sucesso A volta do funk consciente Funkeiros de sucesso há dez anos, na primeira grande onda do estilo, driblam as dificuldades do ostracismo e ensaiam o retorno aos holofotes MÚSICA n Há dez anos Compraram carros, roupas e uma casa na Favela da Rocinha, onde nasceram n Hoje em dia Ganham a vida compartilhando um táxi arrendado, mas estão voltando a fazer shows Primeira dupla a lançar CD de funk numa grande gravadora JUNIOR E LEONARDO RAFAEL PEREIRA Felipe Varanda/ÉPOCA Felipe Varanda/ÉPOCA

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“E i! Vocês não vão trabalhar, não?Viraram MCs de novo?”, espanta-

se Maria do Carmo Pereira, ou dona Car-minha, mãe de Leonardo Pereira Mot-ta e Francisco de Assis Motta Junior. “Ho-je à noite tem show”, explica Leonar-do, descendo com o irmão as escadas desua casa de três andares na Favela daRocinha, na zona sul do Rio de Janeiro.Dona Carminha se lembra bem do anode 1995, quando seus filhos formavam adupla Junior e Leonardo, os primeirosfunkeiros a lançar CD por uma grandegravadora, a Sony Music. Estouraramcom sucessos como “Rap das Armas”e “Endereço dos Bailes”. Era o início, hádez anos, da primeira grande onda dofunk carioca, que perdeu força poucosanos depois com as reiteradas denúnciasde violência nos bailes da cidade. Ho-je, ficaram na memória dos irmãos ostempos de carros do ano, roupas chiquese hotéis de luxo nas viagens que fizerampor todo o país. Junior e Leonardo ga-nham a vida dirigindo um táxi arrenda-do. Mas ensaiam sua volta às paradas de

sucesso pelas mãos do DJ Marlboro, omesmo que os revelou. O táxi fica em se-gundo plano quando tem show – ultima-mente têm sido muitos – e dona Carmi-nha já precisa se acostumar de novo.

Dez anos depois, a maioria desses ra-pazes – todos na faixa dos 30 anos – con-tinua tentando a sorte na música, na es-perança de reacender os holofotes de an-tigamente. Muitos ficaram no caminho,como Alexander Enéas da Silva, o Go-ró da dupla Márcio e Goró. Depois degravar CD pela Universal em 1997 e re-ceber até R$ 2 mil de cachê por show,

não agüentou a pressão das vacas ma-gras. Suicidou-se com um tiro em 2000.“Quando acaba a fama, fica difícil segu-rar a onda. Ainda mais para garotos po-bres, que nunca tiveram nada na vida.Chegaram ao céu e voltaram de manei-ra muito brusca”, explica o jornalista Síl-vio Essinger, autor de Batidão – UmaHistória do Funk, livro que conta his-tórias desses meninos pobres de favelasdo Rio que, de uma hora para outra,transformaram-se em celebridades.

O rapaz Carlos Eduardo Cardoso daSilva, morador da Favela do Borel, na

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EFÊMERO Sílvio Essinger,autor do livroBatidão, diz que muitos jovens funkeirosnão estavampreparados parao rápido sucesso

A volta do funk conscienteFunkeiros de sucesso há dez anos, na primeira grande onda do estilo,driblam as dificuldades do ostracismo e ensaiam o retorno aos holofotes

MÚSICA

n Há dez anosCompraram carros, roupas e uma casa na Favela daRocinha, onde nasceram

n Hoje em diaGanham a vidacompartilhando um táxiarrendado, mas estãovoltando a fazer shows

Primeira dupla a lançar CD defunk numa grande gravadora

JUN IOR E LEONARDO

RAFAEL PEREIRA

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ÉPOCA 23 DE MAIO, 2005

zona norte, foi um dos que quase de-sistiram da carreira artística. Ficou co-nhecido nacionalmente como Duda, dadupla de MCs William e Duda, quan-do gravou uma participação no discopop do ídolo Lulu Santos, Eu e Me-mê, Memê e Eu, lançado em 1995, emmeio à febre em que o funk tinha setransformado. Três anos mais tarde, oduo se desfez, após desentendimentose duradouro inferno astral. Na mesmaépoca, William chegou a ser preso porporte de maconha e ainda levou um ti-ro acidental, disparado por um amigo.“Foi difícil me recuperar do choque.Fiquei muito tempo isolado, sem von-tade de fazer nada”, lembra Duda.Com a ajuda dos amigos e da família,deu a volta por cima e retornou aos pal-cos defendendo o estilo responsávelpor sua fama há dez anos, o chama-do “funk consciente”, também prati-cado pela dupla de MCs Junior e Leo-nardo. “O playboy do asfalto cansoude ouvir funk sobre bunda. Está deouvidos ligados no funk consciente de1995”, diz Leonardo, que freqüente-mente canta com o irmão Junior nu-

ma boate de Ipanema onde os clien-tes pagam R$ 70 para entrar.

Uma dupla de grande êxito há umadécada continua na ativa. Sidney da Sil-va e Marcos Paulo de Jesus Peixoto,ou Cidinho e Doca, cantavam em qua-se todas as rádios e programas de te-levisão. Seu maior sucesso, o inesque-cível “Rap da Felicidade”, é lembradopor ícones como Caetano Veloso comoum dos clássicos da música popular bra-

sileira. Um refrão – Eu só quero é ser fe-liz/Andar tranqüilamente na favela on-de eu nasci/É!/E poder me orgulhar/Eter a consciência que o pobre tem seulugar – rendeu glória e dinheiro aos ga-rotos, que, apesar das dificuldades,nunca largaram a música. “Dez anosse passaram e todo mundo lembra des-se rap. O que tem qualidade fica, re-siste ao modismo”, afirma Cidinho.

Mas persistir na carreira foi tarefacomplicada. Depois da glória de 1995,

o funk foi gradativamente perdendoespaço na mídia e Cidinho e Doca vol-taram-se para a favela onde nasceram,a famosa Cidade de Deus. Gravarammúsicas impactantes como “Fogo noX9” – em que cantam que o X9, ou es-pião, deve morrer queimado quandotrai a confiança do tráfico de drogas– e tornaram-se expoentes do “funkproibidão”. Eles negam acusações deapologia ao tráfico. “Proibidão não

existe. Aquilo foi umamúsica escrita paradentro da favela e nãopara o asfalto”, de-fende Doca. Ele diz que

quando saiu dos limites do morro é quevirou “coisa proibida” e garante queé simplesmente uma crônica da reali-dade da favela. Agora, o principal éretomar o sucesso perdido. “Hoje, achomelhor falar do Lula, da desigualda-de... Essa coisa de tráfico de drogas fi-cou para trás. Queremos fazer músicapara todo mundo”, diz Cidinho. Apósa fama, os ídolos da favela só queremviver do que fazem melhor: as rimas.E ser felizes. n

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n Há dez anosParticipavam de shows pelo país e de programas de TV

n Hoje em diaDepois do ostracismo, estão voltando a tocar nas rádios

Autores do “Rap da Felicidade”, o hino dos funkeiros

C ID INHO E DOCA

n Há dez anosEm dupla com William, era expoente do funk consciente

n Hoje em diaVolta aos palcos sozinho, depois de vencer a depressão

Participou com o amigo William de CD de Lulu Santos

DUDA DO BOREL

A primeira onda do funk cariocafoi em 1995 com raps engajados

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