A Voz Do Silêncio 2012 Quali

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A voz do silêncio Introdução Usar segunda aula do poder psiquaitrico para rodapé, da passagem dos poderes CI3 p. 58 A presente dissertação versa sobre experiência da loucura perante o silêncio que a atravessa em nossa sociedade. A inspiração partiu de um trabalho junto a usuários do serviço destinado à saúde mental e da idéia da loucura como ausência de obra tal como exposta em A História da Loucura de Michael Foucault. Tal silêncio, imposto a partir da era Clássica, segue pela modernidade até a experiência contemporânea corresponde ao privilegio desproporcional da racionalidade no pensamento ocidental. Na obra derivada da tese de doutorado, o autor francês compreende a loucura em sua materialidade como ausência de obra, idéia que está no prefácio à primeira edição, Folie et Déraison, e no último capítulo do livro, chamado “O Círculo Antropológico”, abrindo e fechando a tese. Desdobraremos a idéia da possibilidade da loucura fazer linguagem perante o silêncio de três séculos que lhe foi imposto a partir da era clássica com a produção de novos horizontes pela arte; pretendemos chegar ao ponto em que a loucura pode ser algo que não patologia, além ou aquém da doença, quiçá saúde (algo como produção de sentido para uma experiência desvairada). Recorreremos não às obras feitas pelos loucos para chegar ao nosso objetivo, mas procuraremos nos relatos 1

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prévia do exame de qualificação do profjeto de mestrado homonimo na universiadade fedral fluminense.

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A voz do silncioIntroduoUsar segunda aula do poder psiquaitrico para rodap, da passagem dos poderesCI3 p. 58

A presente dissertao versa sobre experincia da loucura perante o silncio que a atravessa em nossa sociedade. A inspirao partiu de um trabalho junto a usurios do servio destinado sade mental e da idia da loucura como ausncia de obra tal como exposta em A Histria da Loucura de Michael Foucault. Tal silncio, imposto a partir da era Clssica, segue pela modernidade at a experincia contempornea corresponde ao privilegio desproporcional da racionalidade no pensamento ocidental.Na obra derivada da tese de doutorado, o autor francs compreende a loucura em sua materialidade como ausncia de obra, idia que est no prefcio primeira edio, Folie et Draison, e no ltimo captulo do livro, chamado O Crculo Antropolgico, abrindo e fechando a tese. Desdobraremos a idia da possibilidade da loucura fazer linguagem perante o silncio de trs sculos que lhe foi imposto a partir da era clssica com a produo de novos horizontes pela arte; pretendemos chegar ao ponto em que a loucura pode ser algo que no patologia, alm ou aqum da doena, qui sade (algo como produo de sentido para uma experincia desvairada). Recorreremos no s obras feitas pelos loucos para chegar ao nosso objetivo, mas procuraremos nos relatos sobre a vivncia entre loucura e produo artstica as pistas para pensarmos a construo deste discurso menor da loucura.Comearemos por uma contextualizao arqueolgica do que vai ser tomado aqui como experincia da loucura. Entendemos o quo sagaz se faz a estratgia adotada por Foucault sua leitura de fato funciona aqui como um mantra a ser desenrolado incessantemente sob este escrito ao enfrentar o desafio de descobrir a lngua da loucura da mesma maneira que Freud descobriu a dos sonhos, deixando-a (fazendo-a se permitir) falar.Uma leitura rasa poderia supor uma relao dialtica de simples oposio segundo a qual a interpretao racionalista da loucura seria um contra-senso em si mesmo, pois traduzir as questes da loucura pelo vis da razo desval-la de sua autonomia e especificidade. No entanto, ela se coloca objetivada pela razo, que fala a lngua da obra, da inteligibilidade e de uma suposta comunidade, reunida sobre a unidade antropolgica do sujeito, do homem do humanismo.Loucura e razo esto inscritas em inmeras dialticas que se desdobram sobre o manto da histria por rupturas e descontinuidades a arqueologia empreendida por Foucault visa mostrar isto. De forma que a razo contm e no contm a loucura. J explico: acontece que o discurso da racionalidade visa isolar a insanidade, pois a desrazo constitui ameaa a ordem racional o asilo a funo material dessa estrutura de isolamento. Por outro lado, a razo no tem a loucura dentro de si; na verdade, a loucura anterior razo que definida, em sua positividade, pelo negativo; houve tempo em que a capacidade de reconhecer a loucura que definia a razo, ou seja, para haver esta, h que existir aquela. A loucura, secundria lgica e ontologicamente razo, primeira num parmetro existencial e histrico, de tal forma que a razo no pode conter a loucura em seu interior, pois a loucura que o fundamento da razo. Tendo isto em vista, retomamos a idia de ausncia de obra, que remete ao no-definitivo da loucura e da literatura a fim de fazer o elo entre loucura e arte pela via da construo de uma narrativa que, mais importante que produzir sentido, no nega valor prprio ao discurso e s prticas, ou ainda vivncia do indivduo louco. Nosso intuito com isto passa ao largo de uma representao da loucura, deixando que a loucura fale por si num esquema, evidentemente instrumentalizado pela ferramenta da histria oral, que privilegie a lngua e a experincia da loucura em detrimento de mais um enquadramento desta nos parmetros de racionalizao. A fim de jogar outra luz sobre a negatividade ontolgica e o partido secundrio conferido loucura, fazemos uma incurso pelas idias como a de pensamento trgico como suporte da ordem da multiplicidade da experincia para compreender como se formou a experincia crtica da loucura que soterrou a experincia trgica da loucura e instaurou um regime de silncio e supresso da loucura em nossa cultura processo acentuado com a modernidade e seus ideais de humanismo e racionalidade em compensao ordem divina, herdando alguns de seus preceitos, e talvez mantendo como principal trao caracterstico, a paixo pela unidade.Em linhas gerais, a experincia crtica da loucura remete objetivao da experincia da loucura tornando esta um objeto de saber passvel de interveno, o que se d com margem para arbitrariedades de diversas espcies, pois a loucura enquanto erro desvalida de qualquer direito e aptido de dizer sobre si mesma ou de qualquer enunciao validada nos estratos social, jurdico ou sequer em termos polticos. Tal experincia apreende a experincia trgica da loucura por uma decomposio e, ignorando sua dimenso integral, faz dela pedao de coisa, afim de coisific-la mesmo. Estratgia que corresponde aos mecanismos de controle exercidos pelos poderes disciplinares que diluram o poder soberano em microncleos de poder a partir da modernidade e tratam, mais intimamente de como os homens governam, a si mesmos e aos outros, a partir da produo do verdadeiro (o qual no tem nada a ver com a real verdade, mas sim com o que considerado verdadeiro e as formas homologadas para se ascender a tanto). Entendendo a que so as relaes de poder que produzem as verdades, tomamos a loucura, enquanto objeto, considerada a partir do giro conceitual que transforma desrazo em doena mental (FOUCAULT, 1972).Em contraponto, a afirmao que faz o pensamento trgico vai em movimento contrrio reduo da loucura doena mental e, alm do que, tem tudo a ver com a no negao da vida que se faz no bojo de uma cultura dicotmica que liga realidade profundidade e decifrao, movimento no qual se depreende de viver em prol de coisas que no dizem respeito prpria vida, mas a idealizaes e abstraes que obnubilam-na no que realmente lhe interessa. Em contrapartida, para Nietzsche, os impulsos so os criadores da relao entre o sensvel e o supra-sensvel. Pensar apenas a relao desses impulsos entre si... (Alm do Bem e do Mal JGB/BM top. 36) o que no quer dizer em absoluto que pensar e sentir se equivalham; contudo, tampouco que o saber da profundidade e o olhar do exame tm necessariamente uma melhor apreenso do mundo. Antes, o discurso da ordem maior da racionalidade que guia os saberes, afirma seu forte vnculo com a moral ao tratar da loucura como signo de diferena, imposta de fora no, ela associada a erro, no-verdade e sombra na luz do saber, ela a mais complicada das objees cartesianas ao mtodo [a interpretao foucaultiana do texto de Descartes foi o mago do polmico debate travado entre ele e Derrida]. No obstante, a loucura uma experincia de transgresso no porque contraria uma norma ou porque negativo perante a luz do saber, mas porque se firma na relao com o limite que tange nossa sociedade e atravessa nossa vivncia. Roberto Machado associa em Foucault, a filosofia e a literatura (2000), a experincia trgica da loucura a uma experincia de linguagem, como a experincias-limite que se passa no mbito literrio e que tal como o exalta Blanchot, so da ordem do impessoal.Com efeito, a crtica foucaultiana aos saberes e estruturas de pensamento dialtico e fenomenolgico se deu mediante a crtica nietzschiana do niilismo do pensamento moderno. De maneira que ao invs de ver na loucura um vazio nuclear, enxerga fragmento, um fragmento que no carece de totalidade, pois elemento uma soma que no constitui todo, de uma equao que nunca cessa de somar e cuja escolha no repousa sobre a lgica da excluso, mas da mutualidade e do dinamismo, que possibilitam a emergncia da loucura como um discurso menor no cerne da organizao crtica do pensamento.Se por um lado, so os dispositivos de poder produzem prticas discursivas, por outro, as relaes entre loucura e doena se do em nvel de polaridade e inverso como bem aponta Canguilhem (N e Patolgico). As relaes de conhecimento so violentas em sua hierarquizao e a arqueologia foucaultiana vai buscar mostrar as condies de possibilidade dos saberes no descompasso de suas histrias internas e na continuidade entre saberes distintos nos processos de construo das formaes discursivas. Enquanto isso, no que tange s relaes de poder, Foucault sinaliza que h um movimento de normalizao intrnseco ordem dos saberes e sua constituio, o que associamos aqui reflexo sobre o imprio da unidade.Canguilhem por sua vez ressalta que normar, isto , criar normas, um movimento intrnseco vida e que a inviabilizao dessa capacidade normativa corresponde ento ao adoecimento. Ademais, o normal de saberes como a psicologia quanto a medicina derivado do anormal em sua constituio, tanto que, enquanto a psicologia aparece a partir a da loucura e das deficincias, a figura do mdico surge porque houve um homem doente. O autor francs ainda critica a idia de uma normatividade ideal oriunda das abstraes dos saberes e dissociada da vida, um imperativo da ordem crtica da racionalidade que, nos parmetros trgicos de Nietzsche se estabelece como valor que nega a vida. Definimos ento que a sade da vida muito mais um movimento que um estado de coisas e que a norma que considerada normal nada mais que aquela que a possibilidade de seu exerccio.Consideramos que a loucura reduzida a doena e posta numa lgica de espacializao e verbalizao que limita seu alcance sobre a ordem maior, a ordem do homem e suas verdades criadas. Trata-se afinal de uma reduo estratgica consumada em ltima anlise por imperativos morais, que visa objetivar o mltiplo das vozes da desrazo numa unidade ontolgica incompatvel com seu arranjo que inacabamento pluralidade das vozes da loucura no cabe nas estruturas da identidade que impele o ser insistentemente ao mesmo.No entanto, a loucura no pode ser pensada em sua natureza, no h, pois, essncia da loucura, mas ela s pode ser apreendida no contexto no qual ela tomada. Na verdade no h nada antes do saber, porque o saber, na nova conceituao de Foucault, define-se por suas combinaes do visvel e do enuncivel prprias para cada estrato, para cada formao histrica (DELEUZE, in Foucault 1988, p. 60); ora, a loucura passa a ser associada patologia a partir do sculo XIX, donde, no ocasionalmente, acontece um giro epistemolgico na maneira de se conhecer o mundo: cai o estatuto do quadro das representaes e do emparelhamento por semelhana e entra o dos saberes orientados pela observao emprica e histrica, e com isso, deixa de ler as coisas no mundo e tecer comentrios (que repetem o texto original ou seu contedo, que seja) para passar a ver e proceder por verificao.Ao relacionar a literatura loucura, morte e ao que chamou de ser da linguagem, Foucault est atento aos gritos e furores que excedem a unidade, a consistncia e a estrutura da obra. No que haja uma verdade oculta nas profundezas da loucura, mas sim uma multiplicidade constituinte daquilo que veio a se chamar ser da linguagem (Blanchot, F como eu...), e que escapa ordem do sujeito. Se a loucura, ausncia de obra, tem como expresso a obra, nossa busca nesta expressividade pela sade que se produz com a produo do novo, com a instituio de novas normas para o viver. Se o contato com o fora que transcende a dialtica do interior/exterior que se d na desrazo desemboca em loucura ou obra literria, porque estas so os redutos nos quais possvel ser outro, ao largo da lgica identitria do mesmo.A ausncia de obra no contato com o fora na experincia-limite que , presume transgresso no s nos comportamentos como na lngua; no por acaso a loucura carrega as marcas dos atravessamentos dos interditos da linguagem: entre palavra proibida, objeto de segregao do discurso e alvo de uma tirnica vontade de verdade, esta ltima faceta a mais radical frmula de excluso da loucura da experincia comum, e se faz fulminante e incontornvel. Ao final, esta vontade de verdade uma prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa historia, procuraram contornar essa vontade de verdade e recoloc-la em questo contra a verdade (OD, 2011, p. 20), ela se apossa da verdade em sua funo de justificar os interditos e inscrever os limites ou o que limita a experincia, tolhendo a multiplicidade em prol da lgica do mesmo, dentro de um sistema que tem como funo a lei da identidade.O desarrazoado aquele, escritor ou louco, que est em contato com o fora; j o insano aquele que est dentro do fora, num movimento de deriva que pode ser perigoso em suas indeterminaes no delrio ou na escrita, a faca de dois gumes da linguagem (que se ganha em campo de percepo e em poder de partilha, mas ao mesmo tempo a linguagem distorce e limita) que se estabelece perante o impulso a comunicao e a se fazer em relao a e em relao com. Estamos tratando aqui com as foras do indeterminado que tanto obra quanto loucura enclausuram, foras estas que so aliadas para o resgate no discurso das silenciadas dimenses de acontecimento e acaso, calados no somente pelos interditos acima, vindos do exterior do discurso, mas sobretudo e mais astuciosamente por procedimentos internos de ordem e classificao.A linguagem louca a prpria transgresso da palavra, ela diz somente sua manifestao, uma lngua em relao a si mesma como uma no-linguagem ou um silogismo da duplicao da lngua que se d no na partio em dois termos, mas sempre em um a mais. Em termos blanchotianos a ausncia de obra a noite que colhe os frutos do dia, j que a intimidade com a obra se d privilegiadamente em termos de estranhamento, pois a desrazo esta forma vazia donde vem a obra.Entendemos que a conjugao da realidade no discurso que tomado como verdadeiro acaba por inaugurar por seus meios, campos de significao bem delimitados a partir de seus fundamentos e preceitos, num sistema capaz de reinventar suas prprias regras a fim de assegurar seu sentido. Assim no somente a psiquiatria ou os saberes psi, antes deles, h toda uma orientao do pensamento que tem o homem como figura central e a unidade como eixo guia de nossa experincia. Uma vez nos desvencilhando deste ordenamento, podemos desfaz o enlace entre loucura e doena mental, e alocando a loucura mais prxima da linguagem que da patologia, ela se faria como uma dobra sensvel, embora ainda no enuncivel, ainda que num dispositivo de fala que se dispe fala, disponibilizando uma escuta sensvel eticamente orientado diferena.Toda esta idolatria pela unidade e pela intocabilidade do sentido conjurado desemboca na confeco de uma interioridade ciente de si e suficiente a ela mesma. Em tal estratgia aconselhvel ao sujeito no ficar exposto ao poder de disperso e difuso da linguagem, esta justificadamente temida e por isso mesmo tolhida por uma srie de arranjos, dentre eles a autoria. A linguagem oferece alternativa ao homem sujeitado ao mesmo, encarcerado em identidades que ele mesmo construiu; o ser da linguagem corresponde a uma possibilidade de ser outro daquilo que se ; a linguagem como acontecimento isto , despojada da submisso ao significante parte da desordem e da descontinuidade que ameaam a ordem do eu.Se a desrazo manifesta-se em nossos tempos atravs da (ou como) loucura, a ausncia de obra, por sua vez, exprime-se pela obra, mesmo que seja levando esta a seus extremos e forando-a em seus limites, desobrando-a. No obstante, o fora, origem da ausncia de obra, aquilo que, quando confinado pela obra, soobra. Atuando na captura e restrio das vozes plurais e inserindo o fragmento nas ordens da dialtica temporal (do que ele foi ou ser) ou da ontologia (ser ou no-ser) que so incompatveis com o ser da linguagem, a ordem discursiva opera disseces que visam minar o neutro e a aleatoriedade das verdades.O discurso tolhido pela diviso em compartimentos que se chamam disciplinas, pela j citada autoria e pelos imperativos de uma vontade de verdade que superestimada em nossa experincia. O ordenamento das prticas descontnuas da linguagem visa disfarar os cruzamentos, contradies e interseces que acontecem no discurso, pois na violncia que o discurso impe s coisas que reside sua regularidade, a qual se ope busca das origens to comum no pensamento clssico. O discurso se dispe em sries que contrariam o princpio da unidade, em fragmentos incompatveis com a lgica do terceiro excludo e somente perante as possibilidades de acontecer em lugar da significao categrica e definitiva.De tal modo, remetemos ento noo de acontecimento para Deleuze Deixando parte as relaes de tempo e identidade tradicionalmente consideradas, este filsofo entende o acontecimento como o momento em que passado e futuro se conjugam num presente mais que presente, porque um presente definitivo para o indivduo em questo, apesar de no se ater ao estado de coisas, porque impessoal; e uma vez sendo neutro, tampouco geral. Seria um contra-senso buscar a significao do acontecimento, portanto, em sua histria e, mais ainda em uma decifrao, pois ele linguagem perante si prprio e no remete a um sujeito encarnado de significao. Ele remete ao que Deleuze chamou de sntese disjuntiva, que pulveriza a vontade de verdade e a paixo pela unidade. Ele pode unicamente ser exprimido, pura expresso que se distingue tanto da significao quanto das coisas retirando-se conseguintemente das teorias de decifrao e das de devir ontolgico (do tipo de certificao que diz o que foi ou o que vai ser).Se no nos atemos decifrao de contedos justamente porque nos interessamos pela criao de sintaxes, pela inveno das linguagens prprias, as lnguas que cada escritor tem que inventar nas linhas de sua experincia. No sentido em que a loucura pode ter de univocidade, no haja uma voz nica para tudo e todos como pretende um universalismo inocente, mas que cada coisa tem uma voz. Cada loucura tem sua voz. O pensamento do acontecimento se ope no somente decifrao, mas a toda estrutura do pensamento do ser, que ele desarranja ao mostrar que h um ser no no-ser; enquanto expresso ele o nico sentido inseparvel, no-destacvel da frase, o devir do mundo que o coloca para funcionar mesmo como construo de acontecimento sobre o plano do mundo. Pretendemos proceder por um pensamento do acontecimento [o pensamento do acontecimento desemboca em heterognese no pensamento hibrido de Deleuze e Guattari, porm gnese no diz respeito ao comeo, ao nascimento, mas diz de uma ruptura que sempre um recomeo, afetada pelo inevitvel confronto com a imediatez de Ain, donde a historicidade se daria em simultaneidade] em nossa interlocuo com a histria contada dos indivduos e desta com a arte e o fazer a obra louca desses indivduos. Introduzindo no pensamento e na experincia a materialidade, a descontinuidade e o acaso, aspiramos emergncia de singularidade ali onde se tentado a sobrepor certo tipo de anlise determinstica baseando-se em constantes ou em estruturas, em teorias da personalidade ou a observaes fenomenolgicas.Tendo isto em vista, apostamos ainda na linguagem como possibilidade de construo alm do corte, na linguagem como produo de nexos. Atentos a um procedimento que funciona tal como em Artaud, a linguagem, recusada como discurso e retomada na violncia plstica do choque, e remetida ao grito, ao corpo torturado, materialidade do pensamento, carne (MC p. 531). J que a fala verdadeira no seria aquela que desvela a verdade, antes, ela produz verdades e a ordem discursiva no aquilo que d sentido, ela simplesmente ratifica e retifica os discursos de acordo com os imperativos vigentes em determinado discurso. Como ponto ltimo da experincia tica que propomos, no basta singularizar, a atitude clnica deve ser orientada para a confeco de um saber sobre aquela experimentao, um saber inconsciente capaz de articular diversos sentidos sob um exerccio crtico-clnico operado na linguagem, neste ponto julgamos ter encontrado na ferramenta histria oral um bom acompanhante deste processo.Entendemos que quando a loucura tece a prpria histria, monta (n)esta narrativa numa atitude de traio da lngua maior tal qual a escrita o desvio da lngua-me. Trata-se da criao de uma lngua estrangeira lngua de referncia, no bojo e no seio da prpria lngua. Se a liberdade irm do limite, a transgresso uma libertao do sujeito enclausurado, no entanto nem homem nem liberdade no tm essncia, no so substanciais, so apenas formas, e mais, formas dinmicas que mudam, e, ao contrario do que se quer fazer crer no so idnticas nem sequer a si mesmas.Muito mais do que a liberao o que foi a liberao dos grilhes por Pinel, ou mesmo, mais recentemente, as instituies de cuidado de regime aberto , h que atentar s formas de condies de exerccio das prticas de liberdade e, neste intuito, o que chamamos homem, ou natureza humana, ou ainda, louco, no pode ser dissociado do contexto no qual tal definio produzida. No deixa de ser muito curioso que quando se escarafunchou o homem ao extremo, o que se encontrou no fundo do poo foi algo bem diferente do que se imaginava do homem postulado pela modernidade consciente porque livre e vice-versa , mas nos deparamos com um inconsciente que nada tem a ver com as insgnias do homem senhor de si, da liberdade e da (cons)cincia, um inconsciente que antes uma linguagem que est longe de ser universal, uma linguagem em relao a ela mesma, um inconsciente, no fundo, de certa forma crtico ao que a tradio do pensamento esperava dele, nada harmnico, ele conflituoso, mas ainda assim produtivo.Ante essas ntimas relaes que se estabelecem entre liberdade, sujeito e poder, a voz que buscamos algo que se produz no entre, por isso, sem se apartar do papel de co-ator no processo de construo da narrativa da loucura sobre ela mesma e a obra louca, buscamos na ferramenta da histria oral um meio de chegar experincia inenarrvel da loucura, no para tentar dar um si mesmo ao fora-de-si, mas para, justamente mantendo-o neste espao de deriva, nos lanar s vozes da enclausuradas e que podem sim, ser positivadas em sade para o indivduo louco.Entrevistando indivduos que fazem de sua doena sua arte, mas mais que isso, que fazem do que fazem (de sua produo), suas vidas. No processo de construo de narrativas, a rememorao, de alguma maneira, acaba por conferir um sentido que singular quela experincia. H uma potncia na negao de se ver prostrado a um eu interior, ser que ele pode dizer sobre mim? No se delira nem se escreve s sobre os complexos ou papai-mame e a chamada lngua materna pode at ser primeira, mas definitivamente no constitui o primado, pois este tem sempre que ser construdo e, no processo de inveno de uma lngua, deixa-se de ser o homem para ser um homem. A vida que pode, e acaba por ganhar vida na arte, na conjugao da vida interior com o que vivenciamos e apreendemos do mundo mesmo.Colocando o acabamento definitivo em suspenso, deixamos sempre um trao aberto em seu contorno, sem que isto desemboque em desestruturao rompante do eu, em desencadeamento psictico ou em falha de personalidade que no fundo so atribuies detentoras de carga moral.No entanto, nossa empreita no vai em direo a um saudosismo da experincia trgica da loucura, donde esta se manifestava nas estruturas da tragdia por uma relao dialtica da desrazo com a razo, mas da criao de uma nova conjuntura em nossa configurao nica uma pautada no pela loucura em detrimento razo, mas contrria tirania da ordem racional.Buscaremos nos relatos que constituem narrativa emaranhada de sentidos mltiplos no seio da experincia da loucura, o que na interface entre arte e loucura pode acontecer de sade, de potencializador para a vida do indivduo. Buscamos aquilo em que a loucura, ausncia de obra, propicia no apenas doena, mas, no seio de uma vivncia louca, d cores a um viver diferente, matizado por outras lgicas que no a da filosofia do sujeito, ao largo da lgica da identidade que enclausura vidas sob rtulos, instituies ou ditames de diversas ordens.A construo dos relatos pretende dar voz a um silncio que foi imposto de forma arbitrria, isto , violenta, aos loucos e sua loucura. Pois, como afirma Foucault (DE1 p. 150), a loucura s existe em uma sociedade, ela no existe fora das formas de repulsa que a excluem ou a capturam, uma vez que o que a institui e constitui em ltima instncia da ordem da percepo e das formas de lidar com esta experincia que oscila entre o escndalo e o desprezo, magia e maldio e muitas outras reaes permeadas por culpabilidade, negatividade e, sobretudo, moralidade em nossa cultura ocidental.O texto se divide de maneira entrecortada onde os temas voltam e solapam a diviso ordenada do assunto, o que sinal da indissociabilidade e complementaridade. Assim que poder, discurso, prticas, loucura, obra, arte, fora, limite e transgresso se postam em plena relao dialgica, e para alm dos dualismos que se possam incorrer da. E deixo pistas ao final para onde parece caminhar a escrita buscando elucidar a nfase no primado da enunciao coletiva, onde o corte de nexos se conjuga indissociavelmente com a produo de novos nexos.

de ser da linguagem no que se refere a uma experincia de ser levado pela palavra numa ordem distinta da filosofia do sujeito que regida pela racionalidade e

antes mesmo de prescrever, de esforar um futuro, de dizer o que preciso fazer, antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nvel de sua existncia, desde sua forma mais matinal, , em si mesmo, uma ao um ato perigoso. (MC, 453)pois como ressalta Foucault em O que o Iluminismo?, os signos

intercessores (Conversaes)

A loucura como diferenaLoucura, transgresso e limiteA loucura polarizada: a negatividade e a positividade da loucura

Foucault cita algumas vezes na experincia ocidental em que no ser louco era ser capaz de reconhecer o rosto da loucura na face daquele que era de fato louco [buscar citao HL].Rei Jorge IIIA loucura como diferena: experincia trgica e minoridade Pensar a loucura pensar a diferena e suas formas de excluso. Foucault em As Palavras e as Coisas (2000) j dizia que enquanto este seu livro tratava da aproximao entre as coisas, mas mais especificamente da experimentao da proximidade, organizando-a em um quadro para percorr-la, por isso o sugestivo subttulo Uma arqueologia das Cincias Humanas; seu livro sobre a loucura, por outro lado, tratava de como uma cultura postula de forma macia e geral a diferena que a limita.A loucura em suas diferentes modulaes desrazo, doena, anormalidade encarna a prpria diferena. Pensar a loucura, ou pensar com a experincia da loucura pensar diferentemente da ordem racional reinante em nossa cultura que leva e encarna o sujeito, o homem antropolgico. No entanto, a loucura nem sempre foi tomada sob o vis que a entendemos, pautado por um nexo de excluso radical. A linha de coeso que levou ao entendimento contemporneo teve incio a partir da era clssica e da suspenso em nossa cultura da experincia trgica da loucura, a qual diz respeito ao modo de ser integral da loucura. A ltima vez em nossa cultura que esta ordem apareceu foi no sculo XVI, donde a loucura no havia sido fragmentada, momento bem anterior objetivao de sua liberdade com Pinel e o rompimento dos grilhes que acorrentavam os loucos bestializados de Bictre. Com efeito, a linha que conduz da experincia da loucura nas estruturas imveis do trgico dialtica instaurada na dicotomia valorativa do internamento e, mais adiante, da psiquiatria, repleta de cortes.O gesto inaugural da psiquiatria moderna aconteceu num perodo em que a experincia trgica da loucura fora enclausurada em um ditame de liberdade, donde o louco no mais atado a um sistema de coeso fsica que se materializava nas correntes, enclausurado em uma liberdade fajuta, submisso a um discurso que ele no pode alcanar se encontra mais impotente perante os mecanismos que o excluem da ordem da produo e do reconhecimento (o indivduo louco desvalido at da luta contra o que o oprime) o que era um silncio cercado por uma tenso que sinalizava a ruptura e o parmetro de desigualdade contido na relao discurso racional e desrazo se transforma em loucura balbuciante, ou uma fala desvalida de qualquer poder de expresso.At a era clssica, quando a loucura passou a ser forosa e paulatinamente silenciada, as experincias crtica e trgica coabitavam. A desrazo falava tambm (esta conjuno imprescindvel) junto razo, reiterando a todo o momento os movimentos de troca entre o racional e o desarrazoado e inversamente. No entanto, o classicismo vai reunir em seu entendimento de alienao uma analogia de mecanismos com as vizinhanas do erro, enquanto no-verdade, e do sonho, no cultivo de imagens e fantasmas. aqui que o delrio, como experincia de distoro da realidade, passa a ser elemento fundamental da loucura e pea-chave em seu reconhecimento, ele no mais relacionado ao sonho pela vivacidade das imagens onricas, mas ressignificado pelas caractersticas de confuso e indissociado. A loucura comea ali onde se perturba e se obnubila o relacionamento entre o homem e a verdade (FOUCAULT, 1979, p. 241).Esta vai ser uma caracterstica importante para toda a compreenso posterior da loucura, a anulao de seu poder de enunciao. A loucura que no pode falar a verdade se diferencia em muito da loucura tomada at o Renascimento em que por vezes ela falava uma verdade mais verdadeira, mais carregada de significao e sentido que a prpria palavra s, entre tantas percepes, ela podia ser crnica social, na figura do bufo, o jocker que fazia humor sarcstico com ironia e um olhar acido sobre as relaes hierrquicas das cortes e seus monarcas, em outros casos era tomada como detentora de poder de enunciao do futuro ou mesmo de palavra sagrada grande parte dos casos de santos e videntes corroboram esta viso.Assim sendo, a loucura clssica o nada combinado da negatividade de vrias dialticas, como o sono e a viglia, o dia e a noite, a linguagem e a fantasmagoria, manifestado na materialidade do homem louco, que, acometido pelo nada, tem que se expressar pela linguagem racional. Pois h de se fazer a loucura, o nada inacessvel, visvel na experincia clssica, e essa operao que passa pela ordem da razo, se realiza no contato com o homem louco. Para haver expresso de loucura no classicismo, h de se passar pela razo, que vai conferir positividade a ela.O nada que constitui a loucura passa pelo delrio e pelo ofuscamento, em oposio verdade e claridade que so os porta-vozes do conhecimento e do discurso racional. De maneira que, para existir loucura positiva na era clssica, h que se projetar em seu nada, a luz e o saber. O que reflete o movimento reiterado e contnuo que se d entre dia e noite nessa poca.A filosofia do sujeito, que nessa poca tem o expoente Descartes, que vai a talhar essa relao dialgica, sobrepujando a ordem racional, fechando as portas para qualquer elemento que remeta ao erro e comprometa o sistema do cogito cartesiano. Erro tido aqui como qualquer elemento que assinale um obnubilamento, o sono e sonho esto inscritos a, a possesso por um gnio mal e, privilegiadamente, a loucura, que o ofuscamento da capacidade de julgamento, nela, a possibilidade de ascenso verdade se encontra radicalmente comprometida em sua base. O erro reside na noite do no-louco e no dia do louco, este, teria em seu dia no a consistncia que lhe seria devida, mas a inconsistncia dos traos incertos da noite.Desvalida de positividade ontolgica por si mesma, a loucura no classicismo no pode dialogar com a tragdia, cada uma fica restrita a seu estrato e a sua linguagem, diferentemente da poca anterior. As figuras de Bosh que at a Renascena atormentavam por seu grande poder numa dialtica da loucura que no se repetiu a partir de ento, isso que Foucault assinala quando diz que no h mais a Nau dos loucos com a experincia crtica da loucura, mas o hospital. Ele ainda complementa que os valores que ressoavam na experincia trgica da loucura nos chegam via Artaud e Nietzsche. No plano histrico, no deixa de ser significativo que sejam praticamente contemporneos dois fatos de bastante peso para a construo da idia crtica de loucura, a abertura do Hospital Geral em Paris e a publicao do Discurso do Mtodo cartesiano. A inaugurao do primeiro marca incio da estrutura de excluso e recluso da loucura que a mantm contida num espao de cerceamento do contato e da convivncia, no segundo esto as regras formais para o pensamento ordenado da racionalidade, que coloca a loucura como secundria, como um discurso menor.Entendemos que um discurso menor se faz marginalmente a um discurso maior, que molda a ordem discursiva corrente. Este ltimo corresponde aos enunciados de vrias ordens que se impem e sobre-codificam a experincia da loucura em nossa cultura. Esta acometida por enunciados de inmeras ordens, no apenas dos saberes psi, mas do direito, do senso comum, da polcia, dentre vrios outros. O discurso menor diz sobre a possibilidade de a loucura, entre tantas verses a seu respeito, fazer sua sub-verso, uma verso alterna, menor em relao discursividade maior da racionalidade, da histria e da obra.No se trata da fala de uma lngua menor, mas sim do discurso de uma minoria em uma lngua maior, em nosso caso, se trata da loucura falando nos termos da razo. O menor se refere a um jeito de se fazer, trata do engendramento de aes minoritrias, da criao de condies revolucionrias no mundo. Segundo Deleuze, (1992, p. 214 Conversaes) todo mundo, sob um ou outro aspecto, est tomado por um devir minoritrio que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo. Desta maneira, a ao de um discurso menor abertura de espaos para a minoridade no cerne de uma experincia maior, para que nesta, uma minoria possa se expressar, por discursos e prticas. Trata-se da criao de espaos de diferena, que no funciona exatamente por uma dialtica de simples oposio uma vez que no faz sntese, nem traduz por termos de sujeito e objeto ou significante e significado , mas inscrito em uma dialgica de composio que privilegia o mltiplo e no a interpretao nica. Pois a dialtica que no libera as diferenas, antes, ela avaliza a recuperao dos estados, aprisionando-as esvaziando os potenciais diferenciais. Desta maneira, podemos afirmar que o discurso menor no exclui o maior, mas se compe com ele e para alm dele. transgredindo as categorias de totalidade e dialtica elementos de constituio do discurso maior que se interpe a produo menor. Contudo, tomada a partir do que expelido pelo limite que a cultura coloca, a loucura no , em si mesma transgresso. Um produto possvel do embate entre minoridade e ordem maior seria a experienciao de criao, um exerccio de liberdade para Deleuze (1992), o devir menor revolucionrio em relao aos mecanismos de controle e arbitrariedade. Este embate seria uma experincia de transgresso, diferentemente da loucura que tomada pura, destacada e simplesmente no , necessariamente, transgressiva.Pois se Foucault se apia no pensamento de Georges Dumzil para descobrir a forma estruturada da loucura a excluso social , o faz com o uso de noes de geometria como fora, limite, situao, dentro, separao etc. (rodap: para maiores detalhes conferir o texto de M. Serres: La Geometria de lo incomunicable: La locura), assim sendo, a idia de limite, em seu pensamento indissocivel de transgresso, como ele vai conjeturar em Prefcio Transgresso (). A transgresso que engendra a experincia da loucura repousa no entendimento de que ela o outro no s da sociedade, mas do prprio sujeito tomado em sua identidade, enlouquecer passa por ser outro de si, o outro da razo e da conscincia, que rompe com a entidade idem do ser, sendo alheio ordem subjetivante ensimesmada. Mas a loucura em si no pode ser transgressiva, ela relacional, pois se no estreito espao da linha do limite que reside a transgresso, a loucura, tomada em si mesma, est alm ou aqum dessa linha (essa borderline, poderamos provocar) em relao a razo, em relao ao limite que uma cultura traa para definir o que exterior a ela. Porque antes de a loucura ser objetivada pelo saber mdico ela uma experincia tica, assinalada pela diferena e pela forma de lidar com esta marca indelvel: a excluso.Mas no nos precipitemos, mesmo com o advento da psiquiatria, a loucura no tomada perante um julgamento inclume, persiste sua formao tica da associando-a aos traos de negatividade em sua composio, ou criando negatividades para ou sobre suas caractersticas.Acontece que, na cincia de sua prpria constituio, uma cultura empurra para fora de seus limites aquilo que deveras ameaa seu ncleo constituinte. O outro no somente capaz de colocar em risco o que a compem, como comporta os germes do que pode vir a se tornar uma experincia distinta dela mesma. De maneira que, conforme a loucura atirada numa lgica estrutural de exceo, ela interpretada como erro nas categorias de desordem e desrazo, o que no quer dizer que ela carece de ordem ou razo ao todo. No se nega a existncia de ordenamento ou mesmo racionalidade na loucura.Na figurao geomtrica, o que da ordem do institudo e o outro, so traduzidos respectivamente pela positividade e pela negatividade. Ou de maneira muito simplista, falamos aqui do que corrobora para a perpetuao dos valores de uma cultura ou do que vai de encontro a essa valorao, seja unicamente questionando-a enquanto vigente ou criando outras regras para o jogo das relaes, fazendo outras normatividades (Canguilhem). E a prescrio mais imediata a respeito ao que atribudo valor de positividade ser preservado, e quanto ao outro, negatividade, esta deveria expelida para o exterior, excluda.A loucura tida pelo valor de negativo na cultura ocidental desde a era clssica. Na Idade Mdia ela est presente no cotidiano como fato esttico, no sculo XVII, com a grande internao ela sucumbe ao silncio, passa a ser derrisria e mentirosa. A partir do sculo XIX, a emparelhamos doena mental, ela passa a ser um fenmeno natural, um fato do mundo vnculo este que nada tem a ver com o desenvolvimento da cincia mdica ou com uma humanizao das prticas relativas loucura. Mas da resulta a irnica liberdade que foi conferida pela revoluo c(l)nica que fundou a psiquiatria e, por outro lado, o grande protesto lrico encontrado na poesia, de Nerval at Artaud, e que um esforo para tornar a dar experincia da loucura uma profundidade e um poder de revelao que haviam sido aniquilados pela internao (FOUCAULT, p. 150, loucura s existe numa sociedade).S foi possvel tornar a loucura objeto da cincia desvalendo-a de seus antigos poderes, pois a loucura encarnada no desatino continha positividade e fora que abarcavam uma srie de atributos que variavam da predio do futuro ao empoderamento semi-divino. Contudo, o priorado da razo se imps com a separao por dois sculos entre loucura e desatino, e, no obstante, o racional, o positivo do outro que a loucura, de maneira to implicada com seu outro porque, de fato, o que a constitui esse outro certifica-se que no se louco em se podendo reconhecer um. No caso, a positividade que se funda negando o que vir a ser seu negativo, como um negativo de um negativo que forma uma positividade pressionada.Pois muito embora o patolgico seja o outro, ele concebido anteriormente. A psicologia nunca poder deter a totalidade da loucura, j que esta que detm a verdade sobre a psicologia (FOUCAULT, CONFERIR CITAAO do psicologia e personalidade). A psicologia enquanto cincia normativa nasce, assim, sob o signo do anormal daquilo que observa outras regras que no as institudas. Ou seja, a positividade do saber psicolgico resulta do que ele mesmo designa como negatividade. Contudo, como ressalta Canguilhem (Normal e patolgico), no uma relao de contrariedade que se coloca entre o normal e o anormal, mas sim de polaridade e inverso, como se fossem dois lados da mesma moeda, no duas coisas separadas, apartadas e isoladas ontologicamente uma da outra. Sem querer adentrar por meandros filosficos, ressaltamos resumidamente que cincia no se faz sem seu campo; tanto como sujeito no pode conhecer sem seu objeto.Chegamos ao ponto em que fica claro que estril a busca por uma experincia louca original, por uma origem da loucura (uma busca que Foucault chega a considerar em um primeiro momento e que, no entanto logo abandonada). Esta s pode ser encarada como algo inventado, o que no corresponde a dizer que no exista loucura, no se trata absolutamente disto, mas que houve e h em nossa cultura a fabricao da loucura por um processo de construo que produz conhecimento atravancado inexoravelmente por relaes de poder.Seguindo esta linha de raciocnio, a verdade emanaria em ltima instncia do dispositivo enquanto poltica de prticas, no dos saberes que objetivam seus objetos. Em O Poder Psiquitrico, com o deslocamento do eixo da problemtica foucaultiana do sujeito para o poder, se deu uma reatualizao do problema das verdades, partindo da idia de que o poder que produz as verdades, e no as verdades que engendram e designam poder, Foucault vai ento entender o dispositivo de poder como instncia produtora de prtica discursiva (PP, p. 17). Devemos ter em vista, contudo, que dizer uma verdade sempre privilegiar uma perspectiva em detrimento de todas as outras possveis e imaginveis. Fato que vem concomitante a compromissos tanto ticos, quanto polticos e acarreta conseqncias da mesma ordem.De fato, a loucura, erigida na experincia ocidental sob a prtica da excluso e sob o signo de uma negatividade irrevogvel, no pode dizer nada a respeito de si mesma em seu discurso, em suas verdades; ela esvaziada de sua faculdade de enunciao. Conseqentemente, o que tido como verdico uma construo de um discurso relativo, em ltima instncia, moralidade (Foucault desenrola isso com insistncia em Histria da Loucura; e mais informaes sobre o assunto ver o importante trabalho: BIRMAN, J.: A Psiquiatria como discurso da moralidade) e o mais instigante nesse quadro que estas verdades que so, portanto, valoraes morais so validadas poltica e socialmente pelo estatuto cientfico, num processo retroativo de reinvestimento de poder ordem instituda [ver ESCSSIA, L. in Pistas...], j que o poder que d a luz verdade, e no a verdade, ou a suposta posse desta, que engendra e confere poder.Assim, um discurso menor da loucura da ordem do trgico, que preza a voz do mltiplo da experincia e que se faz perante um discurso maior da razo grande, que, visando s estruturas do universal, se pauta pelo mesmo, pela identidade. O que caracteriza o trgico no um fatalismo nem a sobre-determinao, ele no remete ao pessimismo, mas pluralidade que vem das vivncias, da experimentao do mundo. Logo, o trgico uma afirmao da vida em sua multiplicidade.Foucault herda de Nietzsche a crtica ao primado da razo, ao valor exacerbado conferido ao conhecimento racional em detrimento ao mltiplo, quilo que o filsofo alemo associa ao corpo em termos de necessidade e desejo, mas que antecede irrevogavelmente razo. O corpo opera antes de qualquer pensar, modulando-o. De certa maneira, poderamos dizer que Nietzsche reintegra o corpo ao pensamento, aquele mesmo corpo que podemos ver menosprezado no platonismo e no que ele chamou de platonismo para as massas, o cristianismo. Em sua filosofia, o corpo no mais o lugar da iluso, do erro e do pecado, h a inverso do postulado platnico da verdade, que est na caverna e no fora dela trata-se da afirmao da profundidade da superfcie sinteticamente entendida como o jogo de mscaras superpostas que ao final no revelam uma essncia verdadeira, mas o indeterminado estranho das coisas, ou seja, outra mscara.Com efeito, Nietzsche vai chamar de moralidade este gesto que considera os sentidos e o corpo como portadores do erro e da falsidade. Ele vai colocar os sentidos ao lado e em defesa da vida em sua fora que multiplicidade. A vida entendida ento como devir, em seu inacabamento, o que provoca o giro conceitual da sada do primado da constituio, da unidade e do mesmo para a apreenso do provisrio e do transitivo, para a retomada do mltiplo que tem sido sistematicamente sufocado pelas dicotomias e dialticas em nossa cultura e, no homem, pelos conceitos de identidade e sujeito. Enquanto o filsofo alemo reitera a importncia das vivncias e da experincia no embate a um idealismo cristo, Foucault usa a idia de experincia na luta que trava com a idia de sujeito e com os universais estruturais antropolgicos possibilitados por uma racionalidade desptica. Evidentemente, estes no haveriam de sarem ilesos do desta luta, pois a relao de conhecimento no um movimento que alcanar os objetos em sua suposta essncia ou natureza, mas o estabelecimento de uma relao de violncia que subjugar o objeto ao interesse do saber. Afinal, toda verdade fruto de um sistema de valorao qualquer, e no s ela, mas objeto e tambm sujeito so invenes, esta a lio nietzschiana a respeito da cautela que se deve tomar sobre as relaes que se estabelecem via saber. Nietzsche coloca o que chama de instintos na base de todo movimento da vida, pois a vontade de potncia, afirmativa ou negativa, emerge dos instintos. Este o paradoxo da razo e da moral que negam em seu decurso aquilo que as possibilita, e neste sentido que ele fala da sua loucura em relao de contrariedade ao paradigma racional idealista como uma grande sade [FERRAZ, M. C. Nietzsche, o bufo dos deuses].O trgico grego era a forma pr-socrtica de respeito aos mistrios do mundo, anterior vontade onipotente do saber que esvazia o mundo sob uma forma, no menos fictcia, de valorao das coisas, o conhecimento, o qual lana suas bases a uma suposta universalidade em sua validao. Segundo Naffah (1996), os gregos trgicos tinham um sistema de conhecimento e atribuio que pode nos parecer muito estranho, no se baseavam em eus, comportando o mltiplo e o polivalente que atravessavam o homem que, atirado ao mundo, era isento da fatalista insgnia da moralidade.Em O Nascimento da Tragdia, o trgico, como proposta, emerge da unio entre apolneo e dionisaco e confere uma forma [rodap, definio transitria, pois no se trata de dar forma, Deleuze em CC] esttica ao transbordante da vida. No entanto, este indefinido transbordante da vida assusta o homem que o sente como ameaa e trata logo de enclausurar os elementos do mundo sob as formas do verdadeiro e do falso, margem para os valores bem e mal, cuja negao produz os juzos de bom e ruim juzos considerados pelo alemo decadentes e fracos, pois no se originam de uma potncia de criao, mas da negao daquilo que no so.J que a tragdia , sobretudo, um manifesto da autenticidade, ela reluta contra os maiores preceitos de ingenuidade perante o caos vivente; segurana, conformidade e acomodao, bases que revestem o conhecimento racional numa relao dupla causalidade, so postos na berlinda. Ameaas a uma ordem que pode ser entendida como pelo esquema da verdade que vem do pensamento e postula leis que levam a segurana da unidade contra as ameaas do trgico. (rodap: artigo o trgico,... o fundamento mostra como o fluxo eterno das coisas e do mundo seria um obstculo ao conhecimento verdadeiro, sinalizando-o como inexoravelmente estagnado. O que, por sua vez, decorre da colocao de platnico-socrtica do mundo em segundo plano, reiterando a metafsica, o supra-sensvel).Entretanto, preciso lembrar que a crtica de Nietzsche no ao saber racional por ele mesmo, mas prioridade e ao exclusivismo deste conhecimento, que chega a acarretar um certo furor curandi sobre a humanidade e numa ignorncia aos mistrios do mundo, pretendendo reduzi-lo ao que caiba em sua compreenso. Explico: o problema no a inteno de conhecer o mundo, mas de despi-lo e depur-lo por inteiro para corrigi-lo.O conhecimento racional est intimamente ligado ao controle do mundo atravs dos valores metafsicos e dos valores morais. A metafsica funda o verdadeiro derivando-o da racionalidade enquanto a idia de bem lanada como que por um imperativo moral. A partir de ento, a vida pautada pelo verdadeiro e pelo bem, deixando de ser tomada em sua totalidade fundando um humanismo que, no apreendendo o mundo em sua dimenso integral, desloca as noes de responsabilidade e razo de um impessoal da ordem das coisas ao mbito do inidivduo. (Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, So Paulo, 1996)Ao mirar suas armas na moral, Nietzsche atinge a histria da filosofia. Operao esta que pode ser esclarecida tendo em mente os nexos estabelecidos pela supresso do trgico num mbito filosfico, relegando-o s artes e suas manifestaes, ele parece almejar o pensamento trgico em sua radicalidade desde quando faz filosofia fora do formato comum, se valendo de aforismos ou de uma espcie de epopia na qual seu heri emula e carrega nas costas os valores frisados pelo autor-filsofo, ou ainda atravs poemas que fazem as longas e cansativas explanaes tpicas da filosofia de seu tempo parecer anacrnicas vistas hoje.De fato, a idia de verdade como balizadora, atua em duas frentes: afastando o trgico e no s naturalizando a presena da moral, mas tornando-a necessria, na medida em que atravs da moral que se posiciona um automatismo da busca da verdade. Uma moral que, atuando lado a lado com a verdade e o conhecimento racional visa minar os instintos, que so anteriores e prpria possibilidade do pensar (legtimo) a verdade e a moral esto implicadas no conhecimento, uma vez que no se entende que haja cincia sem pressupostos.Mas para Nietzsche, a filosofia deve acompanhar as foras da vida e, pelo pensamento, afirm-la. Ele define a filosofia como a busca de tudo o que estranho e problemtico no existir (...), tudo aquilo que foi, at agora, banido por meio da moral (O nascimento da tragdia, EH/EH, pos 3), afastando aquilo que h de cmodo e artificialmente harmonioso no saber. O pensamento trgico a afirmao inconteste e incondicional expressado no eterno retorno do mesmo contra os moralistas e metafsicos que desejam o sobre-terreno, um sentido grande e que abarque tudo. Contudo, o sentido da realidade pode ser qualquer ou nenhum sentido, nessa evidncia se apia o pensamento trgico nisso consiste a realidade entendida como jogo de mscara sob mscara, sem chegar a uma verdade ltima mais verdadeira que a de uma prpria mscara. De fato, o pensamento nietzschiano no compreende qualquer hierarquizao do existente em direo a uma verdade suprema, antes, postula a vontade de potncia como erro, porque este erro pressupe uma vista em perspectiva e, ademais, a dinmica, uma vez que os valores tm seu ser no vir-a-ser, assim como aquele que cria estes valores e todas as coisas do mundo.Nietzsche critica a filosofia no que ela busca a verdade nas valoraes morais de bem e mal, numa relao clareada pelo conhecimento de base sensvel e supra-sensvel, mas so os impulsos os criadores da relao entre o sensvel e o supra-sensvel. A verdade num sentido extra-moral estaria ligada ordem mundana do trgico e do indeterminvel, e no na metafsica dos conceitos valorativos. A moral uma interpretao equivocada (Missdeutung) dos afetos porque os relaciona a uma finalidade forjando a necessidade de uma relao estrutural de bem e mal para compreend-los. Seu pensamento conduz a uma filosofia do perigoso talvez a todo custo. Este o trgico como contedo da relao entre vida e pensamento. O dionisaco o dizer Sim vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida (NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragdia, 1992, pg. 15).Nosso intuito com esta explanao sobre o trgico mostrar um ponto que consideramos chave para a compreenso da problemtica da loucura, que consiste no sobrepujamento da razo pela via da moralidade. O que entendido como um movimento naturalizado de supostamente evolutivo do pensamento ocidental ou simplesmente como algo natural do humano. Neste contexto, o que Nietzsche nos mostra que Descartes, contrapondo-se a uma madura tradio do pensamento trgico abafado pelos sculos de domnio cristo, ajudou a estabelecer um individualismo renovado no sujeito que, colocando a razo individual como o tribunal mximo do conhecimento em que a evidncia era o nico meio de prova aceitvel, colocava sob a ptica da moral todo o existente.Desta maneira, a polifonia do mundo real era sobrepujada pelo valor de unidade de um mundo ideal platnico e lgico aristotlico geral e universalizante, o saber particular, do indivduo tardara ento muito tempo para reaparecer (tal como Foucault explora no segundo capitulo de Nascimento da Clnica). Ao localizar o essencial do ser no vazio, Nietzsche, expoente do pensamento trgico, mina as bases do dualismo entre matria e esprito. Ele procede, pelo trgico, a uma filosofia de encontro categoria de ser, j que se pauta pela transitoriedade inerente aos movimentos da vida que so desejo, necessidade, instintos; aquilo que vem do corpo antes do pensamento para que ele se efetue.Retomando nosso problema, o conhecimento no uma aproximao, antes ele a marcao de um distanciamento, ali se aparta o quanto se pode sujeito de objeto, podemos ver isto claramente quando se fala de imparcialidade, de neutralidade, ou ainda, em termos mais escandalosos, em distanciamento do campo de conhecimento.Tomando a constituio da loucura desde a era clssica, Foucault frisa a modernidade como momento de sublevao da ordem racional e instituio o sujeito da identidade como parmetro de verdade de maneira que, quando a experincia trgica ressurge em seu bojo, ela produz outra linguagem, que postula outras formas de existncia. O que pulula ali fala do louco, transgresso, o novo, o impensvel o que leva o sujeito para longe de si uma experincia-limite que conduz aos limites da experincia subjetiva, estruturadora do sistema de conhecimento moderno.Assim, nosso intuito emparelhar o discurso da loucura com o pensamento do trgico como uma alternativa ao discurso prioritrio do conhecimento racional. Sob este discurso da razo que poderia surgir o da loucura, pois no bojo de uma lngua maior que o discurso menor pode-se fazer como mquina coletiva de expresso; explicamos a seguir.No que haja uma forma que, em si, seja menor, expresso e forma no avalizam o minoritrio, tampouco basta o simples fazer da deformao no processo ou no contedo. O que faz um discurso menor a expresso em seu procedimento. O que o faz menor s-lo perante um discurso maior, que aquilo que entendemos que Deleuze ao falar de literatura e subjetividade em Crtica e Clnica chama de lngua materna. Em sua ambigidade a lngua materna pode se referir lngua da ptria-me donde o indivduo se encontra ou mantm algum lao de pertena, mas tambm linguagem da maternagem, relacionada a uma edipianizao que se amplia do discurso ao geral da vida [rodap: o discurso menor mantm uma relao ntima com o tema do enlouquecimento da linguagem, a ser abordado no capitulo seguinte].Valendo-nos de Deleuze e Guattari, quando escreveram sobre a literatura de Kafka, entendemos que menor no necessariamente a criao de uma lngua menor, mas, antes, o discurso de uma minoria numa lngua maior, o que quer dizer que no exerccio menor de uma lngua maior que se instaura o discurso menor. Processo este no qual a lngua necessariamente deslocada (os autores usam a idia de desterritorializao no livro). Estes autores ainda afirmam que numa literatura menor tudo vem a ser poltico e que mesmo quando ela fala de casos particulares, vai alm dos dramas edipianos, fazendo poltica. O que faz saltar aos olhos a sua dimenso sempre coletiva a literatura menor prescinde de uma orientao feita por um mestre, seu sistema de produo atravs privilegia a enunciao coletiva.No mais uma configurao onde h um que fala e outro que falado, mas um circuito de estados que forma um devenir mtuo, no seio de um agenciamento necessariamente mltiplo ou coletivo (Kafka p. 35). Trata-se de uma lgica comunicacional distinta da representativa e interpretativa, na qual, pelo primado da enunciao coletiva, o sujeito de enunciao e o sujeito do enunciado tornam-se figuras improvveis. As palavras adquirem uma pertena mais ampla que o sujeito, porque no mais se referem a um sujeito, exclusivamente, mas a uma coletividade minoritria mltipla.Esta literatura do primado da enunciao coletiva, desvinculada dos discursos dos mestres, d uma dimenso poltica aguda aos enunciados de um indivduo, o que um s fala, j confere uma extenso coletiva. Era isso que bradava Kafka ao dizer que literatura tem mais a ver com um povo que com a histria da literatura (p. 27 CC), pois o que o escritor sozinho diz, j constitui uma ao comum, e o que ele diz ou faz, necessariamente poltico, mesmo que os outros no estejam de acordo (p. 27 Kafka...).Com efeito, o campo de posicionamento do coletivo maior do Estado (mas o Estado referido aqui se estende noo, edipianizada, como no poderia deixar de ser, do EU, que o Estado em ns ou seja, aquilo que de maior carregamos em nossos preceitos, em nossas subjetividades) est sempre em vias de dissoluo e a literatura que produz uma solidariedade ativa (p. 27). O Estado, o sujeito e o paciente so caractersticos e franqueados de um tipo de organizao e produo pelo e do passivo que est sempre prestes a se desfazer e o que surge em potncia e co-gerao precisamente uma formao ativa, uma deformao ativa lembrando sempre que para Deleuze, escrever no dar forma a algum informe... (CC).Afirmando que no h sujeito, h apenas agenciamentos coletivos de enunciao (p. 28), os autores entendem a literatura como o campo privilegiado de expresso de uma coletividade que no vem do exterior e que pode sim ser grmen de revoluo. Uma vez que apenas em relao a um sujeito que o indivduo seria separvel do coletivo (p. 28), ao rachar a ordem subjetiva no h problemas com a enunciao coletiva, a ordem individual se ramifica politicamente na coletiva.Seguindo as pistas deixadas por Deleuze e Guattari, para fazer um discurso menor h de servir-se deServir-se do polilingismo em sua prpria lngua, fazer desta um uso menor ou intensivo, opor o carter oprimido dessa lngua a seu carter opressor, encontrar (41) os pontos de no-cultura e de subdesenvolvimento, as zonas lingsticas de terceiro mundo por onde uma lngua escapa, uma animal se introduz, um agenciamento se ramifica. (p. 41 e 42)Porm, o discurso menor no se faz perante uma sutileza cifrada de metforas, o dizer menor, como na literatura menor, se aplica na materialidade daquilo que diz e daquilo que deveras, no s pensa, mas sente. Isto , ele visceral no no sentido de interioridade, daquilo que vem de dentro, mas visceral de um modo encarnado, forte insistimos em evocar a materialidade do pensamento e da carne em Artaud (como aquilo que incorpora o que entendemos por trgico e por menor). Certamente o discurso menor parte da instaurao de outra flexibilidade, de outra intensidade na linguagem, uma vez que o devir no substituio de formas, o minoritrio o inacabamento, o que no se mantm e no se encerra. Portanto, a linguagem menor mais intensiva, no se faz no mbito da representao e se conjuga mais prxima daquilo que exprime, que no tem como objeto diferentemente do conhecimento racional que enseja ver-se cada vez mais afastado daquilo que objetiva ou representa.A linguagem deixa de ser representativa e para tender a seus extremos ou seus limites (Deleuze e Guattari, Kafka p. 36). Deslocamento este que acaba em estranhamento, o que se d automaticamente ao arrancar (mesmo que por vontade prpria) as coisas de uma suposta nuclearidade. Trata-se de um processo de deformao ativa que no confere nunca uma forma definitiva. Trata-se de ser ator em se arrastar.O devir menor diz respeito criao de condies revolucionrias por uma minoria (o devir minoritrio e a revoluo para Deleuze so indissociveis (Abecedrio)) no seio de uma linguagem maior, a qual, por sua vez, advm de uma generalidade local, enraizada naquilo que a constitui a minoria como menor. As categorias espao-temporais dessas lnguas diferem sumariamente: a lngua verncula est aqui; a veicular, em toda parte, a referencial, l; a mtica, alm. (p. 37). H o exemplo do latim que pode ter comeado com lngua verncula no Lacio, h muito tempo, depois se tornando veicular em toda Europa, para depois referencial e hoje, mtica a linguagem das mais sagradas das missas.Concluindo, a minoria poltica e coletiva a que nos referimos vem da desterritorializao da lngua no somente enquanto idioma de linguagem letrada, mas como linguagem de alicerce estrutural da cultura ocidental, de maneira que compreendemos na ramificao do individual no imediato-poltico o agenciamento coletivo de enunciao a que nos referimos como possibilidade da loucura poder fazer seu discurso, pela fala do louco, ali no ponto onde a psiquiatria e os demais saberes titubeiam sobre a experincia louca ela insurge em sua minoridade, trazendo-nos em seu discurso as insgnias do trgico.

Tornar possvel um pensar diferente, pensar o impensvel. pensar sempre experimentar, no interpretar, mas experimentar, e a experimentao sempre o atual, o novo, o que est em vias de se fazer (DELEUZE, um retrato de Foucault in conversaes p 132)

Atrs do conhecimento h uma vontade sem dvida obscura (FOUCAULT, A verdade e as formas jurdicas, p. 21)Ver pressupe um distanciamento intrnseco viso, e o reencontro proporcionado por ela no bojo do distanciamento supe no estar em contato com aquilo que se v.

A loucura como doena: arqueologia, patologia e sadeA sesso anterior abordou a constituio do discurso menor da loucura perante um discurso maior do exclusivismo racional e das prticas e saberes que a objetivam; postulamos como expoente desta categoria o trgico que ressurge na experincia moderna da loucura pelas vias da arte e da escrita, seu pensamento abarca a [footnoteRef:2]integralidade da experincia, o que tocado pela sombra e pela luz, o doloroso e o alegre, o desfalecimento e a exaltao e no apenas aquilo que iluminado pelo conhecimento de base racional. [2: ]

Assim, mostramos que h um ideal de assepsia da relao de conhecimento que, longe de ser abstrata e inclume, pode levar a concepes de higienismo, a ordens pureza e depurao das experincias e dos objetos, e a todo este arcabouo de intuies idealistas que negam a vida, levando at a certa hipocondria[footnoteRef:3]. No obstante, esta relao de conhecimento, necessariamente, exerce violncia com aquilo que tem como objeto, desde o ponto em que os hierarquiza, num movimento que intrnseco ao modo de produo de conhecimento moderno; seja no ponto em que afasta, pela via das ironicamente chamadas cincias do homem, o homem objeto de conhecimento do homem que deveras aplica e operacionaliza o saber sobre este outro. [3: Como nos aponta Foucault em Nascimento da Clnica. Neste texto o autor fala que no giro de compreenso da medicina das espcies para a medicina moderna, da ordem funcional ligada idia de vida e ao conceito de norma, o sujeito desse conhecimento, o estudante de medicina chega a sentir nos seu corpo aquilo que estuda, e o sente concretamente. Poderamos pensar que a atual onda de hipocondria que se segue na atualidade se deve em parte grande difuso dos conhecimentos mdicos ou medicalizantes sobre o corpo, difuso de receiturios para diagnsticos e medicalizao caseiros na internet, nos programas de (in)utilidades da televiso e nas revistas de auto-cuidado e comportamento.]

O pesquisador Foucault empreende ento uma metodologia diferente quando vai estudar a loucura na Idade Clssica; o que ele denomina arqueologia dos saberes uma histria das condies do que torna os saberes possveis, um mtodo que no pretende esconder ou alisar as diferenas de seus objetos, mas que as acata e at as ressalta, pois no devemos separar o objeto de nossa anlise das formas como ele se apresenta a ns. Paul Veyne (2010, p. 16) ressalta que a concepo da verdade como correspondncia do real fez com que se acreditasse que, para Foucault, os loucos no eram loucos, e que falar de loucura era ideologia, entretanto, a verdade estudada pela arqueologia o que se considera verdadeiro, no havendo correspondncia com o real necessariamente. De fato, num momento primeiro momento em suas reflexes, Foucault chega a admitir pensar a loucura isolada, em estado bruto; um estado primeiro, um grau zero da histria da loucura, no qual ela experincia indiferenciada, experincia ainda no partilhada da prpria partilha, (1961/, prefacio p. 140) momento este anterior sua captura pelos saberes e discursos que a constituiriam nas diferentes culturas como coloca no prefcio presente na primeira edio de Histria da Loucura. Embora o autor no explicite de quais elementos se valeria para se pensar essa loucura primordial, logo ele se dissuade desta idia.Com efeito, Foucault marca o terreno da arqueologia como uma histria acerca dos saberes que invoca a referncia no daquilo que se tornou o que hoje se apresenta como determinada cincia em funo da histria a ser contada, ele faz uma histria pautada no pelo desenrolar das reminiscncias deste saber, mas fundada no parentesco que o antigo saber estabelecia com outros campos de saber da mesma episteme. Contando a histria no em funo do que temos hoje, ele complica a noo de continuidade, minando a idia naturalizada de evoluo unvoca dos campos de saber em direo da natureza essencial ou da aproximao com o objeto. Muito originalmente, o autor francs, ao fazer sua histria da loucura, a coloca em relao aos saberes e s prticas de cada poca e no em relao ao desgnio recente que lhe foi outorgado de patologia, objeto cientfico da psiquiatria.Foucault se interessa pelas descontinuidades num mesmo saber e pelas continuidades perante os demais campos agregados sob o mesmo solo de enraizamento que ele chama de episteme. De maneira que, tomando as formaes discursivas como objetos da arqueologia, a ruptura se d em nvel de variao que afeta o regime geral de uma ou vrias dessas formaes discursivas. Em As Palavras e as Coisas livro cujo subttulo Uma Arqueologia das Cincias Humanas ele conta no como a histria natural se tornou, por um ordenamento crescente do saber em um movimento inerente sua evoluo, biologia; mas coloca lado a lado a histria natural, a anlise das riquezas e a gramtica geral em funo do intercmbio que estabelecem entre elas mesmas e no em funo das cincias modernas em que se desdobraram, respectivamente, biologia, economia e filologia.O autor francs focaliza em seu trabalho no a linha contnua de evoluo dos saberes, mas a contigidade e continuidade entre os saberes de uma mesma episteme [footnoteRef:4] estudando os discursos e as prticas. Com perspiccia, ele no interpreta os documentos buscando significados latentes, mas trata-os como prticas e, buscando fazer ranger os monumentos (construes) da histria, no toma estes como monumentos desempossando-os, com isso, do exclusivismo do dizer verdadeiro que remeteria a uma verso oficial que ultrapassa os pressupostos de uma ideologia nos jogos de poder que analisa. [4: Edgardo Castro (2009) sinaliza que posteriormente em Arqueologia dos Saberes, Foucault presume outras formas de fazer arqueologia no da episteme, mas orientada por outros eixos, como a sexualidade, as artes ou a poltica.]

A arqueologia no se interessa pela origem das coisas, mas pelas regularidades dos enunciados; ou seja, pouco importa o momento mitolgico em que aconteceu de se fazer o primeiro homem louco que se tem notcia, mas como a histria foi amarrando significados e leituras diversas sob o desgnio que se produziu como loucura. Assim que, Histria da Loucura remete a formaes histricas, mais especificamente, historicidade das prticas e dos dizeres acerca da loucura, mas despeito disto, ela no consiste em um mtodo da historiografia. A noo arqueolgica de descontinuidade conflita com os pressupostos bsicos de causalidade e continuidade da historiografia das mentalidades. Nem sequer uma histria das idias, j que no busca gnese e totalizao numa coeso evolutiva do saber.Tampouco poderia ser uma epistemologia, embora a epistemologia seja uma de suas bases[footnoteRef:5]. Porm, enquanto a epistemologia se preocupa com os saberes e se encontra na maior parte das vezes comprometida com a evoluo dos saberes em uma linearidade cronolgica que contrasta com o projeto arqueolgico, este se encontra despojado dos pressupostos de cientificidade nas vrias implicaes que isso possa acarretar. Tanto na opo de no lidar apenas com os saberes (lida com enunciados de outros campos), que, como indicado acima, no deixam de ser um estrato da ordem discursiva, quanto no rompimento com a idia desenvolvimentista de uma constante evoluo no sentido de uma melhoria, ou de uma maior apurao das cincias com o decorrer do tempo e das mudanas de ordem intrnseca. No se compactua em um progresso da razo humana ou dos conhecimentos em direo a uma verdade final e acabada, absoluta, portanto, da realidade. [5: Para aprofundamento no tema ver: PORTOCARRERO, V. As cincias da vida: de Canguilhem a Foucault (2009), do qual nos valemos ainda neste captulo.]

A respeito das formaes discursivas, a arqueologia ressalta o mbito processual destas, entende a verdade invariavelmente como um construto, no como um invariante que uma vez atingido se esgotaria na veracidade ltima que a reside. No obstante, a arqueologia vai lidar privilegiadamente com o campo da experincia, por isso, seu campo o das experienciaes e percepes das experincias da loucura. No entanto, enquanto procedimento que precisa da histria enquanto instrumento conceitual, a arqueologia no deixa de ser, por sua vez documental[footnoteRef:6]. Mas novamente aqui ela guarda peculiaridades com relao historiografia mais tradicional, pois ela pode envolver tudo o que cultural como objeto possvel, como prerrogativa de sua interveno. Pois, ao final entendemos como uma valiosa lio da arqueologia o paradigma do caminhar dinmico no sentido da constituio de um saber que no inclume, apartado do mundo, ou de seu objeto. [6: O que guarda ressonncias para o trabalho que pretendemos desenvolver; ao falarmos do mtodo, a arqueologia indubitavelmente ser uma sombra, mas no nosso mtodo, j que no trabalharemos com esta documentao, mas sim com narrativas, com a histria contada da loucura.]

A arqueologia no tem por fim costurar sentidos imiscveis ou conferir significados s experincias, antes, seu comprometimento com a demonstrao justamente do oposto desta ordem representativa forada. Podemos dizer, assim, que a arqueologia poderia ser delineada como algo em torno de uma anlise histrica do presente, na medida exata em que trata do atual, do que est posto como dado de realidade tctil, sensvel.O alvo do olhar histrico foucaultiano vai ser ento o de como determinada experincia veio a se constituir tal qual se apresenta agora, e nisto a arqueologia nos muito providencial. Uma vez que a perspectiva da histria de nosso autor vai buscar no as linhas que levam ao mesmo, as que costuram um sentido unvoco e providencial ao que se vive hoje, no, no se trata absolutamente disto; ele busca na histria justamente a ruptura e o destacamento que instala uma discursividade distinta, que engendra prticas que no tem correspondncia com as anteriores.

Retornando ao nosso ponto, Foucault a fim de estudar os modos pelos quais os saberes e os poderes objetivam os sujeitos na modernidade empreende uma questo muito interessante: como um campo se torna problemtico a ponto de se tornar objeto de um saber? Como so construdos os objetos, as verdades e, de maneira mais intrincada, os sujeitos? Preocupaes estas que podem ser conduzidas por grupos ou indivduos especficos, ou como discursos que podem se perder em meio a um dizer de tal maneira generalizado que se tornar uma resposta annima (PORTOCARRERO, 2009). Este o caso da naturalizao das relaes criadas pelos saberes em que se perde a noo de que tal insurgncia se deu em algum momento no tempo ou pior (porque oculta e dissimula mais profundamente), tornando o giro que promove tal percepo algo da ordem de uma evoluo em direo a uma aproximao da verdade ou a um aprimoramento do conhecimento. No contexto do pensamento moderno, relacionado ao entendimento de certa antropologia e do homem, a vida se insere num quadro filosfico de distanciamento de nosso presente, cuja meta diagnostic-lo, critic-lo e imagin-lo diferente (PORTOCARRERO, p. 143). Se por um lado, a condio para a concepo das cincias sobre a vida ser tomada como um objeto emprico, por outro, a prpria fundao do conceito de vida, nos afasta da prpria vida, concretamente; e isto porque ele se funda numa negao dos valores inerentes vida e se ramifica em direes contrrias. A seguir veremos como Canguilhem trabalha com os conceitos de norma e ideal e como os saberes sobre a vida e a forma como so organizados do margem produo do mito do paraso perdido, e demais abstraes e sobrevalorizaes baseadas na noo de ideal, despotencializando o presente em funo do ausente ou do porvir.

No entanto, a prpria concepo de vida sob a qual se orienta os saberes modernos s possvel a partir do sculo XIX. A episteme clssica que Foucault foca em Histria da Loucura se organizava em torno da noo de representao, l se buscavam semelhanas, enquanto na modernidade se busca funes para se fundar uma sntese, as coisas seguem o fluxo de seu prprio devir e no das representaes lembremos que para a medicina clssica, pouco importava qual era o local da enfermidade no corpo, o importante era a posio da doena no quadro geral das espcies, e que esta tinha um curso natural o qual, desde que no fosse atrapalhado, arremataria em morte ou cura, seguindo o que era tido como seu curso natural (FOUCAULT, NC). O classicismo organiza o conhecimento possvel em simples e complexo; o primeiro adivinha da mathesis e tinha como mtodo a lgebra, e o segundo era o campo propriamente dito das representaes (discusso esta que ser aprofundada no segundo captulo), donde se d o domnio dos signos e a constituio atravs de um olhar taxonmico do quadro de representaes, que vai ser o cone do conhecimento clssico. No entanto, a representao no se retira totalmente do campo do saber com o giro das epistemes. Ela deixa de ser o eixo estruturante de toda possibilidade de conhecimento, verdade, mas continua a existir como objeto de estudo da linguagem, que forma com vida e trabalho o triedro de empiricidades tramadas naquele tempo a serem investigadas pelo conhecimento moderno. Assim, a representao persiste no arcabouo do saber via linguagem, e como toda nossa relao mediada por esta, para se conhecer o homem, constri-se uma representao deste e ento atravs desta que se faz saber.Retornando crtica aos saberes a respeito da vida na modernidade, v-se que o conhecimento sobre o homem se pauta muitas vezes por uma normatividade ideal (problema a ser abordado mais a frente), que trata de uma apreenso metafsica e de formas ideais em seu entendimento e atuao. As cincias da vida obnubilam as relaes do indivduo com o existente, especialmente daquele que afetado por elas a nvel de objeto, se atendo a formas espacializadas numa diagramao ideal[footnoteRef:7]. [7: o que vemos com determinada concepo de sade psquica que presume a supresso de qualquer possibilidade de conflito ou dor psquica ou, o que no mbito de sade global, podemos ver em qualquer academia de ginstica, a busca de um ideal de sade que uma normatividade ideal, segundo o vocabulrio de Canguilhem.]

De fato, muito curioso pensar como elementos to dspares foram organizados e emparelhados sob a alcunha de doena mental. Houve um tempo no princpio da psiquiatria em que a paralisia cerebral era tida como a doena padro, perfeitamente cabvel na equao do que era o corpo do saber da poca, era a chamada doena boa, em contraposio m doena, que Foucault exemplifica em Histria da Loucura com a histeria, lembrando que uma doena m, no necessariamente era aquela que era pior ou mais danosa para o indivduo, mas a que era a que causava problemas para classificao e tratamento dentro do sistema mdico de conhecimento mais tarde, em outro contexto histrico, a histeria vem a ser um impasse para a antomo-fisiologia, minando o sistema de decifrao da doena que parte da, porque neste paradigma, o sofrimento remete dor, que calcada na base de trauma, no sentido de leso; contudo, na histeria a dimenso psquica, social e histrica do indivduo que vai dizer sobre a doena mais que a antomo-fisiologia do doente. Os conhecimentos sobre a vida e o discurso antropolgico acerca do homem so o alicerce de composio da episteme moderna. E, da mesma maneira que a percepo cognitiva da doena anterior formao da concepo de normalidade, o saber sobre a vida comea a se formar e a se estruturar por sua negatividade, do indivduo morto[footnoteRef:8]. Ou seja, tal conhecimento se d pela importncia da combinao de funo e funcionamento concomitante ordenao dos planos de conhecimento, o qual tem a ordem como lei interior por isso o quadro classificatrio de Borges no comeo de As Palavras e as Coisas nos parece to jocoso quanto espantoso; sobre a organizao e a ordem que se estabelece a inexoravelmente relao hierarquizada de violncia sobre os elementos pelo saber este desapropria os objetos forando-os numa paisagem algumas vezes desoladora. [8: Estamos falando aqui do indivduo morto mesmo, embora no segundo captulo aparecer a figura conceitual da morte do homem antropolgico em suas decorrncias com os saberes. De acordo com Portocarrero (2009), a primeira vai ser para Foucault, a nova concepo de morte compreendida como uma srie de processos ou mecanismos mltiplos no espao e dispersos no tempo, que no se identificam com os mecanismos da vida nem com os da doena (p. 147 e 148), marcada, como indicado acima, pela idia de funo e funcionamento.]

Esta configurao do saber que almeja esquadrinhar o caos do mundo tem como fator complicador de sua ordem, mais que a da incongruncia e a da aproximao indevida, a apreenso de uma varivel de desordem a qual exprime a evidncia de que h inmeros sistemas de ordenao possveis. A estrutura do saber no d conta dessa evidncia que solapa a univocidade do ordenamento racional que se pretende completo e universalizante, escancarando a tenso que h entre a razo da ordem estabelecida como forma oficial e as demais possibilidades de razo, estas demais apenas so impossibilitadas de produzirem verdades num determinado esquema de saber/poder isto , no se esgota jamais as possibilidades lgicas de qualquer discurso. Em outras palavras, uma vista sempre a viso enxergada de um ponto particular, raciocnio simples, mas que mina a pretenso universalizante do discurso do conhecimento racional.H o escndalo de certa instabilidade entre contedo e contingente, que abala a escopo de um discurso racional institudo, aquele que vem a produzir verdades em determinada contingncia, pois nem nessa particularidade ele pode conter toda a razo do mundo. Esta uma das lies que podemos depreender do item h do quadro de Borges reproduzido por Foucault em As Palavras e as Coisas e que o inspirou a escrever e este livro: os animais se dividem em: a)pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leites, e) sereias, f) fabulosos, g) ces em liberdade, h) includos na presente classificao, i) que se agitam como loucos, j) inumerveis, k) desenhados com um pincel muito fino de plo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas (BORGES apud FOUCAULT, ano, p. IX);ao incluir como sub-categoria a categoria geral de todos os elementos includos na descrio, o autor provoca um desarranjo num sistema que, se examinamos um pouco mais detidamente, no conseguimos pontuar um pano de fundo comum, no h como traduzir estas descries de classes de elementos para uma mesma unidade coesa de integrao e medida.Esta uma das decorrncias do problema apontado por Foucault de um exclusivismo do discurso racional a que nos referimos na sesso anterior. atravs dele que se institui o descrdito de qualquer discurso que no o da ordem racional instituda, aquela mesma que praticamente detm o monoplio da produo de verdade. A longa explanao sobre o discurso das cincias que tratamos acima tem sua justificativa neste nas seguintes questes: uma vez que a desautorizao do discurso do louco est intimamente ligada ao objeto de nosso estudo, o discurso da loucura, a pergunta que se segue a de como a loucura pode ser algo que no patologia? Em que ponto a loucura pode ser tambm uma sade? Entendemos isso como intimamente ligado ao que a loucura pode dizer ou fazer.Foucault ressalta que o que a loucura pode dizer sobre si no sculo XIX, donde comea a re-insurgncia do trgico na literatura, na filosofia de Nietzsche e na pintura de Van Gogh, por exemplo, uma verdade do homem, bastante arcaica e bem prxima, silenciosa e ameaadora (...) uma verdade que a retirada profunda da individualidade do homem e a forma incoativa do cosmos (HL, p. 510)[footnoteRef:9]. Neste sentido, Goya mantm acordado o desatino que o classicismo encerra, nesta noite que o Sono da Razo, e que, no obstante, uma noite que leva o homem s suas profundezas, naquilo que ele se comunica com o que h de mais ntimo em si mesmo. [9: Associamos esta colocao ao impessoal que nos vai falar Blanchot no terceiro volume de A Conversa Infinita (2010) ou o impessoal e singular para Deleuze no quarto captulo de Crtica e Clnica (2011), ambos a serem utilizados mais a frente.]

Na modernidade, vai ser atravs do louco que se criam os saberes psi, ou seja, o louco carrega uma capacidade de verdade maior do que ele mesmo, uma vez que atravs dele so descobertas verdades sobre os homens, o que faz do louco um objeto de atrao e fascnio. O paradoxo da psicologia positiva do sculo XIX o de s ter sido possvel a partir do momento da negatividade: psicologia da personalidade por uma anlise do desdobramento; psicologia da memria pelas amnsias, da linguagem pelas afasias, da inteligncia pela debilidade mental. A verdade do homem s dita no momento de seu desaparecimento; ela s se manifesta quando j se tornou outra coisa que no ela mesma. (HL p. 518)Ou seja, atravs dos saberes psi, o louco vai ser objeto de conhecimento em sua especificidade de louco, mas tambm de reconhecimento do homem, j que dele que emerge o discurso da psicologia, que em seu carter universalizante, pretende abranger os sos numa verdade comum. Mas a reflexo no quer acolher esse reconhecimento, ao contrrio da experincia lrica (HL 563, versod). Embora no se depreenda de ver o louco como coisa mdica, ele passa por uma implacvel reduo a objeto sendo relegado uma menosprezada superfcie porque no h lugar para o louco na profundidade comum ao humano. loucura cabe no apenas esse papel de coisa, mas em decorrncia de sua formao via apartamento social, o indivduo so somente lida com o louco mediado pelo mdico. Paradoxalmente, a sanidade no pode se reconhecer no rosto da loucura, a mesma que funda os saberes psi que se estendem at a sanidade.Na loucura se reconhece o poder de gerao de mal (maladie), as conseqncias das ms influncias do meio, as srias determinaes orgnicas, ambos apreensveis pelos instrumentos de uma razo que se prediz salvadora. Distingue-se a loucura das doenas do corpo porque ela pode despertar uma maldade em estado selvagem, para o discurso da modernidade, a loucura o contrrio da liberdade do homem, por isso enclausurada. H de se argumentar que com a revoluo de Pinel, os loucos no so mau-tratados ou violentados mais, no entanto, se no so violentados aberta e francamente, porque pelo exerccio de outra ordem de violncia, ele j no to ameaador. Sua inimputabilidade advm do admisso da fora e da intensidade dos contedos psicolgicos que arrastaram o indivduo at este ponto, a despeito do remanescente de razo que persiste nele. Pois h de se assinalar, contudo, que a cura do louco est na razo do outro sua prpria razo sendo apenas a verdade da loucura (...) Portanto, o homem no dir o verdadeiro de sua verdade a no ser na cura que o conduzira de sua verdade alienada verdade de homem (HL p. 514). Pois se atravs da loucura que o homem, conceito antropolgico, descobre sua verdade universal, partindo desta verdade que pode haver cura.Mas, afinal, o que a cura? Seria uma restituio ao estado anterior ou uma melhora qualitativa em relao ao presente da presena da doena no indivduo? Ou, antes disto, como a loucura se transformou em patologia? Comeando pela segunda questo, loucura virou doena na modernidade a partir do giro conceitual que se funda no trip do homem, sua loucura e sua verdade, que veio solapar lgica binria do desatino da era clssica que se dava num pndulo de oscilao entre verdade e erro, ser e no-ser. A partir dos saberes modernos, a loucura colocada perante uma relao de saber. Relao esta descrita na mtica cena de fundao da psiquiatria, que se pautaria pela evoluo do saber sobre a loucura e pela humanizao no trato com os loucos, no nos cabe aqui levantar bandeira contra esta objetivao ou a maneira como foi feita, mas problematizar a loucura entendida como doena. Compreendemos que seja muito difcil falar da loucura como se faz outra doena qualquer, pois extremamente problemtico entender a percepo da loucura como no-sade pelo parmetro da existncia de um episdico ou eventual fato (a doena que acomete o indivduo) combinado carncia de um valor (a sade).Contudo, se a loucura apreendida como doena, vamos abordar-la por a, nos valendo de Canguilhem no entender do estatuto de uma doena perante a vida este o intuito desta parte do texto. Partiremos de alguns apontamentos de O Normal e o Patolgico, para compreendermos conceitualmente patologia, a fim de melhor operacionalizar com esta concepo desdobrando as questes acima. Para entendermos cura, temos que pensar primeiramente em sade. Para a medicina, o chamado estado normal pode ser duas coisas: 1) o estado habitual dos rgos ou 2) o estado ideal de sade. O papel auto-atribudo da medicina curativa visaria o restabelecimento do estado habitual. Contudo, quem decide normal neste mbito, o mdico ou o doente? Acontece que a vida coloca questes para os viventes que eles respondem bem ou mal, se mal procuram um mdico que restabelea seu estado normal habitual, ou seu poder de lidar com as questes que o mundo lhe coloca, sua capacidade normativa, de estabelecer normas diante das circunstncias que vm a calhar. Ou seja, em ltima instncia, o doente que define, cabendo a ele a escolha de chegar ao mdico na busca pela restituio do estado habitual.Entretanto o mdico um solucionador de anormalidades?[footnoteRef:10] No isto, definitivamente. Pois preciso entender que o anormal no o patolgico, o patolgico aquilo capaz de diminuir a capacidade normativa do vivente, minando sua normatividade vital. De maneira que, o homem normal o normativo, ou capaz de estabelecer novas normas. O patolgico no tem a plasticidade de estabelecer normas. Considerado isto, o que marca o posicionamento de Canguilhem a respeito de um conceito de vida biolgica no dissociada da idia filosfica de vida e ligada vivncia vem a ser a idia de uma prtica social ligada normatividade, de maneira que o restabelecimento da normatividade deve estar ligado aos hbitos. E se a normatividade ideal da teoria da medicina baseia em outros valores que no o da vida corrente, ela no deveria ser levada a cunho na prtica mdica. [10: No podemos confundir, no entanto, anormal com anomalia ou com anmalo. Este o tipo de raciocnio que toma o anormal como adjetivo de anomalia, e no de anormalidade e por conta do qual se fala precipitadamente em doentes anormais.]

Com efeito, o que configura o patolgico o sofrimento[footnoteRef:11], no a desmesura, no o fato de estar fora do desvio padro da curva normal referente freqncia de determinados comportamentos numa amostragem. Pois sim, ao final de contas, normal um conceito estatstico que advm da matemtica, de uma relao de abstrao. [11: Nisto consiste a atualidade que tem o termo em voga no Brasil: pessoa em sofrimento psquico. ]

Quem define o normal, ou pelo menos definiria, na proposta de Canguilhem o doente. Pois se h medicina porque h pessoas que se sentem doentes, e no porque h mdicos capazes de diagnosticar uma doena algo como um mal, ou um grmen malfico em sua natureza. No cabe a ela desenraizar o mal que ela mesma julga, nem estabelecer normalizao de uma populao por retificao, o que fatalmente homogeneizaria os indivduos, ela no instrumento de achatamento das diferenas, mas o que justifica e legitima sua ao , mais uma vez, a presena de sofrimento e no a normalizao de um anormal.Alis, o anormal geralmente tomado equivocadamente por aquilo que no tem norma ou perdeu a norma ideal quando, na verdade, o anormal vive segundo novas normas, ele no carece de capacidade normativa. O anormal tem uma normatividade diferente, mas no uma normatividade ausente. Ele pode inclusive estabelecer uma nova norma que seja inclusive mais interessante. Embora haja, tanto na anormalidade quanto na doena um quantum criativo, nas palavras de Deleuze (in: Posfcio Samuel Becket) se referindo a Becket, a debilidade no deixa de ser uma abertura, um (des)arranjo favorvel a encontros (sair de si, sair do mesmo, estar aberto a outras e novas relaes).Qualquer patologia subjetiva em relao ao futuro, pois no h como prever seu desdobramento por uma essncia do objeto. Num raciocnio via Canguilhem, a categoria competente para designar doena o significado, e no a causalidade na matria que mensurvel, a doena no ausncia matria, carncia de qualidade. Pois o ser vivo, o vivente, no algo que se possa uniformizar. Sem entrar em pormenores da semitica, h que se perguntar: o que o significado daquilo (doena)? No sentido de que h na doena capacidade criativa de se colocar em perspectiva. Pois o corpo no algo dado em cincia, o corpo a percepo de corpo. Portanto, no h hiato entre esttica e analtica no h como construir valores longe do mundo; algo designado como bom, melhor, ou como qualquer juzo de valor usado na tentativa de justificar um bem maior em uma interveno hierarquizada de saber deve ser cautelosamente destacado.Visto que a objetivao da vida passa pela quantificao dos efeitos corporais, Canguilhem e, posteriormente Foucault, desti