Abdruschin Schaeffer Rocha Revelação e Vulnerabilidade ... · moderna, em geral, e no...
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Abdruschin Schaeffer Rocha
Revelao e Vulnerabilidade:
caminhos para uma hermenutica da revelao a partir da presena-ausncia.
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-graduao em Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Orientadora: Profa. Maria Clara Luchetti Bingemer
Rio de Janeiro Dezembro de 2015
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Abdruschin Schaeffer Rocha
Revelao e vulnerabilidade: caminhos para uma hermenutica da revelao a partir da presena-ausncia.
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maria Clara Luchetti Bingemer
Orientadora Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Paulo Cezar Costa Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Cesar Augusto Kuzma Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. David Mesquiati de Oliveira Faculdade Unida de Vitria
Prof. Irenio Silveira Chaves UNIVERSO
Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial de Ps-Graduao e Pesquisa do Centro
de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 2015.
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem a autorizao da
universidade, do autor e da orientadora.
Abdruschin Schaeffer Rocha
Graduou-se em Teologia pelo Seminrio Teolgico
Batista do Brasil (BH), em 1989. Bacharelou-se em
Filosofia na UFES (Universidade Federal do Esprito
Santo), em 2005. Concluiu o Mestrado em Teologia
na Faculdades EST (So Leopoldo/RS), em 2010.
Tambm professor do curso de Bacharelado em
Teologia e do Programa de Ps-Graduao (Mestrado
Profissional) em Cincias das Religies da Faculdade
Unida de Vitria (Vitria/ES). Atualmente Diretor-
Geral do CEFORTE (Centro de Formao Teolgica
da Igreja Metodista Wesleyana) e pastor da Igreja
Metodista Wesleyana em Vila Velha-ES.
Ficha Catalogrfica
CDD: 200
Rocha, Abdruschin Schaeffer Revelao e vulnerabilidade : caminhos para uma hermenutica da revelao a partir da presena-ausncia / Abdruschin Schaeffer Rocha ; orientadora: Maria Clara Luchetti Bingemer. 2015. 250 f. ; 30 cm
Tese (doutorado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2015. Inclui bibliografia
1. Teologia Teses. 2. Revelao. 3. Vulnerabilidade. 4. Hermenutica. 5. Presena. 6. Ausncia. I. Bingemer, Maria Clara Luchetti. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.
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Para minha esposa Maruzia, minha filha Melissa e minha me Ins,
pelo apoio e compreenso nos momentos de ausncia.
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Agradecimentos
minha orientadora, Professora Maria Clara Luchetti Bingemer, pela pacincia e
pelos caminhos apontados no processo de pesquisa.
PUC-Rio, pela bolsa concedida, viabilizando a construo desta pesquisa.
Aos funcionrios da PUC-Rio, especialmente a Srgio Albuquerque, sempre
solcito.
Aos professores/as da Faculdade Unida de Vitria, pela parceria construtiva ao
longo da caminhada acadmica.
Aos meus alunos, que ao longo dos anos tm se tornado fonte de inspirao para as
aventuras teolgicas empreendidas nos textos produzidos.
amiga Maria Dulce, pelo constante incentivo, sobretudo nas horas de sobrecarga
e tenso.
minha igreja, I.M.W. da Praia da Costa, pelo privilgio de poder pastore-los e
traduzir-lhes em linguagem pastoral os temas da academia.
Aos casais de amigos, Fbio e Mariana, Clayton e Joyce, pela parceria pastoral e,
sobretudo, pela amizade e apoio.
Ao meu pai (in memorian), pela infncia proporcionada e por me ensinar o caminho
da leitura.
minha me, pelo constante investimento sem o qual seria impossvel ter chegado
at aqui.
minha esposa Maruzia e minha filha Melissa, por acreditarem em mim.
Sobretudo a Deus, seja todo o meu louvor.
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Resumo
Rocha, Abdruschin Schaeffer; Bingemer, Maria Clara Luchetti. Revelao e
vulnerabilidade: caminhos para uma hermenutica da revelao a partir
da presena-ausncia. Rio de Janeiro, 2015. 250p. Tese de Doutorado
Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro.
A pesquisa objetiva refletir sobre as possibilidades de uma pretensa relao
entre a revelao divina e a vulnerabilidade humana, propondo, para isso,
caminhos para uma hermenutica da revelao que se compreenda a partir do
movimento dialtico entre a presena e a ausncia. Discute, portanto, se essa
revelao diz respeito apenas ao divino e se tal vulnerabilidade caracterstica
apenas do humano. Para tanto, parte-se do pressuposto de que a tradio ocidental,
em grande medida, se constri sobre pressupostos metafsicos que delineiam o
horizonte a partir do qual se conceber a revelao durante a maior parte do tempo.
A Modernidade, que se ergue sobre essa lgica metafsica, altamente comprometida
com o desnudamento do mundo, ver a revelao apenas como um processo por
meio do qual aquilo que estava oculto se manifesta absoluta, plena e
substanciamente, ou seja, assumir a revelao apenas em seu carter
manifestacional, tornando-se, nesse sentido, refratria a qualquer interpretao que
se conceba sob o signo do mistrio. Verifica-se, portanto, uma inflao da
presena e do sentido que se materializa historicamente na cultura ocidental
moderna, em geral, e no cristianismo, em particular. O cristianismo sob o influxo
dessa saturao se organizar em torno da presena divina, metafisicamente
concebida, e a partir de um discurso altamente apologtico. Mas, ao longo do
percurso aqui proposto constatou-se, tambm, uma crtica exacerbada ao modo
metafsico de se conceber o mundo e o surgimento de uma nova tradio que se
insinua cada vez mais ps-metafsica, mediante a qual se considerar o tema aqui
proposto. Resgata-se esse horizonte terico a partir de importantes mudanas
histricas ocorridas nos campos da linguagem, da hermenutica e da pragmtica
(Linguistic Turn). Essa mudana de paradigmas repercutiu em diversas reas das
cincias humanas, inclusive na prpria teologia. Destaca-se aqui a dialtica
inferida de Martin Heidegger e a hermenutica kentica
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proposta por Gianni Vattimo, importantes pensadores no contexto das mudanas
que estabelecero o pensamento ps-metafsico. Alm deles, e na esperana de se
consolidar o referencial terico desta pesquisa, ressaltam-se trs telogos cujas
reflexes sero significativamente influenciadas pela crtica ao pensamento
metafsico: Karl Rahner, Edward Skillebeekx e Andrs Torres Queiruga.
Finalmente, mediante uma hermenutica da presena-ausncia, a pesquisa prope
caminhos para a construo de uma teologia da revelao que se faa a partir da
vulnerabilidade humana. Assume, nesse sentido, a recepo enquanto critrio
hermenutico-teolgico, ao sugerir uma teologia de textos escritos amparada
no pressuposto de que est circunscrita aos limites da linguagem , bem como uma
teologia de textos vivos consciente de que h experincias humanas que
extrapolam esses limites. Em ambos os casos pressupe-se uma epistemologia
frgil, que proporcione lidar com esse carter abscndito e manifesto do divino ao
modo de um pastoreio. Ou seja, prope-se que o processo atravs do qual somos
interpelados por esse Deus que se expressa na dialtica da presena-ausncia, que
aqui se nomeia de revelao, seja alvo do cuidado humano. Pastorear o divino;
pastorear os meios atravs dos quais o compreendemos; pastorear o produto final
desse processo, que se transforma em teologia; pastorear o prprio pastoreio; enfim,
pastorear a revelao eis a o desafio proposto pela pesquisa.
Palavras-chave
Revelao; Vulnerabilidade; Hermenutica; Presena; Ausncia; Cuidado.
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Abstract
Rocha, Abdruschin Schaeffer; Bingemer, Maria Clara Luchetti (Advisor). Revelation and vulnerability: ways to a hermeneutics of revelation on
the basis of the presence-absence. Rio de Janeiro, 2015. 250p. Doctoral
Thesis Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio
de Janeiro.
This research seeks for possible relations between divine revelation and
human vulnerability. To that purpose it proposes ways to a hermeneutics of
revelation on the basis of the dialectic movement between presence and absence. It
discusses the question whether revelation concerns only the divine and whether
vulnerability is only a human characteristic. We assume that Western tradition is
based on metaphysical presuppositions that frame the horizon in which revelation
will generally be conceived. Since Modern Age builds upon this metaphysical logic,
which is highly responsible for the denudation of the world, it sees revelation
only as a process through which the hidden becomes totally, substantially and
absolutely manifest. It conceives revelation only as manifestation and will, thus,
become refractory to every kind of interpretation of revelation as mystery. As a
result we can observe an inflation of the presence and the sense which
materializes historically in modern Western culture and particularly in Christianity.
Under the effect of this saturation, Christianity organizes itself around the
metaphysical divine presence and with a highly apologetic discourse. During the
course of the research we also detected a harsh critique of this metaphysical way to
understand the world as well as the emerging of a new tradition, which tends to be
more and more post- metaphysical and which helps us to deal with the research
subject. This theoretical horizon emerges from important historical changes that
happened in the fields of language, hermeneutics and pragmatics (Linguistic Turn).
This change of paradigms echoed in several areas of Humanities, including
Theology. We might mention here the inferred dialectic of Martin Heidegger and
the kenotic hermeneutics proposed by Gianni Vattimo, two important scholars
involved in the changes which will solidify the post-metaphysical thought. With the
hope to consolidate the theoretical frame of this research, we should also mention
three
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theologians whose thinking has been influenced by the critique of the metaphysical
thought: Karl Rahner, Edward Schillebeeckx and Andrs Torres Queiruga. Finally,
by means of a presence-absence hermeneutics, this research points out ways to
conceive a theology of revelation that can be done on the basis of human
vulnerability. In this sense, it adopts the reception as a hermeneutical-theological
criterion, as it proposes a theology of written texts - upon the supposition that it
is circumscribed to the limits of language as well as a theology of living texts
conscious that there are human experiences that go beyond these limits. In both
cases, we assume a fragile epistemology which helps us to deal with the hidden
and manifest character of the divine in the way of shepherding. So, we propose
that the process through which God speaks to us and which finds its expression
in the presence-absence dialectic here called revelation be the object of human
care. Shepherding the divine; shepherding the means through which we understand
him; shepherding the final product of this process which ends up in theology;
shepherding the act of shepherding itself; in summary, shepherding the revelation
that is the challenge posed by this research.
Keywords
Revelation; vulnerability; hermeneutics; presence; absence; care.
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Sumrio
1 Introduo 13
2 Modernidade e revelao: herdeiros de uma cultura do revelado 29
2.1 A mundividncia moderna 30
2.1.1 Definindo os termos 30
2.1.2 A modernidade e o processo de dessacralizao 36
2.2 A Modernidade como cultura do revelado 46
2.2.1 A cincia moderna como radicalizao do revelado 47
2.2.2 Modernidade e reinterpretaes da revelao 60
3 Cristianismo e revelao: influxos de uma cultura da presena a partir
do horizonte metafsico 73
3.1 O sentido como presena 74
3.1.1 Cristianismo e tirania do sentido 76
3.1.2 A cultura do espetculo como tirania da presena 84
3.2 O cristianismo como cultura da presena 90
3.2.1 Catolicismo romano e protestantismo histrico 92
3.2.2 Pentecostalismo e neopentecostalismo 99
3.3 O horizonte metafsico e o discurso apologtico 103
3.3.1 A matriz metafsica 104
3.3.2 A abordagem apologtica 109
4 Contemporaneidade e revelao: elementos para uma teologia da
ausncia a partir do horizonte ps-metafsico 119
4.1 Horizonte ps-metafsico 120
4.1.1 Hermenutica e Virada Lingustica 120
4.1.2 A dialtica heideggeriana e a hermenutica kentica vattimiana 130
4.2 Perspectivas contemporneas da revelao 146
4.2.1 A escuta no unnime de uma Palavra (Rahner) 147
4.2.2 Revelao na dimenso humana (Schillebeeckx e Queiruga) 153
5 Revelao e Vulnerabilidade: uma hermenutica da presena-
ausncia 166
5.1 A recepo como critrio hermenutico-teolgico 167
5.1.1 Revelao enquanto emisso e enquanto recepo 170
5.1.2 Um Deus-para-ns 175
5.2 A re-velao nos limites da linguagem: por uma teologia de textos
escritos 178
5.2.1 Epistemologia kentica: entre o dizer e o no-dizer 179
5.2.2 Teologia dialogal 190
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5.3 A re-velao nos limites da pessoa: por uma teologia de textos
vivos 196
5.3.1 Materializaes da vulnerabilidade humana na teologia latino-
americana 199
5.3.2 Os textos vivos como manifestao e camuflagem do divino 206
5.4 Hermenutica da revelao: um chamado ao pastoreio 215
5.4.1 Da Sorge heideggeriana ao Cuidado em sentido teolgico 217
5.4.2 De pastor do ser a pastor da revelao 224
6 Concluso 234
7 Referncias bibliogrficas 239
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Lista de Figuras
Figura 1: Epistemologia do filtro 184
Figura 2: Epistemologia do filtro II 201
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1 Introduo
Revelao e vulnerabilidade: uma relao que at hoje causa estranheza e
desconforto dada a fora de sua contradio. Na verdade, somos herdeiros de uma
cultura teolgica na qual as realidades que se delineiam a partir dessas expresses
se mostram to francamente em confronto, que seria absurdo tentar concili-las em
um sistema que fizesse o mnimo de sentido. Tal cultura acostumou-se a
sistematizaes que normalmente se baseiam numa espcie de harmonia
conceitual capaz de garantir a estabilidade de sistemas que se transformem em
luzeiros frente escurido das contradies da linguagem e das ambiguidades
humanas. Por nossa histria recente, fomos desacostumados aos paradoxos e s
controvrsias que sempre revelaram o humano em todas as suas nuances.
Esquecemo-nos do tempo em que uma coisa poderia ser ela mesma e tambm outra
(syn-ballein), herana de uma poca pobre de racionalidade, e nos tornamos
refns de uma lgica no-contraditria (dia-ballein) na qual nada pode ser o
mesmo e seu contrrio. Tornamo-nos seres pleonsticos, filhos da identidade e do
mesmo, rfos da alteridade e desacostumados a procurar o verdadeiro nas tenses,
ambiguidades e assimetrias, afinal, nesse mbito, verdade diz estabilidade. a
partir desse horizonte e desse novo DNA que temos construdo nossas teologias
j h algum tempo, sempre ocupados e preocupados com a ordem e a claridade,
nunca afeitos e habituados ao caos e obscuridade.
A dissonncia divino-humano, de fato, incomoda e sempre exige uma
resoluo consonante, exatamente porque a fora da divindade a partir da qual
acostumamos pensar a revelao aparentemente nada tem a ver com a
vulnerabilidade humana, normalmente interpretada como smbolo de tudo o que
no se alinha com o divino. Nossas sistematizaes normalmente obedecem a essa
lgica, o que significa que em geral perdem de vista a riqueza teolgica que pode
derivar das tenses e contradies, pois somos seduzidos a sempre comprimir
numa teologia sistematizada os elementos que insistem em manter-se na alteridade
da relao. Muitos cedem tentao da identidade e preferem operar a partir de
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uma viso dualista do mundo, a partir da qual se torne claro quem quem e, assim,
a escolha do melhor termo se faa possvel.1 Afinal, nessa tica de suma
importncia que se estabelea o mbito do sagrado e o mbito do profano, pois tal
diferenciao marca tambm os limites entre a verdade e a falsidade, o certo e o
errado..., o divino e o humano.
Mesmo que seja travestido numa suposta inteno de vencer o dualismo,
muitos buscam romper fronteiras intentando levar o pior de um para o outro: o
mbito do sagrado invadido pelo pior do profano e o mbito do profano invadido
pelo pior do sagrado. Em ambos os casos temos aquilo que Marx chamou de pio,
em referncia religio.2 Provavelmente, Marx pensou apenas em termos de uma
referncia ao divino que anestesia as pessoas das reais contingncias histricas. E
isso verdade em se tratando de muitas expresses da religio atualmente. Mas, h
algo de humano e histrico que tambm tem o poder de nos anestesiar com relao
ao divino. A razo totalizante tambm tem sido um pio que torna as pessoas
imunes e higienizadas do pthos (afetao) humano e da prpria transcendncia,
tirando-lhes tanto a capacidade de descobrirem a revelao divina em meio ao
drama humano quanto a percepo dos limites dessa humanidade que colocam a
possibilidade de um para alm. Desde que a razo tambm uma marca distintiva
do humano em sua profanidade, pensar o divino apenas a partir de uma razo que
exclui de seus parmetros as afeces humanas, por exemplo, significaria levar ao
sagrado o pior do profano. Por outro lado, pode-se optar por uma transgresso
dessas fronteiras ao se levar ao profano o pior do sagrado. Isso pode ocorrer quando
somos seduzidos pela distino qualitativa expressa na face do sagrado e pelo poder
que dele emana e levamos isso ao mundo profano de maneira a anestesiar a
vulnerabilidade e fragilidade humanas. A revelao divina, nesse caso, seria algo
de fora, que acaba por transformar qualquer vestgio humano em reflexo do
divino. como se em ambas as situaes houvesse uma tentativa de escapada do
1 No se pode perder de vista o fato de que o dualismo, em geral, no diz respeito apenas a uma
lgica que pressupe a existncia de duas (ou mais) dimenses. A compartimentalizao pressuposta
no dualismo inclui, tambm, uma hierarquizao entre as partes, sendo essa uma de suas principais
caractersticas. Ou seja, em qualquer dualismo h de se legitimar uma das dimenses ou partes em
detrimento da(s) outra(s). 2 Quanto a isso, Marx assim se expressa: A misria religiosa constitui ao mesmo tempo a expresso
da misria real e o protesto contra a misria real. A religio o suspiro da criatura oprimida, o nimo
de um mundo sem corao, assim como o esprito de estados de coisas embrutecidos. Ela o pio
do povo (MARX, K. Crtica da filosofia do direito de Hegel. 2. ed. rev. So Paulo: Boitempo,
2010, p. 145.).
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dualismo, mas ao modo de uma sorrateira unidade que depe contra a diversidade
inerente aos termos da relao. A sntese tambm uma maneira de se alimentar
dessa dificuldade humana em lidar com a tenso.
Considerando tais inquietaes, o presente trabalho presta-se a pensar as
possibilidades que derivam de uma pretensa relao entre a revelao divina e a
vulnerabilidade humana. Discute, nesse sentido, se tal revelao inclui apenas o
divino e se tal vulnerabilidade caracterstica apenas do humano. A reflexo
pretende, ento, romper com esse lugar comum e dualista, mas no em favor de
uma sntese, ao contrrio, assumindo a tenso e dissonncia como lugares
hermenuticos constitutivos de compreenso do tema em questo. Nesse sentido,
supe-se um Deus frgil que gratuitamente se prope a partir de um processo
revelacional que tambm se d na mundanidade constitutiva do humano.
Ademais, a pesquisa no se pretende sistemtica, como era de se esperar numa
empreitada que se proponha discutir a teologia da revelao.3 Ou seja, no se
pretende aqui propor uma teologia da revelao que busque sua fundamentao na
coeso dos elementos hauridos das Escrituras, mas, sugerir caminhos para uma
hermenutica da revelao que seja capaz de pensar o divino desde sua presena-
ausncia. Para tanto, a pesquisa se estabelece ao longo de quatro captulos. Os dois
primeiros se prestam a levantar aquilo que nos parece ser o problema que suscita
nosso interesse no tema: o estabelecimento de uma cultura da manifestao e da
presena na qual foram gestadas as matrizes tericas mediante as quais ainda se
tm pensado temas como o da revelao. Ou seja, o que justifica assumir essa
relao tensa entre a revelao e a vulnerabilidade, ao se propor caminhos que se
3 Em grande medida, a teologia da revelao tem sido tradicionalmente proposta a partir de um
interesse sistemtico. Busca-se, nessa perspectiva, erigir uma compreenso acabada da revelao
que responda definitivamente s dvidas e anseios do cristo, e mesmo do ctico. Na tentativa de
construo de um arcabouo que seja minimamente coeso, dificilmente sobra lugar para os
paradoxos, para a tenso resultante da alteridade inerente aos elementos que compem tal sistema.
A necessidade de se manter a coeso pode levar o pesquisador a ter que realizar adaptaes que acabem por trair a organicidade dos temas. Por outro lado, h uma tendncia, cada vez mais presente
nas elaboraes teolgicas, que se manifesta no abandono das pretenses sistemticas e isso,
obviamente, inclui o tema da revelao. Um bom exemplo dessa atitude assistemtica pode ser vista
na obra de Karl Rahner, um dos autores que aqui serviro de referencial terico. Por volta de 1969,
Rahner afirmava seu desinteresse por qualquer sntese e, ao mesmo tempo, sua inclinao por temas
particulares da teologia sistemtica, tratados de modo assistemtico e, alm disso, ditados pelas
necessidades do momento (Cf. TABORDA, F. Mistrio smbolo mistrio: ensaio de
compreenso da lgica interna da teologia de Karl Rahner. In: OLIVEIRA, P. R. F. de, TABORDA,
F. (Orgs.). Karl Rahner 100 anos: teologia, filosofia e experincia espiritual. So Paulo: Edies
Loyola, 2005, p. 56.). Nesse sentido, o trato tambm assistemtico dada presente tese, no reflete
apenas uma opo metodolgica, antes deriva muito mais dos pressupostos aqui contidos.
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delineiam a partir de uma hermenutica da revelao que busque compreender o
carter manifesto e furtivo do divino?
Na tentativa de explicitar tal problemtica, no primeiro captulo
(Modernidade e Revelao: Herdeiros de Uma Cultura do Revelado) buscam-se
na Modernidade as razes dessa cultura da exposio, que se ressente de qualquer
referncia ao mistrio e abscndito. Ela pode ser vista, nesse sentido, como um
Zeitgeist (esprito do tempo) que se caracteriza pela busca de um desnudamento
do mundo, fruto dos anseios de um sujeito que em sua sofreguido embriaga-se de
um conhecimento que lhe garanta cada vez mais a autonomia e domnio sobre a
realidade. Trazer todos os mistrios baila, eis o mote da Modernidade que
assume contornos epistemolgicos, e tal postura se evidencia a partir dos
movimentos que se desenvolvem em seu interior. Destaca-se, dessa forma, a cincia
como radicalizao do revelado, na medida em que postula um novo modo de
conhecer o mundo, no mais refm da revelao concebida a partir da tradio
teolgica, nem mesmo da especulao filosfica, mas que se estrutura mediante a
observao e racionalizao do mundo. A Modernidade, nesse sentido, marca um
importante perodo da cultura ocidental, caracterizada por um processo de
dessacralizao do mundo, mas que apesar de ser radicalmente inaugural em muitos
aspectos, tambm devedora de pocas que a antecederam. Essa ambiguidade pode
ser vista, por exemplo, no fato de levar s ltimas consequncias caractersticas do
cristianismo, tais como o conceito de pessoa e liberdade e todo o sentido que
se evoca do evento da encarnao, ou seja, da mundanizao do divino que acaba
por consolidar a prpria dessacralizao do mundo, alm das importantes
contribuies de Agostinho no que respeita ao conceito de alma e tempo. Um
importante conceito capaz de materializar essa ambiguidade moderna que se
expressa na ruptura e continuidade o conceito de secularizao, que se expressa
como condio a partir da qual Deus no se perceber mais flagrantemente presente
na ampla variedade de prticas sociais nos distintos nveis da sociedade ou seja,
os espaos pblicos foram, em certo sentido, esvaziados de Deus. A cultura
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moderna, assim, busca se emancipar da tutela da religio 4 e estabelece a razo como
autoridade suprema, e isso inevitavelmente produz reinterpretaes brandas e
radicais da revelao.
No intuito de se consolidar a problemtica a partir da qual se pretende pensar
a revelao, no segundo captulo (Cristianismo e Revelao: Influxos de Uma
Cultura da Presena a Partir do Horizonte Metafsico) intenta-se, em primeiro
lugar, mostrar o cristianismo como uma cultura da presena. Essa presena se
verifica, sobretudo, no excesso de sentido que, embora situe o cristianismo no
espectro maior das religies, ganha densidade a partir da temporalizao da
experincia religiosa e linearizao da histria, herana legada pela cultura hebraica
e que se adensa a partir do evento da Encarnao. Ou seja, os hebreus so os
primeiros a interpretar os eventos histricos como epifania de Deus, e tal
perspectiva que destoa das concepes cclicas do tempo, tais como
consideradas na cultura grega se amplifica no cristianismo medida que a
histria passa a ter uma funo escatolgica e periodizada e preenchida com
determinado sentido pela ideia de final do tempo 5 Agostinho, nesse sentido,
um dos principais pensadores a substituir o tempo da natureza pelo tempo da
salvao. digno de nota o fato de que o tempo da salvao j consiste numa
perspectiva consideravelmente mais densa de sentido em relao aos ciclos naturais
pobres de sentido. Essa escatologia, sobretudo agostiniana, continuar operando na
cultura ocidental na forma de uma inflao do sentido e da presena, mesmo
quando houver um esgotamento da matriz visional crist. Na Modernidade, por
exemplo, embora Deus paulatinamente seja substitudo pelo homem, a saturao
do sentido deixa de se perceber mediante a criao e passa a derivar da interioridade
humana. Ou seja, tal saturao continua a vigorar, mas agora numa verso
antropologizada. A revelao de Deus, ento, se materializa em distintos
desnudamentos, o que faz com que se interprete a ausncia tanto como
paganismo (postura medieval) quanto como minoridade e obscurantismo
4 Para alm de uma compreenso da secularizao como ruptura em relao religio, possvel
compreend-la, tambm, como continuidade. Ou seja, numa determinada perspectiva, como
processo histrico, a secularizao pode ser vista como produto da f bblica e no como sua
negao, distoro ou perverso. Nesse sentido, h de se perceber relaes causais entre os
elementos constitutivos da secularizao e impulsos genuinamente libertadores do cristianismo
(quanto a isso, ver nota 82). 5 A obra de Mircea ELIADE, M. Mito do Eterno Retorno, ser importante para fundamentar essa
distino entre as concepes cclicas e a concepo linear do tempo (Cf. ELIADE, M. Mito do
eterno retorno. So Paulo: Mercuryo, 1992, p. 105.).
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intelectual (postura iluminista). Essa tirania do sentido e da presena ser
duramente criticada por pensadores tais como Schopenhauer e, sobretudo,
Nietzsche a partir do sculo XIX, entretanto, ser drenada e se revitalizar na forma
de uma espetacularizao da cultura na qual o sentido se desvincula da
imagem-presena , caracterstica marcante das sociedades contemporneas.
Ademais, essa inflao da presena tambm se far sentir nas manifestaes
clticas das distintas tradies do cristianismo. Ou seja, em geral, os cultos quer
sejam catlicos, protestantes, pentecostais ou mesmo neopentecostais se
delineiam em torno da presena de Deus, o que consolida a ideia de um
cristianismo como cultura da presena.6
Alm disso, o segundo captulo se ocupar tambm em demonstrar a lgica a
partir da qual tm sido propostos os conceitos tradicionais de revelao. A matriz
metafsica, que em grande medida sustenta essa inflao do sentido e da presena,
tem sido responsvel por instituir um discurso apologtico, que geralmente se
concentra na objetividade dos contedos e na fora da argumentao.7 A metafsica
tem em Plato um de seus principais percussores e sustenta-se sobre uma lgica
dualista que contrape e hierarquiza o mundo inteligvel o mundo perene das
essncias e do absoluto e o mundo sensvel que compreende as realidades
sensoriais transitrias. Uma vez que na opinio de Plato o mundo sensvel e
transitrio no poderia resumir a realidade, ento, deveria existir algo mais
permanente e verdadeiro. Esse af por um pensamento mais seguro, capaz de
garantir a verdade absoluta, no dizer de Habermas se traduz como pensamento da
6 As reflexes sobre essa inflao da presena manifesta nas distintas expresses clticas do
cristianismo, basearam-se no artigo Cristianismo como cultura da presena: uma breve anlise dos
seus principais movimentos, escrito no contexto das pesquisas que ensejaram esta tese (Cf.
ROCHA, A. S. Cristianismo como cultura da presena: uma breve anlise dos seus principais
movimentos. In: SANTOS, F. de A. S. dos; GONALVES, J. M.; RIBEIRO, O. L. (Orgs.). Cincias
das religies aplicadas: interfaces de uma cincia-profisso. Vitria, ES: Editora Unida, 2014, p.
167-182.). 7 A crtica que delineia o estado da arte desta pesquisa concentra-se, de modo geral, na matriz visional que tem inspirado a maioria dos conceitos de revelao ao longo da histria. Nesse sentido,
embora pressuponha a vasta bibliografia disposio em relao qual quer se contrapor, a pesquisa
no pretende discuti-la, afinal, isso exigiria um trabalho de reviso bibliogrfica parte, j
contemplado em outras obras. Antes, pretende, em linhas gerais, apresentar o horizonte metafsico
a partir do qual se constroem essas vrias propostas. O carter apologtico, caracterstica
fundamental desse discurso que enuncia o tema, tem marcado significativamente o conceito
tradicional e metafsico de revelao. O terceiro captulo, nesse sentido, apresentar o
horizonte ps-metafsico como uma matriz visional alternativa para a abertura de caminhos que
desemboquem na construo de uma possvel teologia da revelao, ainda a ser pensada. Portanto,
a proposta aqui sustentada se apresenta como uma revelao em tom ps-metafsico, sendo essa a
grande distino a partir da qual se prope a presente pesquisa.
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unidade ou identidade, pensamento da abstrao e tambm pensamento da teoria.
O discurso apologtico que deriva dessa lgica metafsica surge no contexto
catlico como resultado de uma exigncia histrica, ou seja, constri-se frente aos
desafios da Modernidade e diante dos adversrios da f, tal como concebidos pelo
catolicismo romano. Nesse contexto, ele se tornar ferramenta tanto contra a
Reforma Protestante do sculo XVI, 8 contra os libertinos e ateus prticos do sculo
XVII, 9 quanto contra os destas e enciclopedistas do sculo XVIII, 10 a partir de
uma perspectiva amplamente proposicional da revelao. 11 No incio do sculo
XX surgem os primeiros tratados apologticos no mundo catlico, que objetivam
justificar epistemologicamente o prprio estatuto terico frente filosofia e frente
prpria dogmtica.12 Na segunda metade do sculo XX, sobretudo no contexto
protestante norte-americano, verifica-se tambm uma profuso de obras
8 Segundo LIBNIO, J. B. j nesse momento comea a esboar-se a forma tripartida da apologtica,
como nas obras: P. Charron, Des trois vrits (1514) e H. Grotius, De veritate religionis christianae
(1627). Ela se tornar mais tarde clssica, ao ser consagrada pela obra de Joseph Hooke, Religionis naturalis et revelatae principia (1754). Contra os ateus, que negam toda a religio, ope-se uma
demonstrao da religio (demonstratio religiosa); contra os destas, que se contentavam com uma
religio natural, rejeitando a mediao crist, se busca mostrar que o cristianismo a verdadeira
religio (demonstratio christiana); e finalmente, contra os reformadores, demonstra-se que a Igreja
catlica a nica e verdadeira Igreja de Cristo (demonstratio catholica) (LIBNIO, J. B. Teologia
da revelao a partir da modernidade. 6. ed. So Paulo: Edies Loyola, 2012, p. 34.) 9 LIBNIO, J. B. ao localizar a predominncia desse movimento na primeira metade do sculo
XVII, na Frana, cita os nomes mais conhecidos dentre os seus representantes: P. Gassendi, F. de
la Mothe Le Vayer, G. Naud, J. des Barreaux, C. de Bergerac, etc. (ADAM, A. Apud LIBNIO,
J. B. Teologia da revelao a partir da modernidade, p. 34.). 10 A consolidao da reao catlica aos destas e enciclopedistas oficializou-se no final do sculo
XIX, com o Conclio Vaticano I (1869-1870), esse que foi o Conclio que tratou amplamente a revelao numa perspectiva apologtica (Cf. LIBNIO, J. B. Teologia da revelao a partir da
modernidade, p. 36.). 11 A Modernidade foi importante para a consolidao de uma tendncia proposicional e, nesse
sentido, impessoal da revelao no contexto da teologia catlica, muito afeita causa da
apologtica. A revelao passou a ser pensada, nesses termos, a partir de um conjunto de verdades
que nos foi comunicado por Deus (lucutio Dei). Ou seja, nessa perspectiva, a revelao significaria
a comunicao divina de instrues e verdades na forma de ideias necessrias e teis salvao
humana, noo essa que se mostrou demasiadamente intelectualizada e depersonalizada. Em sua
compreenso mais contempornea, sobretudo aps o Conclio Vaticano II, a teologia catlica (
semelhana da teologia protestante) passou a referir-se revelao como a autodoao de Deus ao
mundo, o que inevitavelmente implica em que o contedo da revelao seja fundamentalmente o prprio divino em si (Cf. HAUGHT, J. F. Mistrio e promessa: teologia da revelao. So Paulo:
Paulus, 1998, p. 11-12.). Entretanto, embora a perspectiva contempornea tenha identificado esse
reducionismo que se expressa, por exemplo, numa perda de vista da dimenso humana e experiencial
da revelao que aqui muito nos interessar , boa parte da literatura ainda se mantm dentro
de um horizonte metafsico, como se ver ao longo deste texto. 12 LIBNIO, J. B. citando Geffr, destaca as seguintes obras: Gardeil, La crdibilit et
lapologtique (1908) e Garrigou-Lagrange, De revelatione (1930) (GEFFR, C. Apud LIBNIO,
J. B. Teologia da revelao a partir da modernidade, p. 37.). Na primeira metade do sculo XX, o
mundo catlico tambm veria o brilhantismo de apologetas menos sistemticos, tais como G. K.
Chesterton. Ver, por exemplo, sua obra de 1908, Ortodoxia (Cf. CHESTERTON, G. K. Ortodoxia.
So Paulo: Mundo Cristo, 2008.).
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apologticas que articulam argumentos em prol da f crist a partir de um
posicionamento tanto diante da matriz catlica, quanto das demais religies, e
mesmo diante do atesmo e da cincia. 13 A prova de que nossa cultura se tornou
excessivamente apologtica encontra-se, entre outros motivos, no fato de que o
discurso apologtico no afeta apenas os crentes, mas tambm os no crentes. Ou
seja, a mesma postura forte que se verifica, por exemplo, no fundamentalismo
13 Para uma melhor compreenso desse contexto, mencionam-se aqui alguns apologistas
contemporneos protestantes e suas principais obras: Josh McDowell (McDOWELL, J. Evidncia
que exige um veredito: evidncias histricas da f crist. So Paulo: Editora Candeia, 1989; McDOWELL, J. Evidncia que exige um veredito: evidncias histricas da f crist, v. 2. So Paulo:
Editora Candeia, 1993; McDOWELL, J. Ele andou entre ns: evidncias do Jesus histrico. So
Paulo: Editora Candeia, 1995.); Willian Lane Craig (CRAIG, W. L. A veracidade da f crist: uma
apologtica contempornea. So Paulo: Vida Nova, 2004.); Francis Schaeffer (SCHAEFFER, F. A.
O Deus que intervm. So Paulo: Editora Cultura Crist, 2002; SCHAEFFER, F. A. A morte da
razo. So Paulo: Editora Cultura Crist, 2002; SCHAEFFER, F. A. O Deus que se revela. So
Paulo: Editora Cultura Crist, 2002.); J. P. Moreland (MORELAND, J. P.; CRAIG, W. L. Filosofia
e cosmoviso crist: So Paulo: Vida Nova, 2005.); Gleason L. Archer (ARCHER, G. L.
Enciclopdia de dificuldades bblicas. So Paulo: Editora Vida, 1997.); F. F. Bruce (BRUCE, F. F.
Merece confiana o Novo Testamento? 2. ed. So Paulo: Edies Vida Nova, 1990.); Paul E. Little
(LITTLE, P. E. Saiba o que voc cr: conhea a verdade e dissipe suas dvidas. 2. ed. So Paulo:
Editora Mundo Cristo, 1985; LITTLE, P. E. Voc pode explicar sua f? A f crist no deve ser cega. 4. ed. So Paulo: Editora Mundo Cristo, 1990.); John Frame (FRAME, J. Apologtica para
a glria de Deus: uma introduo. So Paulo: Editora Cultura Crist, 2010.); Darrell Bock (BOCK,
D. Jesus segundo as escrituras. So Paulo: Shedd, 2006; BOCK, D. L.; WALLACE, D. B.
Dethroning Jesus: exposing popular cultures quest to unseat the biblical Christ. Thomas Nelson
Publishers, 2007.); David. K. Clark (CLARK, D. K. Dialogical Apologetics: a person-centered
approach to christian defense. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1993.) Norman Geisler (GEISLER,
N. (Org.). A inerrncia da Bblia: uma slida defesa da infalibilidade das Escrituras. So Paulo:
Editora Vida, 2003; GEISLER, N. Enciclopdia de apologtica: respostas aos crticos da f crist.
So Paulo: Editora Vida, 2002; GEISLER, N.; FEINBERG, P. D. Introduo filosofia: uma
perspectiva crist. So Paulo: Editora Vida Nova, 1983.); Phillip E. Johnson (JOHNSON, P. E.
Darwin no banco dos rus: So Paulo: Cultura Crist, 2008.); John C. Lennox (LENNOX, J. C. Porque a cincia no consegue enterrar Deus. So Paulo: Mundo Cristo, 2011.); Alister McGrath
(McGRATH, A. Paixo pela verdade: a coerncia intelectual do evangelicalismo. So Paulo: Shedd
Publicaes, 2007; McGRATH, A. Apologtica pura e simples: como levar os que buscam e os que
duvidam a encontrar a f. So Paulo: Vida Nova, 2013.); John Warwick Montgomery
(MONTGOMERY, J. W. Faith founded on fact: essays in evidential apologetics. Nashville: Thomas
Nelson Publishers, 1978.); Alvin Plantinga (PLANTINGA, A. Deus, a liberdade e o mal. So Paulo:
Edies Vida Nova, 2012.; PLANTINGA, A. Warranted Christian Belief. Oxford/New York: OUP,
2000.); Richard Swinburne (SWINBURNE, R. The Choerence of Theism. Oxford: Clarendon Press,
2003; SWINBURNE, R. Ser que Deus existe? Lisboa: Editora Gradiva, 1998; SWINBURNE, R.
The Resurrection of God Incarnate. Oxford: Clarendon Press, 2003; SWINBURNE, R. G.
Revelation: from metaphor to analogy. 2. ed. Oxford: University Press, 2007.).
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religioso, pode ser percebida em verses ateias igualmente metafsicas. 14 Alm
disso, dois aspectos que demonstram a relao gentica entre a lgica metafsica
e o discurso apologtico podem ser mencionados: a existncia de um Ser ltimo e
absoluto, fundamento de tudo, que pode ser racionalmente acessado e
consequentemente provado; e a manuteno de um dualismo que, em termos de
revelao, acentuar a sua dimenso divina e negligenciar sua medida humana.
Uma vez consolidado o desde onde se pretende sugerir caminhos para a
construo de uma teologia da revelao, no terceiro captulo a pesquisa se
concentrar em explicitar o atravs do qual, ou seja, o referencial terico que nos
servir de culos por meio dos quais olharemos para o nosso problema. Um
novo movimento se impor a partir da transio do sculo XIX para o XX, cujos
desdobramentos faro surgir uma nova tradio que se firmar em torno da crtica
lgica metafsica. Nesse sentido, a crise do pensamento metafsico se confundir
com a prpria crise da Modernidade, e as bases para sua superao sero
estabelecidas, sobretudo, por Nietzsche e Heidegger. D-se incio, ento, a um
processo de desconstruo de propores paradigmticas que, inclusive, se
tornar em categoria de compreenso a partir de ento, e como tal sofrer
reinterpretaes e ser recebida por distintas reas do saber humano. A prpria
histria da recepo da ideia de desconstruo faz jus ao que esse conceito passou
a ser: o sentido do texto no constitui uma propriedade que reside o prprio texto,
mas emerge medida que o intrprete dialoga com seu texto. Essas transformaes
verificadas, importante destacar, associam-se diretamente ao tema da linguagem,
que a partir do sculo XX se tornar a questo central da filosofia. A Linguistic
Turn (Virada Lingustica), evento que marca esse perodo, constitui-se num
paradigma no qual a linguagem no ser mais compreendida como objeto da
14 Um exemplo recente dessa postura apologtica verificada entre os no crentes pode ser vista no
posicionamento extremamente agressivo de Richard Dawkins, com relao religio. Na opinio do cientista ingls (nascido, entretanto, em Nairbi, no Qunia), a religio no apenas
desnecessria, mas, tambm, um elemento que deve ser banido da cultura a fim de que as pessoas
vivam melhores. Seu atesmo militante, capaz de pressupor a f como um vrus em funo dos
terrveis danos j causados, tambm pode ser descrito como um fundamentalismo antirreligioso.
Seu livro mais polmico, The God Delusion (Deus, Um Delrio), procura mostrar como a religio
suscita a guerra, provoca o fanatismo e, alm disso, doutrina as crianas (ver DAWKINS, R. Deus,
um delrio. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.). A postura de Dawkins tambm pode ser
descrita como metafsica, na medida em que no se limita sua prpria recepo. Ou seja,
Dawkins no se contenta em atestar a no existncia de Deus apenas para si, como se esperaria de
um agnstico, por exemplo. Sua empreitada, ao contrrio, se concentra em provar de forma absoluta
a no existncia de Deus, de maneira que sua defesa tenha validade universal.
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reflexo filosfica, mas a prpria reflexo filosfica de todo pensar. 15 A linguagem,
nesse novo paradigma, passar a ser uma realidade capaz de exprimir tudo o que se
possa dizer sobre o mundo, o que significa que no haver mais mundo
independente da linguagem.
Dentre os vrios protagonistas da Linguistic Turn, Wittgenstein merecer
especial destaque, na medida em que encarna a prpria transio de uma perspectiva
metafsica da linguagem para uma ps-metafsica. O filsofo austraco abandona
sua primeira teoria expressa no Tractatus Lgico-Philosophicus, 16 cuja tese
preconiza a linguagem como figurao do mundo, uma adequao entre o
pensamento e o real estado de coisas em prol de uma concepo que rejeita essa
isomorfia entre realidade e linguagem. Em sua segunda fase, Wittgenstein assume
que no h um mundo-em-si, nem uma conscincia-em-si que exista para alm dos
limites da linguagem mundo e conscincia s o so na linguagem. 17 A partir
das reflexes do segundo Wittgenstein, outros autores consolidaro a reviravolta
lingustica ao assumirem tambm a dimenso pragmtico-comunicativa da
linguagem. 18
Tambm ser importante, no contexto dessa mudana de paradigma,
considerarmos a dialtica heideggeriana e a hermenutica kentica vattimiana. Ao
contrrio da dialtica suposta por Hegel, em Heidegger no se recorrer tentativa
de uma sntese. Heidegger, nesse sentido, preserva a identidade dos contrrios e
postula, ento, uma dialtica baseada na interdependncia dos termos. Para tanto,
ser necessrio acessar a discusso heideggeriana sobre os termos a-ltheia e physis
19 que pressupem a interdependncia tanto do aparecer quanto do declinar,
15 Tal expresso ganhou notoriedade e passou a nomear essa nova compreenso da linguagem a
partir do livro The Linguistic Turn, publicado em 1967 por Richard Rorty (Cf. RORTY, R. The
Linguistic Turn: recent essays in philosophical method. Chicago: Chicago University Press, 1967.). 16 Cf. WITTGENSTEIN, E. L. Tractatus Logico-Philosophicus. Traduo, apresentao e estudo
introdutrio de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [introduo de Bertrand Russell]. 3. ed. So Paulo:
Editora da Universidade de So Paulo, 2008. 17 Sua segunda fase pode ser delineada a partir das novas posturas expressas em sua obra
Investigaes Filosficas (Cf. WITTGENSTEIN, E. L. Investigaes filosficas. Traduo: Jos
Carlos Bruni. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.). 18 A segunda fase da Virada Lingustica pode ser descrita como uma virada pragmtica, cujos
principais expoentes foram os filsofos anglo-americanos J. L. Austin e J. R. Searle. A virada
pragmtica contaria com a teoria dos atos de fala, elaborada por estes dois filsofos, mas seria
consolidada pela teoria da ao comunicativa de HABERMAS, J. que vincularia a teoria do
significado com a teoria da ao. 19 Parte dessa discusso pode ser encontrada em sua obra, Herclito (Cf. HEIDEGGER, M.
Herclito: a origem do pensamento ocidental: lgica: a doutrina heracltica do logos. 3. ed. Rio de
Janeiro: Relume Dumar, 2002.).
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tanto do des-encobrimento quanto do encobrimento , alm de alguns conceitos
que se ligam sua compreenso de ser: o mundo como lugar e o outro como lugar.
20 Em Vattimo, por seu turno, somos remetidos a uma hermenutica kentica a
partir de sua elaborao do pensiero debole que, na verdade, anuncia o ocaso da
aventura metafsica do pensamento. 21 Vattimo, nesse sentido, adensa a crtica aos
esforos humanos na busca por um acesso privilegiado ao ser que garanta o
estabelecimento de fundamentos imutveis que sustentem uma verdade absoluta.
Postula, portanto, o fim do mito da evidncia 22 ao demonstrar a necessidade da
transio de uma racionalidade forte para uma racionalidade fraca. Vattimo,
assim, resgata o pensamento heideggeriano ao reafirmar que o ser no se traduz
num estado de coisas, nem pode ser considerado substancialmente, mas se
manifesta como puro evento. Seguindo a mxima de Nietzsche, para quem no
mundo no h dados, h somente interpretaes, Vattimo afirma a vocao
humana hermenutica que veda qualquer busca pela essncia fundamental da
realidade e da existncia, e postula uma compreenso do ser que se manifesta como
histria, como devir. O discurso a respeito do ser, portanto, no temer mais os
paradoxos, pois opera amparado pela conscincia de que suas formulaes so
provisrias. A proximidade de Vattimo com as Escrituras pode ser vista, por
exemplo, em sua compreenso da knosis, como a prpria encarnao de Cristo no
contexto de uma histria de salvao que aglutina tanto a progressiva reduo da
violncia original do sagrado (compreendida na perspectiva de Ren Girard),
quanto a dissoluo da reivindicao metafsica de objetividade. A knosis, ento,
sinal de um Deus no violento e no absoluto da era ps-metafsica.
O terceiro captulo se ocupar ainda com algumas perspectivas
contemporneas da revelao, protagonizadas por alguns telogos que se inserem
nessa mesma tradio que se insinua cada vez mais ps-metafsica. Nesse sentido,
as reflexes de trs desses pensadores cristos que se inserem na tradio que deriva
20 Esses conceitos esto presentes, em grande medida, em sua obra Ser e Tempo (Cf. HEIDEGGER,
M. Ser e tempo. Traduo de Marcia S Cavalcante Schuback. 2. ed. Petrpolis: Vozes; Bragana
Paulista: Editora Universitria So Francisco, 2007.). 21 A expresso pensiero debole tornou-se, para Vattimo, um conceito-chave a partir do qual tem
elaborado sua filosofia ps-metafsica, e encontra-se presente explicitamente em vrias de suas obras
(p.e.: VATTIMO, G. G. Creer que se cree. Buenos Aires: Editorial Paids, 1996; VATTIMO, G.
G. La sociedade transparente. Barcelona: Ediciones Paids Ibrica, 1990.). 22 No contexto da Modernidade, Ren Descartes foi um dos primeiros a postular a evidncia como
princpio normativo para o estabelecimento da verdade cientfica, como pode ser visto em 2.2.1.
(Cf. DESCARTES, R. Discurso do mtodo. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 23.).
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do chamado giro antropolgico na teologia catlica, consolidaro o horizonte
terico a partir do qual proporemos alguns caminhos para a construo de uma
teologia da revelao: Karl Rahner, Edward Schillebeeckx e Andrs Torres
Queiruga. Rahner ser importante em nossa pesquisa por vrios motivos. Um deles
se refere sua proposta de uma unidade fundamental entre a teologia e a filosofia,
que, entre outras coisas, respalda o conjunto de nosso referencial terico. 23 Quanto
a isso, tambm significativo o fato de Rahner ter se tornado discpulo de
Heidegger em Freiburg, o que implicitamente nos permite traar um continuum
entre as tradies filosfica e teolgica, na forma em que so propostas aqui como
referencial terico. Entretanto, a relao dialtica que Rahner faz entre filosofia e
teologia que se situa dentro do horizonte da relao entre natureza e graa
no apenas ajuda a legitimar nosso referencial terico, mas, sobretudo, abre
caminho para se pensar a harmonia entre duas categorias que perpassaro nossa
pesquisa: transcendncia divina e histria humana. Alm disso, Rahner nos
importante na medida em que reconhece os limites da linguagem e o fato de que
existem experincias humanas que nos determinam, mas que no cabem na
linguagem, nem se limitam nossa compreenso. Certamente essa elaborao de
Rahner o aproxima das mudanas verificadas na compreenso de linguagem, tais
quais as experimentadas a partir da Linguistic Turn.
Tanto Edward Schillebeeckx quanto Andrs Torres Queiruga nos
aproximaro ainda mais de uma revelao que se d na dimenso humana. A
hermenutica de Schillebeeckx tambm significativamente influenciada por sua
formao filosfica, herdada de seu mestre De Peter, e pela metodologia histrico-
teolgica assimilada no Le Saulchoir, o que fornece a estrutura antropolgico-
teolgica que lhe servir para a interpretao criativa dos textos da tradio. Ao
supor uma reciprocidade entre teologia e antropologia, Schillebeeckx afirma sua
perspectiva transcendental da revelao, mas no ao prejuzo da experincia
humana. Ao contrrio, para ele a revelao se constitui numa experincia expressa
com palavras. Ou seja, a tese antropolgica fundamental do telogo dominicano
consiste na inseparabilidade e, ao mesmo tempo, na diferena entre a relao
23 Ao postular o ser humano como ouvinte da palavra, Rahner afirma explicitamente o peculiar
entrelaamento entre filosofia e teologia. Para ele, no precisamos separar filosofia e teologia
metdica e precisamente. Na verdade, a julgar por nossa situao histrica, no possvel uma
filosofia que seja absolutamente livre de teologia (Cf. RAHNER, K. Curso fundamental da f:
introduo ao conceito de cristianismo. 4. ed. So Paulo: Paulus, 2008, p. 37-38.).
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absoluta com Deus e nossas relaes com o mundo e com outros semelhantes. Suas
teses a respeito do ser humano como esprito no mundo e intersubjetividade e
corporeidade, na medida em que se alinham aos conceitos heideggerianos de ser-
no-mundo e ser-com-os-outros, sustentam sua radical formulao: extra mundum
nulla salus (fora do mundo no h salvao). 24 Queiruga, por sua vez, sustenta
uma revelao que seja lugar de encontro entre as vrias religies e entre essas e o
mundo secular, na medida em que Deus no se revela de modo arbitrrio ou
favoritista o sentido histrico deslegitimaria esse particularismo etnocntrico.
Para ele, o aspecto transcendental da revelao no ameaa sua imanncia e nem
mesmo a autonomia, tanto a do mundo quanto a humana. Queiruga parte do
pressuposto de que Deus deseja revelar-se plenamente a todos, desde sempre e em
todas as partes, razo pela qual todas as religies tm acesso revelao de Deus
se, de fato, a compreendem como um dar-se conta da presena divina. Nesse caso,
caberia aos profetas apenas o anncio dessa presena, mediante a maiutica
histrica, e o despertar de algo que j participa da constituio humana. Para
Queiruga, a maiutica histrica conceito tomado por emprstimo da filosofia
platnica e desvestido de seus pressupostos metafsicos 25 recupera uma tenso
dual, ao sugerir que a palavra reveladora vem de fora, por um lado (fides ex auditu),
mas, traz luz aquilo que mais profundo no sujeito atravessado pelas
contingncias humanas. Schillebeeckx e Queiruga se aproximam na medida em que
concebem como pressuposto geral a necessidade de superao da perspectiva
metafsica a fim de que se conceba uma revelao que se d na prpria histria
humana.
Finalmente, no quarto captulo, a pesquisa visa contribuir com a discusso
teolgica acadmica ao sugerir algumas reflexes que tanto ajudem a consolidar
certa desconstruo em curso, quanto abrir caminhos que permitam a construo
de uma teologia da revelao que assuma a vulnerabilidade humana na busca por
uma hermenutica da presena-ausncia. Esse captulo est dividido em quatro
partes. A primeira se prope buscar na recepo um critrio hermenutico-
teolgico para se pensar a revelao. Partindo do horizonte da semitica da
24 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Histria humana: revelao de Deus. So Paulo: Paulus, 1994, p.
21ss. 25 O conceito de maiutica histrica central na obra de Queiruga e pode ser encontrado de forma
detalhada no captulo 4 de sua obra Repensar a Revelao (Cf. QUEIRUGA, A. T. Repensar a
revelao: a revelao divina na realizao humana. So Paulo: Paulinas, 2010, p. 105-164.
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recepo, mesmo que de forma bastante singela e rudimentar, busca-se distinguir
uma revelao na perspectiva de sua emisso de uma revelao na perspectiva de
sua recepo. Parece-nos que a necessidade histrica de ter que falar do sagrado
como algo que se distingue por seu carter extraordinrio, tambm deu origem a
uma tradio que se acostumou a falar de cima para baixo, abordagem presente em
toda a teologia, de modo geral, e na cristologia, de modo especial. Aps indicar o
dualismo que se esconde nas abordagens cristolgicas tpicas de cima e de baixo,
nossa abordagem da revelao assume-se como de baixo, mas no na mesma
perspectiva usual da cristologia, que se manifesta em aportes metafsicos, mas
apenas no sentido de ser uma abordagem a partir da recepo e do receptor humano.
Nesse sentido, tal abordagem limita-se a tematizar a revelao a partir de como ela
nos interpela, de como nos toca, de como se amolda linguagem humana. Deus,
ento, deixa de ser o Deus-em-si, aquele que , assim concebido pela metafsica, e
se torna o Deus-para-ns, aquele que vem, tal qual sugerido por Joseph Moingt. 26
A segunda parte do quarto captulo pressupe uma re-velao que se d nos
limites da linguagem e prope, portanto, uma teologia de textos escritos. Trata-
se de uma teologia da revelao que assuma as contribuies da nova tradio ps-
metafsica da linguagem, que se insira entre a necessidade humana de interpretar a
realidade e sua impossibilidade de aludi-la plenamente uma relao dialtica
entre o dizer marca indelvel e constitutiva do humano como ser lanado no
mundo e o no-dizer fruto de uma conscincia que se percebe responsvel
pela prpria finitude. A pesquisa optar, ento, pela construo de uma
epistemologia kentica, frgil, que seja capaz de dizer e por isso avance para
alm de uma teologia negativa , mas, ao mesmo tempo no veja no dito uma
descrio radiogrfica da realidade. Ou seja, refere-se conscincia de que
impossvel compreender a Deus plenamente e traduzi-lo num discurso, embora no
seja necessrio abrir mo dos discursos, inclusive do teolgico. Na esperana de
explicitar melhor essa epistemologia kentica, nos utilizaremos de uma metfora: a
metfora do filtro, que objetiva estabelecer a relao entre a realidade-em-si, os
filtros interpretativos a partir dos quais lidamos com essa realidade-em-si e o
conhecimento final que deriva desse processo de recepo. A revelao, nesse
26 Na tentativa de explorar essa distino entre o Deus-em-si e o Deus-para-ns, ser importante a
obra de MOINGT, J. Deus que vem ao homem (Cf. MOINGT, J. Deus que vem ao homem: do luto
revelao de Deus, v. 1. So Paulo: Edies Loyola, 2010.).
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sentido, no se identifica com algum desses elementos, como normalmente se
pressuporia, mas consiste no processo inteiro. Tal epistemologia tambm deve estar
a servio da construo de uma teologia mais dialogal. Ou seja, se no se tem acesso
realidade-em-si, mas apenas quilo que se circunscreve linguagem, ento isso
inviabilizaria falar do absoluto absolutamente essa conscincia, ento, longe de
nos conduzir a uma postura apologtica, nos conclamaria ao dilogo.
A terceira parte busca propor uma re-velao que acontea tambm nos
limites da pessoa e que, ento, desemboque numa teologia de textos vivos. Nesse
sentido, parte do princpio de que a realidade-em-si no possui o seu termo na
linguagem e, portanto, possvel uma legitimao da dimenso ontolgica que
sempre aponta para um devir. Admitir, pois, que a linguagem no esgota a realidade
e que h experincias humanas que no podem ser descritas por ela, como nos
auxilia Rahner, abre espao para o abscndito na revelao, afinal, esta
indissociavelmente linguagem e experincia. Uma teologia de textos vivos,
ento, dever ser capaz de valorizar as pessoas e suas experincias de
vulnerabilidade como parmetro teolgico. E certamente a melhor tradio
hermenutica que nos subsidia esse trato teolgico que se faz a partir da fragilidade
humana aquela construda pelas hermenuticas contextuais, tais como se
delinearam na Amrica Latina (AL). O projeto epistemolgico que se constri
desde a AL valoriza significativamente as contingncias humanas e tal experincia
pode ser descrita como a materializao histrica da vulnerabilidade humana como
lugar hermenutico, materializao essa que radicaliza as primeiras percepes
de telogos, tais como Rahner, Skillebeekx e Queiruga, na medida em que colocam
o humano em foco. Ou seja, no se pode dar por completo o giro antropolgico,
tal qual exemplificado na teologia catlica ao longo do sculo XX, sem que se
considere a histria da AL. Esse texto vivo materializado no humano vulnervel,
l muito mais explcito, tambm se constitui lugar de presena e ausncia,
manifestao e camuflagem do divino, razo pela qual deve ser includo em
qualquer formulao que pretenda discutir o tema da revelao.
Finalmente, a quarta parte do ltimo captulo objetiva sugerir o modo atravs
do qual consideramos apropriado lidar com uma realidade divina que extrapola os
limites da linguagem ao mesmo tempo em que s se coloca no discurso a partir dela.
Parte do pressuposto de que a revelao se constitui num processo que se inicia na
livre deciso de Deus em se propor gratuitamente ao ser humano, passa pelos
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28
mecanismos de compreenso e recepo presentes no quadro interpretativo e
redunda num conhecimento teolgico a partir do qual falamos do divino. Surge,
ento, a pergunta: o carter manifestacional e tambm abscndito da revelao nos
convoca a uma resposta diferenciada? A resposta positiva a essa pergunta nos leva
a propor uma revelao cuja recepo se compreenda por meio do conceito de
cuidado, na perspectiva heideggeriana, como modo-de-ser. Ou seja, assumindo a
metfora de Heidegger, que afirma o ser humano como pastor do ser, propomos
uma recepo que se d nos termos da fragilidade de um pastoreio o ser humano
como pastor da revelao. S um pastoreio que no se funde na fora dominadora
que se alimenta da nsia por uma verdade objetiva, mas, ao contrrio, se nutra da
fragilidade resultante da escuta de uma verdade que se manifesta constantemente
num vir-a-ser, capaz de lidar com um Deus cuja melhor descrio aquela que o
caracteriza como evento. 27 Lidar criticamente com uma revelao que assuma Deus
como evento s se faz possvel a partir de uma teologia que se compreenda como
hermenutica e que, portanto, se proponha como um chamado ao pastoreio da
revelao , desde que esta se traduz no modo mais frgil de se lidar com o
conhecimento daquele que se coloca para alm de nossas prprias descries.
Fomos acostumados a lidar com a ideia (legtima) de que Deus quem nos
pastoreia. Mas, e quanto contrapartida ser possvel um pastoreio do divino?
Cremos que sim!
27 No que respeita compreenso de Deus como evento, este trabalho parte de alguns pressupostos
que deram origem obra The weakness of God, de John Caputo (Cf. CAPUTO, J. D. The weakness
of God: a theology of the event. Bloomington, IN: Indiana University Press, 2006.).
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2 Modernidade e revelao: herdeiros de uma cultura do revelado
[Em Hegel] a revelao no tem mais nada da gratuidade, da surpresa, da liberdade, que o
testemunho bblico lhe reconhece. A revelao torna-se um destino da necessidade: Deus no se autodestina, mas destinado; Deus escravo da prpria lei de seu ser, prisioneiro das
exigncias constitutivas de sua prpria natureza. A revelao o terrvel processo pelo qual
Deus, desde sempre, est condenado a manifestar-se: o Esprito absoluto no pode
permanecer no silncio, no pode ficar na obscuridade.
Bruno Forte 28
A Modernidade Ocidental , sem dvida, uma cultura que celebra a ousadia
humana em servir-se do prprio entendimento (sapere aude), para se utilizar aqui
de uma mxima do Iluminismo, popularizada por Kant. 29 Nesse sentido, impe-se
como uma busca sem limites de um conhecimento que j no reconhece mais
restries aos esforos humanos de conquista. Nutrindo-se ao mesmo tempo de
descobertas importantes verificadas no passado e de ressentimentos com esse
mesmo passado, a Modernidade se mostra como algo significativamente original
eis o paradoxo! Mas, como todo ideal de conquista, avana-se pressupondo
que o nico limite possvel expanso o prprio limite imposto pela natureza e
no aquele oriundo de qualquer tica capaz de respeitar a vocao do real
muito prprio (por que no dizer?) das histrias de colonizao levadas s ltimas
consequncias no perodo moderno. A conquista parece ser fruto dessa atitude
desnudadora que assume contornos epistemolgicos nessa nova cultura que se
estabelece. A Modernidade, portanto, desde que se estabelece como o horizonte
prprio da quebra de limites e da consequente manifestao do que antes se
encontrava oculto, coloca-se tambm como cultura avessa a qualquer noo de
mistrio. Trazer todos os segredos baila, portanto, a vocao mais forte
dessa cultura a que chamamos moderna.
Com base nesse pressuposto, pretende-se nos dois primeiros captulos que se
seguem estabelecer o status questionis (estado da questo) do presente trabalho, ou
28 FORTE, B. escuta do outro: filosofia e revelao. So Paulo: Paulinas, 2003, p. 22. 29 Cf. KANT, I. A paz perptua e outros opsculos. Lisboa: Edies 70, 2004, p. 11ss.
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seja, levantar o problema a partir do qual se pretende sugerir algumas hipteses no
que respeita ao tema da revelao. Neste primeiro captulo, parte-se da
mundividncia moderna como lugar da manifestao, da exposio, da
expanso e domnio racional sobre o mundo e sobre o outro. Analisa-se sua
tendncia dessacralizadora, no como contraponto absoluto s vises religiosas de
um mundo anterior, mas como processo que se nutre de seu passado ao mesmo
tempo em que o ultrapassa. Ou seja, parte-se do fato de que a Modernidade um
processo paradoxal e seus sucessores tambm o so. No obstante, percebe-se nessa
cultura algo substancialmente novo, que se constri sobre o pressuposto de que nada
deve resistir sede humana da descoberta. Um dos acontecimentos que a tornam,
em certo sentido, indita o advento da cincia, que com sua proposta de ser uma
nova forma de conhecimento do mundo no mais limitada pela tradio
teolgica e nem pela especulao filosfica se firma como radicalizao do
revelado. Por outro lado, a autonomia do conhecimento do mundo em relao
religio, possibilitada pela cincia, paulatinamente provoca reinterpretaes da
revelao, tendo como pano-de-fundo uma tendncia cada vez mais imanente e
menos transcendente da religio. Pressupe-se que isso que aqui se nomeia de
reinterpretao branda e reinterpretao radical da revelao, delineia um
quadro novo capaz de repercutir no atual conceito de revelao, afinal, somos todos
herdeiros desse longo processo o qual aqui se nomeia de cultura do revelado.
2.1 A mundividncia moderna
Antes de se considerar a mundividncia moderna, necessrio se faz esclarecer
o que se quer dizer com a expresso modernidade. A razo desse cuidado se
justifica na polissemia do vocbulo e da prpria ideia de Modernidade. O vocbulo
pode significar muitas coisas e, frequentemente, isso pode gerar confuses e
anacronismos. Vejamos, portanto, algumas das acepes possveis.
2.1.1 Definindo os termos
Do ponto de vista etimolgico, a palavra moderno dentro do qual se
inscreve a expresso modernidade surge do latim tardio modernus, que a
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31
juno de modus e ernus. Modus significa maneira de ser, 30 medida, limite
(justa medida, regra, norma, lei) o advrbio modo indica o tempo limitado, que
est em torno, circunscrito quele que fala. Por outro lado, o vocbulo ernus
significa pertencer a. Assim, visto numa perspectiva dicionarstica, modernus
surge como aquilo que pertence ao tempo presente, a coisa justa. Nesse sentido,
falar de uma poca moderna pressup-la como aquela que avana superando a
poca anterior. Ademais, modernus surge do modelo hodiernus, indicando assim o
hoje, a atualidade. 31 Esse sentido que indica o pertencimento poca
histrica em que se vive, quilo que novo, contemporneo faculta o uso correto
do termo em qualquer poca. Esse o primeiro sentido digno de nota.
Somos informados de que o termo moderno foi usado com frequncia a partir
do sculo X nas polmicas filosficas e religiosas. No contexto de tais polmicas,
a expresso quase sempre quis indicar, de modo laudativo, certa abertura e liberdade
de esprito, um conhecimento dos fatos e ideias recentes ou uma ausncia de rotina;
por outro lado, de modo pejorativo, indicou ligeireza, preocupao com a moda,
amor da mudana pela mudana, ou seja, um abandono s impresses do momento
que se subtrai a qualquer inteligncia do passado. Nesse sentido, distinga-se a uma
justa modernidade, responsvel por reais e necessrias transformaes do
pensamento, de uma modernidade de superfcie, que ignora a tradio e apega-se
ao reclame e demagogia. 32 Evilzio Borges Teixeira, citando J. Le Goff, afirma
que o termo moderno
[...] nasce quando o imprio romano se dissolve no sculo quinto. A modernidade, portanto, est ligada a uma contraposio antigo-moderno e durante o Medievo ter
em geral um sentido de recente e atual. E, todavia, esconde freqentemente, de modo
especial, em ambientes intelectuais, uma noo de valores. 33
De qualquer forma, percebe-se nessa segunda acepo o uso da expresso de
uma forma mais crtica, resultante de uma compreenso que se estabelece em
funo da oposio a uma estrutura estabelecida e consolidada. Compreendendo a
Modernidade como um modo peculiar e homogneo de civilizao, por exemplo,
30 Cf. BUENO, F. da S. Grande dicionrio etimolgico-prosdico da lngua portuguesa, v. 5. So
Paulo: Editora Braslia, 1974, p. 2489-2490. 31 BUENO, F. da S. Grande dicionrio etimolgico-prosdico da lngua portuguesa, p. 2489-2490. 32 Cf. LALANDE, A. Vocabulrio tcnico e crtico da filosofia. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 693. 33 TEIXEIRA, E. B. E. B. Aventura ps-moderna e sua sombra. So Paulo: Paulus, 2005, p. 10.
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Joo Batista Libnio afirma que ela se define muito mais por uma oposio
tradio do que propriamente uma contraposio a antigo. 34
A expresso modernidade tambm pode ser equivalente ao que alguns
chamariam de ps-modernidade. Quanto a isso, importante destacar duas
maneiras de se conceber a relao entre Modernidade e Ps-Modernidade: a relao
de ruptura e a relao de continuidade. A relao de ruptura pressupe que a Ps-
Modernidade seja produto do rompimento com a mundividncia moderna, em
funo da crise instaurada nesta ltima. Alguns pensadores, tais como Baudrillard
e Lyotard, afirmam a Ps-Modernidade como uma cosmoviso claramente distinta
de sua antecessora. O ps, ento, no ressaltaria apenas um momento
subsequente, mas uma crtica e negao dos postulados da Modernidade.
Baudrillard 35, por exemplo, afirma que a tecnologia da informao [...]
determinou uma ordem social diferente caracterizada por simulaes que
apagou as diferenas entre o real e o virtual. 36 Na esteira do pressuposto de que o
fenmeno ps-moderno se manifesta como a lgica cultural do capitalismo
tardio, tanto Baudrillard quanto Fredric Jameson 37 chegam s mesmas concluses:
na cultura ps-moderna, a realidade transforma-se em imagens, e o tempo
fragmenta-se numa srie de presentes perptuos. 38
Lyotard tambm identifica na Ps-Modernidade uma mudana de
cosmoviso. 39 A Ps-Modernidade, tambm denominada por ele de era ps-
industrial, deflagrada pela crise dos grandes relatos [meta-narrativas 40] que
legitimavam a cincia na Modernidade. 41 Segundo ele, uma das importantes
consequncias dessa transformao a mudana no estatuto do saber. Ou seja, na
circulao do conhecimento verifica-se uma mudana na relao entre sujeito e
conhecimento, pois a produo do saber no pressupe mais o sujeito que o
produziu e, portanto, no depende dele para se perpetuar o conhecimento,
portanto, tem certa autonomia em relao ao sujeito porque pode ser facilmente
34 LIBNIO, J. B. Teologia da revelao a partir da modernidade, p. 113. 35 Ver as seguintes obras: BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulaes. Lisboa: Relgio dgua,
1991. Tambm BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edies 70, 2011. 36 BARRERA, P. Fragmentao do Sagrado e Crise das Tradies na Ps-modernidade: desafios
para o estudo da religio. In: TRASFERETTI, J.; GONALVES, S. L. (Orgs.). Teologia na ps-
modernidade. So Paulo: Paulinas, 2003, p.442. 37 Cf. JAMESON, F. As sementes do tempo. So Paulo: tica, 1996. 38 BARRERA, P. Fragmentao do Sagrado e Crise das Tradies na Ps-modernidade..., p. 442. 39 Ver LYOTARD, J.-F. O ps-moderno. 3. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1988. 40 Cf. LYOTARD, J.-F. O ps-moderno, p. xvi. 41 BARRERA, P. Fragmentao do Sagrado..., p. 442.
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adquirido sem necessidade de atuao em seu processo de produo. 42 Para
Lyotard, ento, o conhecimento posto em circulao transforma-se em informao,
e isso significa que, sob certos aspectos, tal publicizao do saber tem o poder de
atenuar o monoplio e hegemonia de determinadas ideologias.
Anthony Giddens, na opinio de Pablo Barrera, o que melhor elaborou o
conceito de Ps-Modernidade como continuidade da Modernidade, e aqui que nos
aproximamos de uma compreenso sinonmica desses dois vocbulos. Ou seja,
exatamente essa relao de continuidade que faz com que alguns nomeiem de
Modernidade o que outros chamariam de Ps-Modernidade. Giddens representa,
portanto, aqueles que compreendem a Ps-Modernidade como radicalizao e
universalizao das consequncias da Modernidade. A mundividncia moderna,
assim, resultaria do aumento de abrangncia e [...] velocidade das caractersticas
modernas. 43 O conceito de Modernidade Reflexiva, por exemplo
desenvolvida principalmente por Beck 44 e Giddens 45 (tambm ligada expresso
autodestruio criativa 46), pressupe um incremento das caractersticas da
Modernidade e no transformaes de carter essencial. nesse sentido que se pode
compreender a Ps-Modernidade to somente como uma radicalizao da
Modernidade e no como algo novo. A partir dessa compreenso, algumas
expresses surgem como mais adequadas s mudanas verificadas, tais como: Alta
Modernidade, Ultramodernidade, Modernidade Reflexiva, Modernidade
Radicalizada e etc. Estas expresses, portanto, querem indicar um aprofundamento
da Modernidade e no uma ruptura com ela.
Com cautela, possvel incluir outros autores contemporneos,
representantes dessa relao de continuidade. Destaca-se aqui Zygmunt Bauman,
para quem a Ps-Modernidade no se configuraria como algo novo, mas apenas
como uma intensificao da Modernidade. Por esse motivo, Bauman substitui o
termo Ps-Modernidade por Modernidade Lquida 47. Segundo Bauman,
42 BARRERA, P. Fragmentao do Sagrado..., p. 443-444. 43 BARRERA, P. Fragmentao do Sagrado..., p. 447. 44 Cf. BECK, U. et al. Modernizao reflexiva: poltica, tradio e esttica na ordem social moderna.
So Paulo: Unesp, 1997. 45 Cf. GIDDENS, A. As consequncias da modernidade. So Paulo: Unesp, 1991. 46 Segundo BARRERA, P. a expresso autodestruio criativa tem a ver com [...] uma destruio
de origem interna, e no externa. Ao progredir, a Modernidade se autodestri criativamente [...] O
sentimento de novidade causado pelo carter indito dos efeitos dessa radicalizao (BARRERA,
P. Fragmentao do Sagrado..., p. 448.). 47 Cf. BAUMAN, Z. Modernidade lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
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tendncias j enraizadas na Modernidade comeam a produzir efeitos distintos dos
verificados em seu perodo de gestao, mas estaramos apenas diante de novos
efeitos e no de novas matrizes. Distinga-se, portanto, uma Modernidade slida
(a Modernidade propriamente dita) de uma Modernidade lquida (a Ps-
modernidade).
Destaca-se ainda Jrgen Habermas, um dos principais pensadores
contemporneos, que parece tambm perceber a Ps-Modernidade como
continuidade da Modernidade. Para Habermas, a Modernidade se manifesta como
um projeto inacabado e que, portanto, merece ser radicalizado:
As foras religiosas de integrao social debilitaram-se em virtude de um processo de esclarecimento [48] que, na medida em que no foi produzido arbitrariamente,
tampouco pode ser cancelado. prprio ao esclarecimento a irreversibilidade de
processos de aprendizagem que se fundam no fato de que os discernimentos no podem ser esquecidos a bel-prazer, mas s reprimidos ou corrigidos por
discernimentos melhores. Por isso o esclarecimento s pode compensar seus dficits
mediante um esclarecimento radicalizado (grifo nosso). 49
Pode-se tambm compreender o termo moderno a partir de uma tica mais
tcnica e cronolgica. Nesse sentido, a expresso indicaria aquilo que oposto
a medieval e, por vezes, oposto a contemporneo. Ou seja, apontaria para um
determinado perodo da histria mundial, especialmente ocidental, que se
convencionou iniciar no fim da Idade Mdia, culminando com a Revoluo
Francesa (1789). 50 Mas, h aqueles que preferem usar o termo de forma mais
elstica, estabelecendo a histria moderna como aquela que se inicia com os fatos
que se seguiram tomada de Constantinopla em 1453, e avana at a primeira
metade do sculo XX. Falar, por exemplo, de uma teologia moderna nesse sentido
48 O termo original, Aufklrung, tambm usado para se referir ao Iluminismo como movimento
intelectual do sculo XVIII, nessa passagem quer indicar [...] um processo histrico mais amplo,
prximo do que Habermas entende por racionalizao. Quanto a essa distino, ver nota explicativa dos tradutores (Cf. HABERMAS, J. O discurso filosfico da modernidade. So Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 6.). 49 HABERMAS, J. O discurso filosfico da modernidade, p. 122. 50 Obviamente, essa delimitao no se aplica absolutamente Amrica Latina (AL), j que nesse
contexto parece ter havido um atraso no processo da Modernidade. Alm disso, na AL a
Modernidade fora vivida s avessas, materializando-se na misria e pobreza de seu povo, e embora
l tenha se mantido o discurso oficial e pretensamente universal da liberdade, felicidade e razo, na
prtica predominou um processo seletivo, excludente, parcial e propiciador de privilgios (Cf.
LIBNIO, J. B. Teologia da revelao a partir da modernidade, p. 150-154.). Em alguns casos, a
Modernidade vivenciada, sobretudo na Europa, alimentou-se da explorao e extorso dos recursos
do ento Novo Mundo.
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seria, ento, falar de uma teologia que vigorou do sculo XVI at a primeira metade
do sculo XX, a partir de quando se inicia a Ps-Modernidade. 51
O estudo das origens da expresso moderno ou modernidade poderia ainda se
estender em grande medida, mas isso nos distanciaria do escopo da pesquisa.
Mesmo de forma sinttica, entretanto, pode-se j perceber que o vocbulo no
possui um sentido unvoco. Para os propsitos desta pesquisa, podem-se resumir da
seguinte maneira os principais sentidos possveis do termo modernidade:
1) O que atual, contemporneo, ou mesmo o que designa certa abertura
de esprito quilo que novo;
2) O equivalente Ps-Modernidade, por meio de expresses tais como
Modernidade Lquida, Modernidade Inacabada, Hipermodernidade,
Ultra-Modernidade e etc.
3) O perodo que vai mais ou menos do sculo XVI at a primeira metade
do sculo XX, a partir de quando se tem aquilo que se convencionou
chamar de Ps-Modernidade; 52
Quando se considera esta ltima acepo da expresso modernidade a que
designa os fatos ocorridos entre o sculo XVI e a primeira metade do sculo XX
, deve-se ressaltar que o conjunto de caractersticas que ali foram gestadas tambm
acabou por gerar certo Zeitgeist. Nesse sentido, embora historicamente o perodo
moderno tenha tido o seu ocaso por volta da dcada de 1970 opinio mais ou
menos comum entre aqueles que sugerem um incio para a Ps-Modernidade ,
todavia vigora no mundo contemporneo como Zeitgeist, ao lado de
mundividncias diferentes e destoantes, como a pr-moderna e a ps-moderna. Essa
concomitncia de cosmovises diferentes, em um mesmo momento histrico,
51 H, ainda, aqueles que acreditam que a sociedade ganhou o adjetivo de moderna a partir das
Revolues Francesa e Industrial e do avano da cincia, a fim de se diferenciar da sociedade
tradicional, dependente que esta era da religio para interpretar o mundo (p.e., BARRERA, P. Fragmentao do Sagrado e Crise das Tradies na Ps-modernidade..., p. 437-463). 52 Henrique C. de Lima Vaz utiliza-se da expresso modernidade moderna posteriormente,
modernidade ps-crist a fim de designar a modernidade ps-renascentista, o que inclui desde
os eventos que marcaram a revoluo tcnico-cientfica, passando pelos eventos que provocaram as
chamadas revolues econmico-sociais at nossos dias. Para ele, a modernidade moderna atinge
seu pice em Hegel. Vaz diferencia-a das modernidades anteriores, tambm chamadas de clssicas,
nas quais se verifica de maneira incontestvel a religio como o centro do sistema simblico. Ou
seja, a partir do sculo XVII, haver uma mudana no papel da teologia no contexto da cultura
uma crise da estrutura ontoteolgica (expresso utilizada por Heidegger) e ascenso de uma espcie
de estrutura onto-antropolgica (Cf. ZILLES, U. A modernidade e a Igreja. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1993, p. 12-13.).
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sugere um conceito que as aglutine: propem-se aqui o conceito de
Contemporaneidade:
[...] o conceito de Contemporaneidade [...] designa o momento presente,
aglutinador tanto da ideologia iluminista quanto da ps-moderna. A contemporaneidade, como esse palco que abarca realidades paradoxais, admite,
por um lado, a Modernidade como um fenmeno que, embora tenha caracterizado
um determinado momento histrico, vige ainda como modo de pensar, e, por outro, a Ps-modernidade como negao da Modernidade. Ambas, portanto, aparecem
concomitantemente como Zeitgeist no mundo contemporneo. Ou seja, o pluralismo,
prprio do momento em que vivemos, manifesta-se, tambm, na simultaneidade de
elementos iluministas e daqueles genuinamente ps-modernos. Ambas as cosmovises convivem lado a lado, de maneira ambgua, se nutrem e se embatem,
delineando um novo esprito aglutinador de realidades multifacetadas. 53
Portanto, a Contemporaneidade pode ser vista como um palco que se
manifesta nessa ambiguidade na medida em que convive tanto com elementos pr-
modernos, quanto modernos e tambm os chamados ps-modernos. Essa
simultaneidade de elementos dspares tambm justifica o pluralismo que se verifica
atualmente. Ou seja, nosso mundo plural no apenas por que abarca fenmenos
distintos e contrrios uns aos outros, mas principalmente por que aglutina
matrizes distintas e contrrias que, por sua vez, se materializam numa pluralidade
de manifestaes. Pressupor que a Modernidade ainda est entre ns, tanto quanto
os seus algozes, aplaina o caminho que se estabelecer aqui para a compreenso da
revelao no mundo contemporneo.
2.1.2 A modernidade e o processo de dessacralizao
Assim como se percebe um paradoxo na mudana da Modernidade para a
chamada Ps-Modernidade, que se manifesta em termos de ruptura e continuidade,
como se notou anteriormente, o mesmo se dir com respeito ao advento da
Modernidade. O Zeitgeist moderno tanto uma cultura que consolida e, portanto,
d continuidade a aspectos que lhe so anteriores, quanto se mostra como
paradigma que expressa algo substancialmente novo. Seno, vejamos:
53 ROCHA, A. S. Hermenutica do cuidado pastoral: lendo textos e pessoas num mundo paradoxal.
So Leopoldo: Sinodal/EST, 2012, p. 42.
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A mundividncia moderna , sem dvida, devedora de culturas que a
precederam. Ou seja, em certo sentido, no se poderia falar legitimamente de uma
Modernidade sem levar em conta categorias que foram gestadas em perodos
anteriores e que, de alguma forma, ajudaram a provoc-la. Um bom exemplo o
cristianismo visto a partir de elementos que lhe so peculiares e, em certo
sentido, inovadores em termos de cultura ocidental , j que antecipa alguns
conceitos que sero fundamentais na construo da Modernidade. Um deles o
conceito de pessoa, que de certa forma uma inveno do cristianismo. Essa
originalidade pode ser mais bem compreendida quando contrastamos tal conceito
com a perspectiva grega predominante da unicidade de Deus. No contexto da
filosofia grega prevalecia a concepo de um nico princpio divino em
contraposio multiplicidade de seres no mundo, que pode ser confirmada, por
exemplo, no esquema platnico dos dois mundos: o mundo das ideias e o mundo
sensvel 54. Obviamente, tal concepo quando aplicada ao Deus cristo conduziria,
inevitavelmente, negao da Trindade. A sada, portanto, foi manter a unicidade
divina capaz de salvaguardar o monotesmo, mas, diferentemente da filosofia grega,
acrescentou-se a id