Abelardo da Hora - Especial do Jornal do Commercio em homenagem aos 90 anos.

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k k Mimo divulga as atrações. Mautner toca em Olinda k 8 Divulgação k Fernando Duarte expõe no Maison do Bomfim k 8 Mateus Araújo Eugênia Bezerra A belardo Germano da Hora está no menino que sorri na praça; na mãe que chora pelo filho doente. Está na curva robusta da mu- lher que requebra pela praia; nas cores vibrantes do Carnaval. Abelardo da Ho- ra é o Recife que se esconde e se mostra num cimento bem mais digno e bonito do que este sob o qual se resolveu er- guer uma cidade cujas grandezas estão em altos prédios e viadutos. Abelardo re- descobriu a nossa grande beleza na for- ma humana e expressionista de uma ar- te feita com amor, comunismo e paixão. Um dos criadores do Movimento de Cultura Popular (MCP), mestre de grandes nomes das nossas artes plásti- cas, como José Cláudio, Francisco Brennand, Maria Carmem e Gilvan Sa- mico, Abelardo da Hora comemora amanhã 90 anos de idade. Lúcido e ati- vo na vida e na arte, o artista é homena- geado por reportagens especiais que o JC publica hoje e amanhã. Uma manei- ra de celebrar este que é um dos maio- res nomes das artes brasileiras. A semana de aniversário do artista co- meçou com trabalho e homenagens – que devem continuar com a realização de outros projetos em 2014. Junto com o ator e diretor teatral Carlos Varella (in memoriam), Abelardo é homenageado no Congresso Internacional Sesc e UFPE de Arte-Educação, que este ano segue o tema Ecos de Resistências na América Latina. Ele foi convidado para ministrar, na segunda-feira passada, a palestra Artes no MCP. Hoje, como parte do mesmo evento, ocorre a abertura da exposição Abelar- do da Hora – Da indignação à esperan- ça, às 18h, no Centro de Artes e Comu- nicação da Universidade Federal de Pernambuco (CAC/UFPE). Amanhã, é inaugurada a escultura O artilheiro, na Arena Pernambuco. Também será lançado o novo material promocional do Recife Convention & Visitors Bu- reau, ilustrado com gravuras e fotos que divulgarão o Estado e sua obra pe- lo Brasil e pelo mundo. k Continua nas páginas 4 e 5 caderno C caderno C O artista de todas as horas Das dores, alegrias e belezas, Abelardo da Hora é um artista múltiplo com olhar singular sobre o Recife. Para celebrar seus 90 anos, o Caderno C publica dois dias de reportagens Hélia Scheppa/JC Imagem Márcio Fonseca/Divulgação Renato Spencer/JC Imagem Editores: Marcelo Pereira [email protected] Olívia Mindêlo [email protected] Fale conosco: (81) 3413.6180 Twitter: @cadernoc www.jconline.com.br/cultura O Brasil ainda tem muita coisa para resolver. A maior miséria é a falta de educação. Isso é uma tristeza. É a pior miséria que o País tem. A maior doença.” Abelardo da Hora, escultor, pintor, professor e desenhista Recife I 30 de julho de 2014 I quarta-feira

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Especial publicado em julho, quando o artista fez 90 anos. Abelardo da Hora faleceu em 23 de setembro de 2014.

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kMimo divulga asatrações.Mautnertoca emOlinda k 8

Divulgação

k FernandoDuarte expõenoMaison doBomfim k 8

Mateus AraújoEugênia Bezerra

A belardo Germano da Hora estáno menino que sorri na praça;na mãe que chora pelo filho

doente. Está na curva robusta da mu-lher que requebra pela praia; nas coresvibrantes do Carnaval. Abelardo da Ho-ra é o Recife que se esconde e se mostranum cimento bem mais digno e bonitodo que este sob o qual se resolveu er-guer uma cidade cujas grandezas estãoem altos prédios e viadutos. Abelardo re-descobriu a nossa grande beleza na for-ma humana e expressionista de uma ar-te feita com amor, comunismo e paixão.Um dos criadores do Movimento de

Cultura Popular (MCP), mestre degrandes nomes das nossas artes plásti-cas, como José Cláudio, FranciscoBrennand,Maria Carmem eGilvan Sa-mico, Abelardo da Hora comemoraamanhã 90 anos de idade. Lúcido e ati-vo na vida e na arte, o artista é homena-geado por reportagens especiais que oJC publica hoje e amanhã. Umamanei-ra de celebrar este que é um dos maio-res nomes das artes brasileiras.A semana de aniversário do artista co-

meçou com trabalho e homenagens –que devem continuar com a realizaçãode outros projetos em 2014. Junto como ator e diretor teatral Carlos Varella (inmemoriam), Abelardo é homenageadono Congresso Internacional Sesc eUFPE de Arte-Educação, que este anosegue o tema Ecos de Resistências naAmérica Latina. Ele foi convidado paraministrar, na segunda-feira passada, apalestra Artes noMCP.Hoje, como parte domesmo evento,

ocorre a abertura da exposiçãoAbelar-do da Hora – Da indignação à esperan-ça, às 18h, no Centro de Artes e Comu-nicação da Universidade Federal dePernambuco (CAC/UFPE). Amanhã,é inaugurada a escultura O artilheiro,na Arena Pernambuco. Também serálançado o novo material promocionaldo Recife Convention & Visitors Bu-reau, ilustrado com gravuras e fotosque divulgarão o Estado e sua obra pe-lo Brasil e pelo mundo.

k Continua nas páginas 4 e 5

caderno Ccaderno C

Oartistade todas as horas

Das dores, alegrias ebelezas, Abelardo daHora é um artista múltiplocom olhar singular sobreo Recife. Para celebrarseus 90 anos, o CadernoC publica dois dias dereportagens

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Editores:Marcelo Pereira [email protected]ívia Mindêlo [email protected] conosco: (81) 3413.6180Twitter:@cadernocwww.jconline.com.br/cultura

OBrasil ainda temmuitacoisa para resolver. Amaiormiséria é a falta deeducação. Isso é umatristeza. É a pior misériaque o País tem. Amaiordoença.”Abelardo da Hora,escultor, pintor, professor edesenhista

Recife I 30 de julho de 2014 I quarta-feira

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k Continuação da página 1

Mateus Araú[email protected]

A fachada da casa 307 da Ruado Sossego, no Centro doRe-cife, pintada de um amarelo

ameno, esconde um cenário desco-munal que existe além da porta demadeira. É trancado em um templode arte e amor que um dos homensmais apaixonados pela vida (e por tu-do que ela lhe proporciona) resiste aum tempo em que, segundo ele mes-mo, “políticos já não fazemmais polí-tica”. Sobrevive fazendo das suas es-culturas, pinturas e gravuras “umalinguagem-brado e como gesto detrincheira”, como definiu perspicaz-mente o crítico José Geraldo Vieira,em junho de 1967, em artigo do jor-nal Folha de S. Paulo.Abelardo da Hora, amanhã um no-

nagenário, é um menino eterno, desorriso amplo e sonhos infinitos. Nasterras da Usina Tiúma, em São Lou-renço daMata, onde seu pai trabalha-va como homemde confiança do pro-prietário, foi descobrindo a beleza danatureza e se encantando com o ver-de e a amplitude do horizonte.No Recife, para onde semudou em

1932, viu a felicidade dosmeninos po-bres que brincavam nas ruas do bair-ro da Iputinga serem a extensão da-quilo que ele tinha como liberdade, eguarda até hoje como exemplo claroe concreto da alegria. Aquela felicida-de que João Guimarães Rosa já dissese achar em horinhas de descuido.No corredor estreito desta casa de

fachada miúda, mas longilínea, ondeAbelardo esculpe sua família – a daarte e a da vida – empilham-se escul-turas e quadros que revelam o olhardele sobre os seres humanos, a misé-ria, a cólera e os contentamentos deum povo pernambucano, também re-flexo amplo de um Brasil desconfor-me.Homem engajado artística e poli-ticamente, está sempre antenado aoque acontece fora da sua residência-ateliê. Lê três jornais locais e um na-cional todos os dias.Filho de uma família de sete filhos

(Abelardo é o segundo e um deles éo cantor Claudionor Germano), o es-cultor, pintor, gravador e desenhistaAbelardo começou amoldar suas pri-meiras obras nas aulas da Escola deBelas Artes do Recife, antes de in-gressar no curso de direito da Facul-dade de Olinda. Foi amparado e apa-drinhado pelo industrial RicardoBrennand – ex-chefe do seu pai, Ca-zuza – que Abelardo deu seus primei-ros grandes voos nas artes plásticas.No ateliê, dentro das monumentaisterras da rica família, o jovem de 17anos foi trabalhando suas obras nacerâmica.Neste momento, Abelardo deu au-

las a Francisco Brennand (“ele desis-tiu do curso de Direito para estudararte comigo”), e acabou se apaixonan-do pela bonita Conchita Brennand. Efoi por causa dela que deixou a casa– após fazer uma obra, A torre dosmeus sonhos, em que abraçado comas pernas de uma moça havia um ho-mem cujo rosto era dele mesmo.“Seu Ricardo ficou em silêncio. Vique passei dos limites e resolvi ir em-

bora no dia seguinte, mas mantive-mos nossa amizade”, lembra.Mas a vida lhe foi generosa no cam-

po dos afetos. Em abril de 1948, quan-do fazia sua primeira exposição de es-cultura, Abelardo da Hora conheceuseu grande amor, Margarida Lucena.Além da beleza, era dona de um dominvejável à maioria dos apaixonados:lidava com os ciúmes de maneiratranquila. Passava quase cega diantedas inúmeras obras femininas que oartista adora fazer. “Ela achava lindaa minha maneira de esculpir as mu-lheres”.De uma paixão meteórica – “da

exposição, saímos caminhando pe-lo Bairro do Recife; quando chegueiem casa com Margarida, minhamãe foi logo dizendo ‘meu filho, es-ta sim era que você devia namorar ecasar’” – nasceu o casamento. Abe-lardo deixou a antiga noiva e, seismeses depois, já morava com Mar-garida, com quem teve sete filhos ede quem ficou viúvo há quatroanos. O amor, entretanto, continuapresente em todos os cantos, alémde ter sido imortalizado no bustofeito por ele para a amada.

A arte como

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AMOR À PRIMEIRA VISTAMargarida e o escultor seconheceram numa exposição em1948. Seis meses depois, elesestavam casados. Ele recriou aface da esposa em concreto polido

Veja galeria de fotos no JC Online:www.jc.com.br/cultura

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FESTA Abelardo da Hora, que uniu produçãoestética e política numa só profissão de fé, celebraamanhã 90 anos de uma vida intensamente criativa

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Page 3: Abelardo da Hora - Especial do Jornal do Commercio em homenagem aos 90 anos.

caderno C

P or trás deste senhor doce, guardado hoje den-tro de sua casa, entre suas obras, há um artistapoliticamente combativo e fortemente defen-

sor do povo, que despertou para o comunismo no Riode Janeiro, em 1946. Quando saiu do Recife, logo apósdeixar a casa dos Brennand, Abelardo da Hora partiupara a então Capital Federal e lá criou a esculturaA fa-mília, peça que entraria no acervo do Salão de Belas Ar-tes carioca, não fosse a decisão do presidente EuricoGaspar Dutra por suspendê-lo, naquele mesmo ano.Não teve evento, mas nascia ali, da revolta pela inúme-ras pressões de um governo e pela monstruosa desi-gualdade que gritava pelo Brasil, um homem dispostoa lutar através da arte e das armas – rompeu com o Par-tido Comunista Brasileiro quando este se recusou a fa-zer uma revolução bélica depois do golpe de 1964.Na escultura, na qualmãe e filhos agonizamnamisé-

ria e um braço erguido representa o desejo de mudan-ça, Abelardo fez-se umas das vozes da geração que que-ria ver liberta a nação. Desejo que trouxe para o Esta-do natal e o fez erguer, com outros artistas, as bases doMovimento de Cultura Popular (MCP): ação política,cultural e educacional, de inserção do “povo” na socie-dade, no período de 13 de maio de 1960 a 31 de marçode 1964, dentro do governo municipal de Miguel Ar-raes. Com o sonho de transformar o Recife numa gran-de galeria de arte, Abelardo daHora passou a dar aulasgratuitas de pintura, desenho e escultura no Recife. Aomesmo tempo, foi usando seu trabalho para denunciaras misérias que o Brasil vivia. A seguir, confira depoi-mentos de Abelardo sobre cultura e política.

AS BASES“Fiz uma grande exposição na escola de engenharia.

Artes plásticas, desenho, pintura, gravura, escultura.Levei o Coral Bach, dirigido por Geraldo Menutti, euma esquete de LuizMendonça. Nomeio das autorida-des, estava Miguel Arraes, secretário da Fazenda, doprefeito Pelópidas Silveira. Naquele tempo, eu já esta-va querendo fazer uma casa das artes, com artes plásti-cas, música e teatro.”

MCP“Numa reunião, em abril de 1960, Arraes passou a pa-

lavra para mim. Eu li a estrutura do trabalho que vinhadirigindo desde 1950. Quando eu terminei de falar, Ar-raes passou a palavra ao professor Germano Coelho,que disse que o projeto lembrava um movimento fran-cês, visto por ele em Paris. Segundo ele, lá, se você que-ria desenhar e pintar, ia para artes plásticas; se queriacantar ou tocar, ia para música, etc. Esse movimentoera conhecido como Povo e Cultura. Então, Arraes ba-teu com a aquela mãozona de matuto na mesa e disse:‘Aqui a gente vai chamar de Movimento de Cultura Po-pular’. Aí todo mundo ficou de pé e bateu palma. E fi-cou criado o MCP. Depois disso, fui nomeado Diretorde Sítio e Jardim da prefeitura, para colocar em práticameu projeto, que propus no governo de Pelópidas da Sil-veira, de transformar o Sítio Trindade em um Parquede Cultura. Restaurei o local, fiz um teatro e transfor-mei o sítio na sede doMCP. Eu fiz parte do conselho dedireção, junto com Geraldo Menutti e Luiz Mendonça.Representávamos a parte de cultura do Movimento deCultura Popular; e o grupo católico, que cuidava da edu-cação, era liderado por Paulo Freire. Nesta mesma épo-ca, fiz 22 desenhos sobre a situação de miséria da cida-de. EraMeninos do Recife. Sobre a fome e a pobreza queesse meninos viviam.”

VIVA O POVO“Quando você pega um trabalho, seja desenho, seja

escultura, emanifesta nele a situação de vida da popu-lação, você está educando politicamente. É um protes-to que você faz. Quando eu faço essa exaltação da cria-tividade popular, fazendo por exemplo Danças brasi-leiras de Carnaval, mostrando a maravilha da criativi-dade popular, transformando em desenho algo que épassageiro como o Carnaval e deixando gravado emdesenhos, ou alguns quadros, como eu fiz a série éHo-ra de brincar, tudo isto é uma maneira de mostrar co-mo foi a vida, é uma maneira deeducar sobre a atividade de brin-quedo. É uma aula.”

GOLPE MILITAR“O Golpe Militar, quando veio,

levou tudo. Entraram no SítioTrindade com um tanque, pega-ram metade das cartilhas e do ál-bum Meninos do Recife, levarampara a Praça da Independência etocaram fogo. Eu senti a revolta erepulsa de tudo que o golpe fez.Foi um golpe estúpido. Eram ban-didos envolvidos dentro do Exér-cito, daMarinha e da Aeronáuticaque promoveram isso, servindoaos americanos. Inclusive tinhafrota americana aqui. Esse governo imperialista dosamericanos vem infelicitando o mundo até hoje. EsseObama que tá aí é o melhorzinho de todos eles, masainda não é flor que se cheire.”

SETENTA PRISÕES“Eu fui preso 70 vezes. Somente lutando pelas inter-

dições das armas nucleares, fui preso umas 30 vezes.Mas também briguei pelo monopólio estatal do petró-leo. É por isso que a Petrobras está aí montada, é por is-so que os donos do petróleo do mundo saíram daqui ea Petrobrás está enriquecendo o País. O Brasil não émais aquele de 20, 30 anos atrás. É completamente di-ferente. E Luiz Inácio Lula da Silva émelhor presiden-te que já passou por aqui. Por que foi operário, dirigen-te de sindicato e para mim é doutor honoris causa empolítica, porque dirigir um sindicato e mandar uma ci-dade com São Paulo parar – e para –, precisa ter muitaliderança. Ele é um líder político espetacular. O País es-tá conhecido e respeitado no mundo, atualmente, porcausa de Lula. Sou comunista, fui da diretoria estadualdo Partido Comunista e digo, com toda satisfação, queele foi o maior presidente que o País teve desde queme entendo por gente.”

MISÉRIA“O Brasil ainda tem muita coisa para se resolver. A

maiormiséria é a falta de educação. Você vê que fábri-casmaravilhosas estão sendo implantadas aqui, mas fi-cam sem puder funcionar direito, por falta de mão deobra. Ninguém tem curso técnico suficiente para to-mar conta de várias áreas em fábricas que estão che-gando. Isso é uma tristeza. A falta de educação é apior miséria que o País tem. A maior doença. E a faltade saúde se resolve também com educação. Um povobem educado deixa de fazer uma porção de doidiceque gera doença.”

Fotos:HéliaSc

heppa/JC

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Eugênia [email protected]

O Recife verte caudaloso naobra de Abelardo da Hora.Cenas e personagens que po-

dem ser vistos na cidade também po-dem ser encontrados nas obras do ar-tista que, ainda na época da Escola deBelas Artes de Pernambuco, fez o con-vite: “Vamos desenhar e pintar lá fo-ra!”. Desde muito jovem, o homemque celebra hoje seu aniversário de90 anos tem eternizado o que vê à suavolta em esculturas, desenhos, gravu-ras, painéis, peças em cerâmica e tape-çaria. Da mesma maneira, a obra deAbelardo Germano da Hora, filho decamponeses e nascido no EngenhoTiúma, de São Lourenço da Mata, fazparte da paisagem da capital pernam-bucana, é presença marcante emmui-tos espaços públicos da cidade. Quan-tas crianças já brincaram entre as figu-ras d’Os Cantadores no Parque 13 deMaio, por exemplo?.Além disto, outra face do trabalho

de Abelardo da Hora também deixoumarcas no cenário cultural da cidade.Entre outras contribuições, ele se en-volveu na política, participou doMovi-mento de Cultura Popular (MCP) efoi preso várias vezes durante o regi-me militar; fez obras que chamam aatenção para a fome e injustiças so-ciais; fundou, com Hélio Feijó(1913-1991), a Sociedade de Arte Mo-derna do Recife (SAMR) e foi profes-sor de vários artistas.Tudo isto está bem vivo para quem

atravessa a porta branca da casa eateliê de Abelardo, na Boa Vista.Berço de novos trabalhos, o lu-gar guarda peças que for-mam uma espéciede mosaico. Cadauma representa ca-pítulos destas vidasem permanente movi-mento – a do artista e a dacidade. Elas dividem espaçopelos corredores, paredes esobre os móveis. Estão pertode seus protótipos, livros e ob-jetos.Comvoz calma e umdiscur-

so firme e claro, como a me-mória de seu dono, Abelardoconta cada história com aten-ção. Revela detalhes das criações, atécnica utilizada, um ângulo que res-salta a beleza da escultura e a trajetó-ria de uma obra, como a gravura emgesso Enterro do camponês (1953). Elafez parte de uma mostra do Clube daGravura de Porto Alegre e, naqueleano, viajou pelo mundo.Anos mais tarde, em 2011, outra

mostra itinerante entraria na trajetó-ria de Abelardo, celebrando seus 60anos de criação artística. Amor e soli-dariedade foi a Brasília, Rio, São Pau-lo, João Pessoa e chegou ao Recife nainauguração do Parque Dona Lindu.Sua primeira exposição data de 1948.“O amor eu dedico às mulheres,

porque sem amulher não existiria na-da. E a solidariedade eu dedico ao po-vo. Ora exaltando a criatividade popu-lar, como nas Danças brasileiras deCarnaval (1962), ora lutando de bra-ços dados com o povo contra as injus-tiças sociais. Mostrando as injustiçassociais, como na sérieMeninos do Re-cife (1962) para retratar onde vivemas crianças do Recife, completamentedesassistidas, abandonadas, em palafi-tas dentro da maré, na lama”, resgatao artista ao falar sobre os termos quebatizaram a retrospectiva.Da exposição, faziam parte algu-

mas esculturas de mulheres sensuais,representantes de uma das faces maisconhecidas do trabalho do artista.Com materiais como cimento polido,bronze e gesso grafitado, ele criou vá-

rios destes seres voluptuosos de per-nas longas. Figuras que parecem terseus cabelos agitados pelo vento ou re-pousam lânguidas na rede. Esta artesensual também se traduz em casaisabraçados ou aos beijos, a exemplo deRelevo para o amor de Abelardo eMar-garida (1998) e Amor (2005), ambasem cimento polido, ou de Cópula(1949) e Beijo (1958), criadas em bron-ze e com formas mais arredondadas.A expressão das injustiças sociais é

igualmente forte e reconhecida na tra-jetória de Abelardo. Dela fazem parteobras como a escultura em bronze Afome e o brado (1947). Outras linhasdefinem estes corpos. Mais retas, tra-çam rostos marcados pela fome, pelador. Seres expressivos, eles parecemfalar. Não há como permanecer indife-rente ao grito daMãe com filho doente(1979), feita em cimento com banhode ácido –mesmomaterial deHiroshi-ma (1956), Estela para mulheres ecrianças abandonadas (1978) eDesam-parados (1981), para citar apenas algu-mas deste grupo.Da mesma maneira, é impossível

não pensar nas inúmeras criançasque vivem, hoje, em condições seme-lhantes (ou iguais) à dos retratadospor Abelardo na série de desenhos abico de pena de 1962. O conhecido ál-bumMeninos do Recife, no qual tam-bém há um poema escrito pelo artis-ta, representa estes seres humanosdormindo na rua, emmoradias precá-rias, catando comida na lama emmeio a urubus.

Um dos desenhos foi escolhi-do por Josué de Castro pa-ra ilustrar a edição fran-cesa do clássicoGeogra-fia da fome. Além dasensibilidade no te-ma, destaca-se tam-bém a maneira comoo artista dá um aspec-to quase tridimensio-nal às figuras e paisa-gens.O lado festivo da

obra de Abelardo podeser exemplificado porséries como DançasBrasileiras de Carna-val (1962) ou É horade Brincar (2004). So-bre este conjuntomais

recente, resumiu anos atrás o curadorRenato Magalhães: “São estas mes-mas crianças brincando ao ar livre, co-mo ele gostaria que fosse”.“Fiz menino empinando papagaio,

jogando pião, crianças pulando corda,meninas brincando com a boneca,uma menina fazendo bola de sabão.Estes são aguadas coloridas, eu vou fa-zer depois um álbum e quero escrevertambém um poema de abertura”, pla-neja Abelardo.Em Danças Brasileiras de Carnaval

(1962), o artista apresenta passistas,músicos, um casal de mestre-sala eporta-bandeira, o maracatu e outrasexpressões culturais. Os detalhes dasroupas e as formas desenhadas peloscorpos que dançam são bem usadosnas composições.A festa faz parte das lembranças de

juventude de Abelardo, cuja famíliamudou-se para a Usina São João daVárzea em 1928. Depois, o artista fezseu curso primário em uma escola naIputinga. “Aquela Avenida Caxangátodinha era o nosso reino, meu e domeu irmão Luciano. Nós brincáva-mos juntos. Eu fui com meu irmão eminha irmã muitas vezes a matinêsdo Bobos em Folia. Porque minha ir-mã gostava, já era umamocinha, emi-nha mãe disse: ‘você só vai se foracompanhada por seus irmãos’. Aínós íamos com ela, mas a gente deixa-va ela solta na buraqueira e caía no pa-ço”, lembra com um sorriso.

“com oRecifeArte que se confunde

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TRAÇADO URBANOEspalhadas pela cidade,esculturas de Abelardoformam um patrimônio

O amor eu dedico às mulheres,porque sem amulher nãoexistiria nada. E a solidariedadeeu dedico ao povo. Oraexaltando a criatividadepopular, ora lutando de braçosdados com o povo contra asinjustiças sociais.”Abelardo da Hora

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MEMÓRIAS DO ATELIÊ COLETIVO Bernardo Dimenstein, Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Guita Charifker e Zé Cláudio, em 2002

Concep

çãográfica:Edua

rdoMafra,Jad

eJofilsaneMaryn

aMoraes/EditoriadeartesJC

Depois da infância neste mundo “de camponeses etrabalhadores”, como o próprio Abelardo daHora defi-ne, e do período de estudos no Grupo Escolar Fernan-des Vieira, na Iputinga, chegava a hora de continuar aformação. Ao falar sobre o passado, o pernambucanolembra de uma preocupação damãe dele, SeverinaMa-ria Germano da Hora, em relação ao futuro dos filhos:“Fiz meu curso técnico porque a minha mãe dizia: ‘Euquero que vocês façam o colégio industrial, porquevocês já saem comuma profissão. Depois, no curso su-perior, vocês fazem o que quiserem’. Nós escolhemosartes decorativas, eu e meu irmão Luciano”.A partir desta experiência no Colégio Industrial Pro-

fessor Agamenon Magalhães, o ensino da arte conti-nuaria ligado amomentos importantes na vida de Abe-lardo, seja no papel de aprendiz ou no de repassarseus conhecimentos. O artista também concluiu o ba-charelado na Faculdade de Direito de Olinda, mas nãochegou a exercer esta profissão.“Tinha umdia da semana em que o professor dava li-

berdade para o aluno fazer qualquer coisa da sua ima-ginação e, como na minha casa iam muito repentistas,porque a minha mãe gostava demais e meu tio tam-bém, comecei a fazer a estatueta de dois repentistas.Meu professor de pintura, Álvaro Amorim, parou e dis-se: ‘Seu professor de escultura já viu a sua peça?’. Eudisse: ‘Ainda não’”.Álvaro chamou o colega para compartilhar o que

via, elogiou o aluno e prometeu que levaria Abelardopara a Escola de Belas Artes do Recife, quando ele ter-minasse o curso no Colégio Industrial. Foi o que acon-teceu. Em 1939, o jovem passou a frequentar a escolada qual Álvaro foi um dos fundadores. A instituiçãofuncionava na Rua Benfica, na Madalena. Além de teraulas, Abelardo entrou no diretório estudantil da esco-la, do qual foi eleito presidente em 1940.Foi nesta época que ele pensou: “Vamos acabar com

esse negócio de ficar desenhando só dentro da escola”.A ideia acabou colocando-o no caminho do pai daque-le que seria um de seus aprendizes, Francisco Bren-nand, outro pernambucano que trilhou um caminhopróprio e muito fértil nas artes visuais, além de criarobras que também são icônicas na paisagem do Recife– duas coincidências entre os velhos amigos.Em uma destas saídas, o industrial Ricardo Bren-

nand viu Abelardo desenhar o retrato de uma colegaemmeio ao grupo de jovens na beira do açude. Convi-dou o rapaz, filho de um dos seus ex-funcionários, Jo-sé Germano daHora, a trabalhar com cerâmica artísti-ca emorar na casa da família. Três anosmais novo queAbelardo, Francisco contaria ao pai algum tempo de-pois o caminho que escolheu. “Ele me chamou e disse:‘Abelardo, você tirou o advogado da família’. Eu res-pondi: ‘De maneira nenhuma, ele é que tem vocação’.‘Você acha?’. ‘Demais’... ‘Então tome conta dele’, ele fa-lou”, recorda Abelardo.Outro encontro artístico se tornava realidade anos

mais tarde. Depois da exposição de estreia, na Associa-ção dos Empregados do Comércio do Recife, e da cria-ção da Sociedade de ArteModerna do Recife (SAMR),lá estava Abelardo participando da fundação do Ate-lier Coletivo da SAMR, em 1952. “Pensei em fazer umcurso de iniciação às artes, conseguimos uma sala noLiceu de Artes e Ofícios e eu comecei a dar aulas gra-tuitas de artes plásticas”, continua o artista.Quando o grupo alcançou cerca de 20 integrantes,

foi preciso encontrar um novo local. Os artistas forampara a Rua da Soledade e depois para uma casa na RuaVelha. “Gilvan Samico, Wellington Virgolino, Wiltonde Souza, Ionaldo Andrade, Bernardo, Adão Pinheiro,Guita Charifker, Maria de Jesus, Celina Lima Verde,os irmãos Genilson e Cremilson Soares, Campelo Ne-to, José Cláudio, essa gente toda. Eles se transforma-ram em grandes artistas”, comenta Abelardo.Nesta época do Atelier Coletivo, foram criadas

obras de Abelardo da Hora que ainda apresentam acultura e a história de Pernambuco em espaços públi-cos do Recife. É o caso, por exemplo, d’Os cantadores,no Parque 13 de Maio, e d’O sertanejo, na Praça Eucli-des da Cunha (Derby). Uma delas, a Torre Cinética ede Iluminação, deveria estar na Praça da Torre, ondefoi construída em 1961. A peça, que se movimentavapela ação do vento, foi destruída.Mas a atuação de Abelardo da Hora permanece ain-

da em obras de outros artistas. Reflexo de um projetode lei sugerido por ele e aprovado na Câmara Munici-pal do Recife, que determina a colocação de obras dearte em construções com mais de mil metros quadra-dos. “Eu queria transformar o Recife em uma espéciede galeria de arte.” E conseguiu. (E.B.).

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Uma vida demilitância eensinamentos

Assista ao vídeo e veja outras obras de Abelardo daHora no www.jc.com.br/cultura e no blog Social1

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