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Revista Contexturas, n. 22, p. 220 - 236, 2014. ISSN: 0104-7485 220 ABRIGAR O INGLÊS NA HETEROGENEIDADE Andreia C. Alves de O. SILVA USP Universidade de São Paulo, São Paulo RESUMO Embora presente em toda aula de inglês da escola regular, a heterogeneidade é frequentemente considerada negativa para o avanço dos alunos. Discuto uma proposta que faz da diferença um facilitador para a aprendizagem e trago reflexões sobre o papel de uma língua estrangeira para a constituição híbrida dos sujeitos aprendizes. Palavras-chave: ensino; inglês; heterogeneidade ABSTRACT Despite being present in every English classes in regular schools, the heterogeneity is frequently considered negative to the development of students. I discuss a project that understands the difference as a facilitator and I bring reflections upon the role of a foreign language for the hybrid constitution of the learners. Key-words: learning; English; heterogeneity Introdução Começo esse texto com a pergunta: o que é aprender uma língua estrangeira? Muitos diriam que é a aquisição de um certo número de formas linguísticas que torna possível a comunicação do aprendiz com outros povos. No entanto, inicio minha reflexão afirmando que restringir o papel da língua

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ABRIGAR O INGLÊS NA HETEROGENEIDADE

Andreia C. Alves de O. SILVA

USP – Universidade de São Paulo, São Paulo

RESUMO

Embora presente em toda aula de inglês da escola regular, a heterogeneidade é

frequentemente considerada negativa para o avanço dos alunos. Discuto uma

proposta que faz da diferença um facilitador para a aprendizagem e trago reflexões

sobre o papel de uma língua estrangeira para a constituição híbrida dos sujeitos

aprendizes.

Palavras-chave: ensino; inglês; heterogeneidade

ABSTRACT

Despite being present in every English classes in regular schools, the heterogeneity is

frequently considered negative to the development of students. I discuss a project that

understands the difference as a facilitator and I bring reflections upon the role of a

foreign language for the hybrid constitution of the learners.

Key-words: learning; English; heterogeneity

Introdução

Começo esse texto com a pergunta: o que é aprender uma língua

estrangeira? Muitos diriam que é a aquisição de um certo número de formas

linguísticas que torna possível a comunicação do aprendiz com outros povos.

No entanto, inicio minha reflexão afirmando que restringir o papel da língua

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estrangeira (LE) para a comunicação de ideias é uma concepção simplista e

redutora de sua complexa função nos sujeitos.

A aprendizagem do inglês tem um papel formador importante para o

aluno na escola. Ela atua na imagem que o aprendiz tem de si mesmo e do

outro, na constituição híbrida do sujeito.

O início da aquisição de uma língua estrangeira de fato parte de

elementos essencialmente linguísticos para um fim ‘utilitarista’, no entanto,

com o passar do tempo, almeja-se que a aprendizagem dessa língua passe a

afetar a constituição do sujeito aprendiz. Esse sujeito entra em contato com

outras vozes, outra cultura, outra maneira de organizar o pensamento, outra

forma de ver o mundo e os outros. Assim, ensinar inglês na escola é também

provocar no aluno um abandono da visão homogênea do mundo, despertando

nele o olhar para a diferença, a heterogeneidade.

Essa diversidade encontrada no mundo é uma característica que

constitui o próprio sujeito. Na modernidade, quando o homem deixou de ser

um mero espectador da vontade divina, nasceu o individualismo e o poder do

sujeito frente a sua existência. No entanto, pensadores como Freud, Marx e

Foucault contribuíram para que na pós-modernidade essa autonomia e

centralidade do sujeito passasse a ser questionada. Nessa nova ordem social,

“o sujeito do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi

descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas,

fragmentadas, do sujeito pós-moderno”. HALL (2006:28)

Apesar dessa fragmentação do sujeito e da própria organização social

em que ele está inserido, é comum em nossa sociedade práticas sociais que

almejam uma homogeneidade ilusória que seja capaz de controlar o caos da

diferença que nos cerca. Coracini, em seu texto A escamoteação de

heterogeneidade (2003:251-268), analisa dizeres que circulam na escola sobre

a necessidade de respeito à diversidade e afirma que esses dizeres acabam

levando a diferença rumo à harmonia que busca igualar todos os homens. A

autora chamará esse aspecto de “nova maneira de dar conta da diversidade”.

...essa nova maneira de dar conta da 'diversidade', transformando o

caos da heterogeneidade, ingovernável, incontrolável, em algo

'gerenciável', sugere o prosseguimento a uma tendência que parece

caracterizar a cultura ocidental, qual seja a de buscar a

homogeneidade como fator simplificador da ação humana. (...)

CORACINI (2003:265)

Trago a seguir a descrição de uma sequência didática realizada na

disciplina de inglês, com alunos do sétimo ano, em uma instituição particular

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de ensino no Estado de São Paulo. A reflexão sobre heterogeneidade na pós-

modernidade justifica minha posição em considerar a diferença como ponto

de partida para o trabalho em sala de aula. Assim, busco me deslocar da

tendência de homogeneizar a diferença, entendida aqui como grande aliada

para o ensino de língua inglesa na escola.

Primeiras considerações metodológicas

Se a heterogeneidade é um aspecto constitutivo da sociedade e dos

próprios indivíduos, uma proposta de ensino precisa considerar que alunos

diferentes possuem formas e ritmos de aprendizados distintos. Não se pode

pensar em tarefas iguais que almejam alcançar objetivos únicos a todos.

A homogeneização, que não permite o fluir da heterogeneidade, não

contribui com o processo de aprendizagem de língua inglesa por limitar o

aprendizado à repetição de modelos impostos. Preso ao modelo, a metáfora do

outro, o aluno não tem a oportunidade de tornar-se sujeito na língua inglesa e

não constrói sua própria metáfora, a metáfora do sujeito. BRAGA (2008:04).

Em cursos de língua inglesa, é bastante frequente a tentativa de

divisão dos alunos em grupos de saberes homogêneos, comumente

classificados como iniciantes, intermediários, avançados. Nesse modelo de

homogeneização do ensino, é comum a concepção de que a aprendizagem de

um idioma é prejudicada quando alunos mais experientes dividem um mesmo

espaço didático com os menos experientes. No entanto, como dito

anteriormente, ao me deslocar dessa proposta, admito a heterogeneidade dos

grupos como um fator benéfico para os propósitos educacionais e, ao invés de

combatida, ela será pensada como um recurso potente na aprendizagem.

Procedimentos didáticos

Os alunos do sétimo ano possuem a carga horária de três horas

semanais de inglês. Duas dessas horas são destinadas a um curso regular de

língua inglesa e uma hora semanal é reservada para um curso chamado inglês

transversal. Nesse curso, a língua inglesa é o instrumento usado para

pesquisas e discussões sobre os temas transversais.

Em geral, os alunos possuem bagagens bastante diferenciadas em relação à

língua inglesa. Há alunos experientes e seguros na LE e outros tímidos e

apreensivos para se expressarem.

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O tema do curso era Direitos Humanos e o trabalho iniciou-se com

uma sondagem onde os alunos deveriam escrever informalmente o que

entendiam ser os “Direitos Humanos”.

É importante esclarecer que, embora a aula aconteça exclusivamente

na língua inglesa, para essa tarefa, o português poderia ser utilizado. Por se

tratar de uma sondagem cujo objetivo principal era investigar aspectos que

não eram propriamente inerentes à língua inglesa, o uso do inglês era

recomendado mas não obrigatório. Os alunos podiam optar pelo português se

assim preferissem.

Considerando todas as respostas recebidas, 92% delas estavam em

português e apenas 8% em inglês. Esse fato evidenciou que a língua

estrangeira não era um recurso confortável para os alunos expressarem seus

conhecimentos sobre o assunto destacado. Além disso, o conteúdo das

respostas também evidenciou concepções equivocadas e/ou incompletas sobre

o tema. Seguem algumas respostas:

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Considerando a heterogeneidade das salas, foram organizadas

intervenções didáticas apoiadas em três eixos distintos: tarefa, material e

agrupamento.

Havia o propósito de oferecer a todos os alunos da sala a mesma

tarefa, no entanto, para que isso fosse possível em uma sala heterogênea, foi

necessária a variação constante no material oferecido aos alunos e nos

agrupamentos feitos nas aulas.

Além disso, foi planejada uma variedade de propostas que exigiam

diferentes habilidades dos alunos. Havia atividades de compreensão oral, de

leitura, de produção oral e escrita.

Segue abaixo um resumo das propostas:

Tarefa 1: Os alunos foram agrupados em duplas semelhantes em relação à

experiência com o inglês. Cada dupla recebeu uma notícia de jornal (retirada

de fontes autênticas em língua inglesa) que descrevia um episódio em que os

direitos humanos haviam sido violados. Todos os alunos deveriam ler ao texto

e responder perguntas guiadas, iguais a todos (What happened? Who was

involved? Where did it happen? When was it?). Após a leitura, as duplas

compartilharam com a classe, em roda de conversa, sua notícia. Eles se

focavam nas perguntas recebidas. Para apoiar essa exposição da notícia, os

alunos produziram e utilizaram slides de Power Point.

Tarefa 2: Os alunos, divididos em duplas com saberes distintos em relação ao

inglês, receberam perguntas guiadas sobre a história dos direitos humanos.

Eles deveriam visitar o site das Nações Unidas em inglês (www.un.org) e

selecionar respostas para as perguntas. Depois, assistiram ao documentário:

The story of human rights (disponível em: www.humanrights.com) com o

intuito de coletar outros aspectos da história dos direitos humanos que não

encontraram no site. Após a finalização das atividades acima descritas, foi

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elaborado um texto coletivo com o grupo sobre a história dos direitos

humanos.

Tarefa 3: Foi lido, com toda a sala, o primeiro artigo da Declaração Universal

dos Direitos Humanos. Houve uma discussão dos procedimentos de leitura

necessários para a compreensão daquele tipo de texto (inferência de

significado por contexto, uso do dicionário, apoio nos cognatos...). Feito isso,

os alunos foram divididos em duplas semelhantes em relação à experiência

com a língua inglesa. Essas duplas receberam um ou mais artigos da

Declaração dos Direitos Humanos para lerem de forma autônoma. Cada

dupla, após ler seu(s) artigo(s), deveria pensar em uma situação do dia-a-dia

em que esse artigo fosse violado ou respeitado. Essa situação deveria ser

dramatizada, em inglês, para os demais colegas da sala.

É importante ressaltar aqui que os artigos mais curtos e com vocabulário

simples foram distribuídos para as duplas de alunos menos experientes. Já os

alunos mais experientes receberam artigos mais longos, com temáticas mais

complexas. (ver anexo 1)

Tarefa 4: Após as dramatizações e discussões de todos os artigos da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, os alunos, individualmente,

deveriam escolher um ou mais artigos para representarem com um cartoon.

Seguem alguns trabalhos1:

1Uma seleção completa dos cartoons está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=pJAcJE1oAHQ

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Resumindo as propostas acima de acordo com as habilidades

trabalhadas e com o eixo tarefa, material e agrupamento, tivemos:

Avaliação dos resultados

Após a finalização de todas as tarefas acima descritas, a mesma

proposta do início do curso foi feita aos alunos. Foi pedido a todos que

escrevessem, informalmente, o que entendiam por Direitos Humanos.

A comparação das respostas dos mesmos alunos no início e no final

da sequência didática possibilitou as seguintes conclusões:

A sequência didática ampliou conhecimento dos alunos sobre Direitos

Humanos

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Aluno 1 – antes

Aluno 1 – depois

Alunos 2 – antes

Alunos 2 – depois

Alunos 3 – antes

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Aluno 3 – depois

Os alunos se tornaram mais autônomos e confiantes para usarem o

inglês

No final da sequência didática sobre a apresentação dos direitos

humanos, outra atividade diagnóstica foi solicitada aos alunos. Novamente

eles foram convidados a escreverem, de maneira livre, o que entendiam sobre

Direitos Humanos. Mais uma vez a língua inglesa foi recomendada mas não

imposta.

Se considerarmos que na primeira sondagem a maioria dos alunos

optou pelo português, ao final da sequência didática, nota-se avanços quando

observa-se que os alunos optam, em sua totalidade, pelo inglês.

Destaco aqui uma questão de postura e autoestima perante o inglês já que

muitos deles não têm domínio formal da língua e, ainda assim, optam pela

escrita na língua estrangeira. Pode-se dizer que houve o abandono do local de

conforto (língua portuguesa) para inserção no desafio (língua estrangeira).

Um fator que acredito ter contribuído para essa mudança foi o

propósito de oferecer a mesma tarefa a todos os alunos e proporcionar

condições para que as mesmas fossem realizadas. Isso parece ter auxiliado os

alunos mais inseguros a se enxergarem como capacitados para alcançarem

resultados semelhantes aos alunos mais experientes. Com isso, houve uma

visão positiva de todo o grupo sobre suas capacidades na LE.

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Os avanços ocorreram para todos

Pode-se dizer que os avanços foram mais evidentes para os alunos

menos experientes e inseguros com a língua inglesa, afinal, eles passaram a

usar o inglês para se expressarem em sala. No entanto, é preciso ressaltar que

os alunos mais experientes também progrediram. Esses indivíduos, que desde

o início da sequência já se arriscavam a discutir o tema Direitos Humanos na

língua estrangeira, tiveram seus maiores avanços nos conhecimentos sobre o

tema e em aspectos linguísticos da língua - como ampliação de vocabulário

específico. Seguem abaixo alguns exemplos:

Aluno 1 – antes

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Aluno 1 – depois

Aluno 2 – antes

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Aluno 2 – depois

Os alunos adquiriram uma própria voz na língua do ‘outro’

Quando oferecemos aos alunos contato diário e constante com uma

língua estrangeira, é preciso cuidar para que eles encontrem uma própria voz

em uma língua que é do “outro”. Em sala de aula, é necessário dar espaço

para que os alunos possam se identificar nessa língua um tanto distante e

desconhecida, onde identificar-se “significa dar abrigo a um destino

desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar” BAUMAN

(2005:36).

Pensando nesse ‘acolhimento’ da língua estrangeira, retomo a última

tarefa da sequência didática que foi a produção de um cartoon para representar

um artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os cartoons, que a

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princípio poderiam conter apenas imagens, chamaram a atenção pelo fato de

também apresentarem uma grande quantidade de mensagens escritas em

inglês.

Ao observar esse uso livre da LE dialogando com uma linguagem que

é tão particular do sujeito (o desenho), percebe-se que o inglês não está sendo

usado para uma mera comunicação de ideias. Ao invés disso, pode-se dizer

que a língua estrangeira está presente como uma outra maneira de organizar as

ideias e o pensamento, uma outra voz que não parece ser distante do aluno

mas particular e próxima.

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Conclusões

Ao partir do pressuposto que aprender uma língua estrangeira vai

muito além da aquisição de estruturas linguísticas, defendi a complexidade

que o ensino de inglês tem no ambiente escolar. Além disso, compreender o

sujeito pós-moderno com sua identidade fragmentada em um mundo também

não uniforme me afastou da proposta de homogeneizar a diferença dos

aprendizes e me colocou frente ao desafio de encontrar uma forma

harmoniosa e produtiva de olhar para a heterogeneidade dos grupos buscando

benefícios pedagógicos na diferença.

Esses benefícios, conforme dito anteriormente, não poderiam se

restringir a ampliação das capacidades linguísticas dos aprendizes em inglês.

Eu buscava, com o trabalho com o tema Direitos Humanos, a aproximação

dos alunos com o papel formador do inglês na escola, ampliando

conhecimento específico dos estudantes e colocando-os em contato com

outras maneiras de se enxergarem no mundo e se olharem enquanto falantes

de uma língua que não deveria ser apenas do “outro”.

Os procedimentos didáticos apresentados neste trabalho mostraram

que os alunos, apesar de diferentes, caminharam juntos na temática proposta.

Esse caminhar aconteceu com desafios e trajetórias distintos, apoiados em

materiais e agrupamentos também diferenciados. Houve a todos inúmeras

propostas em inglês (textos autênticos, vídeos, aulas) e constantes

oportunidades para a expressão na língua estrangeira. O resultado foi que, ao

final da sequência didática, havia sido criado um local confortável entre os

alunos, o tema Direitos Humanos e a língua inglesa. Todos se sentiam

autorizados e confiantes para comunicarem os saberes sobre o tema Direitos

Humanos e faziam isso, com muita tranquilidade, em inglês.

Os cartoons e a atividade de sondagem do final do semestre são

instrumentos que possibilitaram a constatação de que os resultados alcançados

no final da sequência didática não foram iguais. Os alunos mais experientes

terminaram a sequência fazendo uso de vocabulários complexos e

característicos dos Direitos Humanos. Os menos experientes, contudo,

avançaram em alguns aspectos linguísticos simples ou mesmo avançaram por

ousarem usar o inglês para expressar suas ideias. No entanto, todos os alunos,

ao optarem pelo uso espontâneo do inglês, demonstram estar acolhendo a

língua inglesa em si; é como se pudéssemos visualizar o sujeito hospedando

um pouquinho desse outro, estrangeiro, em sua própria subjetividade.

Saber uma língua estrangeira é permitir a constituição de uma

identidade híbrida, heterogênea, em constante movimento. Identidade que só

poderá trazer benefícios para uma sociedade como a nossa, que precisa se

afirmar como povo que pensa e que é capaz de encontrar soluções ‘criativas’

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para seus problemas complexos... Se pensarmos que não se cria do nada, mas

da articulação singular do que já existe à nossa disposição, então, criar

significa construir o novo a partir do velho, do já-dito. CORACINI

(2007:159)

Assim, diante dos progressos linguísticos heterogêneos e uma

aproximação identitária dos alunos com o inglês, acredito ter contribuído para

fazer do ensino da LE um instrumento capaz de suscitar transformações

internas nos alunos e não apenas acrescentar uma nova variedade de estruturas

e vocábulo da língua. Dessa forma, essa língua estrangeira, língua do outro,

parece ter começado a adentrar um espaço íntimo do sujeito e ganhado um

status de ser também a minha língua.

Bibliografia

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos

Aberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BRAGA, M.D.W. A prevenção de metaforização no discurso pedagógico

instrucional para o ensino de língua inglesa. 2008. Dissertação (mestrado).

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São

Paulo, 2008.

CORACINI, M. J. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade:

línguas (materna e estrangeira), plurilingüismo e tradução. Campinas, SP:

Mercado das Letras, 2007.

__________ . A escamoteação da heterogeneidade. In: CORACINI, M. J

(org). O desejo da teoria e a contingência da prática – discurso sobre /na sala

de aula. Campinas, Mercado de Letras, 2003. (pp 251- 268)

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da

Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.

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REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do

exílio. Trad. Silvana Serrani. In: SIGNORINI, I. (org.) Língua(gem) e

identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas:

Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998. p. 213-230.

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ROSA, Ismael Ferreira. Língua, sujeito e identidade: algumas

problematizações sobre a (des)constituição dos sujeitos-aprendentes no

processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira. v. 7, n. 1

(jan./jun. 2013) - ISSN 1980-5799, 2013.

SERRANI-INFANTE, S. Identidade e segundas línguas: as identificações no

discurso. In: SIGNORINI, I. (org.) Língua(gem) e identidade: elementos para

uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo:

Fapesp, 1998. p. 231-264.

Anexos

Anexo 1:

Exemplo de artigos distribuídos para alunos menos experientes:

Article 3: Everyone has the right to life, liberty and security of person.

Article 6: Everyone has the right to recognition everywhere as a person before

the law.

Article 24: Everyone has the right to rest and leisure, including reasonable

limitation of working hours and periodic holidays with pay.

Exemplo de artigos distribuídos para alunos mais experientes:

Article 11

(1) Everyone charged with a penal offence has the right to be presumed

innocent until proved guilty according to law in a public trial at which he has

had all the guarantees necessary for his defence.

(2) No one shall be held guilty of any penal offence on account of any act or

omission which did not constitute a penal offence, under national or

international law, at the time when it was committed. Nor shall a heavier

penalty be imposed than the one that was applicable at the time the penal

offence was committed.

Article 16

(1) Men and women of full age, without any limitation due to race, nationality

or religion, have the right to marry and to found a family. They are entitled to

equal rights as to marriage, during marriage and at its dissolution.

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(2) Marriage shall be entered into only with the free and full consent of the

intending spouses.

(3) The family is the natural and fundamental group unit of society and is

entitled to protection by society and the State.