Ação de alimentos: uma disputa judicial pela atribuição de significados a paternidade

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 Ação de alimentos: uma disputa judicial pela atribuição de significados a paternidade Tatiana Santos Perrone 1 (Universidade de São Paulo)  No presente trabalho pretendo discutir a proficuidade da abordagem de ações judiciais, especificamen te a ação de alimentos, pela ótica do conflito, tendo em vista que o campo social é um campo de batalha pela atribuição de significados aos atos e eventos. Marques, Comeford e Chaves (2007), no artigo “Traições, intrigas, fofocas, vingança: notas para uma abordagem etnográfica do conflito”, consideram o conflito um instrumento metodológico importante e  procuram abordá-lo na sua positividade e não como episódio disruptivo. O conflito não é visto como parte de um processo onde a ordem é finalmente restaurada, e sim como inerente à vida social e como fluxo. Os autores também colocam que o conflito pode sofrer variações ao longo do tempo, quanto à sua int ens ida de, sua pe rtin ênc ia, su as mo tiv açõ es, assim como ao uni verso de pessoas diretamente atingidas. Outra característica do conflito é que “ Todo o conflito é público,  publicamente vivido e conduzido na sua evolução ” (Marques, Comeford e Chaves, 2007,  p.35). Os autores colocam que todo o conflito tem seus espectros de publicidade. Se ele não for presenciado, será narrado, contado pelos envolvidos ou por aqueles que o presenciaram. Os autores nos alertam que o caráter público não pode ser dissociado da forma assumida pelos eventos, pois os que se enfrentam sabem que o confronto será narrado, interpretado, discutido e isso é parte constitutiva do próprio enfrentamento. O olhar do outro é fundamental nesse  processo onde são produzidas reputações, sendo realizado um esforço para que prevaleça certa imagem de si para o outro, em inevitável tensão com imagens concorrentes, sem que a ambigüidade gerada por essa tensão se desfaça necessariamente. “Visto deste ângulo analítico, o conflito perde a conotação de anomia, revelando-se como instancia constitutiva, capaz de criar realidades ao definir e redefinir sujeitos morais, configurar identidades, expressar e redesenhar fronteiras sociais. Tudo isso  perante um público que é ativo, porque dotado de contextura sociológica, atuante 1  Mes tra nda do Pro gra ma de Pós-gr adu açã o em Ant rop olo gia Social da Uni ver sid ade de São Paulo (PPGAS/USP), onde desenvolve o Projeto de Mestrado intitulado  Ação de Alimentos: mulher es de baixa renda e o acesso à justiça, com o apoio da FAPESP.

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No presente trabalho pretendo discutir a proficuidade da abordagem de ações judiciais, especificamente a ação de alimentos, pela ótica do conflito, tendo em vista que o campo social é um campo de batalha pela atribuição de significados aos atos e eventos. Marques, Comeford e Chaves (2007), no artigo “Traições, intrigas, fofocas, vingança: notas para uma abordagem etnográfica do conflito”, consideram o conflito um instrumento metodológico importante e procuram abordá-lo na sua positividade e não como episódio disruptivo. O conflito não é visto como parte de um processo onde a ordem é finalmente restaurada, e sim como inerente à vida social e como fluxo. (...)Diversas formas de conflitos ingressam todos os dias no Judiciário sob a forma de ações judiciais. Nas Varas de Famílias entram especificamente aqueles que envolvem disputas dentro do grupo familiar, tais como: divórcio, separação, guarda de menor, alimentos, inventário, arrolamento, etc. O foco desse trabalho é a ação de alimentos, pois desenvolvo minha pesquisa de mestrado com as mulheres que entram com esse tipo de ação em algumas Varas de Família e Sucessões da cidade de São Paulo.

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Ação de alimentos: uma disputa judicial pela atribuição de

significados a paternidade

Tatiana Santos Perrone1

(Universidade de São Paulo)

  No presente trabalho pretendo discutir a proficuidade da abordagem de ações judiciais,

especificamente a ação de alimentos, pela ótica do conflito, tendo em vista que o campo social

é um campo de batalha pela atribuição de significados aos atos e eventos. Marques, Comeford

e Chaves (2007), no artigo “Traições, intrigas, fofocas, vingança: notas para uma abordagem

etnográfica do conflito”, consideram o conflito um instrumento metodológico importante e

 procuram abordá-lo na sua positividade e não como episódio disruptivo. O conflito não é

visto como parte de um processo onde a ordem é finalmente restaurada, e sim como inerente à

vida social e como fluxo.

Os autores também colocam que o conflito pode sofrer variações ao longo do tempo, quanto à

sua intensidade, sua pertinência, suas motivações, assim como ao universo de pessoas

diretamente atingidas. Outra característica do conflito é que “Todo o conflito é público,

 publicamente vivido e conduzido na sua evolução” (Marques, Comeford e Chaves, 2007,

 p.35).  Os autores colocam que todo o conflito tem seus espectros de publicidade. Se ele não

for presenciado, será narrado, contado pelos envolvidos ou por aqueles que o presenciaram.

Os autores nos alertam que o caráter público não pode ser dissociado da forma assumida pelos

eventos, pois os que se enfrentam sabem que o confronto será narrado, interpretado, discutido

e isso é parte constitutiva do próprio enfrentamento. O olhar do outro é fundamental nesse

 processo onde são produzidas reputações, sendo realizado um esforço para que prevaleça

certa imagem de si para o outro, em inevitável tensão com imagens concorrentes, sem que a

ambigüidade gerada por essa tensão se desfaça necessariamente.

“Visto deste ângulo analítico, o conflito perde a conotação de anomia, revelando-se

como instancia constitutiva, capaz de criar realidades ao definir e redefinir sujeitos

morais, configurar identidades, expressar e redesenhar fronteiras sociais. Tudo isso

 perante um público que é ativo, porque dotado de contextura sociológica, atuante1

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo(PPGAS/USP), onde desenvolve o Projeto de Mestrado intitulado Ação de Alimentos: mulheres de baixa renda eo acesso à justiça, com o apoio da FAPESP.

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no processo de negociação de imagens, sentidos e reputações que o conflito enseja.

(...) Nesse sentido, o conflito assume uma dimensão dramática que é tanto

ritualmente vivida quanto ritualmente narrada.” (Marques, Comeford e Chaves,

2007, p.39)

Outra questão colocada por Marques, Comeford e Chaves (2007) é que há uma disputa pelo

sentido atribuído a atos e eventos que deverá prevalecer. Há algo mais em jogo do que a

simples ocorrência ou não da infração. O cumprimento ou infração de uma norma legal ou

religiosa são avaliados e discutidos segundo seus significados, antes que em relação a algum

código positivo ou de condutas. Cabe decidir, impor, persuadir sobre a natureza do fato, as

motivações que o geraram, suas causas e significados, mais do que recorrer à aplicação de

uma regra. Os autores observaram esforços ou disputas apoiadas em argumentos que buscamse fundamentar em provas, evidências ou justificativas persuasivas dos significados

 pretendidos e, logo, das atitudes a serem tomadas mais ou menos independentemente da

observância de um regulamento.

A ação de alimentos: um conflito publicamente vivido

Diversas formas de conflitos ingressam todos os dias no Judiciário sob a forma de ações

  judiciais. Nas Varas de Famílias entram especificamente aqueles que envolvem disputasdentro do grupo familiar, tais como: divórcio, separação, guarda de menor, alimentos,

inventário, arrolamento, etc. O foco desse trabalho é a ação de alimentos, pois desenvolvo

minha pesquisa de mestrado com as mulheres que entram com esse tipo de ação em algumas

Varas de Família e Sucessões da cidade de São Paulo.

A ação judicial de alimentos é expressão da busca por uma resolução judicial de um conflito

familiar, na maioria das vezes entre o pai e a mãe de uma criança. O público que procura a

resolução judicial é composto majoritariamente por mulheres. Essa ação dificilmente traz uma

resolução definitiva para o conflito, principalmente se levarmos em conta o número de ações

de execução de alimentos2. Do total de ações distribuídas no ano de 2007 no Fórum de Santo

Amaro, cerca de 30% foram ações de alimentos e 10% de ações de execução de alimentos.

Desse modo, podemos dizer que pelo menos um terço das ações de alimentos gera ações de

execução. Temos também que considerar que nem todas as representantes legais que não

2 Entra-se com uma ação de execução de alimentos após o não pagamento de pelo menos três parcelas do valor mensal estipulado na ação de alimentos.

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estão recebendo o valor mensal estipulado judicialmente entram com uma ação de execução

de alimentos.

O conflito que gera a ação de alimentos é anterior a essa ação, podendo ser agravado ou

minimizado durante o seu curso. Parece haver algo em comum nas decisões de se entrar com

uma ação de alimentos, que envolve uma questão mal resolvida anterior, um conflito latente,

que pode voltar a emergir a qualquer momento se o equilíbrio for novamente rompido. O

desequilíbrio pode ser causado por uma agressão, uma ameaça de retirar a guarda, o não

cumprimento do acordo firmado entre os pais, etc. Silvia 3, entrevistada4 no dia 02/07/08,

explica por que resolveu entrar com uma ação de alimentos:

“Só vim mesmo porque ele falou que a filha não era dele. Se não, dava para levar.

Mesmo ajudando pouco, eu entendia. Um mês sim... um mês não... não via o caso de

 procurar a lei. Só vim mesmo porque ele falou que a filha não era dele. Tem aquele

ditado:’Quem não deve, não teme’.”

São várias as possibilidades de se causar um desequilíbrio, sendo procurada a justiça para que

seja estabelecida uma nova ordem nas relações. No exemplo acima citado, Silvia recebia uma

 pensão incerta, mas ele sempre ajudava. Para ela, o valor e dia incertos para receber a pensão

não era motivo para entrar com a ação judicial. Porém, ele ter falado que a filha não era delemotivou-a a buscar a justiça como uma forma de provar que a filha é sim dele, pois se não

fosse ela teria medo de buscar a justiça. Assim, a ação judicial surge como uma forma de

legitimar as relações familiares. No caso de Silvia, o pagamento judicial da pensão significa

um reconhecimento legal da paternidade.

Há na ação de alimentos uma busca pela ordenação do papel do pai, uma busca pelo

estabelecimento judicial dos seus deveres. A tabela abaixo resume as respostas dadas pelas

entrevistadas sobre os motivos que as levaram a entrar com uma ação judicial de alimentos.

Como as entrevistas foram abertas, as respostas foram por mim sistematizadas e resumidas.

Cabe salientar que das 35 mulheres entrevistadas, 31 falaram sobre a motivação e 4, devido ao

 pouco tempo de entrevista, não chegaram a abordar esse assunto. Outra questão é sobre o

número de respostas corresponder a 37, isso significa que das 31 mulheres, 6 delas falaram

sobre dois motivos principais, totalizando 37 motivações.3 Os nomes usados são fictícios em respeito ao sigilo exigido pelo artigo 155 do Código de Processo Civil.4

As entrevistas estão sendo realizadas com mulheres que deram entrada com ações de alimentos através da LeiEspecial nº5478/68, a qual permite que se dê entrada com o pedido de alimentos diretamente no Fórum, sem precisar da intermediação de um advogado.

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Motivo da ação

Respostas Quantidade Porcentagem

Regularização do valor 10 27,03%

Precisa do dinheiro 6 16,22%

Respostas que envolvem questões ligadas aopapel do pai/paternidade 13 35,14%

Direito dos filhos 2 5,41%

Resoluções de outras questões 3 8,11%

Motivo ligado à violência sofrida 2 5,41%

Pedido do filho 1 2,70%

Total 37 100,00%

 No presente trabalho abordarei as respostas que envolveram questões ligadas ao papel do pai

e que correspondem a 35%. Procurarei mostrar que na ação de alimentos está em jogo a

discussão dos direitos e deveres de um pai. O papel do pai vai ser reconstruído durante o

contato dessas mulheres com o judiciário. A pensão que antes podia ser negociada e deixar de

ser paga, vira uma obrigação a partir da sentença, sendo que o não pagamento pode gerar a

 prisão do devedor, caso a representante legal deseje. Assim, com a estipulação judicial de um

valor mensal de pensão, o sustento material do filho passa a ser uma das obrigações paternas.

Regiane, uma das mulheres entrevistadas no dia 02/07/08, falou que foi à “justiça” para o pai

ser mais responsável, porque “ Pai não é só fazer não. Pai também tem que criar. Depois que

 pai larga mãe, mãe vira pai e mãe. Mas pai também tem que ter responsabilidade, não pode

 fazer filho por aí e cair no mundo. Eu agradeço muito que tenham inventado essa lei, pois é a

única que funciona aqui no Brasil ”. Ela considera que ter “responsabilidade de pai” é dar 

sustento aos filhos e visitá-los, pois é no contato com a criança que ele pode dar a atenção e o

carinho que ela precisa. Assim, o sustento material, a educação e o afeto estão ligados à idéiaque essas mulheres tem sobre o que é ser pai.

Simone, entrevistada no dia 05/06/08, falou que a ação de alimentos é muito importante para

as filhas delas, pois pagar a pensão é uma forma delas saberem que têm um pai, já que ele não

visita as filhas. Assim, o pai estará presente na vida das filhas, não fisicamente, mas ajudando

a criá-las através da pensão alimentícia paga mensalmente.

Andressa, entrevistada no dia 05/06/08, ao falar dos motivos que a levou a entrar com o pedido de pensão alimentícia, diz:

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“eu não quero só a pensão, eu quero que o meu filho tenha um pai, que cresça

 sabendo que tem um pai, pois um dia eu morro e ele tem com quem contar. Acho

isso importante, por isso estou aqui. Quando chegar lá em cima, vou falar que

quero que ele fique de quinze em quinze dias com o menino, que dê amor, carinho e

afeto. Saber que tem um pai! Ele precisa de um espelho, não precisa morar junto. O

 pai dos outros cumpre o papel dele e os filhos querem ir ver o pai. Eu acho isso

muito importante. (...) Tem muita mulher que fala que prefere trabalhar e cuidar 

dos filhos sozinha. Eu não acho isso certo, se não eles se acostumam a colocar os

 filhos no mundo e deixar para os outros criarem.”

 Nesse depoimento, ela coloca que está em busca não somente de um valor, mas de um pai. O

que significa dar sustento material, afeto e ser presente na vida do filho para que ele tenha um“espelho”. A visita está intimamente ligada ao que elas entendem por ser pai, ou seja, estar 

 presente na vida do filho. E os dois depoimentos descritos mostram a importância de se entrar 

com a ação como uma forma do pai ter que arcar com suas “responsabilidades”, para que eles

não se acostumem a ter filhos e deixar só para as mães os criarem. A ação servirá, aos olhos

dessas mulheres, como uma forma de educação ao determinar responsabilidades paternas.

Podemos dizer que no âmbito do judiciário há uma disputa pelo significado acima da

aplicação de uma regra, e a ação de alimentos ilustra bem essa disputa. Algumas mulheres que

entram com ação de alimentos ao serem interrogadas pelos motivos que as levaram a entrar 

com esse tipo de ação não colocam o direito de receber pensão alimentícia como a principal

motivação, mas sim a busca por um pai como principal razão. 35% das mulheres entrevistadas

querem que o pai dos seus filhos cumpra o seu papel, e o pagamento de pensão representa um

dos deveres da figura paterna. Outro dever está ligado à educação e por isso, muitas vezes,

durante as audiências de alimentos, após o acordo sobre o valor a ser pago, vem o

questionamento sobre as visitas. Estar presente na vida dos filhos parece ser algo tão

importante quanto o pagamento da pensão, algumas indo procurar a justiça somente após o

 pai parar de visitar. Se não está presente na vida dos filhos, que pelo menos pague o valor 

mensal da pensão, esse parece ser um dos recados dessas mulheres.

Zarias (2008) coloca que a “força do processo”, ou o simbolismo que ele representa na vida

das pessoas, faz da justiça civil um espaço de exercício do poder pelas mulheres, tal como

demonstrou Pasinato (2004) nos casos de violência contra mulher. Zarias acrescenta que issose dá tanto na separação quanto no divórcio, mas, principalmente, nos processos de alimentos.

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 Na ação de alimentos há uma disputa para estabelecer quais são os direitos e deveres de pais e

mães. Mulheres e homens jogam, cada qual com vários vetores de poder durante a ação. Ao

entrarem com uma ação na justiça, mulheres geralmente exercem o poder de fazer os homens

arcarem com suas responsabilidades de pai. Há um poder em jogo, e esse poder é entendido

nos termos colocados por Foucault (1979):

“O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só

  funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de

alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou bem. O poder só funciona e se

exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em

  posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação, nunca são alvos inertes e

consentidos do poder, são sempre centros de transmissão.” (p. 183).

O que está contido nessa definição é a idéia de que o poder se produz e reproduz em rede,

numa trama em que os sujeitos não são apenas receptáculos de seus efeitos, mas também

agentes de sua propagação. Assim, as relações de gênero podem ser entendidas como uma

forma de circulação do poder, uma relação dinâmica e não fixa. Geralmente, nessa trama,

mulheres exercem e também sofrem a ação do poder, assim como os homens.

O conceito relacional de gênero e o referencial foucaultiano sobre relações de poder sãousados por Wânia P. Izumino (2003 e 2004) ao falar da violência contra mulher no Brasil. A

autora define as mulheres que buscam o sistema de justiça como sujeitos exercendo relações

de poder que procuram definir os limites de intervenção no seu corpo, sexualidade e

liberdade. A decisão de procurar a delegacia e o uso da capacidade de dar continuidade ou

interromper a ação judicial, gerada pela Lei 9099/95, são traduzidos pela autora como formas

de exercício de poder pelas mulheres que não pactuam com o modelo de vítimas passivas da

violência. A autora salienta que o acesso à Justiça para essas mulheres não representou apenasuma ampliação de seus direitos de cidadania, mas também uma ampliação de seu espaço de

negociação e uma possibilidade de publicização da violência.

Estar exercendo um poder ao entrar com ação de alimentos aparece muito claramente na fala

de Andressa quando ela coloca “Tem muita mulher que fala que prefere trabalhar e cuidar 

dos filhos sozinha. Eu não acho isso certo, se não eles se acostumam a colocar os filhos no

mundo e deixar para os outros criarem.”. Ela vê na ação de alimentos uma possibilidade de

educar esses homens que saem fazendo filhos, mas que não ajudam a criá-los. É uma forma

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de dividir a responsabilidade na criação da criança, uma forma de fazer a criança ter pai e

mãe.

O valor da pensão parece algo de uma relevância inferior frente à possibilidade da criança ter 

um pai. Um fato observado durante o tempo que fui escrevente e atendi as mulheres que

entram com ação de alimentos é que, ao preencherem o requerimento de pensão alimentícia, o

campo “valor da pensão” era deixado em branco pela maioria das mulheres. Muitas não

  preenchem o valor que desejam receber de pensão e, ao serem informadas sobre a

obrigatoriedade do preenchimento, falam que achavam que isso seria conversado e demoram

um tempo para conseguirem preencher esse campo. Essa demora indica que elas não tinham

em mente um valor preciso que gostariam de receber, e que, para algumas mulheres, o valor 

não é o mais importante em uma ação de alimentos.

Desse modo, o processo parece ter uma função pedagógica: educar o pai a ser pai, ou seja,

ensiná-lo que é seu dever sustentar e educar o filho. E é o poder de educar esses pais que elas

 parecem exercer num processo judicial de alimentos.

Entrar com uma ação de alimentos significa deter o poder de decidir quando um conflito

entrará na Justiça. As mulheres são as que mais exercem esse poder, sendo visivelmente a

maioria das representantes legais nas ações de alimentos. Zarias (2008) mostra que não só naação de alimentos as mulheres são as protagonistas, e sim nos processos das Varas de Família

e Sucessões como um todo, seja como autoras ou representantes legais de seus filhos. Conclui

que a justiça civil é um espaço no qual as mulheres exercem seu poder quando se trata da

resolução de conflitos familiares.

São as mulheres que entram com a maioria dos processos nas Varas de Família, exercendo

assim o poder de decidir quais conflitos serão resolvidos judicialmente. Porém, o poder é algo

que circula e ser autora ou representante de um processo não indica que será ela que

determinará os rumos do processo. A audiência de conciliação é um espaço de negociação.

 Nesse espaço percebemos o quanto o conflito é público e publicamente vivido, sendo o olhar 

do outro fundamental no decorrer do processo. Durante as audiências de alimentos, mulheres

e homens terão sua identidade traçada pelos atores envolvidos de acordo com as suas falas,

suas roupas, seus gestos. Os homens tentam mostrar que se pudessem ajudariam mais, mas a

situação está difícil. As mulheres, por exemplo, colocam que elas se preocupam com a

criança, que fazem a parte delas, mas que o pai do seu filho não quer saber dele. O tom que se

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usa, a postura que se tem dentro de uma sala de audiência, tudo contribui para que o mediador 

tome esse ou aquele partido. Em uma conversa informal com um Juiz, ele declarou que

observa a roupa das partes para concluir qual é a condição do pai e se ele está sendo “sacana”

ou não. Colocou também que não é só a roupa que influi, mas também a postura, a profissão e

o desenrolar da audiência. Sabendo disso, as partes também pensam no que vestir 5.

O posicionamento do mediador a favor da mãe ou do pai é fundamental para o desenrolar da

audiência, pois isso determinará quais informações serão fornecidas, informações sobre o

andamento do processo e direitos da parte e que são cruciais na hora de se aceitar ou não o

acordo proposto. Como na maioria das vezes as partes estão desacompanhadas de advogados,

são o mediador e escrevente as pessoas que mais detêm o saber dentro do espaço da

audiência.

A seguir transcrevo uma audiência para melhor exemplificar alguns dos argumentos

utilizados, o espaço que as partes possuem para falarem de seus conflitos e entender como a

figura do pai é construída em relação à figura materna. Dessa audiência participaram o

requerido, que é o pai da criança6; a representante legal do menor, que em todos os casos

observados era a mãe; o conciliador, que pode ser um Juiz; o escrevente; e eventualmente um

advogado, quando o requerente vier acompanhado de um.

 Audiência7 : 15 de setembro de 2008

 A conciliadora e a advogada se diferenciam das partes pela sua forma de vestir e de falar. A

conciliadora veste um terninho verde musgo, com uma blusa de gola e uma bota marrom. Já

a advogada está com um longo casaco de lã bege, salto alto, calça e camisa social. Ambas

estão bem vestidas e maquiadas. As partes são duas pessoas simples. Percebemos isso pela

maneira de falar e se vestir. Adriana está vestindo um blazer preto, calça jeans e tênis. Os

5  No período em que trabalhei no Tribunal de Justiça de São Paulo como escrevente, um homem convocado parauma audiência criminal veio de bermuda. A fiscalização ligou para a Vara e perguntou se ele poderia subir, jáque não é permitida a entrada de homens de bermuda no Fórum. O Juiz autorizou a entrada. O homem, ao ser interrogado pelo Juiz sobre o uso da bermuda, respondeu que veio de bermuda para não poder entrar no Fórum eassim evitar participar da audiência.6 Nas ações de alimentos requeridas diretamente no Fórum, mais conhecidos como alimentos de balcão, a partecontrária, ou o(a) requerido(a) será sempre um dois pais do menor. Aqui coloquei como o pai sendo orequerente, pois só observei audiências que o requerido era sempre um homem, nunca uma mulher. Há a possibilidade de se acionar os avós, porém esse tipo de acionamento só se dá através de advogado, como me

explicou uma das escreventes que trabalha no Fórum de Santo Amaro.7 Essa audiência foi longa, durou cerca de 30 minutos. Ela foge um pouco do padrão, pois as audiências duramde 5 a 15 minutos.

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cabelos alisados estão presos em um rabo de cavalo. Cleber está com casaco de couro preto,

 jeans e tênis.

 A representante legal da menor sentou-se ao lado da conciliadora, à sua frente sentou-se o

requerido. Ele veio acompanhado de advogada, a qual se sentou ao seu lado. A conciliadora

  ficou numa posição de advogada. Os conciliadores, normalmente sentam-se na ponta,

 ficando, assim, teoricamente em uma posição neutra.

 Depois de todos devidamente acomodados, a conciliadora inicia a audiência e pergunta se

eles só têm uma filha. Adriana explica que eles têm duas filhas, uma de 13 e outra que

completou 18 em setembro, e fala que não deixaram ela entrar com o processo representando

as duas, pois a filha maior de idade não poderia receber pensão. A conciliadora explica que

mudou a lei e que a filha de 18 anos, enquanto estudar, tem direito de receber. Em seguida

ela perguntou se ele ajuda com alguma coisa.

 M - Ele ajuda de vez em nunca e ele não vê as meninas.

 Adv- Vamos fazer acordo só em relação à Fernanda.

C - Aqui é um setor de conciliação para tentar um acordo. Se não houver concordância, vocês

 podem conversar com o juiz. Se quiser, faz acordo. Se não, não. Os provisórios estão em

meio salário mínimo. Adv- Ele tem um boteco.

C - Você concorda com o valor?- dirigindo-se a Cleber.

 P - Não.

 Adv- 25% do salário mínimo. Como o trabalho é autônomo, ele não tem certeza do ganho.

C - A senhora conhece o boteco? Tem noção do faturamento? Você acha que é uns R$500,00?

 – pergunta a Alessandra.

 M - Acho que sim.C - Eu acho muito pouco. Ela que vai decidir. R$200,00 seria o ideal. Como o juiz já fixou.

 P - Não adianta me comprometer e não poder pagar!

C - Ele já tem que estar pagando. – fala para a advogada

Conciliadora começa a procurar a data de citação, pois é a partir dessa data que o

requerido passa a ter que pagar mensalmente o valor dos alimentos provisórios fixados pelo

 Juiz no dia do pedido de alimentos.

 Diante de uma proposta da advogada de pagar um determinado valor e depois de três mesesaumentar, a mãe fala:

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 M - R$150,00 eu aceito. Eu deveria ter advogado, assim como ele8.

 Advogada explica que como ele veio acompanhado, a conciliadora está fazendo o papel de

advogada, e realmente parecia ser isso o que estava acontecendo.

C - Você aceita isso, e depois entra com o pedido de pensão para a outra filha. – aconselha

 M - Eu ganho R$500,00 para sustentar as minhas duas filhas.

C - São raros os homens que são pai e mãe. Mulher é mulher.

 Adv.- Então vamos deixar esse valor e depois ela entra para a outra filha.

C - Eu acho melhor ele aceitar isso para as duas.

 E - Dá para colocar a outra e colocar R$200,00 para as duas e incluir o nome da outra.

 Adv- A discussão é só uma.

C - Então aceita R$150,00 e depois entra para a outra. – aconselhando Adriana

 E - Você pode ir na Defensoria e falar sobre o erro que houve.

 Adv- R$200,00 não tem como! Tem que ser na medida das condições dele.

 P - Se eu trabalhasse com carteira assinada iria fixar em 30%! Por que eu tenho que pagar 

mais?

C - Cada caso é um caso! Às vezes pode fixar mais que isso.

 Adv- Ou menos

C - Você pode tentar deixar e ele tem que pagar os R$207,00 até o dia da audiência. – se

dirigindo a mãe.

 Adv- Pode ser os primeiros meses R$170,00 e em dezembro R$200,00? – pergunta para

 Adriana

C - Você pode esperar tranquilamente até a audiência que ele vai ter que pagar os R$207,00

e você inclui a Andréia!

C - Deixa até o dia da audiência! Espera até o dia com R$207,00 e tenta incluir a menina.

Vendo a possibilidade de Adriana esperar a audiência com o Juiz e seu cliente tendo que

 pagar R$207,00 até a próxima audiência, a advogada sugere os três primeiros meses

 R$180,00 e depois R$200,00 e pergunta: E aí Cleber?

 Ele olha para cima, descruza os braços e passa a mão na cara e fala:

 P - Deixa assim.

 Adv- Você tem um vínculo permanente!

8 Uma das previsões legais é a nomeação de advogado do Estado para as partes que não possuem procurador constituído, de acordo com o provimento 261/1985, do Conselho Superior de Magistratura. Tanto as Varas de

Família de Santo Amaro, quanto a Vara Distrital de Parelheiros não nomeiam advogado para a audiência deconciliação. O advogado só será nomeado se não houver acordo e for marcada a audiência de instrução.Acredita-se que os advogados atrapalham possíveis acordos durante a audiência de conciliação.

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C - É o sangue, né?!

 A conciliadora explica que é um acordo, um documento assinado que ele tem que pagar, se

não pagar ela executa9. A conciliadora fala para Adriana que ela tem que tomar a decisão e

 ser firme.

 M - Depois de três meses vai para R$207,00?

 Adv- Não, duzentos!

 M - R$207,00! Meio salário mínimo, como está determinado aqui. – se referindo aos

alimentos provisórios fixado pelo Juiz.

C - Por R$7,00, é melhor aceitar! – fala para a advogada

 P - Vamos aceitar.

 A conciliadora pergunta quando Andréia fez 18, e ela fala que foi no dia 05/09.

C - Ela vai ficar feliz de saber que o pai está ajudando. Você tem duas jóias raras! – fala para

o Cléber.

 M - Ele não visita as meninas!

C - Afeto não dá para pedir em juízo!

 A conciliadora explica novamente que a Andréia só tem direito à pensão enquanto estiver 

estudando. Como a mãe fala que ela está no terceiro ano, a advogada fala que ela pode fazer 

um cursinho de graça e indica o cursinho da Poli e o Pró-Uni.

Todos assinam o termo da audiência, as partes recebem uma cópia e eles saem da sala.

 No começo da audiência a mãe já deixa bem claro porque estava ali: “ Ele ajuda de vez em

nunca e não vê as meninas”. Ele não está cumprindo com as funções ligadas à imagem

 paterna: sustento material, educação e afeto. A pensão é incerta, pois “ele ajuda de vez em

nunca” e, além disso, não está presente na vida das filhas. Apesar de ter deixado claro no

começo que ele não visita as filhas, a audiência girou em torno do valor a ser pago de pensão.

 No fim da audiência a mãe volta a repetir que ele não visita as filhas, demonstrando que elanão quer somente a pensão, mas também a presença do pai na vida das filhas. Porém, na

audiência não se comentou do direito da criança à visita e a conciliadora colocou que “ Afeto

não dá para pedir em juízo.”.

Com relação aos papéis sociais, essa audiência coloca que a mãe é pai e mãe, e são poucos os

homens que exercem os dois papéis. Assim, ser pai e ser mãe são tidos como papéis

9

Executar, significa entrar com uma ação de Execução de Alimentos para receber os valores devidos fixados emuma Ação de alimentos. O não pagamento da dívida pode acarretar na prisão do devedor. A conciliadora usa a palavra executar, como se as partes entendessem o que isso significa.

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diferentes, porém a maternidade seria capaz de abarcar as funções do pai, não ocorrendo o

mesmo com a paternidade, segundo a fala da conciliadora. A conciliadora ao restringir a

audiência a questões de valor, restringe a função paterna ao sustento material. À mãe cabe os

cuidados diários, a educação e o sustento da criança. Por sua vez, cabe ao pai pagar a pensão.

A conciliadora em suas falas coloca os papéis sociais de mãe e pai como fixos e de difícil

mudança, restando como única alternativa a Adriana requerer um valor maior de pensão, ao

invés de uma maior responsabilidade paterna. Devo salientar que alguns conciliadores

discutem as visitas, explicando como geralmente são determinadas e fixando-as no termo de

audiência se houver um acordo entre as partes. Mas as visitas nunca são discutidas como um

direito da criança, e sim um direito do pai, por isso se ele não quiser visitar, as visitas não

serão fixadas.

Importante ressaltar que nessa audiência, como a conciliadora estava agindo como advogada

da parte, foi informado a Adriana que ela não precisaria aceitar o acordo, e que a não

aceitação obrigaria o pai a pagar o valor provisório de pensão até a data da próxima audiência.

Valor esse que era superior ao valor proposto pelo requerido e sua advogada. Essa informação

deu um maior poder de negociação a Adriana e foi crucial para que ela aceitasse R$180,00 e

não os R$150,00. Nesse caso, conciliadora e escrevente estavam do lado da mãe, fornecendo

as informações jurídicas necessárias para ela decidir sobre o acordo. Nem sempre essasituação é a que ocorre. Muitas vezes as partes acreditam que ali é o único local para se

discutir o valor da pensão e não sabem sobre a possibilidade haver outra audiência. Alguns

conciliadores iniciam a audiência explicando do que se trata, outros não se dão ao trabalho de

dar tal explicação. Também não é comum expor para as partes quais são suas alternativas

além do acordo, sendo comum colocar o acordo como única e a melhor solução.

Considerações finais

Um olhar mais superficial do conflito não consegue entender declarações como: “ Eu vou até

o fim, nem que seja para receber R$50,00. Ele nunca me ajudou. Criei os meus filhos sozinha

até agora. Sempre foi minha mãe, minha sogra que me ajudaram. Se ele não tivesse feito o

que ele fez... Eu vou até o fim!”10. Essa declaração foi dada numa audiência de conciliação, na

qual o requerido, pai dos três filhos dela, estava oferecendo R$300,00 de pensão, o que

correspondia a 37% do seu salário. Esse acordo é considerado ótimo para advogados,

10 Fala da representante legal dos menores durante uma audiência de conciliação em ação de alimentos realizadano dia 14 de outubro de 2008.

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conciliadores e escreventes acostumados a fechar acordos que giram em torno de 20% a 30%.

Porém esse acordo estava sendo firmado na frente de uma conciliadora, e a partir do momento

que a representante ficou sabendo que não se tratava de uma Juíza, as possibilidades de haver 

um acordo se extinguiram. Ir até o fim significava ir até o Juiz. Isso prolongaria a resolução,

 porém também significava que até o dia da outra audiência o pai ficaria sem ver os filhos.

Idéia que lhe agrada, pois ela não quer que ele se aproxime dela, por tê-la agredido, conforme

 boletim de ocorrência que trouxe para a audiência. A escrevente e conciliadora lamentaram

ela não ter feito acordo, pois consideraram o acordo monetariamente muito favorável. Mas há

questões em jogo que vão muito além do valor monetário da pensão. Nesse caso estava

vinculado ao um episódio de violência doméstica e para a representante legal era fundamental

levar esse processo até o fim, independente do valor.

Conseguir chegar ao desfecho esperado dependerá dos atores ali presentes e das informações

que as partes detêm e que lhe serão fornecidas ao longo da audiência. É um jogo que depende

da movimentação dos participantes e do conhecimento que detêm das regras ou que

demonstram deter. Ao levarem conflitos familiares para a esfera judicial, permitirão que as

fronteiras do que é ser pai e ser mãe sejam definidas durante o processo. Há uma produção do

significado do que é ser pai e entrar na esfera judicial significa revestir com uma sacralidade

legal os deveres atribuídos à figura paterna durante o processo.

A busca dessas mulheres por um pai encaixa-se perfeitamente na concepção euro-americana

de parentalidade11 descrita por Strathern (1995), na qual a mulher é que tem que estabelecer a

 possibilidade de sua criança ter um pai. No texto “Necessidade de Pais, Necessidade de

Mães.”, a autora compara a Síndrome do Nascimento Virgem, identificada na Inglaterra em

1991, com a Polêmica do Nascimento Virgem surgida nos anos 60 e 70.

A síndrome foi identificada a partir dos pedidos de mulheres que buscavam tratamentos defertilidade alegando desejar contornar as relações sexuais. A polêmica, por sua vez, surge com

os estudos realizados nas Ilhas Trobriands e a Austrália Aborígene, locais em que não se

 pensa a concepção como dependente de relações sexuais, tendo as relações sexuais o papel de

nutrir o feto e não de gerá-lo.

11

O revisor técnico do texto de Strathern (1995) coloca na nota de rodapé n°2 que o termo parentalidade é um“neologismo técnico para suprir a falta de uma palavra portuguesa correspondente a  parenthood  na línguainglesa. Assim, parentalidade diz respeito a pai e mãe” (p. 304).

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Comparando esses acontecimentos e os argumentos utilizados pelos especialistas, Strathern

tenta entender por que os pedidos das mulheres geraram tanto polêmica e foi denominado

uma síndrome, se sempre houve filhos sem pais, e se os pais, diferentemente das mães, podem

abandonar seus filhos desde o nascimento sem isso provocar nenhum escândalo. Assim, A

alegação dos clínicos de que a criança necessita de um pai é contestada pela autora ao falar 

que sempre nasceram crianças sem pai.

A autora passa a analisar a necessidade de relações sexuais, e coloca que as relações sexuais

criariam a ligação entre os pais e essa ligação geraria o filho. No contexto de um casamento,

as relações sexuais simbolizam a união de marido e mulher como casal, o amor entre os pais e

destes pelos filhos. Ao negar o componente sexual, essas mulheres estariam negando as

relações de parceria que formam os alicerces da vida familiar. Ela conclui que a necessidadeda criança de um pai e a necessidade de intercurso sexual da mãe sinalizam a “necessidade de

relacionamentos.”

Ao analisar o modelo das ilhas Trobriand, Strathern nos mostra que a criança nascida nesse

local já nasce num campo de relação. No modelo euro-americano as relações não são um

campo inevitável e têm que ser criadas através do esforço humano. Assim, deve haver um

esforço humano para fazer os relacionamentos que gerarão o filho e esse esforço continua

após a concepção. O filho nasce com um pai genético, porém continua necessitando de um pai

social, e cabe a mãe garantir sua existência.

Strathern ao descrever o modelo euro-americano mostra que cabe a mulher construir os

relacionamentos e se esforçar pela sua continuidade, para que assim o seu filho possa não ter 

somente um pai genético, mas também um pai social. As mulheres que entram com ações de

alimentos parecem estar se esforçando para que os seus filhos tenham um pai social. Com o

fim da relação amorosa que existiu entre os pais, as mulheres procuram, através da ação dealimentos, preservar a relação entre pai e filho.

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