AÇÃO POPULAR DO DIREITO BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE TUTEL

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A AÇÃO POPULAR DO DIREITO BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE TUTELA JURISDICIONAL DOS CHAMADOS “INTERESSES DIFUSOS” por Maria Amélia de Oliveira Santos Orientador: Carlos Roberto Barbosa Moreira MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. In: ______. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 110-123. Os instrumentos processuais cíveis tradicionalmente disponibilizados pelo ordenamento jurídico se prestam à proteção dos conflitos de interesses individualizados, com especial destaque para as relações obrigacionais, de importância sempre presente. Inobstante sua idoneidade para solucionar litígios travados entre pessoas singular ou pluralmente identificadas, através do seu simples posicionamento processual como autor ou réu; ou por intermédio de agrupamento em um ou ambos os pólos da relação processual, viabilizado pelo litisconsórcio, bem como pela intervenção de terceiros (naquelas hipóteses em que o ordenamento jurídico confere materialidade ao direito e legitimação ordinária ou extraordinária aos seus detentores), emerge a necessidade da geração de expedientes adequados à proteção jurisdicional de interesses titularizados por uma coletividade, formada por pessoas que possuam vínculo jurídico entre si, mas que não se localizem propriamente na relação plurissubjetiva acima referida. Outrossim, a doutrina italiana vem desenvolvendo estudos sobre a relevância jurídica existente em interesses de uma pluralidade de pessoas, que não estejam obrigatoriamente unidas por um vínculo jurídico ou que este seja tão amplo a ponto de abraçar todos os integrantes de uma comunidade, em razão de constatações fáticas alteráveis, rompendo com o clássico modelo consagrado. São os denominados “interesses coletivos” ou “difusos”. Observando-se o prestígio da matéria, sem examinar a terminologia utilizada, deve-se atentar para o fato de os doutrinadores brasileiros terem-na acolhido, buscando a efetividade de sua tutela no direito brasileiro. Ordinariamente, a lei 4.717, de 29-6-1965, regulamenta o conceito de patrimônio público e confere-lhe alcance suprapatrimonial, além de ampliar o rol das entidades cujo patrimônio se tutela. A defesa dos interesse difusos se dá nitidamente na proteção dos bens intangíveis ou avessos a uma equivalência patrimonial em razão de sua própria natureza. Por outro lado, a jurisprudência demonstra tendência no sentido de ampliar a aplicação da citada lei a hipóteses correlatas e tem adotado posição congruente com a interpretação teleológica da norma, o que possibilita o prático e eficiente amparo de bens de valor histórico e paisagístico, dentre outros. Sem a pretensão de esgotar o tema, passa-se a apreciação das questões que despertam a atenção dos estudiosos do assunto, com destaque para o posicionamento adotado pelo legislador brasileiro.

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A AÇÃO POPULAR DO DIREITO BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE TUTELAJURISDICIONAL DOS CHAMADOS “INTERESSES DIFUSOS”

por Maria Amélia de Oliveira Santos

Orientador: Carlos Roberto Barbosa Moreira

MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. In: ______. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 110-123.Os instrumentos processuais cíveis tradicionalmente disponibilizados pelo ordenamento jurídico se prestam à proteção dos conflitos de interesses individualizados, com especial destaque para as relações obrigacionais, de importância sempre presente.Inobstante sua idoneidade para solucionar litígios travados entre pessoas singular ou pluralmente identificadas, através do seu simples posicionamento processual como autor ou réu; ou por intermédio de agrupamento em um ou ambos os pólos da relação processual, viabilizado pelo litisconsórcio, bem como pela intervenção de terceiros (naquelas hipóteses em que o ordenamento jurídico confere materialidade ao direito e legitimação ordinária ou extraordinária aos seus detentores), emerge a necessidade da geração de expedientes adequados à proteção jurisdicional de interesses titularizados por uma coletividade, formada por pessoas que possuam vínculo jurídico entre si, mas que não se localizem propriamente na relação plurissubjetiva acima referida.Outrossim, a doutrina italiana vem desenvolvendo estudos sobre a relevância jurídica existente em interesses de uma pluralidade de pessoas, que não estejam obrigatoriamente unidas por um vínculo jurídico ou que este seja tão amplo a ponto de abraçar todos os integrantes de uma comunidade, em razão de constatações fáticas alteráveis, rompendo com o clássico modelo consagrado. São os denominados “interesses coletivos” ou “difusos”.Observando-se o prestígio da matéria, sem examinar a terminologia utilizada, deve-se atentar para o fato de os doutrinadores brasileiros terem-na acolhido, buscando a efetividade de sua tutela no direito brasileiro.Ordinariamente, a lei 4.717, de 29-6-1965, regulamenta o conceito de patrimônio público e confere-lhe alcance suprapatrimonial, além de ampliar o rol das entidades cujo patrimônio se tutela. A defesa dos interesse difusos se dá nitidamente na proteção dos bens intangíveis ou avessos a uma equivalência patrimonial em razão de sua própria natureza.Por outro lado, a jurisprudência demonstra tendência no sentido de ampliar a aplicação da citada lei a hipóteses correlatas e tem adotado posição congruente com a interpretação teleológica da norma, o que possibilita o prático e eficiente amparo de bens de valor histórico e paisagístico, dentre outros.Sem a pretensão de esgotar o tema, passa-se a apreciação das questões que despertam a atenção dos estudiosos do assunto, com destaque para o posicionamento adotado pelo legislador brasileiro.De início, atenta-se para a legitimação para agir, de ampla abrangência, posto que foi conferida pela lei a todo cidadão no uso e gozo de seus direitos políticos, e por isso a exigência de sua comprovação se restringe a apresentação do título eleitoral ou de documento similar. Porém, embora ao Ministério Público não tenha sido conferida posição de legitimado, resguardou-se-lhe a possibilidade de intervir no curso do processo, como parte ativa, se ocorrer a desistência da ação pelo autor originário ou se este der causa a extinção do processo sem julgamento de mérito. E ainda, é possível ao Ministério Público recorrer das decisões contrárias ao autor originário.Ao vislumbrar a possibilidade de a ação popular ser utilizada, por um dos co-legitimados, com o fim de conseguir que a chancela jurisdicional seja dada a ato administrativo ilegítimo ou ilegal, mediante combinação escusa entre administrador e administrado, o legislador estabeleceu preceitos como o da intervenção obrigatória do Ministério Público como fiscal da lei, bem como os deveres de o juiz velar pela satisfatória instrução da causa e de ser dada oportunidade a qualquer outro co-legitimado de prosseguir no feito e recorrer das decisões proferidas contra o autor popular.Ainda no campo da legitimação para agir, mas agora especificamente quanto à figura passiva, a lei determina que nela se situem a entidade pública supostamente lesada em seu patrimônio pelo ato questionado e, ao seu lado, em litisconsórcio passivo necessário, deverão estar todos aqueles que, porventura, tenham logrado benefício por meio do ato atacado. Não se exige que o litisconsórcio seja

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completamente formado no momento da interposição da demanda, pois admite-se que ele seja superveniente, desde que atendido o princípio do contraditório. E mesmo se desligado do cargo ou função em que deu causa ao ato questionado, o funcionário, autoridade ou administrador demandado continuará legitimado a figurar no pólo passivo, porque está sendo responsabilizado pessoalmente por uma conduta lesiva ao interesse coletivo.É certo que, embora a entidade pública inicialmente integre a relação processual como ré, em última análise, a ação popular tem por objetivo defender o seu patrimônio, logo não seria sensato exigir dela a defesa do ato impugnado quando estiver convicta de que foi prejudicada. Neste sentido é o §3o do art.6o

da lei 4.717. A imposição de perdas e danos será aplicada aos condenados, como capítulo obrigatório da sentença proferida na ação popular, e se reverterá em favor da entidade patrimonialmente lesionada. Observa-se, nesta imposição legal, a intenção legislativa de permitir, desde logo, que o prejuízo sofrido seja sanado por meio de restituição ou ressarcimento pecuniário, inclusive, com a possibilidade de execução da decisão judicial pela entidade vitimada, em proveito de quem se reverterá o valor fixado na condenação.Po fim, resta apreciar o âmbito subjetivo da coisa julgada oriunda de sentença prolatada em ação popular.O problema é percebido exatamente quando a decisão não acolhe o pedido do autor, pois, do contrário, seus efeitos se estendem a todos os membros da coletividade, aos quais se estendem os efeitos da decisão favorável ao autor popular, que, desde o início, agiu em nome da coletividade e não somente de si mesmo.Para solucionar satisfatoriamente o problema, apresenta-se a distinção entre a rejeição do pedido com base na inexistência de fundamentos para invalidar o ato, e na insuficiência de prova da irregularidade.No primeiro caso, os efeitos da sentença se estendem a todos os cidadãos e, no segundo, não há que se falar na produção dos efeitos da coisa julgada sobre outros cidadãos, uma vez que é possível novo exame do ato a qualquer tempo, por iniciativa de outro co-legitimado ou do primeiro, desde que por causa de pedir diversa.O prazo prescricional de cinco anos deve ser respeitado nos dois casos.Portanto, a defesa dos interesses difusos está recebendo a importância devida do direito positivado, servindo como modelo para legislações alienígenas, embora ainda não conforme a conduta social, ultrapassando os limites da atuação meramente repressiva.