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Studium Theologicum de Curitiba STUDIUM REVISTA TEOLÓGICA

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  • Studium Theologicum de Curitiba

    STUDIUMREVISTA TEOLÓGICA

  • Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 2 Vol. 2 - n. 3 (jan./jun.) e 4 (jul./dez.), 2008

    Semestral

    ISSN 1981-3155

    1. Teologia – Periódicos. I. Studium Theologicum de Curitiba.

    CDU: 2

  • STUDIUM Revista Teológica

    Ano 2 – 2008Nº 3 e 4

    Revista semestral de Teologia do Studium Theologicum de CuritibaISNN 1981-3155

    EDITOR-ChEfEhélcion Ribeiro – Studium Theologicum

    CONSELhO EDITORIALJaime Sanches Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.Marcio Luiz fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.Tedoro hanicz – Instituto S. Basílio Magno, Curitiba, Pr. Valdinei de Jesus Ribeiro – StudiumTheologicum, Curitiba, Pr. Vitor P. Calisto dos Santos – PUC, Campinas, SP

    CONSELhO CONSULTIVOAngelo Carlesso - Studium Theologicum – Curitiba, PrJose Carlos fonsati – Cúria Geral dos Vicentinos - Paris, fr.Josu M. Auday – Claretianum, RomaSávio Scopinho – CEUCLAR, BatataisRicardo hoepers - Studium Theologicum – Curitiba, Pr.

    ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃOContato e assinatura

    Studium Revista TeológicaAv. Getúlio Vargas, 119380.250-180 Curitiba Pr.Tel. (41)3224-5467 – fax: (41) 3233-8979e-mail: [email protected]

    Solicita-se permuta/ Exchange requested/Se pide cambio/ On prie l’échange

    Nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos.

  • SUMÁRIO

    Editorial................................................................................................................................ 5

    Dimensão carismática da Igreja e identidade da vida religiosa .................... 9florêncio Garcia Castro

    A vida consagrada hoje. Desafios e vitalidade diante da primeira década do ano 2000. De onde viemos, onde estamos, para onde vamos? .......................... 23José Rovira

    Mistica e profecia. Um estilo de vida e “novos areópagos”.......................... 35 Ciro Garcia, ocd

    O pai que nossa sociedade precisa. Uma leitura psico-sociológica da figura paterna................................................................................................................. 57 .Josu M. Alday

    Vozes proféticas de religiosos diante da escravidão negra no Brasil............ 67Wilmar Santin

    Desafios e perspectivas da ética numa sociedade em transformação ...... 81Santiago Maria Gonzalez Silva

    Coexistência e Confronto entre judeus e cristãos em Antioquia na Antiguidade Tardia.........................................................................................................97Rivaldave Paz Torquato

    Recensão.........................................................................................................................117

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    Ao pensar teologicamente a Vida Consagrada

    Vida Consagrada (VC) é um parâmetro significativo e imprescindível para a vida da Igreja. Ao lado de cristãos leigos e cristãos hierarcas, os consagrados, quanto em grupo como pessoalmente, buscam uma santidade maior, ao mesmo tempo são testemunho vivo do seguimento de Jesus, tanto pela mística quanto pela profecia. Na busca, a Igreja, pela força inefável do Espírito, se enriquece e se santifica mais ainda.

    Como os pensamentos de Deus não são iguais aos dos homens e mulheres, a VC não pode ser medida primeiramente em números, obras e nem mesmo pelo carisma/missão fundacional e/ou reformado. Deus, o que é Santo, santifica a humanidade pelas suas obras e, especialmente por nos ter dado seu filho Jesus, afim de que crendo nele, todos possam ser salvos. Mas, o Deus que continua a se manifestar entre nós, por meio da excelência de seu filho, feito nosso irmão, também continua servir-se de seus outros filhos e filhas como sinais visíveis do amor divino por nós na história; Os consagrados, por toda parte e por princípio, são especial manifestação visível deste amor santificante.

    Na linguagem tradicional da Igreja pode-se dizer que há muitos santos “oficiais”. Sem dúvida, há um número muitíssimo maior daqueles sobre os quais a Igreja não se pronuncia – sobretudo quando se refere aos cristãos leigos. Todavia, ocorrem beatificações e canonizações, sem conta no meio dos de vida consagrada; pode-se até dizer: mais que entre os hierarcas, mesmo em se pensando na proporcionalidade.

    Tanto a santidade explícita quanto implícita é sempre um presente de Deus à humanidade na força do Espírito, o Santificador. Os de VC têm a sua disposição, certamente, mais recursos e oportunidades humanas como resposta deste caminho de radical assemelhamento a Deus, em seu Cristo Jesus. Ela, porém, precisa ser buscada por não ser um dado “ipso facto”.

    A santidade da VC – querida e esperada por Deus – se torna, para a Igreja e para o mundo, um sinal da presença divina de modo mais forte. Assim e além da santidade, os consagrados são “instrumentos” divinos para a reconciliação da humanidade, através de sua doação e de seus múltiplos carismas e missões.

    Sem dúvida, a VC é, em primeiro lugar, um gesto amoroso do Pai. Por outro lado, é busca da realização humana. Cada consagrado tem como meta a

    A

    Editorial

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    plenificação humana. Esses homens e mulheres, que fazem de suas vidas uma consagração original a Deus, na Igreja, são os humanos buscadores da mais profunda e desejada realização. São mulheres e homens que decidiram, em sua generosidade – apesar de suas limitações -, colocar suas vidas a serviço de Deus e da humanidade. Constroem suas obras para servir, servem-se das coisas do mundo para enriquecer os pobres, os doentes e os aflitos. Instrumentalizam seus múltiplos carismas para dar sentido ao mundo e soerguer os caídos. Não sendo anjos – pelo contrário, bem humanos – sofrem as vicissitudes humanas com o coração, mesmo ferido e machucado; mas, sem desanimar buscam a plenitude humana de forma mais radical.

    Nos carismas e missões dos consagrados, a Igreja vê sua própria instrumentalidade – a Igreja é sacramento do Reino e de Cristo – para colaborar com Deus, na obra da evangelização e da dignificação humana. Em cada religioso – sinal visível da Igreja – torna-se manifesta a vontade salvífica de Deus. Os consagrados visibilizam, por meio de suas obras, a Igreja como “curadora/sanadora”, como educadora, como companheira da humanidade e, sobretudo, a que está atenta aos pobres. Como diz um de nossos autores: mística e profecia não podem estar separadas na VC. Daí, a atenção samaritana particular dos religiosos – para além de seu testemunho – no cuidado amoroso daqueles que a sociedade alija de seus banquetes...

    O Studium Theologicum de Curitiba, com seus quase 75 anos de serviço claretiano à igreja local e regional, é uma escola de formação para tantos consagrados.

    Por isso, este fascículo especialmente dedicado à VC é também uma forma de gratidão a Deus, à Igreja e aos próprios consagrados, pois eles fazem parte da história real de nossa instituição claretiana, aberta a todas as ordens, congregações religiosas e movimentos eclesiais que a procuram.

    Esse fascículo de nossa Revista teológica, enfeixando os dois números correspondente ao ano de 2008, é produzido pela reflexão de pessoas consagradas escrevendo sobre sua própria realidade teológico-existencial. De modo particular, esse volume conta com a especial colaboração de quatro claretianos, que têm uma particular e histórica ligação como Studium Theologicum. A eles – e aos demais autores - antecipadamente apresentamos nosso agradecimento pela colaboração.

    O claretiano José Rovira em A vida consagrada hoje. Desafios e vitalidadea diante da primeira década do ano 2.000 traça um importante quadro, chamando a atenção para o fato de que a VC não pode ser medida por números nem mesmo quando ela está, como vulgarmente se afirma, em crise. É verdade que há desafios e ambigüidades, mas a esperança e sua vitalidade não morrem, pois dependem de Deus.

    A história da Igreja, em geral, é feita ao redor da hierarquia e, quase à margem, está a história da Vida Religiosa. Mas, para bem compreender a

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    Igreja impõe-se situar a eclesialidade da VC desde uma perspectiva histórica e, sobretudo, teológica. Se a VC surge dos carismas, a sua identidade se encontra na dimensão constitutiva e natural da Igreja. A doutrina conciliar e a reflexão teológica posterior a apresentam como parte constitutiva da dimensão carismática da Igreja: são carismas feitos vida na comunidade eclesial. É esta a reflexão do claretiano Florêncio Garcia Castro, em Dimensão carismática da Igreja e identidade da vida religiosa.

    Ciro Garcia, ocd, se propõe, a partir de uma reflexão existencial, analisar a Mística e Profecia, como duas vertentes da mesma e única fonte da VC. A insistência de K, Rahner sobre a necessidade da mística no século 21, urge à VC um comportamento novo, capaz de renová-la, para além dos percalços e discussões. Unir o binômio mística e profecia leva à genuinidade desejada pelos Pais fundadores, apesar das aparências em contrário.

    Josu M Alday, CMf, propõe uma reflexão - na verdade, uma parábola - sobre O Pai que nossa sociedade precisa. Uma leitura psicossociológica da figura paterna. Parte da psicologia e da sociologia do pai, evidenciando a “diminuição” da figura paterna e de sua ausência/desaparecimento para mostrar os prejuízos psicossociais contemporâneos daí decorrentes. Ao caracterizar os “modelos” de pai, propõe a necessária e madura recuperação desta figura em função do equilíbrio humano. A parábola aponta à realidade de que apenas na concepção equilibrada do pai – especialmente do “pai nutritício” - é que os consagrados se encontrarão com o Deus Pai/Mãe verdadeiro.

    O carmelita historiador Wilmar Santin, em Vozes proféticas, rediscute a questão ausência/presença dos religiosos no processo europeu de tornar escravos homens e mulheres, aprisionados na África e trazidos para o Brasil. O autor detecta, em sua pesquisa historiográfica, a presença de inúmeros frades e padres que ergueram suas vozes, em nome da justiça e da fé, contra a escravidão – inclusive dentro das próprias casas e províncias religiosas. Muitos deles pagaram alto preço por causa de seus discursos libertários, “seja diante do trono seja diante do altar”. Mesmo que isolado, o número destas vozes proféticas é bem maior do muitos contam...

    Esse fascículo sobre a VG se amplia com duas outras contribuições bem pertinentes ao refletir sobre o mundo contemporâneo e o mundo dos primeiros cristãos.

    O também claretiano Santiago Maria Gonzalez Silva levanta a atualíssima questão dos Desafios e perspectivas éticas numa sociedade em transformação. Com riqueza de dados, o autor faz desfilar, sob nossos olhos grandes transformações produzidas pela engenharia genética, capazes de atingir – muito mais do que se imagina – nossas vidas desde o ponto de vista biológico e ético. As questões envolvem uma afirmação positiva, i. é: um compromisso com a vida frente a fatos como o aborto, a eutanásia, o ecossistema, o equilíbrio econômico mundial, um mundo justo etc. A energia do amor será capaz de construir um mundo novo possível e justo?

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    Por fim, Rivaldave Paz Torquato, o. carm, escreve sobre a Coexistência e Confronto entre judeus e cristãos em Antioquia na Antiguidade Tardia. Um tema raro na literatura bíblico-teológica, especialmente em língua portuguesa. Com freqüência os valores religiosos dos povos, sobretudo quando confrontados por religiões novas, são transformados em fonte de conflitos, intolerância e violência. Para atingir seu objetivo, tais religiões manipulam países, sistemas políticos e econômicos ou se deixam manipular por eles. As consequências para a humanidade são normalmente catastróficas. Aos poucos as religiões perdem assim seu potencial libertador e tornam-se fonte de opressão, escravidão, aflição e sofrimento. O autor aborda esta questão do início do cristianismo frente ao judaísmo, apresentando suas conclusões.

    Entregamos nossa Revista de Teologia STUDIUM, na certeza do bom proveito de nossos leitores.

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    DIMENSÃO CARISMÁTICA DA IGREJA E IDENTIDADE DA VIDA

    RELIGIOSA

    florêncio Garcia Castro, CMf *

    RESUMO: O artigo traz as conclusões mais significativas do estudo feito para a tese de Doutorado apresentado no Instituto Teológico da Vida Consagrada – Claretianum de Roma – com o título “Dimensão carismática da Igreja e identidade da Vida Religiosa” salientando o núcleo temático; e o subtítulo, “Ensinamento do Concílio Vaticano II e a sua recepção na reflexão teológica pós-conciliar” enquadra historicamente o assunto de nossa análise e investigação. Portanto, a finalidade desta exposição é a de apresentar o que foi recolhido do ensinamento do Concílio Vaticano II sobre os carismas na Igreja e a sua relação com a Vida Religiosa, de um lado, e de outro, apresentar sistematicamente como foi acolhida esta doutrina na reflexão teológica posterior ao Concílio.

    PALAVRAS CHAVE: Carimsa. Reflexão teológica. Dimensão institucional. Concilio. Vida religiosa.Ecleseologia.

    ABSTRACT: The article brings the conclusions most significant of the made study for the thesis of Doctoral presented in the Theological Institute of the Life Consecrated - Claretianum of Rome - with the heading “ Charismatic dimension of the Church and identity of the Religious Life”; pointing out the thematic nucleus; e the sub-heading, “Teaching of Vatican Conciliation II and its reception in the theological reflection after-conciliation” it historically fits the subject of our analysis and inquiry. Therefore, the purpose of this exposition is to present what it was collected of the teaching of Vatican Conciliate II on charisma in the Church and its relation with the Religious Life, from all points of view, to present systematically as Conciliate was received this doctrine in the theological subsequent reflection.

    KEY WORDS: Charisma. Theological reflection. Institutional dimension. I conciliate. Religious life. Ecclesiology.

    Artigos

    * Doutor em teologia, Superior do Instituto Teológico da Vida Consagrada “Claretianum”, Roma. falecido em 2005, aos 46 anos de idade, enquanto se preparava para assumir um novo encargo nas filipinas.

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    1. ORIGeM DeSTe TRAbAlhO

    Por que fazer esta pesquisa? É a primeira pergunta que nos fazemos e aqui explicamos a origem e causas do presente trabalho.

    Gostaria de começar por uma impressão pessoal. Olhando a história da Igreja e da Vida Religiosa, percebi algo que sempre me surpreendeu, deixando-me uma certa perplexidade: tem-se a impressão de estar diante não de uma única história, mas diante de duas histórias paralelas. A história da Igreja ao redor da hierarquia e, quase à margem, a história da Vida Religiosa. Não aparece evidenciada nesta história do passado a unidade e a edificação da Igreja como fruto da colaboração de todos os seus membros. Este fato tem repercussões concretas, uma delas é em nível teológico e eclesiológico. Sirva como exemplo o quanto seja difícil encontrar nos ensaios de eclesiologia um capítulo dedicado à Vida Religiosa.

    Mesmo no interior da Vida Religiosa a história nos mostrou um caminho de divisões entre as mesmas famílias religiosas, como alguma coisa que nos parece de alguma forma “contra natura”.

    Partindo desta observação, quando nos detemos nos trabalhos de pesquisa sobre a Vida Religiosa, constatamos que a grande parte destes estudos no período pós-conciliar foram marcados pelo retorno às origens das famílias religiosas, registrando-se grande desenvolvimento e aprofundamento no conhecimento do carisma dos fundadores e do próprio Instituto para realizar a adequada renovação que o Vaticano II pedia à Vida Religiosa no documento conciliar “Perfectae Caritatis”.

    Este fato nos levou a adquirir mais conhecimentos e maior clareza sobre o carisma do fundador e sobre o carisma de cada Instituto e a sua missão na Igreja. Mas outros aspectos foram muito menos freqüentados. Um destes aspectos foi, a meu ver, a reflexão sobre a eclesialidade da Vida Religiosa desde uma perspectiva histórica e, sobretudo, teológica. Correu-se o risco de sublinhar excessivamente o estudo “ad intra” da Vida Religiosa, certamente necessário e positivo, mas que pode impedir de ver o horizonte geral ao qual se pertence: a Igreja.

    Como veremos, foi o próprio Concílio a favorecer esta necessária visão eclesial quando dedicou um capítulo próprio aos religiosos na Constituição Dogmática sobre a Igreja. Um fato sem precedentes. O Concílio recolocou as coisas no seu lugar. Não é possível entender a Igreja sem apresentar todos os estilos de vida que a compõem , um dos quais é a Vida Religiosa; nem mesmo é possível entender a Vida Religiosa propriamente fora do âmbito onde nasceu: a Igreja.

    Neste processo é que se situa a nossa reflexão. Nos propomos a um aprofundamento teológico e eclesiológico da Vida Religiosa. Evidentemente, neste artigo, não pretendemos esgotar as múltiplas possibilidades que esta perspectiva nos oferece. Por isto, limitamos o nosso estudo a um aspecto particular, no qual nos parece encontrar a origem e a identidade da Vida Religiosa: a sua realidade

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    carismática. O carisma a define e caracteriza porque cada Instituto é a encarnação de um carisma concreto.

    Portanto, o porquê deste trabalho encontra-se no desejo de aprofundar a eclesialidade da Vida Religiosa apontando para o seu coração: a sua natureza carismática.

    2. MeTODOlOGIA

    Com a metodologia utilizada respondemos à segunda pergunta: Como desenvolvemos este estudo? O nosso método de trabalho poderia ser caracterizado como histórico-indutivo. fizemos uma pesquisa e análise da palavra “carisma” no processo de elaboração redacional dos diferentes documentos estudados, seja nos textos apresentados assim como nas modificações e objeções feitas a eles pelos Padres conciliares.

    Num segundo momento, dedicado à reflexão teológica pós-conciliar sobre os carismas, analisa-se como foi assumido o ensinamento do Concílio e o seu desenvolvimento posterior em nível eclesiológico e teológico em relação à Vida Religiosa.

    Neste artigo o foco será apenas as questões referentes ao debate conciliar e algumas consequências teológicas.

    3 ATé OnDe leVA O eSPíRITO

    A convocação de um Concílio na Igreja é um fato tão extraordinário que nos faz entender, por si mesmo, como os temas escolhidos para serem tratados respondem particularmente à situação da Igreja naquele momento histórico.1 Cada documento pressupõe uma realidade social e eclesial à qual quer dar uma resposta.

    Seguramente, as pessoas encarregadas de elaborar a redação do texto sobre a Igreja, para ser apresentada no início dos trabalhos conciliares, na qual aparecem pela primeira vez os carismas, não imaginavam a repercussão e a transcendência que este fato teria na definição e compreensão da Igreja tal qual nos apresenta a “Lumen Gentium” e a reflexão teológica posterior.

    1 O dia 25 de janeiro de 1959 desde a Basílica de S.Paulo fora dos muros o Beato João XXIII fez o anúncio da convocação do Concílio Vaticano II com estas palavras: “Pronunciamos diante de vós, certamente tremendo um pouco de comoção, mas ao mesmo tempo com humilde decisão de propósito, o nome e a proposta da dúplice celebração: de um Sínodo Diocesano para a Urbe, e de um Concílio Ecumênico para a Igreja Universal”. ( cf. AD, series 1. vol. l. 5).

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    Podemos verificar toda a importância deste processo em duas frases. Uma pertence ao primeiro esquema da Constituição sobre a Igreja e diz: “É falso dizer que, as assim chamadas, Igreja hierárquica ou do direito e Igreja carismática ou do amor, se diferenciem realmente.”2 A outra é de João Paulo II em sua mensagem ao Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais celebrado no ano de 1998: “Outras vezes tive a oportunidade de sublinhar como na Igreja não exista contraste ou contraposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática, da qual os movimentos são uma expressão significativa. Ambas são co-essenciais à constituição divina da Igreja fundada por Jesus”.3

    Entre uma frase e a outra existe um arco de tempo de quase 40 anos que marcaram um caminho, longo e cansativo, para definir a relação entre a dimensão institucional e a dimensão carismática da Igreja.

    Ambas as expressões nos revelam que o tema dos carismas tinha uma relação muito estreita com a eclesiologia e que havia uma base problemática a ser superada: a Igreja hierárquica e a Igreja carismática vistas como realidades contrapostas.

    O documento conciliar que marcou o Concílio foi a Constituição Dogmática “Lumen Gentium”. Na fase preparatória, através de dois esboços, houve uma primeira redação do texto. Ela é de menor relevância porque o esquema foi rejeitado.4

    As causas que levaram a tal ação foram diversas. Uma delas podemos dizer de caráter ambiental. Na aula conciliar, antes de analisar o esquema sobre a Igreja foi debatido o esquema sobre “fontes da Revelação”. foi rejeitado. Em tais circunstâncias podia se prever que também o esquema sobre a Igreja iria de encontro ao mesmo fim.

    Mas as causas diretas e determinantes foram as objeções dos Padres conciliares, os quais depois de louvar todo o trabalho realizado apresentaram as suas críticas. Para uma maioria o texto era abstrato e muito esquemático com falta de coesão e síntese. Podemos recordar que DE SMEDT qualifica o documento de “triunfalismo”, “clericalismo” e “juridicismo”.5 hUYGhE, diz que o esquema proposto deve ser profundamente modificado e apresentar uma Igreja embebida pelo espírito evangélico, isto é, por um espírito católico, missionário de humildade e

    2 AD, series 11, vol. 11, pars 111, 988. “falso Ecclesia hierarchica seu iuris ab Ecclesia societas charismatica vel amoris, quas vocant, re diferre dicuntur”.

    3 JUAN PABLO II, Messaggio a! Congreso Afondiale dei Movimenti Ecclesiali: PONTIfICIUM CONSILIUM PRO LAICIS ( ed.). Città del Vaticano 1999, 18.

    4 No fim do primeiro período conciliar se falou sobre o esquema da Igreja: 1-7 de dezembro em seis Congregações Gerais ( XXXI-XXXVI). falaram 77 Padres e deixaram por escrito as suas notas outros 85. Mencionaram os carismas 16 deles ( 5 oralmente e 11 nos escritos).

    5 AS. 1 (IV), 142-144.

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    serviço.6 CARLI o qualifica de militarista.7 idéia que repete também o Patriarca antioqueno Maxirno IV SAIGh8.

    Como conseqüência, foi elaborado um novo texto ( terceira redação) para ser estudado em sucessivas sessões conciliares (1963-1964). Este itinerário compreende o desenvolvimento de sucessivas redações até a sexta e definitiva.

    O fato que a redação apresentada ao Concílio fosse rejeitada marca um dos momentos mais importantes para a elaboração da Constituição “Lumen Gentium”, porque mostra claramente a existência de duas correntes diferentes no Concílio. A redação que chega ao primeiro período conciliar herdava e fazia própria uma visão piramidal da Igreja, o ponto de referência era a hierarquia e partindo dela se elaborava o discurso eclesiológico. Ao contrário, o novo texto apresentado no segundo período conciliar concebia a Igreja como mistério de salvação e povo de Deus, composto pelas diversas vocações e estados de vida existentes em seu conjunto.

    A prova evidente de tudo isto é o conteúdo e divisão dos capítulos do novo esquema:9

    Introdução

    Capítulo I: Sobre o mistério da Igreja (De Ecclesiae mysterio)

    Capítulo II: Sobre a constituição hierárquica da Igreja e de modo especial: sobre o episcopado (De constitutione hierarchica Ecclesiae et in specie: de episcopadu).

    Capítulo III: Sobre o povo de Deus e de modo especial sobre os leigos (De populo Dei et speciatem in de laicis)

    Capítulo IV: Sobre a vocação à santidade na Igreja (De vocatione ad sanctitatem in Ecclesia)

    É neste momento chave quando se realiza o grande debate sobre os carismas. Os grandes representantes das duas posições foram o Cardeal Ruffini e o Cardeal Suenens. A maior parte dos Padres que participam da discussão fazem referência a estas duas intervenções, manifestando conformidade ou desacordo.

    6 Ibid. 196: “Optaremus etenim ut doctrina Ecclesiae quae in hoc Concilio determinda est. ipsam Ecclesiam exhiberet quase imbutam spiritu evangélico, scilicet: spiritus apertus er reapse catholicus, spiritus missionarius; spiritus humilis deditionis et servitii”.

    7 Ibid. 160: “...quia id sapit militarismum”.8 Ibid. 295: “La comparaison de l’Eglise avec ̀ une armée serrée en bataille’ ...n’est pas ce qu’il ya de plus heureux...”9 AS, II (I), 215-281.

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    O posicionamento do Cardeal Ruffïni10 é contrário ao reconhecimento da existência de carismas na Igreja atual, fazendo exceção de casos raríssimos e rejeitando que se encontrem nos leigos. Podemos resumir o seu pensamento assim:

    a. Os carismas ocupam muito espaço no texto do esquema.

    b. Os carismas, abundantes no início da Igreja, diminuíram com o passar do tempo até o seu quase desaparecimento.

    c. Atualmente os carismas são raríssimos e excepcionais.

    d. Não se pode confiar nos leigos carismáticos para o apostolado e o crescimento da Igreja.

    e. Os carismas na Igreja primitiva eram ocasião de freqüentes desordens nas comunidades.

    O Cardeal Suenens11 sublinhou praticamente todo o contrário. Podemos sintetizar a sua intervenção nestes termos:

    a. fala-se pouco dos carismas no texto, devem ser tratados mais amplamente porque são muito importantes na vida da Igreja.

    b. O tempo da Igreja é a era do Espírito Santo. O Espírito Santo é recebido por todos os cristãos, pastores e fiéis, pelo batismo. O Espírito se faz presente na Igreja por meio de seus dons e carismas.

    c. Os carismas estiveram presentes ao longo de toda a história da Igreja, das origens até os nossos dias.

    d. Na Igreja primitiva existiam não somente carismas extraordinários, mas também ordinários (discernimento, governo,...)

    e. Na Igreja são necessários os pastores e os carismas porque a Igreja não é uma estrutura administrativa, mas uma realidade viva. Ambos devem concorrer para construir a Igreja com o diálogo aberto e sincero. Uma Igreja sem um destes elementos cairia na desordem ou na esterilidade.

    f. Pede uma maior presença dos leigos no Concílio e de modo especial das mulheres e dos religiosos das Congregações laicais.

    O debate foi mais favorável às teses do Cardeal Suenens, mas o fruto mais importante dele foi a aceitação da nova eclesiologia que devia ser expressa na redação do texto definitivo.

    10 AS, II (II), 627-632.11 AS, II (III), 175-178.

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    O forte debate sobre os carismas deixou manifestada uma tensão que estava presente desde a primeira redação: a relação entre a Igreja hierárquica e a Igreja carismática.

    O texto definitivo mantém ainda como base este tema. Explica-se assim que dos 6 textos (4; 7; 12; 25; 30; 50) nos quais se fala dos carismas, em três deles (7; 12,30) se repita desde diferentes perspectivas, que os carismas devem ser estudados e aprovados pela hierarquia.

    Do conjunto de textos sobre os carismas presentes na “Lumen Gentium”, podemos traçar as coordenadas para uma nova perspectiva teológica:

    1. Contexto eclesiológico

    Desde o primeiro momento, os carismas foram tratados no âmbito da reflexão sobre a Igreja. Segundo a concepção eclesiológica, assim eram tratados os carismas. Como conseqüência, os carismas são entendidos como elemento importante da nova eclesiologia conciliar que define a Igreja como mistério e povo de Deus no qual cada um tem a própria vocação com a qual contribui para a edificação comum.

    A doutrina conciliar define os carismas neste contexto eclesiológico como graças especiais doadas pelo Espírito a todos os batizados para o bem da Igreja. Estes carismas podem ser excelsos ou simples e corresponde à hierarquia o seu discernimento e integração na vida da comunidade eclesial.

    As linhas de força que emergem desta compreensão são:

    a. Definição terminológica.

    O texto conciliar não usa a palavra “carisma” para exprimir num sentido geral as graças que o Espírito doa à sua Igreja, mas este significado se exprime com a palavra “dons”. Por sua vez, estes dons podem ser hierárquicos e carismáticos.

    b. Os carismas na Igreja como mistério.

    A Igreja é assistida pelo Espírito Santo mediante os seus dons. Eles têm a missão de governá-la, os dons hierárquicos; e de enriquecê-la, os dons carismáticos. Portanto, os carismas estão presentes na Igreja, mas a sua missão principal, exceto se estão associados aos dons hierárquicos, não é o governo dela (LG 4; 7).

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    c. Os carismas e o povo de Deus.

    O Espírito distribui os seus carismas a todos os fiéis para a edificação da Igreja. Os leigos os recebem para contribuir à sua missão salvífica mediante o apostolado. Estes carismas estão amplamente difundidos, mas não devem ser desejados temerariamente e sempre devem estar submetidos ao discernimento e integrados na vida e atividade da Igreja para a hierarquia (LG 12, 30).

    d. Os carismas e a Hierarquia.

    Não se fala explicitamente dos carismas em referência à hierarquia, salvo no caso do carisma da infalibilidade (LG 25), irias de dons. Aparece, sim, delineada a sua missão em relação a eles, como vimos antes.

    Enfim, pode-se dizer que a reflexão teológica pós-conciliar continuou fundamentalmente esta orientação para estabelecer a relação entre a dimensão institucional e carismática da Igreja, aprofundando e trazendo novos aspectos que ajudem a superar esta visão dualista, porque, de alguma forma, ela ainda persiste na doutrina conciliar.

    fruto deste perseverante empenho podem ser consideradas as palavras de João Paulo II que assume a co-essencialidade da dimensão institucional e carismática na construção da Igreja.

    2. A Vida Religiosa

    Em nossa pesquisa pretendíamos aprofundar o estudo da identidade da Vida Religiosa em sua relação com a dimensão carismática da Igreja.

    Nós nos rendemos conta que uma diversa eclesiologia configura uma nova situação para a Vida Religiosa no contexto eclesial. Na eclesiologia anterior ao Concílio, que considerava a Igreja como sociedade perfeita, a Vida Religiosa era vista com uma orientação jurídica e ascética sem nenhuma referência à sua natureza carismática. De fato, na primeira redação aparece com um capítulo próprio intitulado “De statibus adquirendae perfectionis”.

    Com a nova eclesiologia do Vaticano II não foi um empenho fácil designar o lugar e a definição que correspondia à Vida Religiosa. Ao contrário, foi motivo de numerosas controvérsias e dificuldades. Todo este trabalho teve como resultado a redação de um capítulo próprio na “Lumes Gentium”, o que a princípio não estava previsto no novo projeto da Constituição.

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    falava-se da Vida Religiosa no capítulo que tratava do chamado universal à santidade, fazendo desaparecer o capítulo a ela dedicado no texto precedente.12 Além disto, uma das coisas que mais chama a atenção no capítulo sobre os religiosos na “Lumen Gentium”, é que a Vida Religiosa nunca é descrita com a palavra “carisma”e por outro lado, não há quase nenhuma referência bíblica.

    Quais os motivos destas lacunas? De um lado, as pessoas que propuseram o texto base da nova eclesiologia, falavam da Vicia Religiosa no contexto amplo do chamado de todos os cristãos à santidade. A Vida Religiosa é somente um caminho para atingi-la dentro da Igreja. Desde esta perspectiva, procuravam superar a concepção da Vida Religiosa com uma estado de vida “mais perfeito”, mas se perdia a sua própria identidade carismática na Igreja.

    A oposição de numerosos padres conciliares a esta orientação reducionista fez que os religiosos tivessem um capítulo próprio na “Lumes Gentium”,13 mas em grande parte permaneceu o texto já existente como parte final do capítulo sobre o chamado universal à santidade. Agora passava a ser o capítulo IV sobre os religiosos, porém nele predominava, bastante, uma visão ascética da Vida Religiosa.

    12 U. BETTI, Cronistoria della Costituzione, in G. BARAUNA ( ed.), La Chiesa dei Vaticano II, firenze 1965, 137. Betti em seu estudo diz que para redigir o novo texto a Comissão Doutrinal nomeou uma sub-comissão “De Ecclesia” que trabalhou com um esquema de origem belga dividido em quatro capítulos: O mistério da Igreja, A hierarquia e em particular sobre o episcopado, os leigos e os estados de perfeição. O esquema foi aprovado pela comissão Doutrinal; somente o capitulo 4 sobre os estados de perfeição não foi aprovado e foi refeito por tinia nova sub-comissão nomeada para esta finalidade. Na nova redação o capítulo mudou a orientação porque o seu tema específico não eram mais os estados de perfeição mas a vocação universal à santidade, e este capítulo não foi estudado pela comissão Doutrinal, passando diretamente ao debate conciliar.

    13 Um exemplo destas reações encontramos no Abade Geral do Cisterciense, P.5. KLEINER. Para ele, a questão a tratar não é sobre a igualdade ou desigualdade da santidade dos religiosos e a de todos os outros cristãos, mas se o lugar de falar da Vida Religiosa é próprio neste capítulo sobre a vocação à santidade ou em outro diferente, porque agora aparece como um tratado de teologia ascética, como um apêndice. Por isto, pensa que o modo de apresentar o tema dos conselhos evangélicos no capítulo é completamente insuficiente e restritivo; e, de outro lado, deve se tratar do estado religioso de uma maneira mais concreta e adequada.Para ele é necessário falar dos religiosos não separados da Igreja, mas mostrando as suas profundas raízes teológicas e eclesiológicas. Neste contexto e no final de sua exposição fala cios carismas em relação com os fundadores.Dos grandes tesouros que o nosso Senhor confiou à sua Igreja, cada um dos fundadores recebeu um dom especial ou carisma que plasmou institucionalmente na sua família religiosa que, desta maneira, o faz_ perdurar. Os diferentes ofícios que a Igreja tem de adorar, evangelizar, etc. encontram em cada Instituto a sua expressão peculiar, ainda que não exclusiva, assim a face da Igreja resplandece de maneiras diversas nos diferentes Institutos religiosos. Os Institutos são a mesma Igreja que age neles segundo aquele dom particular.Nesta contribuição de KLEINER, encontramos os elementos fundamentais e constitutivos dos carismas e a sua relação com a Vida Religiosa. A Vida Religiosa nasce na Igreja como um dom que Deus lhe dá através de algumas pessoas, os fundadores, os quais recebem um carisma especial, que se faz vida da Igreja nas diferentes famílias religiosas. ( cf. AS, II (IV), 231-233).Outros Padres que falaram neste sentido foram: SILVA, DÖfNER, DESChÂTELETS, SChWEIGER. etc. Mas o documento que teve mais força para fazer um capítulo especial para os religiosos foi aquele assinado por 679 Padres, os quais pediam expressamente tal capítulo especial. A decisão final foi tomada pelo próprio concílio em uma votação para esta finalidade que teve o seguinte resultado: Padres votantes: 2.177; placet: 1.856; non placet: 698; placet iuxta modum: 4; suffragia nulla: 3. (cf. AS. Ill (111), 140.

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    Apesar disto, e aqui entramos em um outro aspecto muito interessante do Concílio, a realidade carismática da Igreja, não aparece no Concílio somente mediante o uso da palavra “carisma” mas também com as palavras “dom” e “graça”. Denominamos esta realidade como “campos semânticos”. Em várias ocasiões, traduzem ou fazem referência a textos bíblicos, sobretudo de São Paulo, nos quais se fala expressamente dos carismas nas primeiras comunidades cristãs.

    Por isto, especialmente no caso da Vida Religiosa, a sua identidade carismática é afirmada pelo Concílio, não com a palavra “carisma” mas com a palavra “dom”. Assim, a Vida Religiosa que se identifica com os conselhos evangélicos, é considerada um dom do Espírito à sua Igreja. Ele sempre existiu como testemunha a vida dos homens e das mulheres que abraçaram os conselhos evangélicos ao longo da história da Igreja.

    Este modo de existência cristã é considerado um estado de vida, que não é intermediário entre a condição dos clérigos e a dos leigos, mas de ambas as partes Deus chama alguns fiéis para possuir um dom particular na vida da Igreja (LG 43).

    O estado, portanto, constituído pela profissão dos conselhos evangélicos, mesmo não pertencendo à estrutura hierárquica da Igreja, pertence, todavia, indiscutivelmente à sua vida e à sua santidade (LG 44).

    Como conseqüência, a Vida Religiosa é vista na “Lumen Gentium” como um carisma que implica a própria vida e santidade da Igreja. Assim, a índole eclesial da Vida Religiosa se explica e se entende desde o elemento carismático da Igreja, do qual ela é uma expressão concreta.

    O Concílio apresenta com a “Lumen Gentium” a doutrina fundamental sobre a dimensão carismática da Igreja e nela coloca a identidade da Vida Religiosa. Com o decreto “Perfectae Caritatis” enfrenta este mesmo tema desde outra perspectiva: a renovação que a Vida Religiosa era chamada a empreender.

    O “Perfectae Caritatis” também seguiu um longo processo de formação tendo necessidade de seis redações para chegar à sua forma definitiva. foi, sobretudo, um trabalho feito pelas comissões, porque o texto apresentado ao debate do Concílio era já, de fato, a quinta redação.

    No “Perfectae Caritatis” nem mesmo aparece o termo “carisma” em referência à Vida Religiosa, porém, se manifesta a sua realidade carismática com as palavras “donum” e “gratia”. Apesar disto, é preciso dizer que nas muitas colaborações feitas ao texto discutido na aula conciliar, alguns Padres falaram expressamente da necessidade de apresentar com clareza a sua realidade carismática. Dois destes Padres foram o Cardeal BEA e o Cardeal SILVA hENRIQUEZ.

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    O cardeal BEA14 na sua intervenção manifesta que o Decreto centraliza a renovação da Vida Religiosa sob um aspecto muito jurídico, faltando princípios, fundamentos e meios que o passam aviar.

    O cardeal BEA, pelo contrário, lembra que a Vida Religiosa deve ser vista no contexto da Igreja. O Decreto “Perfectae Caritatis” faz parte de todo o processo de renovação que está acontecendo na Igreja. A renovação da Vida Religiosa não deve centralizar-se somente no aspecto jurídico mas deve também atingir os seus princípios fundamentais. Um dos quais é a sua realidade carismática. Considera a Vida Religiosa como um dom carismático do Espírito à igreja tomando como exemplo a vida da Igreja primitiva (1 Cor 12). Como o Espírito Santo distribuía os seus carismas na Igreja primitiva, continuou a fazê-lo ao longo da história até nossos dias. Assim, os fundadores são pessoas que receberam carismas especiais, que transmitiram a outros, dando origem às diferentes e múltiplas Ordens e Congregações, por meios das quais os carismas permanecem na Igreja.

    O cardeal SILVA hENRIQUEZ15, crê, pelo contrário, que o esquema deve ser refeito novamente porque é muito genérico e incompleto. Mas a coisa mais interessante é que ele fala expressamente do carisma do fundador, “carisma fundatoris”, e o define claramente. O carisma do fundador é uma força dinâmina para promover a vida da Igreja peregrina segundo determinadas situações históricas. Em tal carisma devem-se distinguir dois elementos: a) Uma força vital, a qual é um dom especial do Espírito Santo em favor de toda a comunidade cristã, que pode e é normalmente chamado “espírito do fundador”, e b) a forma externa de encarnação deste dinamismo que se concretiza nas estruturas temporais e segundo os costumes de cada cultura e organização humana.

    Estas duas intervenções serão decisivas, sobretudo, para a redação da introdução feita ao Decreto conciliar. Mas, sobre o trabalho redacional, não se retomam as expressões concretas usadas por eles, evitando claramente o uso do termo carisma, tão explícito, sobretudo, na intervenção do Cardeal SILVA.16

    O texto definitívo do “Perfectae Caritatis” nos mostra as características com as quais é considerada a natureza carismática da Vida Religiosa. Ela é um chamado do Espírito para um estilo de vida, definido pela prática dos conselhos evangélicos cuja finalidade é seguir Cristo mais de perto e mais livremente (PC 1).

    Esta forma de vida existe na Igreja desde o seu início. Atrás do impulso do Espírito, muitos fundadores e fundadoras deram origem às famílias religiosas, as quais continuam a estar presentes na Igreja depois de serem por ela aprovadas.

    14 AS, 111 (VII), 442-44415 Ibid- 570-57116 É interessante notar que, segundo alguns estudiosos, o primeiro a utilizar a expressão “carisma do fundador”

    foi J. fAMRÉE. Le carisme de fondateur, Roma, 1966. ( cf. G. ROCCA, 11 carisma del fondatore, in Claretianum ( 1994) 49 ). Pelo contrário, aqui se vê claramente que foi o Cardeal SILVA a usar com propriedade por primeiro este termo “carisma fundatoris”e que depois se tornou uma expressão técnica.

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    Nas primeiras comunidades cristãs o Espírito concedia os seus carismas para a edificação da comunidade. Aos Institutos da vida apostólica é reconhecida uma especial continuidade com a presença de tais dons na Igreja ( PC 8).

    finalmente, encontramos outros documentos no Concílio Vaticano II que também usam o termo “carisma”, que são: DV 8; PO 4, 9; AA 3, 30; AG 4, 23; 28. Em todos encontramos definidos os carismas como dons que o Espírito Santo confere aos batizados para a missão recebida na construção da Igreja.

    O Documento “Ad Gentes” é o único que fala da Vida Religiosa em ligação com os carismas ( AG 23). Menciona os carismas no contexto da vocação missionária, que define como um chamado de Cristo àqueles que Ele quis entre os seus discípulos, para que o acompanhem e para convidá-los a pregar aos povos.

    Este chamado o faz o Espírito Santo que concede os carismas segundo o seu querer para a utilidade comum de todos. Um destes carismas é a vocação missionária que suscita no coração dos fiéis e pela qual dá a vida na Igreja aos Institutos que tomam como missão própria o dever da evangelização.

    A Vida Religiosa, portanto, é suscitada na Igreja como um dom do Espírito. Se esta Vida Religiosa surge dos carismas, a sua identidade se encontra nesta dimensão, constitutiva e essencial da Igreja. É parte imprescindível de sua vida e dinamismo.

    Todo este trabalho e impulso dado pelo Concílio promoveu nos Institutos uma renovação em todos os níveis, entre os quais emerge a reflexão teológica, que retomando as linhas traçadas pelo Concílio realizou um notável esforço.

    Ao seguir este caminho, as diversas Ordens e Congregações se orientaram segundo a própria consciência carismática, mas podemos recolher os seus frutos em alguns pontos essenciais:

    a. O Carisma da Vida Religiosa

    Se o Concílio não usa a palavra “carisma” para definir a Vida Religiosa tem presente o seu significado e atualmente esta expressão faz parte da linguagem comum da teologia.

    A reflexão teológica desenvolveu a identidade carismática da Vida Religiosa partindo de duas perspectivas:

    A primeira, compreendeu a Vida Religiosa, no seu conjunto, como carisma. Por este caminho se reforçou o ensinamento do Concílio que caracteriza a Vida Religiosa como um dom que nasce na Igreja pelo impulso do Espírito

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    Santo, e como um elemento essencial de seu componente carismático, já que não pertence à estrutura hierárquica mas à vida e santidade eclesiais.

    A segunda, desenvolve o estudo histórico-fenomenológico da Vida Religiosa, para passar de uma concepção carismática da mesma para a consideração, em cada Instituto, da realização concreta de um carisma.

    b. O carisma dos fundadores e do Instituto.

    O estudo de cada Instituto como realização concreta de um carisma recebido do Espírito nos leva para quem se encontra nas suas origens: a figura do fundador. Deste modo, se aviou uma ampla e profunda investigação sobre o carisma do fundador. Procura-se individuar as notas essenciais que deram origem ao novo Instituto e, como conseqüência, se analisa todo o processo interno que se produz desde a experiência originária até a perdurabilidade do carisma na dinâmica comunitária.

    c. Elementos essenciais para uma teologia dos carismas da Vida Religiosa

    Podemos concluir dizendo que o Concílio considera a Vida Religiosa como um dom carismático do Espírito à sua Igreja, um chamado a um estilo de vida segundo os conselhos evangélicos. Esta vivência tem a finalidade de favorecer a santidade na Igreja.

    Desde esta perspectiva, fala-se dos conselhos evangélicos como dons recebidos na Igreja do Senhor, e, a Vida Religiosa se mostra como um caminho para atingir a santidade. Não é definida como estado de vida mais perfeito, mas por meio de uma essencial referência carismática.

    Por tudo isto, podemos afirmar que a doutrina conciliar e a posterior reflexão teológica, nos apresentam a Vida Religiosa como parte constitutiva da dimensão carismática da Igreja: são carismas feitos vida na comunidade eclesial.

    A dimensão carismática da Igreja explica a existência da Vida Religiosa nela e a Vida Religiosa mostra de modo vivo e real o perfil carismático da Igreja. Por isto, a eclesialidade da Vida Religiosa é entendida particularmente pelo seu ser mais radical: a própria identidade carismática.

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    A VIDA CONSAGRADA hOJE DESAfIOS E VITALIDADE

    DIANTE DA PRIMEIRA DÉCADA DO ANO 2000

    De onde viemos, onde estamos, para onde vamos?

    Prof. Pe. José Rovira, CMf *

    RESUMO: São muitas as análises sócio-culturais da vida religiosa. A partir de números, cujo valor está no indicativo que na precisão da atualidade, vai-se discorrendo sobre o significado desta imensa força moral da vida consagrada, mesmo que em aparência os números sejam “pouco” expressivos no conjunto da vida da Igreja. Pessimismos, questões de crise, mudanças de valores e comportamentos? Na verdade, é o Senhor o dador de vocações e a Ele interessa a qualidade da VC, nesta mudança de tempos, onde é necessário ver a Vida Consagrada do mesmo modo... de antigamente. Inclusive é útil recordar que esta nem é a maior transformação na VC, na história da Igreja. Os novos passos dados “após a crise”– redescoberta da missa, refundação dos institutos – são na verdade ações criativas do Espírito, que pedem compromissos mais profunda, que evidencia o significado real da VC.

    PALAVRAS CHAVE: Vida Consagrada. Crise. Números. Desisnstitucionalização. Renascimento da espiritualidade. Novas formas de VC.

    ABSTRACT: There is a lot of social cultural analysis related to religious life. According to numbers, its valor states that in the present precision; bring up the meaning of this enormous moral strength of consecrated life, even though the numbers are “less” expressive in the group of church life. Pessimism, crisis questions, goodness changes and behaviors? In fact, the Lord is the vocation giver and He is interested about the consecrated life (CL), in this time of change, where it’s necessary to see the Consecrated Life in the same way… previously. Inclusive it’s useful to remember that this is not even the biggest change in CL, in the history of church. The new steps given “after crisis”-mass rediscovery, re-foundation of the institutes-are Spirit creative actions, which require deep commitment, evidencing the real meaning of CL.

    KEYWORDS: Consecrated Life. Crisis; Numbers. Deinstitutionalization. Spiritually rebirth. New ways of LC.

    Artigos

    * Diretor do Instituto de Teologia da Vida Consagrada “Claretianum “, de Roma.

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    Talvez esta pergunta possa parecer retórica, mas não é. falar “da” VC é fazer uma abstração; assim nos adverte insistentemente o próprio Magistério da Igreja em documentos recentes. O que existem são os grupos ou Institutos de VC e, em última instância, os indivíduos concretos. Pretender falar da VC como sendo uma realidade indiferenciada, é um dos grandes riscos da VC no nosso tempo: a indiferenciação, pensar que todos somos mais ou menos a mesma coisa.

    A constituição LG falava dos religiosos como uma «árvore com muitos galhos, esplêndida e viçosa» (LG 43a). Variedade esta, devida à diversidade do «carisma dos fundadores», como diziam ET 11 e MR 11. Por isso «a Igreja defende e apoia a índole peculiar dos vários Institutos Religiosos» (LG 44), «índole que comporta um estilo particular de santificação e de apostolado ... « (MR 11). Mais recentemente, PI afirmava que: «Não existe uma maneira uniforme de observar os conselhos evangélicos, antes cada Instituto tem que estabelecer a sua própria maneira, levando em consideração a sua índole e finalidade próprias. E isto, não somente no que diz respeito à prática dos conselhos evangélicos, como também a tudo o concernente ao estilo de vida dos seus membros» (PI 16). Concluindo: «Não existe uma vida religiosa ‹em si›, à qual acrescentaria-se depois, como algo exterior, um fim específico e o carisma particular de cada Instituto» (PI 17). Por isso, VfC dirá que « é preciso cultivar a identidade carismática, para evitar uma crescente indiferenciação, que constitui um verdadeiro perigo para a vitalidade da comunidade religiosa” (VfC 46ª). Diversidade esta sobre a que insistiram, tanto o CDC 573-730, quanto o CIC 914-933.944-945 e, ultimamente, VC 5-12 e 62.

    Como quer que seja, também não podemos negar a existência de aspectos que, de alguma maneira ou medida, se assemelham ou se aproximam. É isto que nos permite falar “da” VC em geral, apesar de tudo. fazendo uma comparação, eu diria que todas as caras possuem os mesmos elementos, apesar do qual, dificilmente confundimos uma pessoa com outra.

    No mais, devemos levar em consideração ainda que, quando falamos de VC estamos entendendo, seguindo o estilo atual nos documentos mais recentes: a VR mais os IS.

    Por último, para falar da “VC hoje”, o faremos considerando a situação geral, em nível de Igreja. Portanto, devemos ter presente que as situações variam do norte para o sul, de continente para continente, de país em país, e inclusive dentro do mesmo país, dependendo das várias regiões. Sem esquecer que varia também de Instituto a Instituto e, inclusive, dentro de um mesmo Instituto, segundo os lugares e as Províncias.

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    1. SITUAçãO e TenDênCIAS DA VC ATUAl

    Qual é a evolução numérica da VC atual? Quantos somos? Quê mudanças nos apontam as estatísticas oficiais das últimas décadas? Quais são as tendências que estes números manifestam?

    a) Segundo o lnstrumentum Laboris para o Sínodo dos Bispos de 1994, sobre a VC (IL 5e e 8b), os consagrados naquele momento eram:

    - de Direito Pontifício: 1.423 Congregações femininas e 250 masculinas;

    - de Direito Diocesano: I.SS0 Congregações femininas e 242 masculinas;

    - tanto de Direito Pontificio quanto Diocesano: 165 Institutos Seculares, 39 Sociedades de Vida Apostólica e um número crescente de virgens consagradas, viúvos e viúvas, ermitãos e ermitãs, e outros grupos ainda ...

    É interessante notar que, apesar do período de crise atravessado nas últimas décadas, a Santa Sé (sem falar dos Bispos, no nível diocesano), do Vaticano II até o início dos anos 90, aprovou mais de 200 novos Institutos! O Espírito Santo não tomou férias!

    falando em conjunto, somos um pouco mais de um milhão de pessoas, equivalente ao 0,12 % do total da Igreja Católica. Uma realidade eclesial muito pequena, porém muito dinâmica. Com efeito, se fôssemos julgar o número pela influência e a atividade realizada pelos consagrados, poderia parecer que somos muitíssimos mais. Portanto, ser católico significa, normalmente, ser «leigo», e somente de maneira excepcional, ser clérigo ou consagrado.

    Outro dado importante é que, dentro da VC, os 82,25 % são leigos e somente 17,8 % são sacerdotes ou diáconos. Ainda: uns 72,5 % são mulheres, e um 27,5 % homens. A VC atual, então, é maioritariamente laical e feminina.

    b) As tendências numéricas na VC são as seguintes (vamos nos referir também aos sacerdotes, diáconos e seminaristas, considerando a «proximidade» vocacional):

    - As vocações sacerdotais estão diminuindo globalmente; mas, dentro desta situação, diminuem mais os religiosos do que os diocesanos.

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    - As ordenações sacerdotais, pelo contrário, estão aumentando.

    - Os falecimentos, tanto de diocesanos quanto de religiosos, estão aumentando.

    - Os abandonos, tanto de diocesanos quanto de religiosos, estão diminuindo. Os seminaristas maiores (diocesanos e religiosos) estão aumentando.

    - Os abandonos de seminaristas maiores (diocesanos e religiosos) estão aumentando.

    - Os seminaristas menores (diocesanos e religiosos) estão diminuindo, devido ao fechamento deste tipo de seminário em muitos países.

    - Os diáconos permanentes estão aumentando. Os religiosos irmãos estão diminuindo.

    - As religiosas estão diminuindo.

    - Os noviços e noviças estão aumentando.

    c) Destes dados (e de outros que poderíamos acrescentar), podemos tirar várias conseqüências que gostaria de indicar agora brevemente.

    A maioria dos sacerdotes e consagrados, globalmente, encontram-se ainda no mundo ocidental, particularmente na Europa. Um exemplo: há mais religiosas somente na Itália (120.000, apesar da crise), que em toda a América Latina (93.000).

    Porém, estão crescendo rapidamente as novas vocações fora do mundo ocidental e da Europa. Por isso, considerando as entradas e os falecimentos, percebemos uma tendência que indica que, num futuro não muito distante, a maior parte dos sacerdotes e consagrados estará no Terceiro Mundo, embora hoje em dia ainda não seja assim.

    A crise numérica atingiu e atinge, sobretudo e em certos aspectos unicamente, o chamado mundo ocidental.

    O momento mais forte da crise das últimas décadas, em nível de Igreja, já passou, podendo ser situado entre os anos 1975-1979. A partir desse momento, percebe-se uma diminuição dos abandonos e uma recuperação, embora hesitante, das entradas. Em todo caso, dá a impressão de que não voltaremos aos números do passado, e por outro lado os acréscimos são ainda parciais e

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    variáveis, para podermos prognosticar claramente o futuro. É verdade que as novas vocações aumentam; mas, no conjunto, há um envelhecimento da VC, ou seja, que o número de falecimentos certamente crescerá. As novas vocações não conseguem recuperar o número de falecimentos e, ainda que tenham diminuído, o de abandonos.

    No Segundo Mundos ( os países ex-comunistas do Leste europeu) está se experimentando um certo renascimento religioso, depois de cinqüenta anos de perseguição religiosa e de congelamento político-econômico-social. Mas, a situação ainda não está clara, e as manifestações são muito incertas. Parece, com efeito, que domina a sede de consumismo, e que tendem a imitar os piores defeitos do mundo ocidental com que estão entrando em contato de maneira acelerada.

    Enquanto isso, no Terceiro e no Quarto Mundo, em geral (há exceções), está acontecendo um forte aumento vocacional, portador verdadeiramente de esperança. Mas, em muitos lugares fica aberto o problema de que são muitos os que entram, mas a desproporção com o número dos que a longo prazo perseveram de fato, é muito grande. E coloca-se também a pergunta sobre se este aumento continuará ou não, em particular por causa da influência do secularismo ocidental, através dos meios de comunicação social.

    O mundo feminino, em feral, entrou em crise mais tarde do que o mundo masculino; todavia, parece ser que os efeitos negativos, em muitos lugares, são maiores. Uma razão disto encontra-se, provavelmente, no fato da pouca formação anterior em muitíssimas religiosas, o que fez que ficassem sem recursos culturais e humanos diante da crise cultural. A graça de Deus pode certamente fazer milagres; mas não podemos prescindir dos elementos humanos. A graça pressupõe a natureza, repetia Santo Tomás de Aquino. O fato de que nas últimas décadas tenha havido uma reação, intensificando a formação inicial, e criando a formação permanente, está sendo uma boa resposta ao desafio.

    Para prever de alguma maneira qual será a evolução numérica no futuro próximo, não basta considerar os números globais nas várias Congregações (por exemplo: éramos mil e agora somos oitocentos). O ponto de referência são os noviços, pois todos os consagrados passam pelo Noviciado. E este é o lugar onde para muitas Congregações (ou Províncias) os números despencaram mais ou menos em queda livre. Mais ainda, ultimamente nem sequer é suficiente olhar para os Noviciados, pois, como dizem os psicólogos, o amadurecimento de muitos indivíduos hoje em dia está demorando mais (não está passando, como pretendem os políticos, dos 21 para os 18 anos, mas dos 21 para os 25 ou os 30); diante disto, vemos nos dias de hoje que, enquanto em outros tempos o momento de crise e de decisão definitiva da pessoa era o Noviciado, atualmente chega mais tarde, até as vésperas ou inclusive depois da profissão perpétua ou da ordenação sacerdotal. Indivíduos que foram em frente com mais ou menos tranqüilidade até

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    esse momento, de repente entram em crise, ou nunca acabam de decidir. De fato vemos que somente observa do quantos perseveram depois de um tempo de votos perpétuos, é que podemos ter certeza de quantos somos, na realidade.

    Digamos, antes de mais, que não é a primeira vez que a VC atravessa um período de crise, e também que esta não é a maior crise por ela vivida ao longo da sua história. Baste lembrar as perseguições locais de outros séculos, as epidemias, a Reforma protestante, a Revolução francesa e as guerras liberais desde o final do século XVIII até aos meados do século XIX, as perseguições do nosso século por parte de regimes totalitários: nazismo, fascismos e comunismos vários. A história, hoje como sempre é mestra de vida; temos que conhecer o passado para compreender o presente e preparar o futuro. Ignorar o passado é desconhecer-se a si mesmo e se condenar a repetir os próprios eventuais erros. A criança e o adolescente vêem apenas o futuro; o ancião, somente o passado; a pessoa humanamente madura é aquela que possui e vive os três tempos (passado, presente e futuro) de maneira equilibrada. E a situação atual está pedindo de todos nós um suplemento de sabedoria e de maturidade humanas e cristãs, para poder servir melhor o homem e o Reino de Deus.

    a) Para termos a coragem de dizer alguma coisa a respeito do futuro, digamos, em primeiro lugar, algo sobre as etapas vividas pela VC nestas últimas décadas (sempre nas grandes linhas e considerada globalmente).

    Nos primeiros anos depois da celebração do concílio Vaticano II, aconteceu, antes de mais, uma crise da instituição, ou desinstituicionalização, uma rejeição quase instintiva e generalizada, por parte de muitos, do aparelho institucional da VC (como também da Igreja). Explodiu uma crise que estava latente já fazia muitos anos, por não dizer séculos; crise motivada fundamentalmente pela ausência de uma adaptação ajustada à cultura em que de fato se vivia. Atribuir simplesmente ao Vaticano II a crise posterior a ele, significa somente desconhecer, mais uma vez, a história. Em PC 2-6, os Padres, assistidos pelo Espírito Santo, afirmaram que era preciso: eliminar o que já fosse de tempos passados, adaptar o que ainda fosse válido, e introduzir novas estruturas. Tudo isto representou uma mexida federal, uma verdadeira “revolução cultural”, a qual, sem dúvida -como quase todas as revoluções- produziu entusiasmo, confusão, vítimas e melhorias.

    Este vazio de estruturas deixou a pessoa ao relento, sem aquelas bengalas, ao qual ela não estava habituada. Eram os últimos anos da década dos sessenta: os anos do Primeiro Capítulo Geral depois do Concílio. Deste naufrágio das estruturas emergia uma pessoa mais consciente da sua unicidade, dignidade e liberdade, porém atordoada e freqüentemente frágil.

    Tudo isto deu lugar a uma crise de identidade: o que significava ser religioso nas novas circunstâncias, valia a pena continuar em frente? O efeito foi

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    extraordinário: desencadeou-se o estudo do próprio carisma e das fontes, da figura do fundador etc... Começou um esforço imenso e enormemente enriquecedor.

    A fragilidade do indivíduo fez com que ele se aproximasse, com uma visão nova, a seus irmãos de carisma: aconteceu uma grande ênfase da vida comunitária. Estamos entre os anos 1968 e 1973. Uma comunidade, em todo caso, diferente da anterior em muitos aspectos: uma comunidade menos estruturada, e mais comunhão carismática e lar humano. Conseqüentemente, adquiria um novo significado a oração em comum, a partilha dos sentimentos humanos e das experiências espirituais, desaparecendo, pelo contrário, quase completamente o silêncio, tão sagrado em outros tempos.

    Todavia, a comunidade religiosa percebeu que ela não existia sozinha, nem somente para si mesma, formando antes parte de uma comunhão mais ampla: a Igreja universal, encarnada na Igreja local. Os religiosos iam descobrindo os outros cristãos da paróquia, da diocese, do bairro, do prédio ... ; sentiam-se mais próximos das pessoas e menos uma casta separada.

    Ora, este «estar» dos consagrados no meio das pessoas, tinha uma razão de ser: a missão. Os carismas são dons do Espírito para a construção do Povo de Deus, minha vocação é um dom que Deus faz aos outros através de mim. Tudo isso levou a focalizar a missão, a reformulá-la. Nós somos para os outros, estamos em missão: fomos chamados para ser consagrados, para ser enviados. Estamos entre 1974 e 1980 (os anos da EN 1975, do MR 1978 e do RPh 1980).

    Contudo, realizar a missão estava se manifestando cada vez mais difícil. A sociedade não aceitava facilmente a missão dos consagrados; ela estava se secularizando depressa. Muitos consagrados sentiam-se impreparados, espiritualmente, culturalmente e, às vezes, até humanamente. Por isso, reforçou-se mais ainda o interesse pela pessoa, intensificou-se a formação inicial e «inventou-se» algo que a sociedade já tinha descoberto fazia tempo: a formação permanente.

    No final dos anos 70 e no início dos 80, houve um retomo à instituição, se bem que renovada: uma nova institucionalização. Acabava o tempo das experiências, e chegava a hora de chegar a conclusões concretas. No nível de Igreja foi aprovado o novo CD (1983), e no nível de cada Congregação iam sendo aprovados os textos definitivos das novas Constituições. Acabava o pós-concílio e começava uma nova Época: o pós-posconcílio.

    Este interesse renovado pela pessoa, e esta “calmaria exterior” depois de tantos anos de buscas e discussões, fez com que nos anos 80 renascesse fortemente a preocupação pela espiritualidade. Na verdade, já no final dos anos 70 aconteceu um “boom” de interesse em relação à oração (agora pessoal, pois a coletiva já fora recuperada anteriormente); aparecia um grande interesse pela interioridade, pela dimensão contemplativa da VC (DCVR 1980), pela Cristologia, a Pneumatologia,

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    a Mariologia (RMa 1987) e o silêncio. Multiplicavam-se as experiências chamadas de “deserto” e cresciam como fungos as “casas de espiritualidade” ou de acolhida, etc.

    Existia o perigo de cair numa espécie de intimismo ou de pietismo, o privatismo. Um bom antídoto foi, ainda muito lentamente, ao longo dos anos 80, o interesse pelo tema da “Nova Evangelização”, que João Paulo II estava pregando desde 1983, com motivo da sua visita no haiti; a celebração dos 500 anos do início da evangelização das Américas; e o documento sobre a formação (PI), cuja preparação se alongava já por mais de vinte anos. Além disso, estávamos entrando num período de um certo cansaço: os temas repetiam-se, porém sem muito mordente.

    Na primeira metade dos anos 90, temos vivido mais ou menos intensamente algo que poderíamos chamar “o Sínodo e seus arredores”. Um período que foi dos [mais de 1991, quando o Papa anunciou o tema do Sínodo sobre a VC, até a primavera de 1996, com a publicação da Exortação Apostólica Pós-sinodal “Vita Consecrata”, e cujo momento central foi a celebração desta Assembléia, em Outubro de 1994. Um Sínodo que foi, no dizer do Cardeal Daneels de Bruxelas, o mais concorrido, o mais participado e o mais tranqüilo. Os consagrados demos uma grande prova de responsabilidade, apesar de que ele não foi sentido ou seguido com a mesma intensidade em todos os lugares. No mais, a Exortação não pretendia certamente, nem podia, ser perfeita ou satisfazer todo mundo; mas não se pode negar que é um bom documento, certamente o melhor sobre a VC do Vaticano II até hoje; um documento positivo, estimulante e aberto; não é a última palavra (nem poderia pretender sê-lo: basta ler as palavras do n. l3e, onde o Papa nos exorta a uma “adesão cordial” e a “continuar a reflexão”), mas é, sem dúvida, uma grande palavra.

    O risco consiste em que, considerando que nestes anos estamos sendo bombardeados por uma chuvarada incessante de documentos ec1esiais e congregacionais e que, por outro lado, muitos sofrem de uma espécie de alergia pela leitura, sendo levados pela “sociedade da imagem”, este documento possa ter caído no esquecimento, que não tenha sido meditado seriamente ou inc1usive que nem tenha sido lido. Dependerá muito dos formadores, diretores espirituais, pregadores, escritores, etc . ... , que seja transmitido às novas gerações de consagrados.

    b) Chegados neste ponto, o quê podemos dizer sobre o futuro da VC? Quê características aparecem na VC que está surgindo em volta de nós, e em nós mesmos?

    No mundo chamado ocidental, particularmente o mundo europeu, diante do secularismo, da busca frenética do hedonismo e da liberdade, e diante do envelhecimento dos consagrados e a escassez de vocações, estão aparecendo

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    dois interesse: 1) em favor da dimensão contemplativa da VIC, e 2) da inserção no meio do povo. Muitos jovens demonstram muito pouco interesse pelas grandes obras e pelo eficientismo das gerações precedentes; gostam, pelo contrário, dos grupos pequenos, de ser sinal e testemunho, levedo na massa, da proximidade com as pessoas concretas, particularmente os pobres. Interesses mais do que justos, se evitarmos o perigo de cair no pietismo, no privatismo, e de simplesmente se encarnar para sumir dentro da massa. Existe também uma certa tendência ao aburguesamento, a uma vida espiritual fraca, e um certo número de personalidades frágeis (consagrados “light”).

    No mundo ex-comunista, os novos consagrados, que entraram depois do colapso da URSS, trouxeram consigo um testemunho de sofrimento, fidelidade e martírio que foi um exemplo para todos. Todavia, eles estão tendo que se atualizar rapidamente, depois de tanto tempo perdido, sem por isso perder os seus valores e sem imitar os defeitos do Ocidente. Um trabalho nada fácil. Creio que a grande solução é o diálogo; um diálogo que vai nos enriquecer, e que já está nos enriquecendo a todos. Todos temos que aprender de todos; ninguém tem “o” modelo válido para todos; determinados “messianismos, de uma parte ou de outra, estão se demonstrando sempre falsos. Sem esquecer que já está despontando a geração que não conheceu o comunismo, e que vem aí com uma mentalidade diferente.

    No Terceiro Mundo, os que vivem nas grandes cidades correm perigos muito semelhantes aos do mundo ocidental; os outros (e também muitos dos que moram nos centros urbanos) vivem uma realidade de grande inserção entre as pessoas e de verdadeira preocupação e serviço aos pobres. Mas em não poucos lugares é preciso cuidar bem a formação (saber “perder tempo” para se preparar cultural, humana e espiritualmente, pois em caso contrário, em pouco tempo pagam-se as conseqüências desta superficialidade!), e fortalecer as pessoas para ajudá-Ias a perseverar: não são poucos os que, depois de uns anos (ou menos até) de grande e sincera atividade apostólica, acabam largando tudo.

    c) Finalmente, para que futuro estamos nos encaminhando? Eu ousaria indicar alguns pontos, sem querer brincar de profeta.

    A VC está mudando. Globalmente, estamos diminuindo em número. Em alguns países de velha tradição (como os ocidentais, mas também em alguns lugares do Terceiro Mundo), constata-se um envelhecimento preocupante, que as novas vocações não conseguem equilibrar. Em outros países, sobretudo alguns do Terceiro Mundo, acontece, pelo contrário, um crescimento estupendo. A VC, portanto, está mudando de lugar e de cultura; e isto, futuramente, comportará outras mudanças nos níveis teológico e comportamental, quando for cada vez menor a influência dos antigos países originais do Instituto, e se proceda a uma inculturação radical.

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    Em todo caso, o grande risco para a VC não é o número (que depende de Deus e de muitos imponderáveis históricos), mas a qualidade. Por outras palavras, o perigo (e não somente o perigo, às vezes!) da mediocridade, da falta de radicalismo evangélico, do aburguesamento, da ambigüidade, do individualismo, da incoerência, da superficialidade, da falta de preparo, etc. E este não é um problema somente dos jovens, mas de todos os consagrados, por mais idade que tenham. Não devemos esquecer que nós mesmos somos a melhor ou a pior propaganda vocacional.

    Alguns Institutos, ou em alguns lugares, será necessário aprender o que foi denominado a “ars moriendi carismatica”, ou seja, também, saber morrer, saber desaparecer. O problema não é morrer, mas perceber se chegou realmente a hora, ou seja, se o Instituto já realizou a missão que o Espírito lhe confiou. Depois disso, morrer é um sinal de confiança em Deus, de abandono à Sua vontade e de pobreza evangélica. No mais, a experiência histórica e a fé em Deus nos garantem -como repetidamente diz a Exortação Pós-sino dai (VC 3.29.63)- que a VC não faltará ao longo dos séculos, embora possam evoluir e desaparecer muitas das suas formas.

    As novas formas de VC e de vida evangélica em geral, que estão aparecendo continuamente na Igreja: o Espírito não esgotou a sua criatividade! (cf. VC 62). Prova disto é a contínua emergência de novos grupos e experiências em todos estes anos, inclusive naqueles países onde a VC «tradicional» se encontra mais ou menos em crise ou em fase de extinção.

    COnClUSãO

    e se perguntássemos ao Cristo sobre o nosso futuro, o responderia?

    Tudo o que dissemos até agora nos conduz a ler a realidade atual da VC, não de maneira alarmista, e também não ingênua, mas providencialista. Antes de mais, temos que agradecer pelo seu crescimento e expansão em tantos lugares e, no que diz respeito à situação crítica em não poucos Institutos ou partes dos mesmos, atualmente, não devemos vê-Ia como efeito de uma espécie de castigo divino (como poderíamos dizer tal coisa, quando tem havido e há ainda tanta entrega e tanta fidelidade?), mas como a passagem contínua, embora talvez surpreendente e criativa, de Deus na história da humanidade. No mais, o futuro da VC não depende do número de consagrados nem do prestígio ou da eficácia humana das suas obras e instituições, dos cargos ocupados pelos consagrados na Igreja ou na sociedade, etc.; mas da sua atenção e acolhida, alegre e disponível, da voz do Espírito. Nunca devemos esquecer que o Espírito é a nossa força:

    Aquele que nos fez nascer na Igreja, para a Igreja e para o mundo; mas é Ele, também, quem nos faz entrar em crise, ou até decreta, se for preciso, a nossa morte, se nos tornarmos servos que não sabem explorar os dons recebidos no

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    momento e da maneira devidos (cf. Mt 25,24-30; Lc 19,20-36). Poderíamos citar aqui uma famosa frase de Georges Bernanos: “O Evangelho é jovem, vocês é que são velhos!”.

    No mais, não devemos perder muito tempo em tentar adivinhar como será a VC do futuro, o tanto fatídico quanto banal século XXI. Temos, antes, que nos esforçar em vivê-Ia hoje com a maior fidelidade possível: esta é, certamente, a melhor preparação para o futuro que Deus quiser nos dar. Se perguntássemos ao Cristo, como vai ser o futuro, e quantos e como vão ser os nossos sucessores, quem sabe se não nos responderia talvez como a Pedro: “O que tu tens com isso? Tu, segue-me!” (Jo 21,22)?

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    MISTICA E PROfECIA UM ESTILO DE VIDA E “NOVOS AREÓPAGOS”

    Ciro Garcia, OCD *

    “Que bom eu saber que a fonte emana e corre, ainda que seja noite” (São João da Cruz)

    RESUMO: Mística e profecia constituem uma descoberta gozosa das fontes da salvação para a da vida consagrada. Elas são uma experiência baseada na fé, que se alimenta visceralmente de Deus. Os religiosos são chamados a recriar o carisma místico-profético na Igreja, através da experiência viva, concreta de Deus e sua Palavra, numa espiritualidade contemporânea, que assinala a urgência desse testemunho, sobretudo em novos areópagos que aparecem para e na vida consagrada. O inseparável binômio se torna testemunho porque importa no seguimento afirmativo de Jesus, o apaixonado por Deus e pela humanidade. A mística aponta para alguns areópagos concretos (vivencia pessoal da fé, escuta da Palavra, experiência de Deus), enquanto a profecia se faz em outro estilo ( desde de uma situação de exílio, capaz de criar comunhão, humanizar, descobrir a sabedoria dos pequenos sinais). E por consequência a VC se torna uma canção de almas enamoradas do Senhor.

    PALAVRAS CHAVE: Mística. Profecia. Experiência de Deus. Escuta da Palavra. Consagração humanização. Areópago.

    ABSTRACT: Mystic and prophecy, a non-separable binomial of the consecrated life (CL) constitute a joyful discovery of the sources of the salvation. They are an experience based on the faith, which viscerally itself of God. The religious ones are required to recreate the mystic-predictive charisma in the Church, through the alive experience, certain of God and his Word, in a contemporary spirituality, which designates the urgency of this certification, over all in new areopagus that appear for and in the consecrated life. The Non-separable binomial becomes a testimonial because it matters in the affirmative pursuit of Jesus, the passionate one for God and humanity. The mystic indicates to some sure aeropagus (personal existence of the faith, listening of the Word, God’s experience), while the prophecy is made in another style (ever since a exile situation, capable to create communion, in order to humanize, to discover the wisdom of small signals). The consequence is that the CL becomes a song of the Lord’s enamored souls.

    KEYWORDS: Mystic. Prophecy. Experience of God. Listening of the Word. Consecration humanization. Areopagus.

    Artigos

    * Professor de Teologia Dogmática e Antropologia na faculdade de Teologia do Norte da Espanha,Sede de Burgos. Lecionou em Roma, Madrid, México, haifa e honduras.

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    InTRODUçãO

    • “Que bom eu saber que a fonte que emana e corre...”

    O maior dom, o presente mais precioso que o Senhor pode dar à vida consagrada e a cada religioso, é fazer-lhes provar (fazer gostar) essa fonte secreta de água viva -»coisa tão bonita que o céu e a terra bebem dela»-, beber e cantar seu rico caudal - «caudalosas correntes que regam infernos, céus e gentes» - e saciar a sede das criaturas - «as criaturas que aqui são chamadas e fartam desta água, embora no escuro». foi isto que aconteceu na vida de frei João da Cruz, místico, cantor e profeta, que se delicia ao conhecer os mistérios da fé (fonte), que irrompem na história como um torrente (Cristo) e inundam toda a vida (céu e terra). Esta irrupção é como a dos rios abertos no deserto anunciados pelo profeta (cf. Is 43,19), que fazem a reverdejar a terra e dão frutos abundantes (cf. Ez 47, 8-9).

    Assim experimentou e cantou João da Cruz sua fé em Deus, enquanto esteve perseguido, marginalizado e preso no calabouço mais sombrio da prisão de Toledo (novembro de 1577- agosto de1578). Ali num lugar escuro e tenebroso, nasceu o poema da fonte, cheio de vida, de luz e de cor, que canta sua experiência de conhecer a Deus na fé, superando a hostilidade, a escuridão e até mesmo a morte.. Penso isto como uma parábola para a vida consagrada, enraizada nas fontes da salvação, como a fonte escondida, como manancial secreto, cujas águas torrenciais são chamadas a fecundar nossas planicies ressequidas e nossos desertos estéreis, fazendo germinar neles a vida, florescer as plantas e amadurecer os frutos para a vida do mundo. E isto, ainda que seja noite e trevas se adensen e asdificuldades se avolumem.

    Não é outro não é o significado que inclui a experiência mística e profética da vida consagrada. É a descoberta gozosa das fontes da salvação, a descoberta do tesouro escondido, o encontro com Cristo e o anúncio profético do seu Reino. Mística e profecia são acima de tudo uma experiência que vamos tentar descrever não tanto teologicamente quanto existencialmente.

    Neste sentido é que vamos abordar os novos areópagos da mística e da profecia:

    a) são uma experiência baseada na fé, alimentada pela Palavra, que descobre Deus em meio à vida e se sente a urgência de testemunhá-la (areópago do mística);

    b) são igualmente o anúncio a partir de uma situação de exílio (noite), que cria comunhão, que humaniza através de pequenos sinais e do serviço da caridade (areópago da profecia).

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    Tudo isso prorrompe num canto de louvor, que faz sua «as alegrias e esperanças» da família humana e profeticamente recria a vida consagrada.

    • Chamados para ser profetas e místicos

    Todos os nossos fundadores e co-fundadores eram místicos e profetas. Somos chamados a recriar seu carisma místico-profético na Igreja. Sem místicos e profetas a vida consagrada não tem futuro. Mística e profecia são duas vertentes essenciais de toda identidade religiosa, da vida cristã e da vida consagrada, estreitamente relacionadas. A primeira se projeta mais diretamente rumo à união com Deus; a segunda concentra-se mais imediatamente no cumprimento de sua vontade aqui e agora. Só uma sábia combinação de uma e outra pode forjar uma identidade religiosa genuína de Deus e o ser humano. Não há autêntica nística se não desemboca a um compromisso ético e profético; nem é concebível em uma profecia que não se alimenta num relacionamento profundo com o divino1.

    Todo homen-toda mulher, todo consagrado-toda consagrada, estão chamados a ser místicos e profetas, ou seja, ter uma experiência de Deus e sua Palavra, que hão de transmitir; ambos também são chamados a comprometer-se com a história da Igreja e do seu tempo. O verdadeiro caminho, portanto, reside na conjugação destas duas identidades: não tanto ser místico “ou” ser um profeta, mas ser místico ”e” profeta.

    Partindo pois deste pressuposto e da própria experiência pessoal: 1) iremos desenvolver cada uma das duas identidades religiosas como duas identidades básicas da experiência cristã, observando ao mesmo tempo a dinâmica das relações entre elas; 2) descreveremos brevemente o ressurgir da mística e profética da espiritualidade contemporânea; 3) realçaremos sua incidência na vida consagrada, na sua dupla dimensão mística e profética, assinalando a urgência do testemunho místico e profético na igreja atual; 4) indicaremos, por fim, alguns os novos areópagos da mística e da profecia que aparecem no cenário da vida consagrada.

    1. DUAS exPeRIênCIAS báSICAS DA VIDA CRISTã

    Mística e profecia são duas experiências, duas realidades fundamentais da vida cristã, porque elas respondem a duas dimensões essenciais da revelação de Deus ao homem e a duas dimensões essenciais também pelas quais o ser humano

    1 Ultimamente muito se tem escrito sobre o assunto. Remetemos à bibliografia final.

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    entra em relação com Deus. Do ponto de vista bíblico estas duas dimensões são expressas pelos termos Ruah (espírito) e Dabar (palavra)2.

    Mística e profecia não são identidades religiosas estáticas, mas dinâmicas. Isso significa que elas ocorrem dentro de um processo religioso de maturação e purificação da pessoa (as noites de São João da Cruz), resultado de uma história complexa de identificações, caracterizado por este empenho pessoal de dar plenitude e sentido à própria existencia. No horizonte místico, esta plenitude só se alcança no encontro com Deus (a união mística), que é o desejo mais profundo do ser humano (cf. GS 19): «se a alma procura Deus, muito mais o olhar do seu amado se volta para ela» (Llama de amor viva 3.28).

    Costuma-se dizer que todos nós carregamos dentro de nós um místico( e um profeta), como todos nós um pequeno buda, que encarna as necessidades e os desejos mais profundos, que busca o sentido da vida, que aspira por um futuro de mudança e novidade e pela realização utópica final. Se isso for verdade antropológica e religiosamente falando, muito mais o é desde o ponto de vista da fé cristã e da vida consagrada. Na verdade, o cristianismo é primordialmente uma mística, e não um código de ético ou moral; é a mística do seguimento de Jesus e a configuração batismal com ele. Da mesma forma, a vida consagrada é uma mística e uma profecia; é essencialmente uma consagração a Cristo (mística) e anúncio da boa nova (profecia).

    1.1. A experiência mística

    A experiência mística, qualquer que seja sua expressão, parece ter como principal objetivo a busca de uma união que rompe os limites do Eu e, assim, mergulha em uma realidade vivida como plenificante, que é a união mística. Experiência mística é essencialmente pati divini, isto é, experiri a presença de Deus e “sofrer”, “sentir” acolher sua ação transformadora em nós; é portanto, vínculo, relação, «olhar amoroso», contato amoroso com uma realidade imensamente valorizada e concebida como o centro secreto mais íntimo da existência e como fonte permanente da mesma, que faz o mísitico exclamar: «Oh chama de amor viva / que com ternura feres / minha alma no centro mais profundo!» (São João Cruz, Llama de amor viva).

    2 Ruah (feminino) faz o ser humano tornar-se participante da realidade de Deus e tende à união com Ele. Dabar (masculino) estabelece o diálogo entre Deus e os seres humanos, respeitando a distância. Daqui pro-vém a seguinte articulação entre mística e profecia, segundo Carlos Domínguez: “mística e profecia, espírito que une e palavra que assume a distância, aparecem como dois modos básicos que têm necessariamente de articular-se para configurar a identidade religiosa, tanto como uma a identidade de relação, como de uma ‘religação’ em comunhão (espírito) e diálogo (palavra) entre o humano e o divino. Nesse encontro e religação, Ruah que não desemboca em Dabar, a mística que não incorpora a dimensão profética, facilmen-te deriva em pura subjetividade, numa dinâmica de regressão, em puro extravío… “Por sua vez, Dabar, a palavra profética como palavra ouvida e transmitidos, dificilmente poderia chegar a estabelecer-se de modo autentico se não está fortificada pela Ruah, o espírito que impulsiona e olha para o encontro e a união”. CAR-LOS DOMÍNGUEZ MORANO. Místicos y profetas: dos entidades religiosas, 48 Proyección 48 (2001) p. 357.

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    A experiência mística vai além do conhecimento conceitual; não se aprende lendo ou pensando, mas vivendo e sentindo. São João dla Cruz fala do “saber por experiência” frente ao “saber por ciencia” (Cântico espiritual, Pról. 3). Sua realidade fundante é a experiência amorosa de Deus, a quem João da Cruz chamada “mãe nutritiva”3. A primeira preocupação de uma mãe para com o filho são “necessidades”, não seus “deveres”. Perante este Deus do amor, a única resposta sadia e madura é aprender a amar a deixar-se amar e deixar-se curar as feridas.

    Esta atitude se manifesta em um particular estado de consciência de confiança e abandono na realidade crida e amada de Deus, na qual não somente joga papel decisivo a graça mas também psicologia pessoal de cada um e sua própria condição de homem ou mulher. Diz-se que as mulheres têm maior predisposição para o místico e os homens para a profecia. «A mãe cria vida, o pai a história» (G. Van der Leuw). Embora os componentes místico-proféticos ocorram tanto entre as mulheres quanto os homens, historicamente as atitudes e comportamentos proféticos mais estreitamente estão ligados aos componentes masculinos da personalidade: direito, requisito, denúncia e castigo...

    1.2. A experiência profética

    Assim como a vivencia mistica se caracteriza pela experiência da presença envolvente do outro, a vivencia profética caracteriza-se por ouvir a palavra que vem da divindade e que o profeta se vê forçado, frequentemente mesmo com relutância, a transmitir. O profeta é o porta-voz de uma mensagem divina; a divindade irrompe nele, não tanto para se comunicar em sua intimidade, quanto para fazê-lo dizer sua palavra salvífica. A palavra ouvida e transmitida sempre envolve a exigência de uma ação transformadora na história, com o ouvido no coração de Deus e a mão sobre o pulso da história e os olhos nEle (cf. Subida 2,22).

    O espaço simbólico da identidade profética não serão espaço intimo e interior da céla, como no caso da experiência mística. Seu espaço paradigmático será o da praça, onde acontece a vida social, nesta rede de relações interpessoais tecidas pela vida política, económica e cultural.

    Mas a dinâmica do profetismo está intimamente ligada a uma experiência de comunhão com Deus, a qual deve ser qualificada como genuinamente mística.

    Neste sentido, vemos como o profetismo bíblico evolui desde um decifrar enigmas até a descoberta de uma missão e uma responsabilidade histórica, comprometida com a coletividade. Assim, preocupação pela justiça,

    3 “Deus se comunica com a alma com tantas forças de amor, que não há nenhum distração de”m�