Acordao 2008 1692009

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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA OS Nº 70023007396 2008/CÍVEL APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO DE MERCADORIAS. COMPRA E VENDA. CLÁUSULA DE ARBITRAGEM. AFASTAMENTO DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA EM FAVOR DA JUSTIÇA ITALIANA EM MILÃO. 1. CLÁUSULA ARBITRAL. A matéria é intrínseca à amplitude que o princípio da autonomia da vontade adquiriu no direito brasileiro – ao ponto de, inclusive, em não havendo ofensa às normas de ordem pública, afastar a jurisdição brasileira para a apreciação de casos em que as partes contratantes, fazendo uso dessa autonomia, elegeram foro especial (e estrangeiro) para solucionar as controvérsias que eventualmente surgirem do contrato celebrado. A arbitragem pressupõe, segundo o enfoque aqui dado à questão, relações jurídicas internacionais. Em outras palavras, para que dessa forma seja delineada, é necessário existir algum elemento de estraneidade, algum componente atípico na relação que a torne sujeita às regras de Direito Internacional Privado – ou subjetiva (ter as partes domicílio em países diferentes); ou objetivamente (local de cumprimento da obrigação) . Ao mesmo tempo em que consagra a autonomia da vontade, o ordenamento jurídico, por outro lado, impõe restrições com base nas normas de ordem pública – que não podem vir a ser derrogadas ainda que por consentimento mútuo. Esbarram, portanto, as cláusulas estipuladas contratualmente, inclusive no tocante à arbitragem, nas chamadas normas imperativas. No caso, considerando que a cláusula foi estabelecida entre partes capazes e não hipossuficientes; por escrito; de forma expressa tanto quanto à sua existência quanto ao seu alcance; sem ofensa à ordem pública; encaixando- se nas hipóteses de manifestação da autonomia da vontade; tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis (compra e venda de mercadorias), não cabe ao Judiciário examinar a postulação da parte autora – o que, de forma alguma, caracterizaria ofensa ao disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. 1

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PODER JUDICIÁRIOTRIBUNAL DE JUSTIÇA

OSNº 700230073962008/CÍVEL

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO DE MERCADORIAS. COMPRA E VENDA. CLÁUSULA DE ARBITRAGEM. AFASTAMENTO DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA EM FAVOR DA JUSTIÇA ITALIANA EM MILÃO.

1. CLÁUSULA ARBITRAL. A matéria é intrínseca à amplitude que o princípio da autonomia da vontade adquiriu no direito brasileiro – ao ponto de, inclusive, em não havendo ofensa às normas de ordem pública, afastar a jurisdição brasileira para a apreciação de casos em que as partes contratantes, fazendo uso dessa autonomia, elegeram foro especial (e estrangeiro) para solucionar as controvérsias que eventualmente surgirem do contrato celebrado.

A arbitragem pressupõe, segundo o enfoque aqui dado à questão, relações jurídicas internacionais. Em outras palavras, para que dessa forma seja delineada, é necessário existir algum elemento de estraneidade, algum componente atípico na relação que a torne sujeita às regras de Direito Internacional Privado – ou subjetiva (ter as partes domicílio em países diferentes); ou objetivamente (local de cumprimento da obrigação) .

Ao mesmo tempo em que consagra a autonomia da vontade, o ordenamento jurídico, por outro lado, impõe restrições com base nas normas de ordem pública – que não podem vir a ser derrogadas ainda que por consentimento mútuo. Esbarram, portanto, as cláusulas estipuladas contratualmente, inclusive no tocante à arbitragem, nas chamadas normas imperativas.

No caso, considerando que a cláusula foi estabelecida entre partes capazes e não hipossuficientes; por escrito; de forma expressa tanto quanto à sua existência quanto ao seu alcance; sem ofensa à ordem pública; encaixando-se nas hipóteses de manifestação da autonomia da vontade; tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis (compra e venda de mercadorias), não cabe ao Judiciário examinar a postulação da parte autora – o que, de forma alguma, caracterizaria ofensa ao disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.

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Hipótese de extinção do feito sem julgamento do mérito, forte no art. 267, inciso VII, do Código de Processo Civil.

APELAÇÃO PROVIDA.

APELAÇÃO CÍVEL NONA CÂMARA CÍVEL

Nº 70023007396 COMARCA DE PORTÃO

CORAQUIM INDUSTRIA DE PRODUTOS QUIMICOS E REPRESENTACOES LTDA

APELANTE

TFL ITALI S.P.A. APELADO

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Magistrados integrantes da Nona Câmara Cível do

Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao apelo.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os

eminentes Senhores DES. TASSO CAUBI SOARES DELABARY E DR.

LÉO ROMI PILAU JÚNIOR.

Porto Alegre, 12 de novembro de 2008.

DES. ODONE SANGUINÉ, Presidente e Relator.

R E L A T Ó R I O

DES. ODONE SANGUINÉ (PRESIDENTE E RELATOR)

1. Trata-se de apelação cível interposta por CORAQUIM

INDÚSTRIA DE PRODUTOS QUÍMICOS E REPRESENTAÇÕES LTDA,

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nos autos da ação de cobrança que lhe move TFL ITALI S.P.A., pois

insatisfeita com a decisão das fls. 548-553, que julgou procedente o pedido

constante da inicial, para condenar a ré ao pagamento (i) de R$ 533.280,08,

corrigidos monetariamente desde a data do vencimento e acrescidos de

juros de mora de 1% ao mês, desde a data da citação; (ii) das despesas

processuais e de honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da

condenação, considerando o tempo despendido, o trabalho desenvolvido e a

natureza da ação.

2. Inconformada, CORAQUIM INDÚSTRIA DE PRODUTOS

QUÍMICOS E REPRESENTAÇÕES LTDA interpõe recurso de apelação. Em

suas razões (fls. 557-566), defende, em apertada síntese, que (i) o

requerente não juntou aos autos o contrato celebrado entre as partes – já

que é expresso quanto à eleição de foro, considerando que as controvérsias

advindas do contrato deveriam ser elucidadas perante a justiça italiana, em

tendo havido estipulação de cláusula de arbitragem; (ii) não houve compra e

venda entre as partes, pois não houve qualquer consenso acerca do

negócio; (iii) a apelada rescindiu o contrato imotivadamente. Por fim, postula

a concessão do benefício da assistência judiciária gratuita.

3. No juízo de primeiro grau, o benefício de gratuidade

judiciária, requerido, foi indeferido (fl. 585).

4. Intimada (fl. 590), a requerente apresentou contra-razões (fl.

593-602).

5. A empresa demandada junta documentos (fls. 612-665) para

sustentar a incompetência da justiça brasileira para o julgamento da causa,

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em face da eleição de foro especial, consoante o contrato entabulado entre

as partes (fls. 367-368).

6. Intimada a recorrida para manifestar-se acerca dos

documentos colacionados pela parte adversa (fl. 667), afirma que a apelante

não apresentou, no prazo legal, exceção de incompetência, de modo que a

discussão da matéria foi atingida pela preclusão. Outrossim, argumenta que

o foro competente para a presente ação de cobrança é o lugar de sede da

empresa jurídica ré (fls. 671-677).

Subiram os autos e, distribuídos, vieram conclusos.

É o relatório.

V O T O S

DES. ODONE SANGUINÉ (PRESIDENTE E RELATOR)

Eminentes colegas:

7. Cuida-se de apelação cível interposta por CORAQUIM

INDÚSTRIA DE PRODUTOS QUÍMICOS E REPRESENTAÇÕES LTDA,

nos autos da ação de cobrança que lhe move TFL ITALI S.P.A., pois

insatisfeita com a decisão das fls. 548-553, que julgou procedente o pedido

constante da inicial, para condenar a ré ao pagamento de R$ 533.280,08,

corrigidos monetariamente desde a data do vencimento e acrescidos de

juros de mora de 1% ao mês, desde a data da citação.

8. Ao que se depreende da inicial (fls. 02-06), a empresa

requerente e a empresa demandada, durante os anos de 2000 e 2001,

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mantiveram relações comerciais – em que a primeira se comprometeu em

fornecer à segunda, ao longo do período, matéria-prima de origem diversa.

Aduz a autora que, em face da relação de confiança estabelecida entre as

partes, várias mercadorias foram por ela remetidas sob a forma de

consignação. No entanto, a ré não cumpriu com a sua parte no contrato,

pois não quitou o valor devido, permanecendo, assim, um saldo em favor da

requerente.

Examine-se.

9. Insurge-se a ré contra a competência da justiça brasileira

para apreciação da lide – porquanto, no seu entendimento, e com base no

contrato firmado entre as partes para distribuição e representação de

mercadorias (fls. 367-368) – quaisquer controvérsias advindas do

instrumento contratual deveriam ser dirimidas perante a justiça italiana.

10. A questão cinge-se, portanto, se a jurisdição brasileira é

apta ou não para a apreciação dos fatos que motivaram a presente lide.

11. De início, cumpre referir que a cláusula estipulada entre as

partes (fl. 368) é de arbitragem – a ser analisada no contexto do Direito

Internacional Privado.

12. Ora, o assunto é intrínseco à amplitude que o princípio da

autonomia da vontade adquiriu no direito brasileiro – ao ponto de, inclusive,

em não havendo ofensa às normas de ordem pública, afastar a jurisdição

brasileira para a apreciação de casos em que as partes contratantes,

fazendo uso dessa autonomia, elegeram foro especial (e estrangeiro) para

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solucionar as controvérsias que eventualmente surgirem do contrato

celebrado.

13. O princípio da autonomia da vontade confere às partes a

possibilidade de escolherem a lei aplicável ao contrato.

14. Nessa esteira, cabe ressaltar que a cláusula de eleição de

foro não se confunde com a lei aplicável ao negócio jurídico. A primeira tem

natureza eminentemente processual; já a segunda, é de direito material,

“inserida no âmbito da liberdade contratual e da autonomia da vontade”1.

15. Outrossim, entende-se que o universo arbitral é bem mais

restrito que o estatal, uma vez que esse último detém o monopólio relativo à

resolução de conflitos que envolvam direitos indisponíveis. É dizer que a

arbitragem “não comporta todas as controvérsias nem todos os

contraditores, ainda que, por mútuo consenso”, pretendam fazer impor a

autonomia da vontade2.

16. A arbitragem pressupõe, segundo o enfoque aqui dado à

questão, relações jurídicas internacionais. Em outras palavras, para que

dessa forma seja delineada, é necessário existir algum elemento de

estraneidade, algum componente atípico na relação que a torne sujeita às

regras de Direito Internacional Privado – ou subjetiva (ter as partes domicílio

em países diferentes); ou objetivamente (local de cumprimento da

obrigação)3.

1 ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 335.2 ALVIM, J. E. Carreira. Direito Arbitral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 51. 3 ARAÚJO, 2004, p. 427.

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17. Ao mesmo tempo em que consagra a autonomia da

vontade, o ordenamento jurídico, por outro lado, impõe restrições com base

nas normas de ordem pública – que não podem vir a ser derrogadas ainda

que por consentimento mútuo. Esbarram, portanto, as cláusulas estipuladas

contratualmente, inclusive no tocante à arbitragem, nas chamadas normas

imperativas.

Dessarte, “na essencialidade dos contratos internacionais do

comércio, por mais que se proclame o princípio da autonomia da vontade

[...], estarão sempre presentes restrições impostas pelos ordenamentos

nacionais que se encerram na expressão ‘reservas de ordem pública’. Trata-

se como se deduz da prática, de impedimentos impostos pelo Estado, com

base em vários elementos componentes dos Direitos fundamentais de cada

país”4.

18. A cláusula compromissória – que também pode ser

intitulada de convenção de arbitragem – é, assim, a chave mestra da

arbitragem comercial internacional, consubstanciando-se em uma espécie

de “prova de que as partes admitiram submeter-se ao regime arbitral para

solver suas pendências na execução de contrato”5. Esse, portanto, é o

elemento consensual que dá razão de ser à arbitragem e a constitui numa

das mais fortes expressões da autonomia da vontade.

De modo que a inserção de uma cláusula compromissória em

um contrato internacional dá-lhe validade e eficácia próprias, contanto haja

4 STRENGER, Irineu. Arbitragem comercial internacional. São Paulo: LTr, 1996, p. 213.5 STRENGER, 1996, p. 109.

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aceitação da cláusula arbitral de modo expresso, seja quanto à sua

existência, seja quanto ao seu alcance.

19. Ora, daí exsurgem os elementos caracterizadores da

cláusula compromissória: “a definição da relação jurídica e a declaração de

submeter eventuais litígios a um tribunal arbitral”, sendo que, na segunda

hipótese, há a exclusão da jurisdição de Estado.6

Ademais, a convenção deve ser celebrada por pessoas

capazes e ter por objeto direitos patrimoniais disponíveis, e ser formalizada

por escrito.

20. Quanto à regulamentação da matéria, a Lei nº. 9.307/96, no

Brasil, em seu art. 1º, assim dispõe: “As pessoas capazes de contratar

poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos

patrimoniais disponíveis”.

De outra banda, impende o reconhecimento, para a solução da

presente lide, também do Protocolo de Genebra de 1923, internalizado em

território nacional por meio do Decreto nº. 21.187, de 22 de março de 1932,

que assim prevê em seu Item 1: “Cada um dos Estados contratantes

reconhece a validade, entre partes submetidas respectivamente à jurisdição

de Estados contratantes diferentes, de compromissos ou da cláusula

compromissória pela qual as partes num contrato se obrigam, em matéria

comercial ou em qualquer outra suscetível de ser resolvida por meio de

arbitragem por compromisso, a submeter, no todo ou em parte, as

divergências, que possam resultar de tal contrato, a uma arbitragem, ainda

6 STRENGER, 1996, p. 121.8

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que esta arbitragem deva verificar-se num país diferente daquele a cuja

jurisdição está sujeita qualquer das partes no contrato”.

Tal como tem sido decidido no Eg. Superior Tribunal de

Justiça: “Processual civil. Recurso especial. Cláusula arbitral. Lei de

Arbitragem. Aplicação imediata. Extinção do processo sem julgamento de

mérito. Contrato internacional. Protocolo de Genebra de 1923.- Com a

alteração do art. 267, VII, do CPC pela Lei de Arbitragem, a pactuação tanto

do compromisso como da cláusula arbitral passou a ser considerada

hipótese de extinção do processo sem julgamento do mérito. - Impõe-se a

extinção do processo sem julgamento do mérito se, quando invocada a

existência de cláusula arbitral, já vigorava a Lei de Arbitragem, ainda que o

contrato tenha sido celebrado em data anterior à sua vigência, pois, as

normas processuais têm aplicação imediata.- Pelo Protocolo de Genebra de

1923, subscrito pelo Brasil, a eleição de compromisso ou cláusula arbitral

imprime às partes contratantes a obrigação de submeter eventuais conflitos

à arbitragem, ficando afastada a solução judicial.- Nos contratos

internacionais, devem prevalecer os princípios gerais de direito internacional

em detrimento da normatização específica de cada país, o que justifica a

análise da cláusula arbitral sob a ótica do Protocolo de Genebra de 1923.

Precedentes. Recurso especial parcialmente conhecido e improvido”7.

21. É verdade que o art. 88 do Código de Processo Civil prevê

hipóteses que, prima facie, determinariam a competência da justiça brasileira

para resolver o impasse surgido do contrato entre as partes entabulado

(domicílio do réu ou local de cumprimento da obrigação, no Brasil).

7 REsp 712.566/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/08/2005, DJ 05/09/2005 p. 407.

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No entanto, o que tal dispositivo traz à tona é uma forma de

competência concorrente, que, no entanto, não leva em conta a repercussão

do fato no exterior, bem como os efeitos de eventual cláusula determinando

que a controvérsia seja submetida ao foro estrangeiro. Dessarte, ainda que

presentes uma dessas hipóteses, a escolha feita no âmbito do contrato

obstaculiza a análise pela jurisdição nacional8.

22. Estabelecidos os parâmetros de análise da cláusula de

arbitragem, passa-se à apreciação da questão suscitada pela parte ré

quanto ao afastamento da jurisdição brasileira para dirimir as controvérsias

oriundas do contrato firmado com a parte autora.

23. Com efeito, no contrato entabulado pelas partes para

distribuição e representação dos produtos (fls. 367-368), houve estipulação

de cláusula de arbitragem para que a dirimibilidade de quaisquer questões

oriundas do referido instrumento contratual, ou a ele relacionadas, ocorresse

perante a justiça italiana de Milão, verbis: “Lei e Arbitragem. Item 11: O

presente Contrato deverá ser regido e interpretado em conformidade com a

lei italiana. Qualquer controvérsia ou discrepância decorrente do, ou

relacionada ao, presente Contrato deverá ser solucionada por arbitragem

realizada em Milão. E por estarem justas e contratadas, as partes abaixo

assinadas pretendem estar legalmente obrigadas por este instrumento,

apondo a sua assinatura ao presente contrato” (fl. 368).

24. Dessarte, considerando que a cláusula foi estabelecida

entre partes capazes e não hipossuficientes; por escrito; de forma expressa

(fl. 368), tanto quanto à sua existência quanto ao seu alcance; sem ofensa à

ordem pública; encaixando-se nas hipóteses de manifestação da autonomia

8 ARAÚJO, 2004, p. 214.10

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da vontade; tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis (compra e

venda de mercadorias), não cabe ao Judiciário examinar a postulação da

parte autora – o que, de forma alguma, caracterizaria ofensa ao disposto no

art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.

Nesse mesmo norte, a lição de Nelson Nery (Código de

Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, Editora RT, 10ª ed,

2007, p. 1392): “A arbitragem não ofende os princípios constitucionais da

inafastabilidade do controle judicial, nem do juiz natural. A Lei de Arbitragem

deixa a cargo das partes a escolha, isto é, se querem ver sua lide julgada

por juiz estatal ou por juiz privado”.

A eventual inconstitucionalidade só poderia vir a ser suscitada

“se a lei houvesse instituído a arbitragem obrigatória (ou coativa), pois

esbarraria no art. 5º, XXXV, da Constituição, afrontando o princípio da

inafastabilidade, ao vedar às partes o acesso direito ao juízo judicial,

impondo-lhes o juízo arbitral”9.

Como assim já decidiu esta Câmara: “CONTRATO

INTERNACIONAL DE LICENCIAMENTO. RESCISÃO UNILATERAL.

PEDIDO DE MANUTENÇÃO DO CONTRATO. ELEIÇÃO DE JUÍZO

ARBITRAL. LIMITE À JURISDIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AO

ART. 5º, XXXV, DA CF. PEDIDO JURIDICAMENTE IMPOSSÍVEL FRENTE

À LIMITAÇÃO CONVENCIONADA PELAS PRÓPRIAS PARTES. Com

efeito, devendo ser cumprida no Brasil a obrigação contratual, é competente

para examinar eventual demanda, conforme os arts. 12 da LICC e 88 do

CPC, a autoridade judiciária brasileira. Mas a admissão da competência da

Justiça brasileira significa, apenas, que o caso há de ser examinado, ainda

9 ALVIM, 2004, p. 28.11

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que seja para reconhecer o limite à jurisdição frente à cláusula arbitral. Cabe

a cada Estado definir o alcance de sua própria jurisdição e o Brasil, ao editar

a lei 9.307/96, acabou por instituir uma limitação à intervenção judicial na

arbitragem privada. E, não se pode deixar de consignar, não há qualquer

inconstitucionalidade nesta lei, como já afirmou o Supremo Tribunal Federal

na SE nº 5.206/Espanha. A leitura da cláusula firmada pelas partes não

deixa dúvidas de que todas as questões pertinentes ao contrato devem ser

dirimidas pelos árbitros eleitos, inclusive, evidentemente, a questão que diz

com a manutenção ou não do contrato no período de pendência do juízo

arbitral. Destarte, por expressa convenção das partes, não cabe ao judiciário

examinar o cabimento da postulação da autora, e isto, como já mencionado,

por ser a livre expressão da vontade das partes, envolvendo apenas

questões patrimoniais privadas, não afronta de forma alguma o art. 5º,

XXXV, da Constituição Federal. APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA,

VENCIDO O PRESIDENTE QUE DESCONSTITUÍA A SENTENÇA”10.

25. Considerando que é capaz de derrogar a apreciação da lide

pela jurisdição brasileira, possível também de ser argüida a qualquer tempo.

26. Dessarte, impõe-se a extinção do processo sem julgamento

de mérito, forte no art. 267, inciso VII, do Código de Processo Civil, como

reiteradamente tem decidido o Eg. Superior Tribunal de Justiça: (1)

“PROCESSO CIVIL. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA.

EXTINÇÃO DO PROCESSO. ART. 267, VII, DO CPC. SOCIEDADE DE

ECONOMIA MISTA. DIREITOS DISPONÍVEIS. 1. Cláusula compromissória

é o ato por meio do qual as partes contratantes formalizam seu desejo de

submeter à arbitragem eventuais divergências ou litígios passíveis de

10 Apelação Cível nº. 70011879491, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini Bernardi, Julgado em 29/06/2005.

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ocorrer ao longo da execução da avença. Efetuado o ajuste, que só pode

ocorrer em hipóteses envolvendo direitos disponíveis, ficam os contratantes

vinculados à solução extrajudicial da pendência. 2. A eleição da cláusula

compromissória é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito,

nos termos do art. 267, inciso VII, do Código de Processo Civil. 3. São

válidos e eficazes os contratos firmados pelas sociedades de economia

mista exploradoras de atividade econômica de produção ou comercialização

de bens ou de prestação de serviços (CF, art. 173, § 1º) que estipulem

cláusula compromissória submetendo à arbitragem eventuais litígios

decorrentes do ajuste. 4. Recurso especial provido”11; (2) “PROCESSO

CIVIL. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. EXTINÇÃO DO

PROCESSO. ART. 267, VII, DO CPC. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA.

DIREITOS DISPONÍVEIS. EXTINÇÃO DA AÇÃO CAUTELAR

PREPARATÓRIA POR INOBSERVÂNCIA DO PRAZO LEGAL PARA A

PROPOSIÇÃO DA AÇÃO PRINCIPAL. 1. Cláusula compromissória é o ato

por meio do qual as partes contratantes formalizam seu desejo de submeter

à arbitragem eventuais divergências ou litígios passíveis de ocorrer ao longo

da execução da avença. Efetuado o ajuste, que só pode ocorrer em

hipóteses envolvendo direitos disponíveis, ficam os contratantes vinculados

à solução extrajudicial da pendência. 2. A eleição da cláusula

compromissória é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito,

nos termos do art. 267, inciso VII, do Código de Processo Civil. 3. São

válidos e eficazes os contratos firmados pelas sociedades de economia

mista exploradoras de atividade econômica de produção ou comercialização

de bens ou de prestação de serviços (CF, art. 173, § 1º) que estipulem

cláusula compromissória submetendo à arbitragem eventuais litígios

decorrentes do ajuste. 4. Recurso especial parcialmente provido”12.

11 REsp 606.345/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2007, DJ 08/06/2007 p. 240.12 REsp 612.439/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/10/2005, DJ 14/09/2006 p. 299.

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27. Sucumbente, a parte autora responderá pelo pagamento

dos honorários advocatícios arbitrados em R$ 1.000,00 (um mil reais).

Entretanto, no tocante às custas processuais, a teor do art.

113, § 1º, do Código de Processo Civil, o demandado responderá na

integralidade pelo seu pagamento, considerando que “o réu tem o ônus de

alegar a incompetência absoluta como preliminar de contestação [...] ou na

primeira oportunidade que tiver para falar nos autos. Caso assim não

proceda, pode ainda argüi-la a qualquer tempo e grau de jurisdição – porque

a matéria é insuscetível de preclusão – mas arcará com as despesas

decorrentes do retardamento”13.

27. Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao

apelo, para extinguir o feito sem julgamento de mérito, com fulcro no art.

267, inciso VII, do Código de Processo Civil.

DES. TASSO CAUBI SOARES DELABARY (REVISOR) - De acordo.

DR. LÉO ROMI PILAU JÚNIOR - De acordo.

DES. ODONE SANGUINÉ - Presidente - Apelação Cível nº 70023007396,

Comarca de Portão: "DERAM PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME."

Julgador(a) de 1º Grau: LUCIANE DI DOMENICO

13 NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 10. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 372.

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