Acordao Carbonati Apuani

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CONCLUSES DO ADVOGADO-GERAL M. POIARES MADURO apresentadas em 6 de Maio de 2004 (1)

Processo C-72/03

Carbonati Apuani Srl contra Comune di Carrara [pedido de deciso prejudicial apresentado pela Commissione tributaria provinciale di Massa Carrara (Itlia)] Livre circulao de mercadorias Encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro Imposio sobre os mrmores extrados no territrio de uma comuna e transportados para fora dela Situao puramente interna

1. J no raro solicitar-se ao Tribunal de Justia que se pronuncie sobre a aplicao das regras de livre circulao a situaes internas dos Estados-Membros. Uma das questes em aberto da nossa jurisprudncia nesta matria certamente saber at onde se estende o mbito de

aplicao do direito comunitrio e, depois, at que ponto o Tribunal competente para responder a uma questo prejudicial relativa a tais situaes. Parece-me que o presente reenvio oferece ao Tribunal a ocasio de abordar novamente esta questo.

2. Neste reenvio, com efeito, a Comissione tributaria provinciale di Massa Carrara (Itlia) pede ao Tribunal de Justia que se pronuncie sobre a compatibilidade com o direito comunitrio de uma imposio cobrada no transporte de mercadorias para fora do territrio de uma comuna situada num Estado-Membro, atingindo da mesma maneira as mercadorias exportadas para outro Estado-Membro e as mercadorias expedidas para outra parte do Estado-Membro em causa (2) . primeira vista, pode ser tentador colocar-se a questo de saber se h que distinguir o caso dos produtos tributados em razo da sua exportao para fora de Itlia e o caso dos produtos tributados devido sua expedio para outras partes do territrio italiano.

3. Se se tiverem em conta os acrdos proferidos nos processos Lancry e o. e Simitzi, a resposta parece simples (3) . A partir do momento em que cobrada quando da passagem de uma fronteira, mesmo que interna, uma imposio susceptvel de constituir um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro. Neste caso, completamente intil perguntar se a imposio afecta somente as trocas comerciais intracomunitrias ou tambm as trocas comerciais internas. Basta que a passagem da fronteira ocorra, e a regulamentao que instituiu a imposio , enquanto tal e na sua totalidade, contrria ao artigo 25. CE. A jurisprudncia do Tribunal de Justia fornece, portanto, uma soluo aparentemente simples e clara questo que se coloca neste processo.

4. Porm, esta soluo no me parece muito satisfatria. Uma jurisprudncia consolidada do Tribunal de Justia conduz, praticamente, a afirmar o princpio contrrio ao que prevalece em matria de encargos de efeito equivalente. Segundo a mesma, as regras de livre circulao so inaplicveis a uma situao que s atinge as trocas comerciais internas de um Estado-Membro. Se foram introduzidas excepes relativamente a este princpio, elas assumem carcter excepcional, tendo em conta circunstncias especiais do caso em apreo, e mantendo sempre o princpio da inaplicabilidade das regras da livre circulao s situaes puramente internas (4) . Por isso, importa perguntar se a soluo adoptada em matria de encargos de efeito equivalente sempre justificada e, se no o , se no h que adoptar uma abordagem mais coerente susceptvel de

conduzir ao mesmo resultado.

I Enquadramento jurdico, factos e questo prejudicial 5. A imposio em causa neste processo um legado da histria. Encontra-se o seu rasto numa Notificazione Governatoriale de 14 de Julho de 1846 publicada pelo governador da provncia de Lunigiana Estense. Aps a unificao do Reino da Itlia, foi instituda como portagem pela passagem dos mrmores nas estradas de Carrara, por decreto real, em 19 de Setembro de 1860. Pela Lei n. 749, de 15 de Julho de 1911, foi transformada numa imposio sobre o transporte de mrmores extrados na comuna.

6. Esta imposio assenta presentemente num dispositivo complexo. Alteradas algumas das suas disposies pela Lei n. 449, de 27 de Dezembro de 1997, a Lei n. 749/1911 dispe, no momento dos factos, no seu artigo nico: instituda uma imposio sobre os mrmores extrados no territrio da comuna de Carrara e transportados para fora dele, cuja receita reverte para a comuna de Carrara. Esta imposio aplicada e cobrada pela Comuna, no momento da sada dos mrmores do seu territrio, com base num regulamento especial a adoptar pelo Conselho Municipal aps consulta dos parceiros sociais. Todos os anos o Conselho Municipal, ao estabelecer o oramento da comuna, determinar a taxa da imposio que dever ser cobrada no ano seguinte. Quando, todavia, a comuna tenha de assumir compromissos duradouros que devam ser financiados ou garantidos com o produto da imposio, o Conselho Municipal pode fixar antecipadamente, para vrios anos, a taxa mnima da referida imposio. A comuna poder, por deliberao do Conselho Municipal, de acordo com as formalidades previstas na lei comunal e provincial e aps aprovao da Giunta provinciale amministrativa, decidir que uma parte da receita da imposio seja afectada s despesas ou aos compromissos que venham a resultar da construo e gesto do porto da Marina di Carrara, aplicando-se, quando for pertinente, a Lei n. 50, de 12 de Fevereiro de 1903; e que outra parte se destine a cotizaes dos operrios da indstria do mrmore para a Cassa nazionale di previdenza operai.

7. Esta disposio foi em seguida precisada pelo Decreto-Lei n. 8, de 26 de Janeiro de 1999, convertido, com alteraes, na Lei n. 75, de 25 de Maro de 1999, que dispe: O artigo nico da Lei n. 749/1911 [] interpretado no sentido de que a imposio que institui aplicada aos mrmores e aos seus derivados e determinada em funo das exigncias das despesas municipais directa ou indirectamente inerentes actividade do sector do mrmore local.

8. Importa, por fim, ter em conta o regulamento adoptado pela Comune di Carrara (comuna de Carrara) em 23 de Maro de 1999, que prev que o Conselho Municipal fixe anualmente a tabela das taxas da imposio, considerando, nomeadamente, o dano ambiental causado pela indstria dos mrmores. Em contrapartida, sendo posteriores aos factos relatados, as eventuais alteraes regulamentares e legislativas a esta legislao feitas em 2001 e em 2004 no so relevantes para a anlise do Tribunal de Justia neste processo (5) .

9. Resulta do despacho de reenvio que a aplicao deste dispositivo tem como consequncia que os mrmores extrados e utilizados no territrio da comuna de Carrara esto isentos da imposio, enquanto os mrmores utilizados ou trabalhados nas comunas limtrofes so susceptveis de o ser, quer parcial, quer totalmente.

10. Os factos do processo so os seguintes. A sociedade Carbonati Apuani Srl exerce actividades de remoo e transformao de lascas de mrmore e de remoo de terra na comuna de Carrara. Por notificao de liquidao de 7 de Maio de 2001, a comuna de Carrara exigiu-lhe o pagamento da imposio sobre os mrmores devida relativamente s exportaes realizadas para fora da comuna durante o ms de Abril de 2001. A sociedade impugnou esta liquidao no tribunal a quo, alegando que a legislao com base na qual se pede o pagamento contrria ao direito comunitrio.

11. A questo colocada pelo juiz a quem foi submetido o processo incide sobre a conformidade desta legislao com os artigos 23. CE, 81. CE, 85. CE e 86. CE.

II Observaes preliminares 12. Estas observaes so de trs tipos. Vo permitir-nos precisar o mbito em que se inscreve a questo submetida.

A Quanto admissibilidade da questo colocada 13. Nas suas observaes escritas, a Comisso pede ao Tribunal de Justia que se pronuncie sobre a admissibilidade da questo submetida. Na sua opinio, h que averiguar se este reenvio prejudicial satisfaz as exigncias que resultam da jurisprudncia do Tribunal de Justia segundo as quais o tribunal nacional tem a obrigao de definir o enquadramento factual e legal em que se inserem as questes que submete (6) .

14. Esta objeco no procede. A situao de facto no apresenta qualquer dificuldade especial, e, embora no seja descrita com muitos pormenores no despacho de reenvio, a descrio completa resulta facilmente da leitura das observaes escritas apresentadas pelas partes no processo principal. Quanto ao enquadramento jurdico, reconstitudo com clareza no despacho de reenvio (7) . Nestas condies, seria despropositado exigir que o Tribunal de Justia dispusesse da totalidade dos elementos do litgio para apreciar a utilidade da interpretao que lhe pedida. O simples facto de ter sido possvel Comisso apresentar observaes teis neste processo basta, alis, para demonstrar que o despacho estava suficientemente fundamentado (8) . Neste processo, o Tribunal possui os elementos necessrios para se pronunciar sobre a questo de direito que lhe foi colocada.

15. Em matria de reenvio prejudicial, seria, de qualquer forma, imprudente alargar os fundamentos de inadmissibilidade para alm das hipteses em que o objecto do litgio subtrado, quer por falta de informao (9) , quer, pelo contrrio, por pura construo, ao conhecimento do Tribunal de Justia (10) . Tal regra de prudncia parece-me conforme com a natureza e o esprito da cooperao jurisdicional prevista no artigo 234. CE, que assenta na necessria colaborao de duas jurisdies para resoluo de um mesmo litgio.

B Quanto determinao do direito aplicvel no caso em apreo 16. O rgo jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justia que se pronuncie sobre a conformidade da legislao italiana com o artigo 23. CE relativo unio aduaneira e, ao mesmo tempo, com os artigos 81. CE, 85. CE e 86. CE relativos s regras de concorrncia aplicveis s empresas.

17. Recordamos antes de mais que, no mbito de um processo apresentado nos termos do artigo 234. CE, o Tribunal no competente para se pronunciar sobre a compatibilidade de uma disposio nacional com o direito comunitrio. De acordo com jurisprudncia consolidada, h que compreender a questo submetida neste processo no sentido de que pede ao Tribunal que fornea ao rgo jurisdicional nacional todos os elementos de interpretao que relevam do direito comunitrio que lhe possam permitir apreciar essa compatibilidade para a deciso do processo que lhe foi submetido (11) .

18. Importa em seguida limitar o objecto do pedido primeira parte da questo.

19. Este ponto, evidente, dispensando-se o seu aprofundamento. Em primeiro lugar, o artigo 86. CE no se destina a aplicar-se no presente processo, uma vez que a medida em causa no respeita nem a empresas pblicas nem ao exerccio de direitos especiais ou exclusivos concedidos s empresas.

20. Em segundo lugar, a imposio uma medida estatal a que os artigos 81. CE e 82. CE no se podem aplicar. Segundo jurisprudncia consolidada do Tribunal de Justia, as regras de concorrncia aplicveis s empresas no entram em linha de conta para a apreciao da compatibilidade com o direito comunitrio de uma medida legislativa ou regulamentar de um Estado-Membro (12) . certo que no se exclui que uma medida estatal seja contrria aos artigos 81. CE e 82. CE, conjugados com o artigo 10. CE, se for susceptvel de eliminar o efeito til das regras da concorrncia aplicveis s empresas. o caso, segundo o

Tribunal, quando um Estado impede ou favorece a celebrao de acordos contrrios ao artigo 81. CE ou refora os seus efeitos, ou retira sua prpria regulamentao a sua natureza estatal delegando em operadores privados a responsabilidade de tomar decises de interveno em matria econmica (13) . Pelo menos, tem de se poder demonstrar um nexo directo entre a medida em questo e os comportamentos anticoncorrenciais da empresa. Ora, nada nas circunstncias do processo principal permite estabelecer tal nexo. De qualquer forma, a alegao de um simples impacto no funcionamento da livre concorrncia, como expe a recorrente no processo principal, no basta para colocar a imposio controvertida sob o domnio das referidas regras.

21. No sendo os artigos 81. CE, 85.CE e 86. CE, em princpio, aplicveis em circunstncias como as do processo principal, no podem servir de elementos de referncia na apreciao da compatibilidade da imposio controvertida com o direito comunitrio.

C Quanto metodologia adoptada nestas concluses 22. Assim delimitada, a questo submetida reclama, aparentemente, uma resposta simples. O fundamento da incompatibilidade de uma imposio deste gnero com o direito comunitrio clssico na jurisprudncia do Tribunal de Justia. fcil trat-lo atravs da aplicao dos princpios de interpretao do artigo 25. CE expressos nos acrdos Lancry e o. e Simitzi, j referidos. Ser essa, efectivamente, a abordagem seguida num primeiro momento.

23. Parece-me, contudo, que esta abordagem insuficiente. Segundo jurisprudncia consolidada, as regras da livre circulao so inaplicveis s situaes cujos elementos e efeitos esto confinados no interior de um nico Estado-Membro (14) . Se o Tribunal de Justia tivesse de confirmar a interpretao adoptada nos acrdos Lancry e o. e Simitzi, j referidos, existiriam razes para temer uma ruptura de coerncia nas matrias relativas s liberdades de circulao. Ora, creio que uma disposio de direito comunitrio nunca deve ser interpretada no sentido de que cria uma incoerncia na ordem jurdica comunitria, se outra interpretao for possvel. , pois, esta outra interpretao que eu pretendo, num segundo momento, propor ao Tribunal.

III Aplicao da jurisprudncia do Tribunal de Justia em matria de encargos de efeito equivalente imposio controvertida A Justeza da aplicao da jurisprudncia Lancry e o. e Simitzi 24. Este processo tem um precedente conhecido no processo Simitzi, j referido. Neste ltimo, tratava-se de uma imposio que onerava simultaneamente os produtos importados numa parte geograficamente isolada do territrio grego, as ilhas do Dodecaneso, e os produtos delas exportados. Seguindo a anlise desenvolvida nos seus acrdos Legros e o. e Lancry e o., o Tribunal de Justia afirmou, neste processo, o princpio da equivalncia entre, por um lado, um entrave resultante de um imposto cobrado numa fronteira nacional em razo da exportao de produtos a partir de todo o territrio de um Estado-Membro e, por outro, um entrave resultante de um imposto cobrado numa fronteira regional em razo da expedio de produtos a partir de uma regio de um Estado-Membro com destino a outras regies do mesmo Estado (15) . Sendo os efeitos destes dois tipos de impostos equivalentes, devem ser igualmente proibidos.

25. Com base em tal princpio, a questo que submete o rgo jurisdicional de reenvio pode ser facilmente resolvida no sentido em que uma imposio cobrada por uma comuna sobre mercadorias transportadas para fora do seu territrio constitui um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro de exportao, no s porque atinge as mercadorias exportadas para fora do territrio do Estado a que esta comuna pertence, mas tambm porque cobrada sobre as mercadorias que saem da comuna com destino a outras partes do territrio desse mesmo Estado (16) .

26. Duas objeces foram entretanto suscitadas pela comuna de Carrara contra tal anlise. Uma que, diferentemente das circunstncias em que foi proferido o acrdo Simitzi, j referido, a imposio controvertida diz respeito a um nico produto, o mrmore de Carrara, e no a todos os produtos exportados a partir da comuna.

27. Esta primeira objeco no procede. Em matria de encargos de efeito equivalente, no existe qualquer exigncia de nmero dos produtos atingidos por uma imposio controvertida. Semelhante exigncia resulta da definio que o Tribunal de Justia fez do conceito de imposio interna

na acepo do artigo 90. CE, na medida em que esta noo diz respeito a categorias inteiras de produtos susceptveis de ser sujeitos a um regime geral de imposies internas (17) . Mas irrelevante no domnio dos encargos de efeito equivalente. Neste domnio, o Tratado CE visa a eliminao de todo e qualquer obstculo pautal s trocas comerciais, mesmo que apenas um produto seja afectado (18) .

28. A outra objeco baseia-se na superfcie reduzida da comuna de Carrara, se comparada com a da regio em causa no processo Simitzi, j referido.

29. Esta objeco tambm no est votada ao sucesso. O que est em causa, nesses dois processos, uma operao que consiste em as autoridades pblicas competentes colocarem um obstculo fiscal s trocas comerciais. No caso visado no processo Simitzi, j referido, esta operao simplesmente repetida vrias vezes. Mas, para a qualificao em causa, s conta o resultado de tal operao, ou seja, a existncia de um obstculo pecunirio s trocas comerciais no mercado comum, ainda que de montante modesto ou mnimo (19) . No h, portanto, que tratar diferentemente uma imposio fixada no territrio de uma comuna por um conselho municipal ao abrigo de uma lei nacional, tal como a imposio em causa neste processo, e uma imposio fixada, para cada parte do territrio em que so competentes, pelos conselhos comunais das capitais de uma regio ao abrigo de um decreto governamental, tal como a imposio referida no processo Simitzi, j referido.

B Refutao dos argumentos invocados na defesa 30. Supondo admitido o princpio da aplicabilidade da jurisprudncia Simitzi, j referida, ao caso em apreo, resta avaliar o alcance dos argumentos invocados na defesa pela comuna de Carrara. Estes argumentos so de trs tipos.

31. Referem-se, por um lado, aos supostos efeitos da imposio censurada. A comuna considera que esta imposio no pode ter qualquer efeito de perturbao da concorrncia no mercado comunitrio.

32. Importa recordar, entretanto, que um encargo de efeito equivalente na acepo do Tratado se define como qualquer encargo pecunirio, imposto de forma unilateral, que incida sobre as mercadorias nacionais ou estrangeiras devido ao facto de atravessarem a fronteira, mesmo que no seja cobrado em benefcio do Estado e que no exera qualquer efeito discriminatrio ou proteccionista (20) . Consequentemente, esta qualificao no depende nem dos efeitos que a imposio susceptvel de produzir no comrcio intracomunitrio nem das distores de concorrncia que susceptvel de originar. De onde resulta tambm que o argumento da comuna segundo o qual o produto tributado no concorre com qualquer produo proveniente de territrios exteriores comuna irrelevante.

33. A argumentao da comuna baseia-se, por outro lado, nas finalidades prosseguidas pela instituio da imposio. Esta tem por objectivo, designadamente, permitir a construo e a reparao de infra-estruturas rodovirias e porturias, adoptar medidas de proteco do ambiente, apoiar iniciativas culturais e, por fim, financiar medidas de auxlio social aos trabalhadores. este tambm o principal argumento invocado pela Repblica Italiana na audincia. Acrescenta que todas estas actividades esto directamente ligadas ao sector e actividade dos mrmores.

34. Resulta, contudo, do carcter geral e absoluto da proibio de todo e qualquer direito aduaneiro aplicvel s mercadorias que circulam entre os Estados-Membros que os direitos aduaneiros so proibidos independentemente de qualquer considerao da finalidade para que foram institudos e do destino das suas receitas (21) . Assim, nem a finalidade social, ambiental, cultural ou outra para que tenha sido instituda nem o facto de as suas receitas se destinarem ao sector do mrmore podem impedir que a imposio controvertida seja qualificada como encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro na acepo dos artigos 23. CE e 25. CE (22) .

35. S existe uma derrogao admitida pelo Tribunal de Justia ao princpio da proibio dos encargos de efeito equivalente. O Tribunal reconhece que a prestao de determinado servio pode, em certos casos concretos, justificar a cobrana de uma imposio proporcional ao servio efectivamente prestado (23) . Mas ainda necessrio, em tal caso, que o servio tenha sido efectivamente prestado, que tenha sido concedido individualmente aos operadores em causa e que o montante do encargo

imposto seja rigorosamente proporcionado ao servio (24) . Desde que estas condies, que so cumulativas, estejam preenchidas, legtimo considerar que o encargo imposto no um simples instrumento de proteco do Estado-Membro em causa.

36. Incumbir ao tribunal nacional decidir quanto verificao destas condies no caso concreto. Importa, no entanto, recordar os principais elementos de interpretao que podem ser teis a esta apreciao quando resultam de documentos dos autos fornecidos ao Tribunal de Justia. Invocando o benefcio desta derrogao, a comuna reconhece, nas suas observaes, que resulta da Lei n. 75/1999, que fornece uma interpretao autntica da lei que instituiu a imposio controvertida, que os operadores do sector no so os beneficirios directos das receitas da imposio (25) . Indirectamente, a imposio responde a um interesse que prprio de todos os operadores desta indstria. H que verificar antes de mais se o produto desta imposio efectivamente afectado s despesas ligadas ao sector do mrmore. Mas, mesmo supondo que assim seja, a alegada vantagem resultante desta imposio prende-se, de qualquer forma, com um interesse geral de todos os exportadores e no com um servio efectivo e individualmente prestado (26) . Esta concluso reforada pelo facto de o encargo suportado pelos exportadores ser determinado exclusivamente em funo da quantidade de mrmore a transportar. Verifica-se, portanto, que na prtica no tem qualquer relao com o custo real de qualquer servio prestado a ttulo individual (27) .

37. Resulta desta anlise que nenhum dos argumentos invocados na defesa pela comuna de Carrara pode ser acolhido.

C Refutao da qualificao da imposio como imposio interna 38. Em ltima anlise, a comuna de Carrara prope que se qualifique a imposio controvertida como uma imposio interna na acepo do artigo 90. CE. Baseia-se principalmente no facto de no existir, pelo menos em quantidade significativa, produo de mrmore que fique no territrio da comuna. De onde resulta logicamente, na sua opinio, que a imposio deve entender-se como uma imposio interna com alcance geral, com uma simples excepo para o mrmore destinado a ficar na comuna. Alm disso, esta imposio atinge da mesma maneira e no mesmo estado de comercializao o mrmore que fica no territrio italiano e o mrmore exportado. No comportando tal regime qualquer elemento de

discriminao, deve ser considerado conforme com as regras do Tratado.

39. Este raciocnio no convincente. Por um lado, no pacfico entre as partes que a produo local destinada a ficar no territrio da comuna seja efectivamente negligencivel. Mas, por outro lado, a alegao de tal facto no tem qualquer incidncia sobre a qualificao da imposio controvertida. Segundo jurisprudncia consolidada, o artigo 90. CE visa os encargos pecunirios includos num sistema geral de imposies internas que atingem sistematicamente os produtos nacionais e os produtos estrangeiros segundo os mesmos critrios (28) . Ora, est assente, no caso em apreo, que as mercadorias produzidas e que ficam no territrio da comuna de Carrara no so atingidas pelas imposies controvertidas. Contrariamente ao que afirmaram a comuna de Carrara e a Repblica Italiana na audincia, o destino dos produtos uma condio decisiva para sujeio imposio. Para que o encargo seja imposto, no basta que o mrmore seja extrado na comuna. ainda necessrio que este mrmore, na sua forma bruta ou numa forma derivada, seja transportado para fora deste territrio. Resulta, portanto, claramente, da letra da regulamentao controvertida que o facto gerador da imposio reside na transposio dos limites da comuna. Este mecanismo fiscal foi, portanto, aplicado de tal modo que atinge especificamente as expedies e as exportaes. este o critrio objectivo sobre o qual foi construdo. O facto de os produtos no destinados exportao serem em quantidade reduzida no muda em nada a natureza deste regime, nico relevante para efeitos da qualificao em causa.

40. Supondo, todavia, que a falta de utilizao e de consumo locais considerada um elemento relevante no mbito desta anlise, contrariamente ao que acaba de ser defendido, poderia a comuna alegar que esta circunstncia tem por efeito conferir imposio controvertida a natureza de uma imposio interna?

41. improvvel. certo que o Tribunal de Justia decidiu que, no caso de um encargo que atinja um produto importado de outro Estado-Membro, a falta de produto nacional idntico ou semelhante no subtrai este encargo do regime do artigo 90. CE, se o encargo em causa est efectivamente includo num regime geral de imposies internas (29) . Pelo contrrio, nesse caso, a qualificao como encargo de efeito equivalente ser adoptada se se verificar que o encargo se destina, de facto, a onerar especificamente os produtos importados ou exportados (30) . Ora, o exame no caso em apreo da estrutura da imposio

controvertida no deixa lugar a qualquer dvida sria sobre o seu objecto e sobre a inteno do legislador ao institui-la (31) . Semelhante imposio visa especificamente os produtos exportados. Assim, no pode qualificar-se como imposio interna na acepo do artigo 90. CE.

42. Nestas condies, a afirmao segundo a qual a imposio atinge da mesma maneira e no mesmo estado de comercializao os produtos italianos e os produtos exportados irrelevante. Se se admitir que o artigo 25. CE se aplica aos direitos cobrados sobre as mercadorias quando da passagem de uma fronteira comunal interna de um Estado-Membro, ento a comparao no deve j fazer-se entre os produtos italianos e os produtos exportados mas entre os produtos destinados a ficarem numa parte do territrio italiano e os produtos expedidos para fora dele. Ora, deste ponto de vista, a imposio sobre o mrmore transportado constitui manifestamente uma ofensa ao territrio aduaneiro comunitrio e uma violao do artigo 25. CE.

43. Resulta do exposto que a imposio controvertida se inclui como tal na categoria dos encargos de efeito equivalente a um direito aduaneiro, sem considerao da questo de saber se atinge as trocas comerciais internas ou as trocas comerciais comunitrias. No pode, assim, escapar ao princpio da proibio a que o Tratado sujeita tais encargos.

IV Outra abordagem A Inconvenientes da soluo Lancry 44. A soluo que acaba de ser enunciada com base na jurisprudncia do Tribunal de Justia aplicvel na matria, designadamente o processo Lancry e o., j referido, tem a vantagem de garantir a homogeneidade do territrio aduaneiro comum e, desta forma, a uniformidade de aplicao das disposies do Tratado sobre a unio aduaneira. Teria sido efectivamente paradoxal admitir, como recordou o advogado-geral G. Tesauro nas suas concluses apresentadas no processo Lancry e o., que, num mercado nico, [fossem] proibidos obstculos s trocas comerciais entre Portugal e a Dinamarca, ao passo que os obstculos s trocas comerciais entre Npoles e Capri no [seriam] tomados em considerao (32) . Mas, por outro lado, apresenta inconvenientes importantes. Existem, na minha opinio, trs principais.

45. Em primeiro lugar, os fundamentos desta jurisprudncia so frgeis. Basta uma simples leitura das disposies do Tratado nas quais se baseia para o demonstrar. Nos seus artigos 23. CE e 25. CE, o Tratado pretende eliminar os obstculos pautais ao comrcio entre os Estados-Membros. No evidente, portanto, que estas disposies se destinassem a ser aplicadas s trocas comerciais entre as partes do territrio de um mesmo Estado-Membro.

46. Sem dvida a jurisprudncia Lancry assenta na ideia de que, por natureza, uma imposio cobrada numa passagem viola a unicidade do territrio aduaneiro comunitrio (33) . Isto pode ser verdade em teoria, mas conduz a consequncias insustentveis na prtica. O artigo 23. CE no mais do que a expresso da vontade dos Estados fundadores da Comunidade de limitar a utilizao que os Estados-Membros faro, da em diante, da sua competncia em matria aduaneira. Mas, dessa forma, no entenderam privar estes Estados-Membros da competncia para reagir s situaes exclusivamente relacionadas com o seu territrio. Ora, de um princpio de livre circulao que rege exclusivamente as situaes transnacionais, o Tribunal de Justia deduziu, de facto, um princpio que rege as situaes transfronteirias, equiparando fronteira regional a fronteira nacional (34) . No entanto, o regime da unio aduaneira , antes de mais, um regime de livre circulao entre os Estados-Membros, no um regime de passagem das fronteiras internas. Ao equiparar os dois, o Tribunal conduzido a aplicar o princpio da livre circulao a encargos cobrados em situaes sem qualquer conexo com este princpio.

47. Em segundo lugar, o acrdo Lancry e o., j referido, e a jurisprudncia que o seguiu expe o Tribunal de Justia a incoerncias. Com efeito, podia esperar-se que a soluo Lancry se alargasse a todas as matrias ligadas s disposies sobre a livre circulao (35) . Nada parecia impedir que o raciocnio aplicado neste processo fosse reproduzido no caso de outros obstculos s trocas comerciais. Em vez da violao da unicidade do territrio aduaneiro comunitrio, bastava invocar a violao do mercado interno (36) ou mesmo da unidade econmica resultante da Unio Econmica e Monetria (37) . Estes conceitos podem, teoricamente, ter os mesmos efeitos prticos. Mas no foi essa, no entanto, a soluo adoptada pelo Tribunal. Em todos estes domnios, optou por manter o princpio clssico da inaplicabilidade das regras da livre circulao s situaes puramente internas.

48. Subsiste, portanto, uma contradio que nada parece justificar entre a orientao adoptada em matria de encargo de efeito equivalente e a orientao geral adoptada pelo Tribunal de Justia noutras matrias (38) . Sem dvida, a jurisprudncia recente contribui para reduzir o afastamento entre a unio aduaneira e os outros regimes de livre circulao. O Tribunal de Justia procurou recentemente alargar a sua competncia para se pronunciar sobre a aplicao do direito comunitrio a situaes internas susceptveis de apresentar uma ligao com as situaes sujeitas a ele (39) . Mas, neste caso, no ps em causa o princpio da inaplicabilidade do direito comunitrio s situaes puramente internas. O desejo do Tribunal de no se afastar deste princpio traduz, na minha opinio, reservas legtimas quanto a um risco de extenso arbitrria do mbito de aplicao do direito comunitrio.

49. Por fim, o ltimo argumento que deve levar a abandonar a soluo Lancry que h razes slidas para voltar jurisprudncia prevalecente em matria de medidas de efeito equivalente. Por um lado, esta jurisprudncia conforme com a letra e com o esprito das regras da livre circulao que no se destinam a aplicar-se a situaes puramente internas. Por outro, corresponde, parece-me, a um desejo mais geral do Tribunal de Justia de no interpretar as regras da livre circulao das mercadorias luz do princpio do livre exerccio da actividade comercial. Uma das razes essenciais que justifica a limitao do mbito de aplicao das regras da livre circulao s situaes transnacionais manter estas regras apenas na perspectiva da liberalizao da trocas comerciais (40) .

50. Todas estas razes me parecem militar hoje a favor de uma nova abordagem, sem que para isso seja necessrio pr em causa as exigncias legtimas que conduziram jurisprudncia Lancry e o.

B Solues possveis 51. Segundo uma abordagem clssica, a imposio controvertida apresenta-se como uma estrutura complexa em que h que separar os diferentes elementos, incluindo-se uns no mbito de aplicao das disposies comunitrias sobre a livre circulao e outros no. Isto significa que a regulamentao em causa deve ser apreendida no globalmente, mas de maneira diferente segundo produza ou no efeitos sobre o

comrcio intracomunitrio (41) .

52. Na medida em que se aplica aos produtos exportados para fora do territrio nacional italiano, a imposio controvertida est sujeita proibio enunciada no artigo 25. CE. A esta parte da regulamentao nacional, importa, portanto, aplicar a anlise desenvolvida nos n.os 24 a 43 das presentes concluses. Mas, na medida em que se aplica aos produtos que ficam em Itlia, escapa ao regime comunitrio da unio aduaneira.

53. A este respeito, trs solues se oferecem ao Tribunal de Justia em teoria.

54. A primeira soluo consistiria em restabelecer a inaplicabilidade do direito comunitrio a uma imposio cobrada por um Estado-Membro nas trocas comerciais internas que ocorram no seu territrio. O Tribunal de Justia adoptaria, assim, a posio preconizada pelo advogado-geral G. Tesauro nas suas concluses proferidas no processo Lancry e o., j referido.

55. Esta soluo parece-me criticvel, porque negligencia as legtimas preocupaes que motivaram a soluo Lancry. Estas respeitam, antes de mais, s dificuldades prticas relativas identificao da origem ou destino dos produtos em circulao na Comunidade (42) . Referem-se, tambm, s dificuldades criadas pelas chamadas discriminaes inversas (43) . Esta expresso refere-se, designadamente, aos casos em que os nacionais de um Estado-Membro que no utilizaram as liberdades de circulao consagradas pelo Tratado se encontram numa situao jurdica menos favorvel que os nacionais que exerceram os direitos baseados nessas liberdades. Como sabido, o Tribunal de Justia optou por ignorar estes casos, baseando-se na excluso das situaes puramente internas do mbito de aplicao do direito comunitrio (44) . Assim, incumbe unicamente ao rgo jurisdicional nacional apreciar estas situaes (45) . Contudo, esta declarao de incompetncia pode ter por efeito deixar o rgo jurisdicional nacional desarmado face a situaes discriminatrias que tenham a sua origem na aplicao do direito comunitrio (46) . difcil admitir que o direito comunitrio se desinteresse de uma situao para cuja criao ele prprio contribuiu. Em tais casos, o direito comunitrio criou um problema que o direito nacional no teria conhecido, nem, sem dvida, tolerado, se no existisse esse

mesmo direito comunitrio, e para o qual o direito nacional est desarmado.

56. Para contornar estas dificuldades, a segunda soluo possvel seria aplicar parte interna da imposio uma soluo do tipo da adoptada pelo acrdo Guimont (47) . Tratar-se-ia, assim, de propor ao rgo jurisdicional nacional a transposio da soluo resultante da proibio dos encargos de efeito equivalente s hipteses em que o direito interno do Estado em causa impe que um operador nacional beneficie dos mesmos direitos que um exportador obteria do direito comunitrio na mesma situao. Diferenciadas do ponto de vista da aplicao do direito comunitrio, as duas partes da regulamentao seriam assim, directa ou indirectamente, tratadas segundo os mesmos princpios, os da livre circulao de mercadorias.

57. Embora esta soluo seja prefervel anterior, no me parece totalmente satisfatria. Por um lado, a pretexto de um alargamento da competncia prejudicial do Tribunal de Justia, corre-se o risco de conduzir a uma extenso difcil de dominar do mbito de aplicao do direito comunitrio. As frmulas do acrdo Guimont tm um alcance muito vasto. Se forem seguidas, no h praticamente situaes que possam escapar competncia do Tribunal de Justia e ao domnio, mesmo indirecto, do direito comunitrio. Basta, de facto, que a situao em causa possa ser relacionada com uma questo de interpretao do direito comunitrio que no esteja manifestamente desprovida de objecto. Ora, operar tal relacionamento no se mostra excessivamente difcil, sobretudo porque, em princpio, incumbe apenas ao tribunal nacional apreciar a pertinncia e a necessidade de proceder a um reenvio prejudicial (48) . Por outro lado, a eficcia desta soluo mantm-se sujeita condio de que o direito nacional oferea aos nacionais colocados numa situao puramente interna os mesmos direitos que os derivados do direito comunitrio (49) . Remete, portanto, a resoluo das eventuais discriminaes inversas unicamente para as virtualidades do direito interno e para a possibilidade de nele se encontrar um instrumento adequado. Ora, a procura desta possibilidade corre o risco de esbarrar, em certos casos, com obstculos relativos prpria natureza dos sistemas jurdicos em causa (50) .

58. por isso que a minha preferncia vai definitivamente para uma terceira soluo, que apresentaria a dupla vantagem de preservar o princpio da inaplicabilidade das regras da livre circulao s situaes puramente internas, sem, no entanto, ignorar as dificuldades que este

princpio se arrisca a criar na prtica. Consiste em distinguir entre a regulamentao nacional controvertida e as situaes internas que da podem resultar. Se a primeira est, em parte, sob a alada das disposies comunitrias sobre a unio aduaneira, as segundas, garantidamente, no o esto. Mas tal no significa que sejam totalmente subtradas ao mbito de aplicao do direito comunitrio. Como situaes residuais que tm de sofrer os efeitos da aplicao das regras do Tratado regulamentao que as rege, parece-me que permanecem sujeitas aos princpios gerais do direito comunitrio.

C Soluo proposta 59. Para efeitos da anlise, proponho-me distinguir a questo da aplicabilidade do direito comunitrio em situaes internas, tais como a referida no caso em apreo, da questo dos instrumentos de direito comunitrio susceptveis de serem aplicados a estas situaes, porque estas duas questes suscitam problemas diferentes.

1. Aplicabilidade do direito comunitrio em situaes como a referida no caso em apreo 60. Importa recordar o princpio segundo o qual cada Estado-Membro livre, nos limites das suas obrigaes resultantes das regras do Tratado, de estabelecer o sistema de tributao que considera mais adequado em relao a cada produto (51) . Est fora de questo pr em causa a reserva da competncia fiscal reconhecida aos Estados-Membros em matria de imposies internas. Isto no significa, contudo, que a situao interna que resulta da aplicao das regras do Tratado a uma regulamentao fiscal seja totalmente estranha ao direito comunitrio.

61. Estamos na presena de uma regulamentao nacional privada de uma parte do seu alcance devido aplicao das regras da livre circulao, que continua, contudo, a gerar situaes controvertidas relativamente ao direito comunitrio. Por um lado, na medida em que atinge as trocas comerciais comunitrias, a regulamentao nacional deve ser afastada a favor do regime comunitrio da livre circulao. Por outro lado, contudo, na medida em que atinge as situaes puramente internas, continuar a produzir os seus efeitos. Em funo do seu destino, aos produtos visados por esta regulamentao ser, portanto, aplicado um regime diferente. Da

pode resultar uma discriminao, que ser o resultado da aplicao alternativa das disposies comunitrias ou nacionais a situaes aparentemente comparveis (52) . Aplicar-se-o assim, no caso em apreo, dois regimes distintos, segundo o destino dos produtos, embora, em todos os casos, se trate da mesma situao de expedio de produtos para o exterior do territrio de uma comuna de um Estado-Membro.

62. Neste caso, nem a regulamentao nacional nem o direito comunitrio criam, por si mesmos, uma discriminao. Mas esta o resultado da aplicao parcial do direito comunitrio regulamentao nacional em causa. Embora no tendo sido desejada, nem prevista, esta situao uma consequncia necessria da aplicao do direito comunitrio. Embora, nos seus principais elementos, faa parte do direito interno, esta situao tambm uma situao residual do ponto de vista do direito comunitrio. Pelos efeitos que gerou, voluntria ou involuntariamente, o direito comunitrio torna-se um dos seus elementos constitutivos.

63. possvel que esta relao de implicao no se mostre um factor de conexo material ao direito comunitrio suficientemente poderoso para se considerar que a situao cai no seu mbito de aplicao. Regra geral, com efeito, no basta que a situao tenha a sua origem na aplicao do direito comunitrio para entrar no seu mbito de aplicao. necessrio ainda demonstrar que viola um dos objectivos especficos do Tratado. o caso, classicamente, quando a situao considerada est na origem de um entrave s trocas comerciais comunitrias (53) . Neste caso, lcito relacionar esta situao com as disposies relativas s liberdades fundamentais e com o objectivo da proteco do mercado comum. Mas, presentemente, as matrias do Tratado foram alargadas. Na minha opinio, de futuro, entra claramente nos objectivos fundamentais da Comunidade evitar suscitar qualquer discriminao atravs da aplicao das suas prprias regras (54) . De onde resulta que a aplicao de uma norma comunitria deve sempre evitar, na medida do possvel, dar lugar a uma violao do princpio da no discriminao.

64. Pela sua constituio e pelos seus efeitos, simultaneamente, uma situao tal como a referida no caso em apreo est ligada ao direito comunitrio. No pode, por isso, ser excluda do seu mbito.

2.

Instrumentos de direito comunitrio aplicveis situao referida

65. Os instrumentos que se prestam naturalmente a esta relativa extenso do mbito de aplicao do direito comunitrio so os seus princpios gerais. Estes princpios tm a natureza de regras fundamentais da ordem jurdica comunitria. Realizam um enquadramento objectivo de todas as regras e situaes susceptveis de entrar no mbito do direito comunitrio (55) . Por isso, servem quer de critrios de apreciao de validade dos actos comunitrios, quer de critrios de interpretao dos actos e situaes abrangidos pelo direito comunitrio. a partir desde ltimo ponto de vista que h que apreciar a repetida frmula do Tribunal de Justia segundo a qual uma justificao estatal relativa a uma medida nacional susceptvel de restringir as liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado deve ser interpretada luz dos princpios gerais de direito e, nomeadamente, dos direitos fundamentais (56) . Parece-me perfeitamente possvel alargar esta frmula apreciao de uma situao residual como a definida anteriormente, uma vez que se demonstrou que entra no mbito do direito comunitrio.

66. Incumbir s autoridades nacionais competentes proceder a esta apreciao. Disporo, evidentemente, de uma grande margem de apreciao na utilizao e aplicao dos meios que o direito comunitrio pe sua disposio. Isto resulta do facto de deverem ter em considerao uma srie de interesses concretos contraditrios, num mbito puramente nacional. evidente que o rgo jurisdicional nacional a quem foi submetido o processo o mais indicado para saber se existe uma discriminao num caso concreto. Numa situao como a referida neste processo, ser necessrio, por exemplo, verificar se o tratamento diferente susceptvel de ser aplicado aos produtos que ficam no territrio nacional e aos produtos destinados exportao se justifica. Mas pode acontecer que o direito nacional no lhe d os meios adequados para identificar e eliminar semelhantes discriminaes (57) . Neste caso, parece-me que o direito comunitrio est inteiramente vocacionado para lhe proporcionar os meios normativos de que dispe.

67. Entre os princpios aplicveis neste caso figuram, designadamente, o princpio geral da no discriminao, consagrado pelo Tribunal de Justia como um princpio fundamental do direito comunitrio (58) . clssico ver neste princpio um simples prolongamento funcional das regras da livre circulao (59) . De facto, quando o juiz comunitrio utiliza este princpio, pretende, regra geral, proteger as liberdades consagradas pelo Tratado. Na doutrina clssica do Tribunal de Justia, este princpio foi concebido como

um instrumento ao servio da realizao das liberdades econmicas protegidas pelo Tratado (60) .

68. Parece oportuno, neste momento, reconhecer a este princpio uma existncia independente e conferir-lhe um alcance autnomo. Pode admitir-se que a utilizao das liberdades econmicas j no uma condio necessria para a aplicao do princpio da no discriminao. o resultado lgico do acrdo Martnez Sala, lido luz do acrdo Baumbast e R (61) . No processo Martnez Sala, o Tribunal de Justia teve o cuidado de separar a aplicao do princpio da no discriminao de toda e qualquer considerao relativa realizao de uma actividade econmica. Do processo Baumbast e R resulta que os direitos de cidadania europeia entram directamente no patrimnio pessoal dos nacionais dos Estados-Membros na sua qualidade de cidados da Unio. Ora, entre estes direitos inclui-se o de no sofrer discriminao injustificada (62) .

69. Assim, no se trata de alargar a competncia do direito comunitrio a todas as situaes nacionais potencialmente discriminatrias. Tal como as disposies do Tratado em matria de livre circulao ou as disposies sobre a cidadania da Unio (63) , o princpio da no discriminao no tem por objectivo alargar o mbito de aplicao material do direito comunitrio a situaes internas que no tenham qualquer ligao com o direito comunitrio (64) . Mas considero que, sob reserva de justificao, nenhuma discriminao deve ser imposta em razo da origem ou do destino dos seus produtos a um nacional que se encontre numa situao residual de origem comunitria. Este deve poder receber uma proteco comunitria no por aplicao das regras da livre circulao mas pela tomada em considerao do princpio da no discriminao.

3.

Concluso da anlise

70. Se retomarmos toda esta anlise num dispositivo coerente, conclumos que: 1) Uma imposio como a que est em causa constitui um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro na medida em que atinge as mercadorias exportadas para fora do territrio de um Estado-Membro.

2) As situaes que podem resultar da aplicao do artigo 25. CE imposio controvertida, quando respeitem a produtos destinados a ficar no territrio nacional, devem ser apreciadas luz dos princpios gerais do direito comunitrio, designadamente do princpio da no discriminao.

71. Quer siga ou no esta proposta, gostaria de sugerir ao Tribunal de Justia que restabelea uma soluo coerente entre a matria dos encargos de efeito equivalente e os outros domnios da livre circulao. Se seguisse a minha proposta, poderia, alm disso, esperar um duplo benefcio. Por um lado, poderia conservar o princpio de que as normas de livre circulao no se aplicam s situaes que no tm qualquer relao com as situaes que prevem. Por outro lado, no respeito dos limites da competncia de que j dispe por fora do acrdo Guimont, j referido, ficaria em condies de dar aos rgos jurisdicionais nacionais instrumentos eficazes para regularem as situaes controvertidas originadas pela aplicao do direito comunitrio.

V Efeitos no tempo do acrdo prejudicial 72. No caso de o Tribunal de Justia declarar a incompatibilidade da imposio sobre o mrmore com o direito comunitrio, a comuna de Carrara pede que os efeitos no tempo do seu acrdo se limitem ao futuro. A este respeito, invoca, por um lado, as incertezas do quadro jurdico aplicvel imposio em questo e, por outro, as consequncias financeiras graves que podem resultar para a comuna de tal deciso.

73. Em princpio, a regra interpretada pelo Tribunal de Justia nos termos do artigo 234. CE pode e deve ser aplicada pelo juiz nacional mesmo a relaes surgidas e constitudas antes do acrdo que decide do pedido de interpretao (65) . S perante circunstncias excepcionais, tendo em conta razes imperiosas de segurana jurdica, o Tribunal pode limitar a possibilidade de os interessados invocarem a disposio assim interpretada para pr em causa relaes jurdicas estabelecidas de boa f

(66) .

74. No caso em apreo, a anlise demonstrou que no existia qualquer incerteza objectiva sobre o alcance do artigo 25. CE. No foi apresentado qualquer elemento srio susceptvel de pr em dvida a incompatibilidade de tal imposio com o direito comunitrio. H somente que salvaguardar os casos em que a imposio era exigida antes da prolao do acrdo Legros e o., j referido. Com efeito, at esse momento, a comuna podia razoavelmente considerar que esta imposio no era incompatvel com o direito comunitrio, pelo menos na medida em que atingia as trocas comerciais puramente internas. Em contrapartida, a anlise feita neste acrdo deveria suscitar srias dvidas quanto validade da imposio controvertida. Foi essa, alis, a abordagem seguida pelo Tribunal de Justia no acrdo Simitzi, j referido.

75. Sendo a imposio em causa da mesma natureza da que foi objecto nesse acrdo, parece-me oportuno aplicar-lhe a soluo que ali prevaleceu. O Tribunal de Justia poder, ento, decidir que as disposies do Tratado relativas aos encargos de efeito equivalente a direitos aduaneiros no podem ser invocadas em apoio dos pedidos destinados a obter a restituio de montantes da imposio controvertida cobrados antes de 16 de Julho de 1992, salvo por requerentes que tenham, antes dessa data, interposto recurso judicial ou apresentado uma reclamao equivalente.

76. Acrescentar-se- subsidiariamente que, se o Tribunal de Justia se decidisse pela anlise que lhe proponho, no haveria que adoptar a este respeito uma soluo diferente. Por um lado, correcto considerar que o acrdo Legros e o., j referido, criou neste domnio uma nova situao jurdica que as partes em causa podiam considerar estvel e clara. Por outro lado, a soluo proposta no pretende conduzir a resultado diferente do que decorre do acrdo Simitzi, ainda que a anlise siga novas vias.

VI Concluso 77. luz do exposto, proponho ao Tribunal de Justia que responda da seguinte forma questo que lhe colocada neste processo:

1) Uma imposio cobrada por um Estado-Membro sobre as mercadorias em razo do seu transporte para fora do territrio de uma comuna deste Estado-Membro constitui um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro, na medida em que atinge as mercadorias exportadas para outro Estado-Membro.

2) As situaes que podem resultar da aplicao das disposies do Tratado CE, relativas aos encargos de efeito equivalente a direitos aduaneiros, imposio controvertida, quando respeitem aos produtos expedidos para outra parte do territrio nacional, devem ser apreciadas luz dos princpios gerais do direito comunitrio, designadamente do princpio da no discriminao.

3) As disposies do Tratado, relativas aos encargos de efeito equivalente a direitos aduaneiros, no podem ser invocadas em apoio de pedidos destinados a obter a restituio de montantes da imposio controvertida cobrados antes de 16 de Julho de 1992, salvo por requerentes que tenham, antes dessa data, interposto um recurso ou apresentado uma reclamao equivalente.