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EDITORIAL Revista Acrópole ACRÓPOLE | número 1 1 ______ chuva que a fertilize. O que invoca é «o regresso kármico dos Arquétipos, Ideias divinas que permitem abrir o cami- nho na senda do nosso viver, que permitem interpretar de um modo mais subtil a Natureza e encontrar o verdadeiro valor dos acontecimentos e das coisas». Com este primeiro número de ACRÓPOLE retomamos, com formas novas, o impulso iniciado há quase trinta anos e que deu nascimento a setenta e três números de revista. Pedimos desculpa aos nossos leitores habituais pelo silên- cio e pela espera, que foi o atanor que permitiu esta nova obra, renascida das cinzas da anterior e jovem, vigorosa e esperançada. Em relação ao nome, ACRÓPOLE designa a Cidade Alta, o lugar sagrado, no alto, que encontramos em centenas de civilizações que balizam o caminho da História. Era, pois, no alto das montanhas, naturais ou artificiais, que rendiam cul- to aos seus Valores Eternos, que chamaram Deuses; e era no cume onde se erguiam desafiadoras as cidadelas de go- verno, onde as almas mais nobres consagravam as suas vidas ao serviço da Res Publica. O termo Acrópole remete- nos sempre para a Pirâmide ou Montanha Mágica que, se- gundo Platão era a imagem e o símbolo do caminho que a alma humana deve empreender na busca do Bem (Mística), da Beleza (Arte), da Justiça (Política) e da Verdade (Ciência). Pois estas Essências ou Arquétipos tentam e atraem o me- lhor da alma humana como um íman, seduzem-nos, in- citam-nos a arremessar para longe o sonho de uma co- modidade medíocre e sem glória e aceitar o desafio e o risco que significa viver de verdade. Pois como ensinou um sábio indiano: V Viver é aspirar, criar, transformar-se e triunfar. E, quando nos perguntarem por que é que elegemos subir até à Acrópole, até à Cidadela Sagrada, daremos a resposta que deu Edmund Hillary à mesma pergunta de por que é que tinha escalado, apesar de tantos riscos e di- ficuldades, o Everest: «Que o facto de estar ali, com a sua imponente beleza, era um desafio, uma chamada perma- nente que não podia recusar». Em Coimbra, no ano de 1936, Miguel Torga, jovem mé- dico e poeta, escrevia no seu diário um poema infantil, so- nhador e simples, a que chamou Brinquedo: Foi um sonho que eu tive: Era uma grande estrela de papel, Um cordel E um menino de bibe. O menino tinha lançado a estrela Com ar de quem semeia uma ilusão; E a estrela ia subindo, azul e amarela, Presa pelo cordel à sua mão. Mas tão alto subiu Que deixou de ser estrela de papel. E o menino, ao vê-la assim, sorriu E cortou-lhe o cordel. Esta revista que tem nas suas mãos é, leitor, também uma estrela de papel, e todos os que nela trabalham, a criança sonhadora que a eleva no céu de uma Esperança e de um Ideal. Os artigos nela contidos, a perspectiva dos te- mas tratados, o caminho percorrido, sempre na busca das fontes vivas do Saber e do Ser, devem deixar nesta estrela de papel uma marca delicada e, quiçá, efémera. Mas o vento histórico que agita o nosso afã, o poderoso adejar que dá vida a esta pequena oferenda, é o que, esse sim, deve elevar esta estrela de papel, para que com alma própria se perca no invisível e íntimo da nossa imaginação e, ali, superadas todas as provas, se converta numa estrela que guie o peregrino e conforte a todos com a sua luz e beleza. Porque embora as palavras, já gastas no seu uso e abuso, imperfeitas e indignas, talvez, para a missão enco- mendada, não possam elevar-se e desenhar no seu voo os signos augurais, o que o coração invoca com os seus traços é poderoso e neces- sário, esperado, como espera a terra a UMA ESTRELA DE PAPEL José Carlos Fernández * *Director Nacional da Associação Cultural Nova Acrópole.

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EDITORIAL Revista Acrópole

ACRÓPOLE | número 1

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chu va que a fertilize. O que invoca é «o re gres so kár micodos Arquétipos, Ideias divinas que permitem abrir o ca mi -nho na senda do nosso viver, que permitem in ter pretar deum modo mais subtil a Natureza e encontrar o ver da dei rovalor dos acontecimentos e das coisas».

Com este primeiro número de ACRÓPOLE retomamos,com formas novas, o impulso iniciado há quase trinta anose que deu nascimento a setenta e três números de revista.Pedimos desculpa aos nossos leitores habituais pelo si lên -cio e pela espera, que foi o atanor que permitiu esta novaobra, renascida das cinzas da anterior e jovem, vigorosa eesperançada.

Em relação ao nome, ACRÓPOLE designa a Cidade Alta,o lugar sagrado, no alto, que encontramos em centenas decivilizações que balizam o caminho da História. Era, pois, noalto das montanhas, naturais ou artificiais, que rendiam cul -to aos seus Valores Eternos, que chamaram Deuses; e erano cume onde se erguiam desafiadoras as cidadelas de go -ver no, onde as almas mais nobres consagravam as suasvidas ao serviço da Res Publica. O termo Acrópole remete-nos sempre para a Pirâmide ou Montanha Mágica que, se -gundo Platão era a imagem e o símbolo do caminho que aal ma humana deve empreender na busca do Bem (Mís tica),da Beleza (Arte), da Justiça (Política) e da Verdade (Ciência).Pois estas Essências ou Arquétipos tentam e atraem o me -lhor da alma humana como um íman, se du zem-nos, in -citam-nos a arremessar para longe o sonho de uma co -modidade medíocre e sem glória e aceitar o desafio e o riscoque significa viver de verdade. Pois como ensinou um sábioindiano: VViver é aspirar, criar, transformar-se e triunfar.

E, quando nos perguntarem por que é que elegemossubir até à Acrópole, até à Cidadela Sagrada, daremos aresposta que deu Edmund Hillary à mesma pergunta depor que é que tinha escalado, apesar de tantos riscos e di -fi culdades, o Everest: «Que o facto de estar ali, com a suaim ponente beleza, era um desafio, uma chamada per ma -nente que não podia recusar».

Em Coimbra, no ano de 1936, Miguel Torga, jovem mé -dico e poeta, escrevia no seu diário um poema infantil, so -nha dor e simples, a que chamou Brinquedo:

Foi um sonho que eu tive:Era uma grande estrela de papel,Um cordelE um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrelaCom ar de quem semeia uma ilusão;E a estrela ia subindo, azul e amarela,Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiuQue deixou de ser estrela de papel.E o menino, ao vê-la assim, sorriuE cortou-lhe o cordel.

Esta revista que tem nas suas mãos é, leitor, tambémuma estrela de papel, e todos os que nela trabalham, acriança sonhadora que a eleva no céu de uma Esperança ede um Ideal. Os artigos nela contidos, a perspectiva dos te -mas tratados, o caminho percorrido, sempre na busca dasfontes vivas do Saber e do Ser, devem deixar nesta estrelade papel uma marca delicada e, quiçá, efémera. Mas o ventohistórico que agita o nosso afã, o poderoso adejar que dávida a esta pequena oferenda, é o que, esse sim, deve elevaresta estrela de papel, para que com alma própria se percano invisível e íntimo da nossa imaginação e, ali, superadastodas as provas, se converta numa estrela que guie operegrino e conforte a todos com a sua luz e beleza.

Porque embora as palavras, já gastas no seu uso eabuso, imperfeitas e indignas, talvez, para a missão en co -men dada, não possam elevar-se e desenhar no seu voo os

signos augurais, o que o coração invocacom os seus tra ços é poderoso e neces -sário, esperado, como espera a ter ra a

UMA ESTRELA DE PAPELJosé Carlos Fernández

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*Director Nacionalda Associação Cultural

Nova Acrópole.

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FICHA TÉCNICA ÍNDICE

www.nova-acropole.pt

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EROS... O AMOR... ............................................................................ 4Délia Steinberg Guzmán

SIDDHARTA GAUTAMA, O BUDA .................................................... 5Jorge Angel Livraga

DOSSIER «LUGARES SAGRADOS»

REGRESSO AO PRINCÍPIO DO MUNDO ................................. 14Paulo Alexandre Loução

SANTUÁRIOS DO PRINCÍPIO DO MUNDO .............................. 18Paulo Alexandre Loução

PANÓIAS E O SILÊNCIO MÁGICO DAS PEDRAS DAS SERPENTES 24Paulo Alexandre Loução

HISTÓRIA E SIMBOLISMO NA TERRA MÁGICA DE ANSIÃES .... 34José Antunes

ROTAS MÁGICAS DE ESPANHA ............................................... 40Antonio Enrique

O MOSAICO COSMOLÓGICO DE MÉRIDA .................................... 48José Carlos Fernández

CONFÚCIO E A ARTE DE GOVERNAR .......................................... 56Beatriz Diez-Canseco Bustamante

JUNG E A SINCRONICIDADE ....................................................... 62Centro de Estudos da Nova Acrópole do Brasil

A SABEDORIA DOS ANIMAIS ....................................................... 67Françoise Terseur

MURMÚRIOS DA HISTÓRIA... OS TERAPEUTAS ..................... 72José Carlos Fernández

HIERÓGLIFOS — A LINGUAGEM SAGRADA DO ANTIGO EGIPTO ... 75Cristiana Isa Baptista

CONFERÊNCIA POR JOSÉ MANUEL ANESENNOEA, ALQUIMIA, SEBASTIANISMO E V IMPÉRIO ................. 80Carla Costa

ENTREVISTA A HELENA BARBASHISTÓRIA DAS HISTÓRIAS DE MARIA MADALENA .................... 84Carla Costa

BEOWULF — A SABEDORIA MÍTICA QUE VEM DO NORTE ........ 91Cleto Saldanha

Revista «ACRÓPOLE»Nº 1 – 2ª série – Outono de 2007[1 série – 73 números]

Director: José Carlos Fernández

Coordenador Editorial: Paulo Alexandre Loução

Projecto Gráfico: Ana Vasconcelos

Tradução: Cleto Saldanha

Revisão: Bruna Pereira e Paula Aguiar

Colaboraram neste número:Textos: Antonio Enrique, Beatriz Diez-CansecoBustamante, Carla Costa, Cristiana Isa Baptista,Delia Steinberg Guzmán, Helena Barbas, JorgeAngel Livraga, José Antunes, José CarlosFernández, José Manuel Anes e Paulo AlexandreLouçãoFotografias: Ana Isabel Vieira, Ana Vasconcelos,Helena Barbas, Lima de Freitas, Paulo AlexandreLoução, Pedro Denis e Tomás Martínez

Propriedade: Nova AcrópoleSede: Av. António Augusto de Aguiar, 17 – 4º esq.1050-012 LisboaDelegações em Braga, Porto, Aveiro e [email protected]

Periodicidade: trimestralAssinatura (8 números): 35 eurosDepósito legal: ??????????????D.G.C.S: 111 445ISSN: 1646-8716

Os artigos assinados não exprimem necessariamente aopinião da Nova Acrópole nem da Direcção da Revista. Com -prometem exclusivamente a responsabilidade do seu autor.Não é permitida a reprodução total ou parcial sem a préviaau torização da Direcção da Revista.

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NOTÍCIAS ....................................................................................................................................................................... 93-96

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA | PROGRAMA KAIRÓS | DALAI LAMA EM PORTUGAL | NOVIDADES EDITORIAIS

ACRÓPOLE | número 1

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CONFÚCIO

OS SEGREDOSDOS HIERÓGLIFOS

LUGARES MÁGICOS DEPORTUGAL E ESPANHA

PORTUGAL, ALQUIMIA E QUINTO IMPÉRIO

MARIA MADALENA

BUDA

JUNG

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Podemos chamar amor ao comum entrelaçamento decorpos, tão apregoado pelos costumes liberais? Oupoderemos acaso chamá-lo às frequentes alterações e in -ter câmbios que exigem os instintos saciados, fartos, de jo -vens e menos jovens que já não encontram interesse, nematractivo em nada? Em suma, é amor a gran de quan tidadede aberrações com que se tenta cobrir aca rência de sentimentos au tênticos, ovazio emocional?

Cabem no amor os cata-ventos, asre lações de um dia, os laços que se de -sen laçam perante o mais pequenoobs táculo? E que dizer do desgastepro gres sivo que leva do entusiasmo àapa tia e desta ao ódio? Poderá haveres que cimento e indiferença onde hou -ver amor?

Eros cala-se ante minhas per gun -tas. Apenas fixa o olhar em su as asasquebradas… E na raiz do que foram as su as brilhantesplumas, surge uma gota de sangue e lágri mas sem dono.No cristal da gota reflectem-se velhas ima gens que, ao vê--las, me fazem perguntar novamente pe lo amor…

Lanço esse sentimento poderoso que põe luz no olharda quele que o leva e que o ilumina com a mesma força tudoo que toca. Quero voltar a encontrar o entusiasmo ilimitadodos enamorados que vivem no mundo como se fosse só de -les, que desprezam os obstáculos e se sentem capazes dearremeter contra todos os monstros.

Que é feito do amor que traz consigo a felicidade, o êx -tase silencioso, a ânsia de arrebentar porqueo coração se torna pequeno?

Onde está o homem e a mulher que ofe -recem um ao outro tudo o que têm, em vez

de pedirem seja o que for? Onde estão os que sabemperdoar, es perar, confiar, ajudar, compreender e ver paraalém de uns meros corpos destinados a envelhecer? On deestá a glo riosa certeza de se ter encontrado o ser que nosfalta para completar a nossa caminhada pelo mundo?

Onde se escondeu a linguagem sem palavras, mas tão ri -ca e expressiva, dos que par ti -lham a mesma ilusão, a mes maesperança? On de estão os de -talhes re quintados, o afã da be -leza, o agradecimento sem prere no vado do que ama e se sabeamado? Onde está a pai xão ro -mântica que faz do ser humanoum deus mui to mais poderosoque os seus simples instintos?

Onde ficaram os amantesque conseguiram o milagre depa rar o tempo, de apagar o es -

paço e espantar a própria mor te? Onde encontrar os que fi -ze ram um altar da sua uni ão, da sua entrega, da sua fi -delidade e da sua sinceridade?

Eros continua sem responder. Todavia, nele se en -contra a chave das minhas perguntas. Também ele vai pelomun do à procura dos que aspiram a esse sentimento que éa sua razão de ser. É possível que esses seres estejam bemma is perto daquilo que ele, e eu com as minhas perguntas,suspeitamos. Aqui, ali, onde pousamos o nosso olhar, podeha ver homens e mulheres que, sem se atreverem a con -fessá-lo, procuram o deus do Amor.

Porque quando forem muitos os que vivam o cume in -descritível de tão elevada emoção, Eros recuperará suasasas e voará novamente pelo éter, animando e protegendoo amor de todos os que amam.

EROS... O AMORDélia Steinberg Guzmán

*

*DirectoraInternacional daNova Acrópole.

«Amor?... É uma pergunta tão velha como a própria humanidade. O que é o Amor? Comoencontrar Eros, já sem asas, no meio de tantas e tão diversas versões que as sociedades nosapresentam? Em princípio, talvez pareça que o significado do amor se enriqueceu atélimites insuspeitáveis, oferecendo possibilidades de expressão cada vez maiores. Porém,depois de uma breve análise, as coisas apresentam-se-nos menos claras.»

REFLEXÃO O Amor

Eros e Psykhé, escultura em mármore de AntonioCanova, 1793. Museu do Louvre, Paris.

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INTRODUÇÃO

Para se compreender a Sabedoria Orien -tal é necessário co nhecer os seus con cei tosde Dharma, Karma e Reen carnação. Po de-seafirmar, no entanto, que estes con cei tos fo -ram conhecidos e vividos por mui tas das civi -li zações do passado nos mais di ver sos pon -tos do Globo.

DHARMA

A palavra sânscrita Dharma, da raiz dhr (conter, portar,transportar) significa o que contém em conjunto, o que su -por ta, sustenta.

É a Ordem, a norma. A forma védica é dharman, a for -ma clássica, dharma e, em pali, dhamma. A noção do dhar -ma opõe-se à do adharma ou anormal. Ela aparenta-se àdo rta, a ordem verdadeira de origem védica.

O dharma relaciona-se à lei e aos costumes e, nesse

SIDDHARTA GAUTAMA, O BUDAJorge Angel Livraga

*

Melhor do que mil palavrasdesprovidas de sentido

é uma única palavra razoável,que pode levar a calma

àquele que a escuta.

Buda

RELIGIÃO O Buda

*Fundador daNova Acrópole.

Cruz de Paris deArtes e Ciências.

Artigo escritoem 1987

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O homem tem quatro finalidades na vida: dharma, quedá a disposição social e psicológica ou a virtude; artha, a ri -que za, os interesses, os meios; kama, o amor, os prazeres;moskha, a libertação.

H. Zimmer diz: «Da mesma forma que o dia e a noite seal ternam, cada um mantendo a sua forma própria e mar -cando com o seu contraste a natureza do processo do tem -po, da mesma maneira, na esfera social, cada um sustentaa totalidade aderindo-se ao seu próprio dharma. Na Índia, osol seca a vegetação, mas a lua regenera-a, enviando o or -valho vivificante, exactamente assim, no universo, os inú -me ros elementos que estão em conflito recíproco coope -ram trabalhando uns contra os outros. As regras das castas

RELIGIÃO | O Buda

e das profissões são concebidas como reflexos sobre oplano humano das leis próprias a essa ordem na tural; daíre sulta que, quando elas aderem a essas regras, as di ver -sas classes são sentidas como se elas cola bo ras sem, mes -mo quando estão em antagonismo aparente. Ca da raça, ca -da Estado, segundo a sua própria rectidão, fa zem emconjunto a obra do cosmos. Esse é o serviço pelo qual o in -di víduo se eleva para além dos limites da sua idios sincrasia,convertendo-se num canal vivo da força cósmica».

Assim, o dharma, sendo uno, torna-se Svadharma, «de -ver próprio de cada um», adaptado segundo a dis posiçãona tural em que cada um se encontra. Assim, o Bhagavad--Gî ta diz: «Mais vale cumprir o seu próprio dever (sva dhar -ma), ainda que de forma imperfeita, do que cumprir per -feitamente o dever alheio. É melhor sucumbir de sem pe -nhan do o seu próprio dever; é perigoso cumprir deveresalheios» (III, 35).

Esta perfeição, na aplicação do seu dharma, fazcomunicar cada ser com o Poder Sagrado, inde pen den te -men te da cas ta a que pertence.

O dharma ou lei natural de um brahmane é diferente dodhar ma de um soldado, de um mercador, de um artesão.Cada um desempenha o seu papel; realiza uma perfeiçãodo seu ser.

KARMA E REENCARNAÇÃO

O Bhagavad-Gîta diz: «Ninguém permanece inactivo uminstante sequer, pois todo o homem se vê impelido à acçãopelas qualidades que brotam da natureza material» (III, 5).

Derivado do radical sânscrito kr, que significa «fazer»no sentido mais amplo do termo, karman designa qualqueracto e particularmente todo o acto ritual realizado segundoas prescrições dos textos sagrados.

Já que os seres são forçados à acção, o encadeamentodos seus actos e resultados darão os estados que eles co -nhe cerão por consequência:

sen tido, constitui uma das quatro finalidades da existência,en quanto busca da perfeição moral.

O dharma é a justiça ideal tornada viva; todo o homem,todo o objecto sem o seu dharma é um absurdo. Há fun -ções puras e impuras, mas todas participam do poder sa -grado; é por isso que a virtude coexiste com a perfeição nopapel que desempenha.

O dharma reveste-se de várias formas; ordem cósmica,ordem social, conjunto de leis civis e criminais, ordem mo -ral, doutrina religiosa. É também o dever e a virtude. O no -me Dharma aplica-se aos textos que definem a cons ti -tuição fundamental do Universo, a estrutura da so ciedadeformada por quatro classes fundamentais (as cas tas), seusdeveres, as leis que regem os povos. Esses tra ta dos sãochamados Dharamçastra (Tratados da Boa Ordem).

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Estátua de Buda em Borobudur, Java, Indonésia.

infância à maturidade espiritual. Cada indivíduo é o que elefez de si mesmo no curso de vidas anteriores.

No Ocidente conhecemos essa doutrina como Reen car -nação, ou palingénese (do grego: palin = novo – génesis =nas cimento) ou metempsicose. É necessário esclareceresta ideia, que é mal interpretada no Ocidente. Acredita-se,geralmente, tratar-se de uma doutrina que ensina que ohomem pode assumir formas de animais, de cavalo, decão, de corvo, etc. Mas é uma má explicação de um pro ble -ma simbólico. A teoria científica da reencarnação ex plicaque, uma vez que a alma racional chegou a um certo es -tado, após um longo caminho ascensional, não mais podeas sumir outros estados senão os que lhe são ca rac -terísticos por lei e adquiridos por evolução. Por outro la do,os antigos descobriram que algumas falhas e vir tu des doshomens eram análogas a alguns seres da na tu reza, comoos animais. Assim, a memória e a inte ligência lem brariamo elefante, a pureza, a pomba; a fi de lidade, o cão, etc. Emrelação a essa noção, eles diziam: «encarna em elefante ohomem que é nobre e sábio». Isto queria dizer que eletinha uma vida balizada pela sabe do ria. Krishna, noBhagavad-Gîta, quer dar ao seu discípulo o co nhecimentodessa lei, ensinando-lhe que o Espírito, sen do Divino, abre--se a novos corpos através de inúmeras ex pe riências, por -

«Assim agimos, assim nos comportamos, assim nostornamos. Aquele que pratica boas acções, torna-se bom.Aquele que comete pecado, torna-se pecador. Pelas suasac ções virtuosas, torna-se virtuoso; pelas suas más ac -ções, torna-se mau» (Brihadâranyaka Upanishad).

Os actos efectuados pelo corpo, a fala e o espírito pro -du zem resultados internos e externos que, combinadoscom os frutos de outros actos, tornam-se as causas deoutros resultados que recaem sobre o autor da acção. Okar ma (energia de causalidade) conduz, assim, a en -cadeamentos de acção e reacção que se prolongam de vidaem vida e go vernam as circunstâncias de cada um. O kar -ma não im plica uma fatalidade do destino. Mesmo que de -va mos es colher o que semeámos, somos livres de semearuma se mente nova que trará bom fruto. A causa do malnão é o pecado, mas a ignorância. A sabedoria tende a en -fra quecer o estreitamento do karma.

O impulso que compele um ser a passar continuamentede um ciclo de nascimento a um outro, é fornecido pela for -ça kármica. Bem entendido, o karma não se com pre en dese não se considera a noção de reencarnação. O nas ci men -to não é um efeito do acaso, pois todo o ser se encontra,nesse instante, num grau de evolução que vai do in cons -ciente ao consciente, do inanimado ao trans cen den te, da

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O karma (energia de causalidade) conduz,assim, a encadeamentos de acção e

reacção que se prolongam de vida em vidae governam as circunstâncias de cada um.O karma não implica uma fatalidade dodestino. Mesmo que devamos escolher oque semeámos, somos livres de semear

uma semente nova que trará bom fruto. Acausa do mal não é o pecado, mas a

ignorância. A sabedoria tende aenfraquecer o estreitamento do karma.

RELIGIÃO | O Buda

família Sakhya. A pa lavra Siddharta dever-se-ia aos seuspoderes para nor mais e refere-se ao Sidhi; é «O Po -deroso», aquele que se completou a si mesmo. Gautamasig nifica literalmente «Pas tor de vacas», pois no hin -duísmo, a vaca Go é si nó ni mo do universo e também daMãe do Mundo.

Buda significa «O Iluminado» e é um qualitativo ge né ri -co outorgado a muitos grandes místicos anteriores e pos -teriores a ele, em todas as línguas da Terra. (Por exem plo,em grego «Christos» tem o mesmo significado, e foi assimque chamaram ao Mestre Galileu a partir do século IV-V).

Podemos considerar a sua existência sob duas chaves:a história e a mítica ou religiosa, não podendo evitar queambas se confundam na fé dos seus crentes, como aliássu cede em todas as religiões conhecidas.

HISTÓRICA: nasceu no seio de uma família nobre, daCas ta Kchatrya ou guerreira, no actual Nepal, no palácioreal de Ka pi lavastu, a uns 50 kms a nordeste da cidade deBe na res. As investigações modernas dão-nos a data de563 a.C., que coincide aproximadamente com as tra di -ções antigas indianas, que situam o seu nascimento entre600 a.C. e 543 a. C.

O seu pai foi o rei Suddhodhana, e a sua mãe, a princesaMaya, proveniente de um reino vizinho. Naquela época, aÍndia passava por um dos períodos de tipo feudal, ou seja,estava composta por pequenos Estados, à semelhança daGrécia clássica. Suddhodhana significa «arroz puro» eMaya ou Mayadevi, «Ilusão luminosa». A criança nasceu no

mês de Maio edes tacou-se ime -diatamente pelasua beleza física ein te lec tual. Fi couórfã de mãemuito ce do e foicriada pe lo seupai, que ca sou emsegundas núp ciascom a prin ce saGau ta mi, pa rentepró xi ma de Maya.Sid dhar ta foi edu -ca do, desde ossete anos de ida -de, pe lo mes treViz va mitra e o seucon selho de an -ciãos sábios.

O futuro Ta -tha gata, «O Pre -

que tudo é cíclico na natureza, ao dia segue-se a noite, àPrimavera, o Outono; também no caso do ho mem «à vidasegue-se a morte e à morte segue-se a vida», como diziaPlatão no Fédon. Khrisna tenta dar ao seu discípulo umaconsciência da eternidade do espírito e aspira a subtraí-loao efeito do tempo para evitar que Ar ju na sofra pelotransitório, pelo que perece; pois o que É, por naturezaprópria, não deixa de ser. Como chegar à luz? Saindo domundo das sombras. Como chegar à sabedoria? Lu tandocontra os kuravas (imperfeições, defeitos, te mo res…).Todo o protesto, todo o pedido são inúteis, se an tes Arjunanão cumpre o que deve cumprir para con seguir o prémioque deseja.

«A desigualdade e a crueldade do mundo não são im -putáveis a Deus. Não é sem razão que Deus fez a criaçãode sigual. Mas, então, por que razão? Pensamos que é umefeito do cumprimento ou da negligência pelos seres, dosseus deveres» (Brahma-Sûtra Bhâshya, 2.1.34).

Cada ser nasce com um papel preciso a desempenharna or dem da criação. É realizando esse papel e trans cen -den do-o, mas sem ignorar a sua função, que ele chegará apro gredir em direcção a estágios mais evoluídos até à sualibertação final.

SIDDHARTA GAUTAMA, O BUDA

Siddharta Gautama, o Buda, foi assim chamado,segundo H.P.Blavatsky, porque o primeiro era o seu nomepessoal e o segundo o nome sacerdotal da sua famíliaSakhya; daí o epíteto de Sakhaya-muni ou o Santo da

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Fila de Budas num mosteiro tailandês.

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Siddharta entregou-se então a uma peregrinação interminável e caiu nos mais terríveisascetismos. Já quase moribundo, passou diante dele uma tocadora de vina (tipo de guitarra

com a caixa em forma de alaúde), cantando: «A corda frouxa não dá som, e se está muito tensaquebra as nossas esperanças; no justo meio é quando nos dá a sua harmonia». Siddharta

ouviu-a e compreendeu a mensagem dos Deuses (...).

O rei Suddhodhana, desesperado e ofendido, confessouao seu filho o muito que este o fazia sofrer. Siddharta,como que despertando de um sonho, sorriu-lhebondosamente, prometendo-lhe que as suas penas iriamacabar. Assim, aceitou medir forças, em qualquer terreno,com todos os aspirantes à mão de Gopa.

Formalizaram-se as justas, nas quais competiriamnumerosos príncipes provenientes de vários reinos, pois aprincesa era muito bela e muito rica. Começaram por dis -

força todo o reino Sakhya), mas desta vez, o príncipe nãoaceitou. A causa desta recusa é vista de diferentesmaneiras pelos historiadores: para uns, deve-se a umarazão meramente de ordem moral: para outros, ao facto deo exercito dos Sakhya estar preparado somente pa ra umaacção defensiva, à qual se tinha dedicado com muito êxitodurante quase um século.

Siddharta tornou-se, pois, monge peregrino (coisa que,em principio, não podia alarmar demasiado o rei, já que era

parar arcos, mas os de madeira, comuns, estilha ça vam-senas mãos de Siddharta. O seu próprio pai mandou, entãotra zer o velho arco do seu avô, o gigantesco rei Si nha janu,que estava depositado num templo, e que re queria vinteho mens para o transportar, devido ao seu tamanho des -comunal e aos materiais pesados com que fora construído.

Colocado nas mãos dos príncipes, ninguém conseguiulevantá-lo à excepção de Siddharta, que o fez com um sódedo da sua mão direita. Em seguida, esticou-o facilmentee disparou, acertando na mouche a uma distância incrível.Já ninguém mais quis competir com ele e, após a tra di cio -nal festa, casou-se com Gopa. Para o casal, be lís simo efamoso, o rei Suddhodhana mandou construir três pa lá -cios: um de Verão, outro de Inverno e o terceiro no sopédos Himalaias, para a época das chuvas. (Na Índia antiga,co mo na Grécia pré-clássica as estações eram três e nãoquatro).

Assim viveram quatro anos, ao cabo dos quais Gopadeu à luz um menino, a que o seu pai chamou «Rahula», ouseja Cadeia ou Amarra. Depois, Siddharta regressou à vidaas cética e mandou dizer a seu pai, o rei, que tinha cum pri -do o seu desejo: a dinastia não se extinguiria.

O rei ficou horrorizado quando ouviu a notícia, pois asituação económica do reino era muito precária, debilitadapor gastos excessivos e, além disso, os seus belicosos vi -zinhos estavam a preparar-se para uma guerra entre co -ligações. Ele próprio sentia-se um pouco velho para con -duzir os seus exércitos e, tendo um filho tão excep cio nal -mente sábio e forte, pediu-lhe que voltasse à nor malidadee se preparasse para atacar os seus vizinhos an tes queestes se tornassem demasiado fortes. Temia, espe cial -mente, uma invasão do reino de Kosala (efec ti va mente,cin quenta anos após a morte de Buda, Kosala ane xou pela

di cador», cedo mos trou um ca rác ter in tro ver ti do. Um dosseus mestres descreveu-o assim: «Os grandes olhos fixosdesta criança, que brilhavam sob uma fronte extraordináriaabobadada, contemplavam o mundo com assombro. Havianesses olhos abismos de tristeza e de recordações. Passoua sua infância no jardim sumptuoso de seu pai, no meio doluxo e do ócio. Tudo lhe sorria, mas nada podia afastaraquela sombra precoce que velava o seu rosto; nada podiaacalmar a inquietação de seu coração. Era uma daquelascrianças que não falam, porque pensam demasiado para asua idade.»

Outros fragmentos da época relatam que, forçado peloscostumes a participar em expedições de caça, ao ver voaras flechas, fixava nelas os seus olhos e estas desviavam-seno ar, salvando-se assim o animal. Estes e outros fe nó me -nos a que chamaríamos hoje parapsicológicos, unidos àsua tendência para uma excessiva atitude meditativa, aca -ba ram por alarmar o rei. Preocupado em encontrar umher deiro mais normal para a Coroa, arranjou apres sa da -mente um casamento com a filha do rei de Coly, chamadaYaho dara e também Gopa. Mas o pai da eleita não quis dara mão da sua bela filha a um «anormal», pois tinha em vistamuitos outros príncipes mais amantes da guerra e dascom petições cinegéticas.

O jovem Siddharta tinha uma boa figura, e nas poucaspráticas de artes marciais em que se viu obrigado a par tici -par, foi sempre o melhor, dava a ideia de não necessitar demes tres para nada, desde o uso do arco à dança e da so -bre vivência na selva à composição e execução musical.Mas, para os costumes da época, era muito estranho queum príncipe tão jovem estivesse sempre rodeado de filó -sofos, cientistas e poetas, menosprezando as vestimentaslu xuosas e as belas escravas.

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MÍTICA ou RELIGIOSA: Há três textos chamados «Evan -ge lhos» pelos ocidentais, que narram a vida do Buda: um, oAsvagosha Bodhisatva, também chamado budacrita; ou tro,o Mahavastu (Grande História); e o terceiro, o Lalita-Vish -tara, o mais esotérico de todos, pois identifica o Buda comtoda a Humanidade e, assim, narrando as anterioresreencarnações do grande sábio de maneira mistérica, en si -na sobre o que foi a Humanidade no mais remoto passado,quando habitavam formas animais num planeta que hoje seconverteu em satélite, a Lua. Também existe uma biografiaes crita tardiamente por Dharmaraya em 308 d.C.

Tomamos com fonte principal o Asvagosha, ou versãohin du. Também há versões chinesas, japonesas, coreanase da escola Zen.

Siddharta nasceu no segundo dia da lunação de Maio doano de 621 a.C., no reino de Kapilavastu. O seu pai foi o reiSud dho dhana e sua mãe Maya, ou Mahamaya (a grande ilu -são), que morreu do parto sete dias após o nascimento doSar varthasiddha (O Poderoso). A mãe, antes de morrer, fez o

rei jurar que se casaria com asua tia, Mahaprajapati Gau -tami, e que cuidariam dacrian ça já tida como exce pcio -nal, como um Avatar (por -tador do En si na mento Di vino,receptáculo com apa rênciahu mana da Di vin da de que ve -la pelos homens, Vishnu).

A criança não nasceracomo os outros homens, pois,embora os seus pais es -tivessem casados, o ma -trimónio não fora con su ma dopor motivos rituais. A Vir gemMaya teve a visão de umaforma de Vishnu como filhode Shiva: o deus da Sa be -doria, Ganesha. Era um gran -de elefante branco que lheroçava o ombro esquer do,dizendo-lhe que assim fi cava

grávida e que seria mãe de um Buda. Cum pridos os novemeses deu à luz o Me nino. Este, mal nas ceu, er gueu-serobusto e deu sete passos na direcção de ca da um dospontos cardeais. Os místicos brahmanes en contraram noseu corpo os trinta e dois signos da per feição. Conhecida anotícia, vieram ado rá-lo magos e reis de longínquos países.Os profetas e as tró logos coincidiram em afirmar que tinhanascido um Ava tar e os velhos textos falam-nos da lutainterior do jo vem prín cipe, forçado a viver a vida da corte.

Um capítulo deste Evangelho, chamado «Tédio e Tris -

moda entre os príncipes daquela época). O rei, como ospais actuais, pensou que o filho iria abandonar rapi da -mente es sa obsessão; mas Siddharta não era um ho memcomo os outros e nunca mais voltou à Corte. Quando par -tiu, em ple na noite, de um dos seus palácios, tinha 29 anosde idade.

Historicamente, o seu rasto perdeu-se e o mitosepulta-o. Aquela era uma época de convulsões políticas,sociais e religiosas na Índia, e muitas correntes pugnavamentre si, destacando-se o Jainismo e a leitura dos Upa -nishads.

Siddharta peregrinou durante cerca de quarenta e cincoanos e é provável que antes de fundar a sua própria Escolamístico-filosófica (que não pretendia ser uma nova re ligião)tivesse tido contacto com muitos sábios, do Hi ma laia até aoGanges, especialmente com yoguis e faquires, já que esteseram os mais numerosos. Por fim decidiu fundar o Sangha(uma confraria mística) que não contava com mais de umadúzia de discípulos varões. Este mo vimento espiritual cres -ceu rapidamente, pelo que tiveram tam bém de aceitar mu -lheres. Conta-se que o Bu da,ao dar a sua apro vação, fez ose guinte co men tário jo coso:«Agora o Sangha du rará qui -nhentos anos me nos».

Os dados históricos sãocada vez mais escassos.Não há provas de que tenhaviajado fora da Índia, embo -ra a sua doutrina cedo seex pan disse, principalmentena China. Sabe-se que aoaceitar mulheres na suaOrdem, coisa insólita na -que la época, foi acusado depromover delitos sexuais,tendo-lhe valido a sua pu re -za de vida, a sua aguda dia -léctica e a sua condição deex-príncipe, que o salvarammais de uma vez da con -denação à morte.

No bosque de Kusinara, debaixo de árvores de sândalo,morreu tranquilamente com a idade de 81 anos. Talvez te -nha morrido sim plesmente de velhice, embora osdocumentos mais antigos falem de uma ingestão de javali,e os investigadores actuais, de disenteria (é oportuno as -sinalar que o javali, ani mal dedicado a Vishnu, era um sím -bolo da Sabedoria Di vina, da qual o Buda teria «co mi do»demasiado para con tinuar a viver nesta terra).

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O homem está preso apenas pela sua ignorância, que o faz equivocar-se e reencarnar inúmerasvezes, buscando a experiência que lhe falta. Deus não desce até aos homens, mas são estes quedevem elevar-se até ao divino, onde a Luz é permanente e os lótus não fecham as suas pétalas

(Nirvana ou San-gri-lah). O Dhammapada (em sânscrito Dharmapadha), dir-nos-á: "O homemque se vence a si mesmo é mais forte do que o que vence mil homens em combate".

que é que estava tão pálido, seguido de carpideiras e deparentes enlutados. Respondeu-lhe o áuriga que se tra -tava de um morto e explicou-lhe que esse é o fim de todo oser vivo. Perante tal resposta, o jovem teve a sua terceiracrise e perguntou: «Por que é que existem velhos, doentese mortos?». O áuriga não lhe soube responder sa tis fa to -riamente e, então, o futuro Buda – pois ainda não ti nhaalcançado a Iluminação – disse-lhe que só via igno rân cianele e que o seu conhecimento não lhe servia de nada.

Quando o rei se inteirou do sucedido, mandou construirtrês palácios maravilhosos (Suba, Surama e Rama), com aintenção de eliminar tais experiências da mente do filho. Eprocurou para ele uma esposa muito bela chamadaYashodara, filha do rei de um Estado vizinho, Dandapani, afim de o distrair das suas meditações. Nas provas decompetência com outros robustos príncipes, Siddhartavenceu-os a todos com o arco mágico Sinhajanu (talvez odeus-leão Indra), que não era usado desde a época dosgigantes, há muitos milhares de anos. Domou um cavalo

negro graças à per -suasão, sem uti lizar olátego (o cavalo era osímbolo dos PoderesCós micos), e tambématra ves sou a nado,mais rá pido do quequal quer outro, umimen so la go cheio delótus. Por fim, umasbe lís simas for mas fe -mi ni nas, cha ma dasApsa ras, ten taram-noe ele respondeu:«Afas tem esses sa cosde podridão que es tãoà minha fren te». Umsábio brah ma ne pro -curou refutar as suasnovas ideias, mas Sid -

teza», diz-nos que o rei, para alegrar o seu filho e evitarque abandonasse o mundo por piedade para com os ho -mens, fazia engalanar as cidades que visitava e retirava dasua vista os doentes, tolhidos e anciãos. Também não lheper mitia ver um morto. À sua passagem, tudo res plan deciade felicidade, juventude, saúde e riqueza.

O Mestre Vizvamitra já não tinha mais nada para lhe en -sinar e o jovem insistiu em visitar uma cidade do seu rei no.

Alertado, o rei mandou preparar as ruas por onde oprín cipe iria passar, para que a cidade tivesse a aparênciade um paraíso terreno, limpa e cheia de gente jovem ebela. Porém, um Devarishi (uma forma de anjo sábio) sal -vou Gau tama do engano, surgindo-lhe, de repente, diantedo seu carro de guerra, como velho arquejante; o príncipeper guntou ao seu áuriga quem era esse homem en -curvado, enrugado e vacilante. «É um velho, senhor», res -pondeu o cocheiro. Após uma curta reflexão, o Buda per -guntou-lhe novamente se esse estado era normal, se o seupai e ele próprio chegariam a essa decrepitude. Pe ran te ares posta afirmativa, o jovem sumiu-seem obscuras meditações.

Em seguida, o astuto Deva apre -sentou-se-lhe como um homem en -fermo, com o rosto deformado por hor -ríveis cicatrizes provocadas pela varíolae com a pele a cair aos bocados pelalepra. «E isso, o que é?», perguntou-lhehorrorizado o príncipe. O áuriga, ins pi -rado pelos Deuses, explicou-lhe quenin guém está livre das enfermidadesque encurtam a vida antes de se chegara velho. O príncipe, face a esta segundacrise, permaneceu de novo fechado so -bre si mesmo. O Deva, um pouco maisadiante, fez pas sar uma caravana mor -tuária com um cadáver para ser cre -mado. De novo, Siddharta perguntou aoseu áuriga o que signi ficava aquilo queestava a ver; se o homem dormia, e por

Para Buda, a pessoa (persona) ouquaternário inferior é mortal por

necessidade, pois está no tempo e "tudo oque nasce deve morrer". Imortal é o

espírito que está para além do eu mental,egocêntrico e egoísta. O verdadeirotriunfo não radicaria, segundo este

Avatar, em dominar apenas o corpo, mastambém o pensamento e o separatismo doeu… tu…ele, etc. Para poder alcançá--lo,

realmente, o homem deve sentir anecessidade imperiosa de se libertar do

ciclo vida-morte.

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dizer palavras correctas com in tenção incorrecta; o ódio, ain veja e o ateísmo.

A sua doutrina, que se resume no chamado Sermão deBenares, baseia-se na auto-realização do homem. Nem osdemónios podem, realmente, rebaixá-lo, nem os deuseselevá-lo, salvo com a cumplicidade ou a colaboração do pró -prio ser humano. No Budismo não existe a ideia de uma«salvação», nem a de um «Deus pessoal». O homem estápreso apenas pela sua ignorância, que o faz equivocar-se ereencarnar inúmeras vezes, buscando a experiência que lhefalta. Deus não desce até aos homens, mas são estes quedevem elevar-se até ao divino, onde a Luz é permanente e oslótus não fecham as suas pétalas (Nirvana ou San-gri-lah).O Dhammapada (em sânscrito Dharmapadha), dir-nos-á: «Ohomem que se vence a si mesmo é mais forte do que o queven ce mil homens em com bate».

Nirvana significa, literalmente «sair do bosque», ouseja, sair da confusão, das trevas e da pluralidade. É ameta última do homem como tal. Mas não é o fim de tudo,pois, segundo o Budismo Esotérico, para além há mais es -ta dos misteriosos que se englobam na expressão «Para -nir vana Moksha».

Para Buda, a pessoa (persona) ou quaternário inferior émortal por necessidade, pois está no tempo e «tudo o quenasce deve morrer». Imortal é o espírito que está paraalém do eu mental, egocêntrico e egoísta. O verdadeirotriun fo não radicaria, segundo este Avatar, em dominarapenas o corpo, mas também o pensamento e o se pa ra -tismo do eu… tu…ele, etc. Para poder alcançá-lo real -

dhar ta emudeceu-o com a sua enorme sapiência.Casou, teve um filho a que deu o nome de «Cadeia» e,

cumpridas as suas obrigações reais, passando as provasde Terra, Água, Ar e Fogo, partiu uma noite de um dos seuspalácios, no seu cavalo Chandaka, o qual voltou para juntodo rei e, antes de morrer, pronunciou com dificuldade asseguintes palavras: «Nasceu um Buda». (Chandaka ouKan daka era o nome do seu cavalo e também o do seuáuriga que antes o tinha acompanhado).

Siddharta entregou-se então a uma peregrinação in -terminável e caiu nos mais terríveis ascetismos. Já quasemoribundo, passou diante dele uma tocadora de vina (tipode guitarra com a caixa em forma de alaúde), cantando: «Acorda frouxa não dá som, e se está muito tensa quebra asnossas esperanças; no justo meio é quando nos dá a suaharmonia». Siddharta ouviu-a e compreendeu a men sa -gem dos Deuses; alimentou-se de arroz e leite e saiu dasua prostração. Em seguida, pediu a um segador um feixede erva (a sagrada erva Kusha), e sentou-se sobre ela, de -baixo de uma grande árvore bo (emblema da Árvore daVida). Aí, em vigília perpétua, chegou ao seu VerdadeiroEstado de Libertação, fortemente comprometido com aNatureza e a Humanidade. Viu as causas da dor, as dozeNidanas e também o remédio para elas.

O SEU ENSINAMENTO

Por razões de espaço, apenas faremos um breve re -sumo. Um elemento fundamental é o Ariya-atthangika--mag ga, conhecido como Nobre Óctuplo Caminho.

Consta de:

— Conhecimento Recto

— Intenção Recta

— Palavra Recta

— Conduta Recta

— Esforço Recto

— Meios de Vida Rectos

— Pensamento Recto

— Concentração Recta

Após a fundação do Sangha,deu aos «monges» dez Para -mitas (virtudes transcendentes)e seis para os laicos.

Ensinou que há dez vícioscapitais: três do corpo, quatrodos lábios e três da mente. Es -tes são: matar, roubar e for ni -car; mentir, caluniar, in sul tar e

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De qualquer modo, o Senhor do Lótustrans mitiu para a posteridade a religião que,de to das as que conhecemos, menos sanguefez der ra mar. E ainda que só fosse por isso,me rece ser bendito.

Salvo excepções, como no caso dos Khmeres vermelhos,não se misturou nem se mistura em questões políticas,pois nela prevalece o velho espírito da tem po ralidade dascoisas e da busca individual de uma paz interior a todo ocusto, unida a uma grande humildade. O Buda disse: «euve rei as costas do último homem a entrar no Nirvana».

Segundo H.P.Blavatsky, o Budismo, nas suas origens,não teve quase nada de original, pois Siddharta limitou-sea exteriorizar uma forma de Budismo Primitivo, a Místicada Luz ou da Iluminação, que já existia desde há milharesde anos na zona norte da Índia, especialmente no Tibete. Émui to difícil, se não mesmo impossível, provar ou negares ta afirmação.

mente, o homem deve sentir a necessidade imperiosa dese libertar do ciclo vida-morte. Enquanto viver apegado àsensação e à ignorância, é melhor deixar para a moral me -cânica da Natureza, através das reencarnações, o tra balhode purificação.

Assim, aquele que mais do que um fundador de umareligião foi um filósofo esotérico, criou dentro do milenárioBrahmanismo uma revolução ideológica e de costumes,pois os brahmanes, que estavam sujeitos a um cerimonialmuito estrito, a um sem-número de superstições e detabus, foram fortemente afectados por esta corrente de arfresco que, sem negar a Tradição Interna, desaconselhavapassar a vida a fazer cerimónias já vazias de sentido,esperando que os Deuses ajudassem o homem.

Tal como Sócrates, recomendou o «Conhece-te a timesmo».

Após a sua morte, os seus discípulos foram per -seguidos pela «religião oficial», e só alguns séculos maistarde, como um Constantino oriental, surgiu o imperadorAsoka, chamado «o cruel», o qual, em meados da sua vida,abraçou os ensinamentos do Buda, tendo-os imposto noImpério de uma Índia que acabara de superar uma dassuas épocas de feudalismo. Porém, esta situação não iriadurar muito, pois no século VIII surgiu a invasão mu çul -mana que obrigou a uma nova fragmentação.

O Budismo, agora dividido em Mahâyâna (o GrandeVeí culo) e Hinayâna (o Pequeno Veículo), penetrou pro -fun damente na China e noutros países do Oriente. As no -vas investigações afirmam que também se expandiu pon -tual mente no Ocidente durante o século III a.C., devidoaos contactos estabelecidos por Alexandre Magno, o qualdei xou igualmente a sua marca no pensamento e na artehindu através do período «Gupta». Alguns filósofos bu dis -tas e brahmanes deambularam pelo Ocidente, pelo me -nos até ao século I-II d.C., sendo conhecidos como «gim -no sofistas».

O Budismo caracterizou-se e caracteriza-se por não terum, mas muitos chefes espirituais, e por uma grande li -berdade de expressão, que o enriqueceu, mas também odebilitou. Até aos finais do século XIX e primeiro quartel doséculo XX, foi a religião com mais adeptos no mundo, masa queda da China na guerra civil e a posterior penetraçãode formas assimiladas do marxismo, assim como a in -fluência ocidental que se reforçou no Japão e em todo oExtremo-Oriente após a Segunda Guerra Mundial, deixou--a num provável terceiro lugar e, como todas as religiõesactuais, excepto a muçulmana, tende a perder influência.

Não obstante, nos seus vinte e cinco séculos de vidademonstrou uma grande capacidade de sobrevivência e,salvo no já muito longínquo momento de Asoka, podemosafir mar que é a forma de fé menos inclinada para a vio -lência e para o domínio do mundo material e das riquezas.

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REGRESSO AO PRINCÍPIODO MUNDO

Paulo Alexandre Loução*

LUGARES SAGRADOS Beira Baixa

«O lugar da Terra que nos foi dado habitar, esta periferia mais ocidental daEuropa, este fim de terra ha bitada, como o pensavam os povos da antiguidade,con tinua marginal em relação a lugares dessa outra Europa mais rica e maisdesenvolvida. Mas este facto permite que as terras destes confins ocidentaiseuropeus se perfilem neste fim de milénio como imenso repositório das velhas egenuínas raízes da cultura europeia.»1

Maria Adelaide Neto Salvado

*Escritor einvestigador.

Co-autor da obra«Lugares Mágicos

de Portugal eEspanha»

Esse território afastado do litoral vai do interior do AltoAlentejo, passando pelo san tuário do deus Endovélico, pelasterras mágicas das Idanhas, pelas serras da Gardunha e daEstrela, pe lo vale do Côa e pelo Alvão até à região trans mon -tana das saturnais de fogo do concelho brigantino.

Costuma-se afirmar que há lugares mágicos no «fim domun do», pois bem, estes estão mais além, e como os ex -

Existe uma linha mágica que per -corre o interior do território portuguêscon formada por serras, pe nedos má -gicos, águas santas, bosques de car -valhos e tradições vivas que dão umvigor mágico um «outro mundo» com -pletamente desconhecido do homemlight das sociedades modernas.

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Entrada do Castelo de Monsanto

parte da região da Beira Interior era do mí nio dos Tem -plários. Em Castelo Branco rea li za ram-se vários capítulosdos três reinos (Portugal, Leão e Castela), cidade que tevegrande importância na política templária do século XIII.Por essa razão, vol taremos a aprofundar os mistérios des -ta linha má gica já no próximo volume dedicado aos lugarestem plários e dos heterodoxos.

Para já, a visita ao cimo do Castelo de Monsanto équalquer coisa que nos transporta ao tempo dos gi gantes.Os seus penedos, o horizonte, as lendas e tra dições desteMonte Santo eleva-nos para a di men são mítica do princípiodo mundo.

No seu sopé, a ermida românica de S. Pedro de Vir-a--Corça é de um intimismo mágico inolvidável. Co moescreveu a nossa amiga e brilhante an tro pó lo ga, MariaAdelaide Salvado: «Nesta região do interior de Portugal, nazona raiana da Beira Baixa, do concelho de Idanha-a-No va,a forte luminosidade do seu céu, os longos e ver me lhos

tre mos se tocam, podemos dizer que esta é uma viagem aoprincípio do mundo, aí onde uma enigmática civilização dapedra deixou marcas de um tempo que ultrapassa o nossohorizonte mental. Disse-nos um camponês iletrado destasterras que muita coisa é de «antes do Dilúvio» e que a Ter -ra é purificada ciclicamente pelo fogo e pela água. É o tem -po mítico das origens que emana das pedras sagradas.

Na província da Beira Baixa destacamos a região dosconcelhos do Fundão e de Idanha-a-Nova.

Neste último, a Egitânia romana deu origem à Ida nha--a-Velha actual onde a sua Sé, de visita obri ga tória, é umtestemunho da passagem de vários po vos pela região.

Percorrendo os vestígios da antiga muralha, sen te-se anostalgia provocada pelo gigante ador me ci do. Quando umdia despertar, eis as ruínas da ci da de romana a mostraremo seus tesouros milenares.

Esta viagem ao princípio do mundo foi realizada ini -ciaticamente pelos Cavaleiros do Templo, pelo que grande

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LUGARES SAGRADOS | Beira Baixa

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do cabeço granítico adensa a vegetação num bosque de so -breirais e de altas giestas e estevas num sabor de frescooásis, ergue-se uma pequena capela românica de in -vocação a S. Pe dro e conhecida, localmente, por Ermida deS. Pe dro de Vir-a-Corça. (…) Nele perdura, dum modo di ría -mos palpável, o espírito do lugar, o genius loci, que con -feriu a este lugar a particularidade de San tuá rio, pois aí seres pira ainda hoje, muito den sa men te, esse sentimento deSagrado.»2

Situa-se na sua quase totalidade nesta província da BeiraBaixa, o primeiro geoparque português re cen te mente apro -va do pela UNESCO. É composto por 16 geo mo nu mentos, re -ma nescências profundas do prin cípio do mundo.

voação templária do Cas telo Novo e a ribeira de GualdimPais, o caris mático mestre templário português.

Mas continuemos este regresso ao princípio domun do…

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1. Maria Adelaide Neto Salvado, in Remoinhos, Ventos e Tem pos da Beira,organização de Maria Adelaide Neto Sal vado, Band, Castelo Branco,2000, pp. 16-17.

2. Maria Adelaide Neto Salvado, O Espaço e o Sagrado em S. Pedro de Vir--a-Corça, C. M. de Idanha-a-Nova, Ida nha-a-Nova, 1993, p. 13.

Página anterior: Envolvência da Ermida de S. Pedro de Vir-a-Corça. — Em cima: Vista do Castelo de Monsanto.

A norte desta província, no Fundão é proveitosa a visitaao novo Museu Arqueológico José Monteiro que retrata avi da dos antigos lusitanos.

Ainda neste concelho, para os aventureiros do cor po eda alma, sugere-se a experiência mágica da su bida daSerra da Gardunha até ao cimo, onde se lo ca lizava osantuário da Senhora da Penha. É um lu gar mágico, fortee de amplos horizontes, que tam bém deve ter estado sob aégide dos Templários. No seu sopé encontra-se a po -

crepúsculos do en tar decer de estio nos seus lar gos esolitários horizontes, co mo que nos trans por tam aocomeço dos tempos des pertando, no mais recôndito decada um de nós, uma paz e um pro fundo e vivíssimosentimento de ligação e de ado ração à Natureza.

Mas em nenhum outro lugar desta região raiana é maisevidente e forte esse sentimento que num pe que no eisolado local situado a poente do cabeço de Monsanto –São Pedro de Vir-a-Corça. Nesse sítio, onde a proximidade

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SANTUÁRIOS DO PRINCÍPIODO MUNDO

Paulo Alexandre Loução*

LUGARES SAGRADOS Beira Alta

«A partir da simples hierofania elementar re pres en ta da por algumas pedrase por alguns rochedos – que im pres sionam o espírito humano pela sua solidez,pela sua du rabilidade e pela sua majestade – até ao simbolismo onfálico oumeteórico, as pedras cultuais não cessam de signi ficar alguma coisa queultrapassa o homem.»

Mircea Eliade

*Escritor einvestigador.

Co-autor da obra«Lugares Mágicos

de Portugal eEspanha»

cul pidos na pedra com escopo iniciático. Outros, talvez tú -mu los de druidas pré-celtas, os tais sábios-serpentes doOci dente Peninsular. Citamos dois destes casos lo ca li za -dos nesta província e finalizamos o artigo com outra enig -mática pedra que parece estar re la cio nada com an ti quís -simos cultos à Deusa-Mãe.

A Beira Alta é uma das regiões por tu gue -sas onde se encontram pedras sagradasain da hoje na me mó ria lendária do povo, al -gumas delas associadas a pre ten sos ce -mitérios visigóticos, mas que poderão ser,pe lo menos em alguns casos, sarcófagos es -

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Pedra do Sino e dois «sarcófagos» da dita Necrópole de S. Gens.

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Necrópole de S. Gens.

De acordo com esta descrição de ritos iniciáticos, de autores como H. P. Blavatsky,é verosímil que alguns dos sarcofágos escavados na pe dra de lugares tão especiais co -mo Vale Maria Pais, ser vissem para cerimónias dos mistérios antigos. Recor demosque sarcófago, do latim sarcophagus, significa «o que corrói as carnes», eso te ri ca -mente «o que corrói a personalidade velha» para que aconteça o renascimento es pi -ritual e o iniciado surja com uma nova personalidade purificada.

LUGARES SAGRADOS | Beira Alta

Documentos medievais referem que os Tem plários ti -ve ram propriedades em Antas. Aliás, como já as si na lá -mos, to da a Beira Interior é uma zona que teve for te in -fluên cia templária e judaica, en cer ran do, ainda hoje,mui tos mis té rios.

Dezenas de quilómetros a sul encontra-se outro lugarmisterioso com «sarcófagos» e «pias»1. Co nhe ci do como anecrópole de S. Gens, nas imediações de Celorico da Beira,inclui também a curiosa pedra do sino colocado em cimade uma fraga.

Em relação às cruzes insculpidas nestes lugares pré--cristãos, não menosprezando a possibilidade de es tas se -

Vale Maria Pais situa-se em Antas, freguesia do con -celho de Penedono, e tem um conjunto muito es pecial desar cófagos e «pias», rodeado de car va lhos, com um mo -nólito (altar?) com degraus mal de finidos, e uma discretacruz insculpida. A poucos me tros deste penedo encontra--se um menir com fossetes e traços serpentiformes. Juntoa este está outra «pia». Identificado em 1991, o menir deVale Maria Pais está no lugar onde foi encontrado, graçasà insistência da população de Antas, que não deixou quefos se transportado para Penedono. Ainda bem, pois é óbvioque monumentos deste tipo não devem ser deslocados doseu lugar original.

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Alto da Senhora da Penha, Castelo Novo.

mais como o ele fan te e o touro, consagrados a Buddha,eram aque les pelos quais sua alma passava após a morte;que as duas figuras que estão ao lado da cruz são a virgemmãe de Buddha, e Rama, seu discípulo favorito. Toda aima gem tem uma estreita semelhança com o cru cifixo doce mitério do Papa Júlio, excepto os ani mais, que são a pro -va conclusiva de que não se trata de uma imagem cristã.Ele veio do Extremo Oriente à Ir landa com os colonos fe -

Bla vatsky: «A respeito dos verdadeiros Mis térios e Ini -ciações, naturalmente que nada podemos di zer para opúblico: só devem conhecê-los os que são capazes de ini -ciar-se. Podemos, no entanto, dar al gumas indicações so -bre as grandes cerimónias an tigas que o público con si de -ra va como os Mistérios reais e em que os candidatos eraminiciados com um extenso ritual e demonstrações de artesocul tas. Subjacentes a isso, na obscuridade e no silêncio,

nícios que edificaram as Tor res Redondas como sím bolosda Força do ho mem e da Natureza, para transmitir a vida epreservá-la, e da maneira pela qual a vida é pro duzidaatra vés do sofrimento e da morte.»2 H. P. Blavatskyrelaciona estas torres redondas da Irlanda com as torresque se encontram por toda a parte no Oriente da Ásia [eque] tinham relação com os Mis té rios da Iniciação,nomeadamente com os ritos de Vishvakarman e Vikartana.Os candidatos à ini cia ção eram nelas encerrados durantetrês dias e três noi tes, sempre que não havia nas pro xi mi -dades um tem plo com cripta subterrânea.

Recordamos o tema dos antigos mistérios pela mão de

rem medievais – selando a ligação de certos homens me -dievais com a tradição, ou significando a cristianização dosmesmos –, voltamos a frisar que estamos perante um sím -bolo antiquíssimo com fortes ligações aos mistérios an -tigos. Desde a remota antiguidade que a cruz ou o «ho memde braços es ten didos horizontalmente» simbolizam a ori -gem cós mica da alma humana e as lutas (provas: os «dozetrabalhos de Hércules») que levam à iniciação. O re ve -rendo J. P. Lundy, clérigo protestante do século XIX, afir -mou na sua obra Monumental Christianity, re ferindo-se auma Torre Redonda irlandesa: «Hen ry O’Brien explica queo crucifixo dessa Torre Re don da é o de Buddha; que os ani -

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da Serra, no Algarve] há uma ermi da com uma sepulturaque se diz ser de um S. Mar cos: ‘É de fé por ali, que tem avirtude de amansar os rapazes bravos, que são deitados decos tas por espaço de uma hora sobre a sepultura’.»4 É bemconhecida a tradição da Lousada. Como ex-vo to, osdoentes curados pela Nª. Sr.ª da Aparecida, por altura dosseus festejos religiosos, são colocados (dei tados, como seestivessem mortos) em ataúdes e efec tuam um percursopré-determinado pela po voa ção numa verdadeira pro -cissão de caixões. No final, «re nas cem» e saem dos ataú -des – o voto está cum prido e o rito realizado. Ainda hápoucos anos pu de mos verificar que este rito, de origemindefinida e um tanto desconcertante para a mentalidadeactual, se mantinha vivo, apesar da resistência veementedo pá roco local.

Rochoso, na Beira Alta, terra antiga, templária e ri ca dehistória, é hoje uma pequena aldeia com pou cas centenasde habitantes. Sabe-se que teve um cas telo e um povoadode cristãos visigodos por per to; e que antes destes, por lápassaram, decerto, lu si tanos e romanos.

É um lugar mágico que encerra muitos mistérios, sen -do um daqueles locais inóspitos para o intelecto que só de -seja informação, mas acolhedor e generoso pa ra o co raçãoque entra em harmonia com as ener gias da Na tu reza.

Encontrámos um pastor, o Senhor João Carriço, que éum autêntico repositório de uma tradição oral que contémalguns elementos da tradição esotérica e foi mostrar-nosos vestígios «dos tempos anteriores ao Dilúvio»: no meioda serra abundante em car va lhos, deu-nos a conhecermuitos monólitos com cír culos escavados, ao que parecepela mão do homem. Que cultura terá utilizado estes mo -nó litos? Não sa be mos, é um enigma. Dá-nos real mente a

sensação do princípio do mundo.Um desses monólitos tem uma «va gina es cul -

pida», que recorda os antiquíssimos cultos àDeu sa-Mãe.

Outra povoação deveras enigmática destaregião do Ribacôa é Vilar Maior. Também tem -plária, tem Cas telo e uma Torre de Menagem queimpressiona. Vale a pena procurar pela Prof.ªDelfina e pedir-lhe para abrir o Museu e a Igrejade S. Pedro, onde se encontra talvez a pia bap -tismal mais impressionante que conhecemos.

Assim poderemos penetrar nos mistérios in -sus pei ta dos do arcaísmo, de arkhé, das origensque re no vam a nossa alma. Tempo arcaico é

aquele tempo sa grado que rompe as muralhas do tempoprofano e nos per mite a viagem à esfera de Dionísio. Oespaço sa grado ajuda a que o rito manifeste esse tempodas origens.

es ta vam os verdadeiros Mistérios, como sempre exis tirame continuam a existir. No Egipto, como na Cal deia e maistarde na Grécia, celebravam-se os Mis térios em épocasfixas; o primeiro dia era uma festividade pública, durante aqual os candidatos eram conduzidos com muita pompa àGrande Pirâmide, em cujo interior ficavam ocultos aosolha res do público. O segundo dia era consagrado às ce ri -mónias de purificação, no fim das quais o candidato seapresentava vestido de branco. No terceiro dia (...) erasubmetido às provas, exa mi nan do-se o seu progresso emco nhe ci men tos ocultos. No quarto dia, após outra ce ri -mónia simbólica de pu rificação, era deixado sozinho, epas sava por di ver sas provas; e, por último, ficava em pro -vocado es tado de letargia, numa cripta subterrânea, du -ran te dois dias e duas noites, imerso em total escuridão.

No Egipto, o neófito em letargia era posto num sar có -fago vazio da Grande Pirâmide, onde se ce le bra vam osritos da iniciação. Na Índia e na Ásia Cen tral era atado a umtor no, até que o corpo en tra va em letargia e então, apa -rentemente morto, era trans portado para a cripta. Passavaa ser velado pelo hiero fonte, que ‘guiava a alma de apa -rição (corpo as tral) desde este mundo de Samsâra (ilusão)até aos reinos inferiores [a ‘descida aos infernos’], de on -de, se vencedor, tinha o direito de libertar sete almas so -fredoras’ (elementários). Revestido do seu Anan da ma ya -kos ha, ou corpo de beatitude, o Srotâpanna permanecia alionde não devemos segui-lo, e ao re gres sar recebia a Pa -lavra (...).»3 Assim se conclui, se gun do esta autora, que aGrande Pirâmide, dita de Keops, foi um grande templo deiniciação. Nun ca fo ram encontradas quais quer ossadas nosar cófago, nem sequer a sua tampa, o que também acon -tece em muitas ‘se pul turas escavadas na rocha’ des co -bertas em Por tugal. Deacordo com esta des cri -ção de ritos iniciáticos, deautores como H. P. Bla -vats ky, é verosímil que al -guns dos sarcofágos es ca -vados na pe dra de lugarestão especiais como ValeMa ria Pais, ser vissem pa -ra cerimónias dos mis té -rios antigos. Recor demosque sarcófago, do gregosar kophágos, significa «oque corrói as carnes»,eso tericamente «o que cor rói a personalidade velha» paraque aconteça o re nascimento espiritual e o iniciado surjacom uma nova personalidade purificada.

Teófilo Braga refere o caso curioso de uma tra di çãoque nos parece um eco longínquo dos antigos mis térios:«Na freguesia da Penha de Águia [con celho de S. Marcos

Desde a remota antigui dadeque a cruz ou o «homem de bra -ços es ten didos horizontal men -te» sim bo lizam a origem cós -mica da alma humana e aslutas (provas: os «doze tra ba -lhos de Hércules») que le vam àiniciação.

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Prossigamos esta demanda pelas misteriosas ter rastransmontanas com epicentro no Santuário ru pes tre dePanóias.

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1. O povo chama usualmente «pias» a sar có fa gos es cul pi dos na pedra,assim como a ou tros penedos.

2. J. P. Lundry, Monumental Christianity, Nova Iorque, 1876, p. 255.3. H. P. Blavatsky, Doutrina Secreta, vol. V, op. cit., pp. 259-260.4. Teófilo Braga, O Povo Português, Pub. Dom Quixote, 1994, p. 198.

Menir de Vale Maria Pais, Penedono.

Encontrámos um pastor, o Senhor João Carriço, que é um autêntico repo sitório de umatradição oral que contém alguns elementos da tradição eso térica e foi mos trar-nos osvestígios «dos tempos anteriores ao Dilúvio»: no meio da se rra abun dante em car va lhos,deu-nos a conhecer muitos monólitos com cír cu los esca vados, ao que parece pela mão dohomem. Que cultura terá utilizado es tes monó litos? Não sa be mos, é um enigma. Dá-nosrealmente a sensação do prin cípio do mundo.

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LUGARES SAGRADOS Trás-os-Montes

*Escritor einvestigador.

Co-autor da obra«Lugares Mágicos

de Portugal eEspanha»

PANÓIAS E O SILÊNCIOMÁGICO DAS PEDRAS DAS

SERPENTES

Paulo Alexandre Loução*

«In his (lucis) silentia ipsa adoramus [Em santuáriosdesta natureza, adoramos até o próprio silêncio].»1

Plínio, o Velho (23-79 d. C), Naturalis Historia, XII, 2-3

«Há recintos de grandes pedras sem aparelhar, dentro dosquais se celebram os sagrados mistérios de Deméter.»2

Pausânias (115-180 a. C), Periegesis Hellados, II, XXXIV, 10

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Na página anterior: Penedo onde se encontram as inscrições romanas. A sua forma recorda uma baleia.Em cima: Penedo com os 9 degraus que dão acesso às «tinas» escavadas na rocha, conforme podemos observar na imagem da página seguinte.

reino ma ra vilho so, na área com pre en di da pelo Nordestetrans mon tano, emerge desse si lên cio mágico, um con juntoadmi rável de tra dições e ri tuais da maior riqueza an tro -pológica.

Nos tempos pré-romanos, segundo as fontes clás sicas,a região de Trás-os-Montes seria habitada por po vos as tu -

homem. Os agricultores que se apropriam in de vi da mentede algum lote são castigados com a morte.» (V, 34) Tambémmenciona a hospitalidade celtibérica: «Os celtiberos sãocruéis nos seus costumes para com os mal feitores einimigos, mas mui to dignos e humanos com os es tran -geiros. Àqueles que chegam até eles, con vidam-nos para

ria nos, vizinhos dos vacceos (que, por sua vez, eram vi zi -nhos dos celtiberos) a oriente e dos po vos galaicos aocidente. Tal como grande parte do ter ritório portuguêsdeveria ser constituído por povos autóctones pos terior -men te celtizados. No tem po da administração romanapersistem as suás ticas fla me jan tes em estelas tumularese o próprio no me de Bra gança deriva de Brigantia, teónimocel ta. Diodoro, ao se referir ao espírito comunitário dosvac ceos, re cor da-nos inevitavelmente o espírito trans mon -tano: «Das tribos vizinhas dos celtiberos, o povo vac ceo erao mais desenvolvido. Em cada ano dividem a terra acultivar entre os seus membros e, fazendo dos seus fru tospropriedade de todos, reservam a parte dividida para cada

A província portugesa de Trás-os-Montes re pre sen tauma das reservas de silêncio e arcaísmo mais notáveis daEuropa. A dimensão do horizonte e o si lêncio das pedras, aamplitude das serranias e os va les profundos, o fogo doscepos e a água das fon tes santas ainda influem no estilo devida das po pu lações transmontanas. A dureza do clima, asad versi dades da interioridade, uma forte tradição guer -reira, não di mi nuem, antes acrescentam, um sen tido dehos pitalidade e de convívio humano que qual quer um podevi ven ciar nas aldeias trans mon tanas. Ouvir o som da gaita--de-foles e abraçar o si lên cio daqueles montes so li tá rioscon tinua a ser uma ex periência inol vidável e mis te riosa. Éo reino ma ra vil hoso tão amado por Miguel Tor ga. E, nesse

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es ta riam activos) dos povos Lusitanos e Celtas (ou cel ti za -dos) quando cá chegaram os Romanos, que a sua místicapeculiar continuou a manifestar-se du ran te o período ro -mano. A propósito, assinalou Ver gí lio Cor reia: «Nasprovíncias profundamente ro ma nizadas, como a Bética e aTarraconense, os deu ses indígenas desapareceram quasepor completo, o mes mo acon te cendo ao sul da Lusitânia

zaram muitas vezes formas svastikas invocando o podercria dor do espírito e, na ar te gótica, estas formas res -surgiriam com uma força ígnea. Traduzindo do sânscritopa ra português o léxico svastika significa cruz, cruzamentode quatro caminhos, bardo, símbolo solar. Por sua vez, otermo svastí traduzido significa fortuna, protecção, pros -peri dade, boa-sorte – aqui poderemos encontrar uma cha -

Cimo do grande penedo com as «tinas» escavadas nas rochas.

LUGARES SAGRADOS | Trás-os-Montes

[ape sar dis so, não esqueçamos a importância do templode di ca do ao Endovélico no interior do Alentejo]. Na Lu -sitânia setentrional, na Galécia e na Celtibéria, porém, oscultos tradicionais conservaram toda a sua importância.Em aras, tábulas e estelas, talhadas ou insculpidas ao gos -to romano, deuses locais, na maioria anicónicos, foramme morizados pelos be ne fí cios dispensados aos seus de -votos.»3 Isto mesmo é com provado pelas inúmeras estelasdo período ro ma no que apresentam símbolos esculpidos,no mea damente de tradição celta, sendo disso um exemploas suas diversas svastikas em movimento. A svastika é umsímbolo universal de origem desconhecida, em bora mui -tíssimo utilizado nas culturas indo-eu ro peias. Podemosvê-la em inúmeros mosaicos ro ma nos. Os celtiberos uti li -

ficarem em suas casas e disputam entre si a hospitalidade.Admi ram todo aquele que aju da os estrangeiros con si de -rando-o amado pelos deuses.» (V, 34, 4) Tudo isto si g ni ficaque das raízes an ces trais da árvore da história continua asurgir a seiva que alimenta a alma pro funda de um povo.

E isso manifesta-se claramente na permanência da re -lação espiritual com a Natureza e no carácter má gico daspe dras, verdadeiras hipóstases de sa gra do. É assim queen contramos diversos santuários enig máticos, com «ti -nas» esculpidas na rocha e ro dea dos de carvalhos, o «tem -plo natural» dos druidas e árvore sagrada para os Lusi -tanos e Celtiberos – e pa ra todo o mundo indo-europeu, nogeral. A prá tica desses cultos e mistérios da Naturezaestava ain da tão viva na memória (na prática, muitos ainda

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«[os an ti gos] não podiam limitar-se a ver nas estrelas e nos pla netas simples massas deluz ou simples corpos opa cos, movendo-se em círculos no espaço sideral por consequênciaexclusiva das leis de atracção e de re pulsão; divisavam ali corpos vivos, animados pelos es -píritos, como igualmente os viam em todos os rei nos da Natureza (...). Esta doutrina dosespíritos, tão em harmonia com a Natureza, da qual se derivava, cons tituía um conceitounitário e grandioso, em que os aspectos físico, moral e político formavam um só todo.»

Creuzer

de toda a área do antigo im pério romano.Antonio Rodríguez Colmenero, catedrático de his tória

an tiga na Universidade de Santiago de Com pos tela, sin -tetiza sagazmente a definição de témenos: «Em si mesmo,o termo grego témenos alu de a um espaço delimitado parao culto, con dicio nado, sem dúvida, pela presença naturalde al gum elemento que decidiu a sua escolha, como umafon te, um aflo ramento gra nítico, um pequeno bos que, etc.O témenos re pre sen tava a área cercada onde residia adivindade e onde ela manifesta ao homem a sua presença,não sendo um elemento essencial a erecção de estruturasartificiais, que, de qualquer mo do, também não serviam dees tor vo à área coutada an teriormente como témenos. Con -tu do, era deter mi nante a delimitação artificial, em aten çãoà sagrada presença dos deuses.»7 Neste sen tido, saliente-se que tanto o termo témenos como o lexe ma templumtêm raiz etimológica no indo-eu ro peu *tem- que significa«delimitar», o que evoca a ideia da delimitação do espaçosagrado re la ti va mente ao espaço profano (pro-fanum: forado tem plo). Nesta perspectiva, existe o conceito da «mem -bra na» que en volve o espaço sa grado e permite a ma -nutenção das suas energias es pi ri tuais. No Egip to, issoestava sim bolizado pela mu ra lha de tijolos de adobe queformava o desenho das on das do mar, recordando quepara lá do espaço sagrado es ta vam as caóticas águas deNun. As cordas ma nue li nas que cir cundam os templos têmesse mes mo si gnificado, a de limitação protectora do es -paço sagrado.

Os primeiros estudos sobre o Santuário de Pa nóiasremontam ao século XVII, com origem nas in vestigaçõesrealizadas pelo pároco da freguesia, An tónio de Aguiar, epor Jerónimo Contador de Argote. Este último, elaborouum trabalho8 em que dá conta da existência de onzerochedos escavados com «pias». Actualmente, apenaspodemos visionar três penedos com «pias» ou «tinas»escavadas. Mais tarde, Leite de Vasconcelos mostrou umgrande interesse científico pelo local, alertando para aincúria a que estava votado um espaço de tamanho valorcultural. Já na segunda metade do século XX, Sant’annaDioniso voltou a chamar a atenção para a necessidade decuidar e preservar o Santuário ru pes tre de Panóias.

ve para compreendermos porque os galego-ro ma nos co -locavam insistentemente svastikas nas es te las fu nerárias.Ao nível da sua profunda raiz eti mo ló gica, o indólogo JoséCarlos Calazans propõe que svastika tenha origem noradical sva (sua própria) e no verbo stan (vibrar, troar, re -verberar), assim svastika será «aquilo que vibra por si pró -prio», «aquilo que se move por si próprio».

A força dos símbolos célticos ficou de tal ma nei ragravada no inconsciente colectivo das populações nor te -nhas, que elas ainda hoje os utilizam abun dantemente co -mo temas decorativos e também co mo signos de poderpro filáctico. Isso mesmo cons tatou Paulo Pereira: «O maiscu rioso é o reportório ‘cél tico’ da ornamentação destasgran des estelas [‘pe dras formosas’]: encordoados, trís -celes, tetrásceles, suásticas, entrançados e figuras so la -res radiadas – te mas que se mantiveram desde então comincrível vi gor no Norte de Portugal e na Galiza até ao sé -culo XX, adaptados como motivos decorativos, mas tam -bém profilácticos, no temário ornamental genui namentepo pular.»4 Este mesmo historiador tam bém se refere aopen dor «pan-naturalista e ini ciá ti co» dos povos da Lu si -tânia: «Os cultos das fon tes e dos rios, das pedras e dosmontes, dos bosques e das clareiras, tocavam o fundoindígena e per ma ne ce ram vivazes em pleno triunfo da ro -manização. As religiões orientais retomam, em parte, estareli gação à Natureza.»5 Da Ásia Menor e do Egipto che ga -ram à Lusitânia os cultos mistéricos de Mitra, Sera pis,Cibele e Ísis, havendo indícios de que ti vessem sido bemrecebidos no Ocidente Peninsular.

No concelho de Vila Real de Trás-os-Montes, fre guesiade Vale de Nogueiras encontramos num ma jes to so aflo -ramento natural de granito – no qual, ainda ho je, os car -valhos crescem espontaneamente –, uma sé rie de «tinas»(pias, na tradição popular) escavadas na rocha, vestígios deum antigo témenos adaptado no pe ríodo romano em lugarde iniciação no qual o deus Se rápis tinha uma função pre -pon de tan te. Trata-se do San tuário de Panóias que, comosus tenta Francisco San de Lemos, «é um dos mais im -portantes sítios da épo ca romana conservado no Norte dePortugal.»6 Nós diríamos até que, na sua es pe cificidade, éum lo cal arqueológico com im por tância peculiar no âmbito

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Os templos de Serápis funciona -vam também co mo «centros de me di -cina religiosa». Por essa razão, pa rece--nos lógico que num outro grande pe -nedo de Panóias, com uma escada es -piralada de 9 degraus pa ra se atingiruma série de «pias» (es ca vadas na ro -cha como se fossem tú mulos), se pra -ticariam ablu ções tera pêuticas sob adirecção de mé di cos-sa cer do tes.

tações epigráficas e as traduções de An tó nio Col me nerofeitas recentemente.10

A Inscrição A está em grego (texto) e latim (nome):Colmenero tradu-la do seguinte modo:

«O esc la re cido varão Caio Calpúrnio Rufino, filho deCaio, con sagrou, junto com um lago e os mistérios, umtem plo ao mais alto deus Serápis.»

LUGARES SAGRADOS | Trás-os-Montes

A Inscrição B, em latim:

DIIS DEABVSQUE AETERNVM LACVM OMNIBVSQVE NVMINIBVSET LAPITEARVM CVMHOC . TEMPLO SACRAVITG . C. CALP. RVFINVS V C(LARISSIMUS)IN QVO HOSTIAE VOTOCREMANTVR

Colmenero tradu-la do seguinte modo: «G. C. Cal pur -nio, varão esclarecido, filho de Caio (?) consa grou a todosos deuses, deusas e númenes existentes e também aosque são próprios do âmbito dos Lapiteas um lago eterno,juntamente com este templo; lago onde são queimadas asvítimas oferecidas por causa de um voto.»

É mais do que certo que os Lapitae eram os ha bitanteslocais, um ramo dos Callaicos, e os numibus os seus nu -mes ou «génios» locais. A expressão cla rís simo é uma alu -são à condição superior de Cal purnius Rufinus na hie -rarquia romana. Aparecendo em várias inscrições e tendoo «poder de consagrar», tra tar-se-ia, sem dúvida, de uminiciado de grande pres tígio nos mistérios de Serápis e umhomem de gran de cultura esotérica (condição sine qua nonpara um iniciado que consagra).

Inscrição C, em latim, já muito destruída, é as simreconstituída epigraficamente por Colmenero:

DIIS SE(VERIS). M-AN(IBUS), DIIS IRA(TIS)DIIS[DEABUSQUE HIC LOCA]TIS, [CUM LACU SACRAVIT]AEDEM[(G(AIUS)C(AIFILIUS) C]ALP(URINIUS) RUFINUS V(IR) [C(LARISSIMUS).]

E tradu-la assim:«Caio Galpurnio Rufino, varão esclarecido, filho de

Caio, faz a dedicatória ao templo e um lago aos deusesseveros manes, aos deuses zangados e aos deuses esta be -le cidos neste lugar».

Inscrição D, em latim:

DIIS [LOCI]HVIVS HOSTIAE QVAE CADVNT HIC IMMOLANTVREXTA INTRA QVADRATACONTRA CREMANTVRSANGVIS LACICVLIS IVXTASVPERFV(ndi)TVR

Entretanto, tendo em conta os dados apresentados noestudo de Jerónimo de Argote, parte das fragas foi des truí -da. Apesar disso, ficou-nos a magia do lugar e alguns ves -tígios sur pre en den tes de um espaço sagrado construído ameias pelo ho mem e pela Natureza. Esta filosofia, comuma to do o arcaico mundo indo-euro peu, parece ter im pre g -nado especialmente os povos do Ocidente pe nin sulardurante milénios, man ten do-se ainda hoje viva na tradiçãopo pular. A im por tância da «película cultural celta» nestaregião, que abran ge o espaço da antiga galécia romana po -de ser umas das explicações para a perduração no tempodeste sentido sacral da Natureza.

Leite de Vasconcelos resume assim a sua con clu sãosobre este local: «No meu entender, e como já disse maisde uma vez, o templum de Panóias era um SERAPEUMonde, ao lado da principal di vin dade, ou Serápis, se ado -ravam todas as mais – dii deaeque e omnia numina. Aí oscrentes cumpriam os seus vota, construindo monumentosque supunham «eter nos», sacrificando vítimas animais ouhostaie, la vrando inscrições nos rochedos duros. Aí se ce -lebravam mystérios, conformes aos ritos das religiõesorientais. Aí os mysticos, ou iniciados, praticariam em tinasde pedra abluções purificatórias. – Para a solenidade doscultos contribuía não pouco a so li dão poética e a naturezado lugar.»9

Embora dificilmente legíveis, encontram-se no lo calvárias inscrições romanas que permitiram iden tificar o lu -gar como santuário romano. Iremos ci tar as rein ter pre -

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netização de seus glóbulos, a vida retornará. A substânciauniversal, com o seu duplo movimento, é o grande arcanodo ser; o sangue é o grande arcano da vida.»11 Paracelsoafirmou que se pode evocar qual quer espírito através dosvapores do sangue, vis to que estes fornecem os «materiaisne ces sários» pa ra que aqueles se façam visí veis duranteum cer to pe ríodo de tempo.

Para Carl Jung, osacrifício do touro repre -sen tava «o de sejo de umavida espiritual quepermitiria ao homemtriunfar sobre as suaspai xões animais primiti -vas e que, após uma ce ri -mó nia de iniciação, lheda ria a paz.»12

Serápis foi uma divin -dade que substituiu Osírisno mundo helénico algunsséculos a. C. Nas pri mei -ras cen túrias após o nas -

cimento de Cristo era o deus prin cipal do Egipto, estandojá o seu culto es pa lha do pelo império ro mano. Segundoalguns au tores, Serápis é uma forma mista de Osíris eÁpis, o «touro sagrado de Mênfis». Osor-Ápis é o nome deÁpis morto, isto é, convertido em Osíris (ou em defunto) eterá sido essa a origem etimológica de Serápis. Estadivindade, cultuada em Panóias e noutros locais daLusitânia romana, tinha, assim, atributos psico pôm pos(guia das almas nas «trevas da noite») e era um«reservatório» da antiga sa bedoria de origem egíp cia.Além disso, apadrinhava a medicina do cor po e da alma. Osseus iniciados sabiam que, eso te ri ca mente, era uma re -

presentação da Anima Mundi, a «gran de Alma doMundo» imanente em todo o uni ver so. As estátuasde Serápis têm, muitas vezes, so bre a cabeça dodeus, o objecto chamado Gardal, hie róglifo do fogodivino13.

Repare-se que o Ocidente Peninsular parece teres pe cial atracção por divindades «ctónicas» e de«âm bito noc turno», como é o caso também de Até -gi na e de Endovélico.

Os templos de Serápis funcionavam também co -mo «centros de medicina religiosa». Por essarazão, pa rece-nos lógico que num outro grandepenedo de Panóias, com uma escada espiralada de9 degraus pa ra se atingir uma série de «pias» (es -cavadas na ro cha como se fossem túmulos), se

praticariam ablu ções terapêuticas sob a direcção demédicos-sa cer do tes. Aliás, como já referimos noutrocapítulo, al gu mas das chamadas «sepul turas escavadas

Que Colmenero traduz desta forma: «As vítimas que sesacrificam para os deuses deste lugar são imo la das aqui;po rém as vísceras são queimadas nas ca vi da des qua dra -das que se vêem em frente; derramando-se o san gue nascovinhas que ficam ao lado delas.»

Esta inscrição está directamente relacionada com o ritoda immolatio das «vítimas», usualmente bo ví deos.No meio do silêncio interiorizado e com o am bienteincensado, os sacerdotes iniciavam o rito as pe r -gindo a vítima com mola salsa (mistura de fa ri nhade cevada tor rada e sal). Os participantes be biamvinho e faziam a libatio, ou seja, derramavam umpouco desse vinho na cabeça do animal em acto delibação. Antes da vítima ser ferida de morte, já es -tava a fo gueira acesa no respectivo «tanque», pron -ta a receber as vís ceras do animal. O sangue erareco lhido na pa tera (prato redondo), derramado nas«pias» e uti lizado para «abluções mágicas». Já name sa ce ri mo nial (an clabris), esse touro era esfoladoe es qua r tejado, queimando-se as vísceras em honrados deuses e grelhando-se a outra carne, tendo emvis ta o ban quete ritual de plena confraternização en tre ospresentes na cerimónia e com a «presença es pi ritual» dosgénios do lugar e das divindades invocadas.

Ressalvamos que, como muitas destas ce ri mó niaseram reservadas a iniciados no culto, e portanto sigilosas,as reconstituições históricas são ne ces saria mente muitolimitadas.

Em relação à utilização do sangue em rituais dos an ti -gos mistérios – por exemplo, no final da ini cia ção nosmistérios de Mitra, o novo iniciado era as per gido comsangue –, é de registar que foram mui tos os autores quelhe reputaram poderosas virtudes ocul tas. Para EliphasLévi, «o sangue é aprimeira encarnação dofluido universal; é a luzvital ma te ria li zada. Seunascimento é a maismaravilhosa de to das asmaravilhas da Nature za;ele vive apenas se setrans for ma per petua men -te, pois é o Proteu uni ver -sal. O sangue provém deprincípios em que nada ha -via antes dele, e torna-secarne, ossos, cabelo,unhas (...) lágrimas e res pi -ração. Não se pode aliar nem à corrupção, nem à mor te;quando a vida se vai, ele começa a de compor-se; se sou be -res como ani má-lo, infundir vida nele por uma nova mag -

«Os cultos das fon tes e dosrios, das pedras e dos montes,dos bos ques e das clareiras,tocavam o fun do indígena eper ma ne ce ram vi vazes emple no triunfo da ro ma ni za -ção. As religiões orien tais re -tomam, em parte, esta reli ga -ção à Natureza.»

Paulo Pereira

«Hou ve um mo mento dami nha vida em que es tre me -ci, diante da pai sagem, comose ela própria hou ves se estre -me ci do...; em que as pedras eos montes me falaram. E fi -quei a ser esse instante. Aque -le re lâm pago fixou-se no meues pí rito.»

Teixeira de Pascoaes

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Natureza, expressou desta ma neira uma sua experiênciana serra do Marão: «Hou ve um mo mento da mi nha vida emque es tre me ci, diante da pai sagem, como se ela própriahou ves se estremecido...; em que as pedras e os montesme falaram. E fiquei a ser esse instante. Aquele re lâm pagofixou-se no meu es pí rito.»16

Fi nalizamos esta brevíssima síntese relativa ao im -portante santuário rupestre de Pa nóias, men cionando asimportantes in ves tigações de António Ro dríguez Col me -nero no local, apoiado pelo seu ami go Padre João Parente,a quem é dedicada a sua úl tima obra, já citada, sobre estetémenos.

As suas investigações foram es po letadas pela ori -ginalidade do estudo de Gèza Alfödy que «não con siste ematribuir a Panóias a categoria de serapeum (…) mas, es -sencialmente, na explicação detalhada do rito de iniciação,em parte, gravada nas ins cri ções e ves tígios arqueológicosdo ca minho que deviam per correr os mystes ou candidatosà iniciação.»17 Se guin do esta perspectiva, Colmenero fezuma descoberta significativa que foi en contrar no texto de

1721 da autoria deAntónio Rodrigues deAguiar a menção deum túnel iniciático18. OPadre João Pa ren tec o n f i r m o u - n o spessoalmente atradição da exis tênciadesse túnel que os ac -tuais respon sá veis pe -lo santuário do Go ver -no português (IPPAR)per sis tem em ignorar.Como diz Colmenerodeviam fa zer-se es -cavações ar queo ló gi -cas no lugar quantoan tes, mas, in feliz -men te, no mo men toem que es cre ve mos,não há uma atitudereal de ciência e pro -cura da verdade dequem é responsávelpor este mo nu men to.Quando se visita o lo -

cal recebe-se uma ex pli cação reducionista e antiquada dolugar e não é per mitido que um investigador, como o PadreJoão Pa rente, faça visitas guiadas. Nós tivemos a opor -tunidade de con firmar este espírito inquisi torial, quan doum guia nos mostrava a gra va ção pré-ro mana de uma

na ro cha» da Idade Média parecem-nos ser «pias» paraablu ções sagradas, ou «sarcófagos» utili za dos em an tigosritos de iniciação.

Sant’anna Dioniso, no seu texto sobre as «fragas dePanóias»14, transmite-nos uma reflexão acu ti lan te: «Im -por ta não esquecer que nessas idades, ainda re la -tivamente próximas da infância da Hu ma ni dade, as pes -soas eram profundamente tocadas pelos mais ve e men tesanseios de simpatia cósmica, a cada ins tante traduzidosem intensas atitudes de es pe ran ça e de temor perante asforças benignas e malignas, in vi sí veis mas decerto muitomais perceptíveis aos afi nados sentidos de te lepatia dohomem originário do que aos dons ex tremamente empo -brecidos de cap tação do homem epigónio e banalizado dosnos sos dias. O pen samento dos iniciados nos mistérios dadevoção te lúrica e sideral procurava então, nos ru des tem -plos ru pestres, o transe da comunicação in dizível com to -dos os seres espirituais que po voa riam o universo.» Narealidade, a maior parte dos po vos antigos acei tava comnaturalidade a existência de seres incor pó reos, desde oschamados espíritos da Na tureza até às grandes entidadesespirituais de nominadas como deu ses,todas elas inte gradas nas leisprovenientes da grande Inteligênciacós mica, Deus.

Creuzer – estudioso das culturasantigas no sé cu lo XIX e professor defilologia de história da an ti gui dade naUniversidade de Heidelberg – afirmouno seu trabalho sobre o Egipto: «Nós,os europeus mo dernos, sur pre en -demo-nos quando ouvimos fa lar dosEspíritos do Sol e da Lua, etc.; (...) [osan ti gos] não podiam limitar-se a vernas estrelas e nos pla netas simplesmassas de luz ou simples corpos opa -cos, movendo-se em círculos no es -paço sideral por consequência ex clu -siva das leis de atracção e de re pulsão;divisavam ali corpos vivos, animadospelos es píritos, como igualmente osviam em todos os rei nos da Natureza(...). Esta doutrina dos espíritos, tão emharmonia com a Natureza, da qual sederivava, cons tituía um conceito uni -tário e grandioso, em que os aspectosfísico, moral e político formavam umsó todo.»15 As ideias de Creuzer foram com batidasvigorosamente no seu tem po, talvez por ter conseguidoen trar no universo mental dos antigos. Tei xeira dePascoaes, um dos muitos lusitanos que sen ti ram a velha«ressonância» do fundo da sua al ma com o panteísmo da

Sarcófago duplo escavado na rocha na povoação de Garganta.

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consideráveis. Já não tem a «tampa», mas ain da está in -serida na mamoa. O esteio central im pressiona. A cerca dealguns metros do lado direito do dólmen, encontramosuma cruz – bem definida – ins culpida num pequeno mo nó -lito. É curioso que tam bém encontrámos várias cruzes

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gem po pular. Lugar apra zível, rodeado de car va lhos, trata-se, teo ri camente, de um ce mitério me dieval com sepul -turas escavadas na rocha. Al gu mas des tas sepulturas têma característica muito rara de serem duplas, destinadas aduas pes soas. Segundo a tra dição divulgada por Júlio Jalesde Vilar de Ce las20, havia nesta zona uma ermida de dicadaa Nª Sr.ª de Ermes, perto do local onde ainda hoje existeum marco com uma cruz muito similar à de Cristo.

Nª Sr.ª deErmes lembra,naturalmente,o deus Her mes(Mercúrio paraos Romanos).

Este deus es tá di rec tamente relacionado com o signo degémeos, apa recendo nes te ce mitério sepulturas de«gémeos», coin cidência que não dei xa de ser enig má ti ca.

O local está bem sinali za do, mas com ple ta men te vo -tado ao aban dono, sendo vi sí vel que a maior par te dossarcófagos tem sido impie do sa men te destruída.

A um quilómetro, encontra-se uma anta de di mensões

serpente no lo cal com receio que ou tros visitantes ou -vissem a nossa con versa porque es sa serpente «não temqualquer valor ar queológico» (?!), ela que pode ser umtestemunho im por tante da an tiguidade pré-romana dasacralidade do lugar.

O túnel leva-nos a pensar nos ritos de morte e res -surreição espiritual, nas provas iniciáticas e na trans -missão dos ensinamentos secretos nas criptas an tigas.

Pa ra Gèza Alfödy «sobre a grande penha dos nove degrause grandes banheiros (…) pos si vel men te o iniciado (mystes)sofreria morte ritual, se pul tura e ressurreição, a fim dealcançar uma nova e es plên dida visão do mundo do alto dagrande rocha.»19

Nove, número do (re)nascimento, é também o nú merode degraus da escada de Santana (símbolo da alquimia,

segundo Fulcanelli) que se encontra na fa chada principalda Notre-Dame de Paris.

Saindo de Panóias e prosseguindo em direcção à pe -quena po voação de Garganta, encontramos, antes dechegar a esta aldeia, o «cemitério dos mou ros», na lin gua -

Mas a grande serra sagrada da região é a Serra do Al vão onde foi encontradauma escrita pré-histórica com uma antiguidade de uns seis mil anos, na qual se en -contram alguns caracteres do alfabeto fenício, o que constitui um grande enigma.

Muralha ciclópica do Castro de Pópulo.

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dos muitos que julgam conhecer-me são capazes de com -preender que só através da perene evidência des tasrealidades primordiais e ancestrais, com que, desde onascimento, vivo identificado, o meu rosto tem uma ex -pres siva configuração. Que é numa vessada que eumourejo, numa encomendação das almas que canto, e nossocalcos de cada encosta que ganham sentido as rugasque me pautam a testa.»22

Na cidade de Vila Real podemos apreciar o Mu seuArqueológico constituído em grande medida pelo espólioarqueológico recolhido pelo Padre João Pa rente ao longode várias décadas. Lá está uma in teressante maquetarecriando o ritual no Santuário de Panóias e, para além deuma impressionante co lec ção de moedas antigas, podever-se a enigmática es crita do Alvão, um fantástico tor -ques celta e ou tras peças de grande valor arqueológico.

Muito do frutífero trabalho de pesquisa do Pa dre JoãoParente está mencionado na sua im portante obra O Castrode S. Bento e o seu ambiente arq ueológico. Nele mostra aslargas dezenas (ou mes mo centenas) de pedras cominsculturas que en con trou na região de Vila Real. Ser -pentes, javalis, fos setes, pegadas, ferraduras e muitos ou -tros motivos que nos recordam a tal Ophiussa antiga. Oscastros ca talogados como da Idade do Bronze são ver da -dei ros lugares mágicos, talvez de uma antiguidade que nãoimaginamos por agora. Visitámos o Castro de Pó pulo ondeas suas muralhas ciclópicas nos sur pre endem de mistério.

O Padre João Parente testemunhou-nos o caso de al -guns transmontanos que, quando vão passar um dia a umdestes castros, por exemplo, a ler um livro, sentem que serenovam psicologicamente, es fu man do-se as suas an -gústias.

Mas a grande serra sagrada da região é a Serra do Al -vão, onde foi encontrada uma escrita pré-histórica comuma antiguidade de uns seis mil anos, na qual se en con -tram alguns caracteres do alfabeto fenício, o que constituium grande enigma. Será que Roso de Luna tinha algumarazão quando referia, baseado em textos clássicos, que oNorte de Portugal era uma província atlante?

Segundo nos afirmou o Padre João Parente, nesta Ser -ra do Alvão encontravam-se mais de 100 antas.

Mas este reino maravilhoso de Trás-os-Montes temmuitos outros pontos de interesse que de sen vol veremosnas próximas obras. Por exemplo, a zona das gravuras doVale do Côa e a mágica região do Nor deste Transmontanoque, no período do Natal ao Dia de Reis, é «habitada» pelosmascarados, seres que vêm do «outro mundo» realizandosaturnais de fo go, que são a permanência de ritosancestrais com raí zes no mundo pré-romano.

Para já, deixamos o leitor com os excelentes ar ti gos deJosé Antunes sobre Ansiães e as pinturas pré-históricasde Cachão da Rapa.

insculpidas, dis cre tamente, em fragas de Panóias.Saindo de Garganta, podemos ir directamente a S. Mar -

tinho de Anta, terra natal (e do coração) do sau doso MiguelTorga. Lá, encontramos o cen tenário negrilho –designação popular do olmo ne gro –, a quem o insignepoeta panteísta dedicou esta sig nificativa poesia:

A UM NEGRILHO

Na terra onde nasci há um só poeta.Os meus versos são folhas dos seus ramos.Quando chego de longe e conversamos,É ele que me revela o mundo visitado.Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,E a luz do sol aceso ou apagadoÉ nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação Serena!Tu, imortal avenaQue harmonizas o vento e adormeces o imensoRedil de estrelas ao luar maninho.Tu, gigante a sonhar, bosque suspensoOnde os pássaros e o tempo fazem ninho!

Miguel TorgaDiário, VII, 26/04/1954

Fomos informados directamente por habitantes de SãoMar tinho de Anta de que, segundo a tradição local, MiguelTorga, quando chegava de Coimbra, falava a sós com estamajestosa árvore centenária, sendo informado por ela dosacontecimentos mais importantes que entretanto se ti -nham desenrolado na sua terra natal – facto aludido nopróprio poema de Torga.

Se, antes de chegarmos a Vila Real, a serra do Marãonos evoca automaticamente a alma de Tei xei ra de Pas -coaes com a sua Eleanor e o Marânus, já a pai sagemnatural-histórica-humana em redor de S. Mar tinho lembraa própria fisionomia, física e psico lógica, da personalidade«arcaica» de Tor ga, co mo ele pró prio re feriu: «Estas pai sa -gens já estão de tal mo do ex pli ci tadas dentro de mim, quepa recem escritas no meu en ten dimento. Quan do cuido queestou a in terpretá-las, es tou a ler-me».21

Onze anos mais tarde, co mentando o filme «Eu, Mi guelTorga», reforça esta ideia: «Depois de muito ba talhar, lácon segui que a objectiva, que porfiava em ter-me ao al -cance, mudasse de direcção: e foram mon tes, abismos,ho rizontes, mamoas, ali nha men tos, altares pagãos,inscrições, cavadores e se men teiras que ela acabou porre gistar na película, sem que ninguém suspeitasse de queaquelas imagens é que eram a minha verdadeira imagem.Cingidos a uma aparência que parece bastar-se, poucos

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A província portugesa de Trás-os-Montes re pre sen ta uma das reservas de silêncio earcaísmo mais notáveis da Europa. A dimensão do horizonte e o si lêncio das pedras, aamplitude das serranias e os va les profundos, o fogo dos cepos e a água das fon tes santasainda influem no estilo de vida das po pu lações transmontanas. A dureza do clima, as ad -versi dades da interioridade, uma forte tradição guer reira, não di mi nuem, antesacrescentam, um sen tido de hos pitalidade e de convívio humano que qual quer um pode vi -ven ciar nas aldeias trans mon tanas. Ouvir o som da gaita-de-foles e abraçar o si lên ciodaqueles montes so li tá rios con tinua a ser uma ex periência inol vidável e mis te riosa. É o reinoma ra vil hoso tão amado por Miguel Tor ga.

9. Religiões da Lusitânia, III, p. 474.

10. Cf. op. cit., pp- 81-94.

11. Citado por H. P. Blavatsky, Ísis sem Véu, IV, p. 186.

12. Carl Gustav Jung, L’Homme et ses Symboles, Paris, 1964.

13. Fulcanelli, As Mansões Filosofais, Edições 70, Lisboa, p. 150.

14. In Guia de Portugal – Trás-os-Montes e Alto Douro, vol. I, p. 205.

15. Creuzer, Égypte; citado por De Mirville, Des Esprits, pp. 41-42.

16. Citado por Sant’anna Dioniso, op. cit., p. 272.

17. A. R. Colmenero, op. cit., p. 100.

18. Ibidem, p. 43 e apêndice documental.

19. Referido por Colmenero, op. cit., p. 102.

20. Cf. Albino Pereira Lopo, op. cit., p. 142.

21. Diário, X, S. Martinho da Anta, 3/7/1966

22. Diário, XII, S. Martinho da Anta, 21/5/1977

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1. Citado (e traduzido) por Antonio Rodríguez Col me nero, O Santuário Ru -pes tre Galaico-Romano de Pa nóias (Vila Real, Portugal). Novas achegaspara a sua in terpretação global. Tradução do Padre João Parente, Vi laReal, 1999, p. 5.

2. Ibidem, p. 128, n. 18.3. Vergílio Correia, Domínio Romano, Dalila L. Pereira da Costa, Da

Serpente à Imaculada, Lello & Irmão, Por to, 1984, p. 38.4. Paulo Pereira, 2000 Anos de Arte em Portugal, Temas e Debates,

Lisboa, 2000, p. 38.5. Ibidem, p. 71.6. Francisco Sande Lemos, notas à edição dos Apon tamentos Arqueo ló -

gicos de Albino dos Santos Pereira Lo po, IPPC, 1987, p. 168.7. Op. cit., p. 128.8. Je rónimo Contador de Argote, Memórias para a His tória Eclesiástica do

Arcebispo de Braga. Reedição da Junta Distrital de Vila Real, 1974.

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HISTÓRIA E SIMBOLISMO NA TERRA MÁGICA DE ANSIÃES

José Antunes*

«No interior da Vila amuralhada, e próximo do castelo, do lado Sul, está umdos mais belos exemplares do românico português: a igreja de S. Salvador deAnsiães. (...) mo numento único pela sua am biência, pelos elementos decorativos,pelo pórtico, pela memória dos cavaleiros sepultados nos túmulos da capelaanexa, pela magia que se respira... »

LUGARES SAGRADOS Ansiães

* Escritor einvestigador.

Director daNova Acrópole

no Porto.

pas sado que sen timos ver dadeiramente nosso! É um totalmergulho na pai sagem natural, um aprofundar da relaçãoentre ser humano e natureza, entre um tempo presente,

Mergulhemos profundamente nas TerrasTrans montanas onde a paisagem se fundeen tre o ho ri zonte e as recordações de um

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Carta de Fei ra e, finalmente, D. Manuel, em 1510, outorgano vo foral renovando os já seculares direitos desta Vi la. Oséc. XVI marca o ponto de viragem na evo lução da Vila: aestabilidade territorial permite que a po pulação se ocupetranquilamente dos lavores da ter ra sem constante receioda guerra, diminuindo as sim a importância estratégica doslugares al can ti la dos; as possibilidades de nova vida nãoapenas pe gada à terra mas com o sonho de que o Ultramar

trará a ri quezaam bi cio na da; asdifi cul dades lo -gís ticas de pro vi -men to de água,tudo isto faz comque a Vila vá de fi -nhan do. No séc.XVI já existiampo voa ções emredor de Ansiãescom mais habi -tan tes que a sedede con ce lho! Noséc. XVIII, apesarda opo sição dapo pu la ção queainda re sis tia aviver na Vila, umjuiz-de-fora, em1734, de cidiu mu -dar a se de desteconcelho pa ra olugar de Car ra -zeda, que dis ta da

antiga Vila 6 km, onde «mandou fazer umas boas casas doconcelho com repartições para o tri bunal das audiências ecâmara, cadeia e casa de re sidência para o juiz». AssimCarrazeda passou a ser Car razeda de Ansiães como sedede concelho e da an tiga Vila vai ficando apenas o nome eantiga fama.

É obscura a origem do nome Vila de Ansiães, mas estetopónimo estará ligado ao facto desta vila ter uma tradiçãomuito forte no regime de au to cra cia, on de a assembleiados mais experientes, dos mais ap tos, dos mais sábios eque, portanto, já teriam ex pe riên cia de vida, a assembleiados anciãos tinha um pa pel importante no governo local. Obrasão de ar mas da Vila era um castelo com uma mão se -gurando chaves em atitude de as oferecer ou receber,tendo uma inscrição em volta que dizia Ansiães leal aosreis de Portugal. Também é curiosíssima a ico no gra fiapatente nas quatro faces do antigo pe lou rinho: armasreais; uma torre com duas portas; um cas telo com porta euma chave sustentada por uma mão; e finalmente um

on de a necessidade de relaxamento e distensão são exer -cício obrigatório para um equilíbrio existencial na nossavida citadina tão desligada da Mãe Na tu re za, e um tempoque é passado, mas, também, que in tuímos eterno pelasexperiências que os homens vão der ramando em locaismuito especiais e que, de cer ta forma, deixam im preg na dasnas ambiências des ses locais. Daí a importância de, quan -do visitamos ou estamos num determinado lugar car re gadode vi vên cias humanas, procurarmos sentir esselu gar, en trar em simpatia com o es pa ço, en vol -ver-se har monicamente com a ter ra que foi ba see suporte e sustento da vida hu ma na.

Ansiães é, actualmente, um lugar ermo semvi val ma. Antiga vila repleta de movimento e ac ti -vi da de, hoje contemplamos as ossadas dessecor po fí sico colectivo que foi receptáculo de vi -vências. Ao olhar mos para as suas muralhasdecadentes sen timos que o sopro vital há muitose afastou des te espaço.

Existem vestígios de ocupação humana desdetem pos muito recuados. O facto de ser um pontoes tratégico no território, foi fundamental paraque os ho mens tivessem ocupado este espaçodesde o Cal colítico. Os vestígios romanos são do -cumentados pe las moedas encontradas, mas éno período da Re conquista da Península que secomeçam a ter ele mentos históricos mais vi sí -veis. Estas foram terras de fronteira, de cons -tantes incursões de mouros, de avan ços e recuosde cristãos, de duros combates pela pos se de fi -nitiva de um território fértil, onde a terra era umbem necessário e fundamental para a exis tência.

No imaginário popular desta região en con -tra mos muitas lendas relacionadas com mouros e mou rasen cantadas. Talvez destas ferozes batalhas te nha so -brevivido um topónimo que nos transporta para essasvivências: o Vale de Osseira. Conta-se que neste vale, quefica situado a Oeste de Vilarinho da Castanheira, terá sidotravada uma feroz batalha onde saí ram vitoriosos oscristãos depois de enorme car nificina. E que melhorimagem para representar tão glo riosa vitória que um valede ossos? Diz-se que em re compensa desta vitória no Valede Osseira, o rei leo nês Fernando Magno, entre 1055 e1056, terá ou torgado regalias estatuídas num foral e atri -buído o título de Vila, o que torna Ansiães uma das maisan tigas Vilas foraleiras do território português.

É nesta época entre os séculos XII a XV, por tando daReconquista do espaço territorial até à con quista dosMares Oceanos, que esta Vila tem o seu grande de sen -volvimento e apogeu. Os pri vi lé gios de foral foram rea -firmados em 1160 por Afon so Henriques, em 1198 por San -cho I e em 1219 por Afonso II; em 1277 Afonso III concede

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passar esta pri mei ra linha de muralhas da antiga Vila, ve -mos no al to as fortes muralhas do castelo propriamentedito. De forma ovalada, as muralhas estavam pontuadaspor cinco torres e a torre de menagem central, que ain daestava visível no séc. XIX, sobressaía pela sua im ponência.Se a paisagem que se abrange a partir das muralhas ésimplesmente fabulosa, o que a nossa vis ta não alcançariado alto da torre de menagem! E des de que ponto distantenos vales e cumes em redor se poderia vislumbrar as flâ -mulas a ondearem ao vento?

Da antiga Vila apenas nos restam ruínas de sor denadasonde percebemos que algumas casas de ha bi tação foramimplantadas no próprio granito do mor ro, onde se denotaalguma estrutura das ruas, on de através da fortaleza dasmuralhas se sente a im portância já passada da Vila. Háuma lenda li gada à cisterna existente no recinto acas -telado: diz-se que este poço comunicava, por baixo de terrae por baixo do rio Douro, com as ruínas de Freixo de Nu -mão numa extensão superior a 13 km! Quantos ves tígiosde caminhos secretos, de passagens ocultas, de túneissubterrâneos inacessíveis ao profano não en contramos emvetustas ruínas espalhadas pelo nos so país, e fun da men -tal mente, povoando o nosso imaginário?

Mas o mais importante da arquitectura neste be locastelo são as construções que os homens fizeram emhonra do seu lado mais interno: dois templos, duas igrejasromânicas ainda resistem à acção do tem po e ao desleixohumano. Estas igrejas eram a se de de duas freguesias ouparóquias, S. João Bap tis ta e S. Salvador, cujos párocoseram nomeados pela Câ mara Municipal até ao tempo emque D. Manuel as trans formou em reitorias e aqui es -tabeleceu duas Co mendas da Ordem de Cristo.

A primeira é uma singela peça que se encontra ex tramuralhas do lado Norte e, lamentavelmente, es tá emavan çado estado de ruína. É dedicada a S. João Baptista etem um aspecto rústico com uma par ticularidade singular:não tem portal frontal. Sa be- se que é de raiz antiquíssima,

provavelmente pré-ro mânica, mas que sofreu sucessivasadaptações. O que agora contemplamos é uma peça ar -quitectónica re sultante de trabalhos no séc. XV. A en tradano tem plo é feita pela porta lateral Sul que tem um ar co de

velho barbado com os braços meio erguidos e uma maçana mão direita em ati tude guerreira.

Parece ser que este pelourinho, devido à opo sição doshabitantes mais renitentes, fora mandado destruir por umjuiz-de-fora, devido à querela da mudança da sede de con -celho para Carrazeda. «Para desfazer e acabar com osprestígios que a antiga Vila de Ansiães tinha ainda paraalguma gente mandou derribar e despedaçar o antigo pe -lourinho, em que se achavam abertas as armas deste reinoe as da mesma vila». Ontem como hoje, o homem ne ces -sita de imagens, de símbolos que sejam o receptáculo dealgo superior que os una ou motive, sendo que apenas ades truição desses símbolos faz com que esses elementosde sapareçam totalmente!

A alcaidaria esteve sempre na posse dos mo ra do res eeste facto poderá estar ligado à tradição da fi de lidade dopovo de Ansiães ao Rei de Portugal. Na cri se dinástica de1383-1385, seria donatário desta Vi la um tal João Ro -drigues de Porto-Carrera que tomou o partido de Castelamas a população man te ve-se fiel a D. João e derrotou odesleal ser vidor. Por tal facto, o rei fez privilégio da al -caidaria aos moradores e tornou donatário Vasco Pires deSam paio. Daqui surge nos nobiliários esta família dosSam paio, onde sobressai Lopo Vaz de Sampaio, ar madoca valeiro por D. Afonso V, grande com ba ten te nas con -quistas marroquinas, foi mais tarde ca pi tão da fortaleza deCochim e chegou a ser go vernador-geral da Índia entre1526-1529.

Quando nos vamos acercando ao cerro em que es tá im -plantado o Castelo banha-nos um sen ti men to de mistério,quer por nos dirigirmos para um lu gar elevado, uma acró -pole, sempre refúgio para o ser hu mano dos seus inimigosexteriores e interiores, quer pela paisagem que nos rodeiaca paz de desafiar o próprio tempo e assim mergulharmosem vi vên cias que não são deste nosso mundo quotidiano ebanal. Todo o caminho ascendente é sempre es for çado, ésempre um exercício do nosso querer, e isso é patente na

ín greme calçada que temos de per cor rer até alcançar os815 metros de altitude. Entramos na Vila cruzando a portaamuralhada que nos re ce be serenamente e parece quever dadeiramente en tra mos noutro tempo. Depois de ul tra -

«Existem vestígios de ocupação humana desde tempos muito recuados. (...) Os vestígiosromanos são documentados pelas moedas encontradas, mas é no período da Reconquista daPenínsula que se começam a ter elementos históricos mais visíveis. Estas foram terras defronteira, de constantes incursões de mouros, de avanços e recuos de cristãos, de duroscombates pela posse definitiva de um território fértil onde a terra era um bem necessário efundamental para a existência.»

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três voltas. Antes de D. Dinis separar Vila Real de Ansiães,fundando naquela Vila a igreja de S. Dinis, os fi dalgos deVila Real vinham a ser se pul tados nesta igreja de S. JoãoBaptista.

Próximo desta igreja, a Sul, estão três sepulturas me -dievais escavadas na rocha. Nelas podemos apre ciar essaatitude do Ho mem Tradicional de se pul tar com a ca be ça

por ser im possível comparar objectos desiguais ou deretirar os objectos do seu contexto envolvente, pois cadaser é composto por si próprio e pelo que o rodeia. Mas nãopode ficar qualquer dúvida de que esta igreja de S. Sal -vador é um monumento único pela sua am biência, peloselementos decorativos, pelo pórtico, pela memória doscavaleiros sepultados nos túmulos da capela anexa, pelamagia que se respira…

Há uma lenda relacionada com a fundação deste tem -plo: numa tradição popular diz-se que esta igre ja foifundada, no tempo em que os mouros do mina vam estaregião, por um cristão em concorrência com um mouroque fundava uma mesquita no sítio da Portela, nas pro -ximidades de Moncorvo. Fizeram um pacto: aquele queme lhor fizesse a sua obra ma ta ria o outro! A obra do cris -tão foi vencedora e o mouro acabou os seus dias quando ocristão lhe de ce pou a cabeça junto a uma fonte a qualtomou o no me de Fonte da Cabeça do Mouro.

Esta peça arquitectónica tem alguns elementos im -portantes para figurar como um dos mais no tá veis exem -plares do românico português. Não pela sua di mensão ouexuberante decoração, mas o seu ele vado valor estárelacionado com o pórtico prin cipal. Virado a Oeste, comoé da tradição, apresenta um tímpano repleto de sim -bolismo: quatro ar qui vol tas, assentes em colunas já de sa -parecidas, pro te gem o Cristo em Majestade no in te rior damandorla ou amêndoa mística, a vesica piscis tão utilizada

No imaginário popular destaregião encontramos muitas lendasre lacionadas com mouros e mourasencantadas. Talvez destas ferozesbatalhas tenha sobrevivido um to -pónimo que nos transporta paraessas vivências: o Vale de Osseira.Conta-se que neste vale, que fica si -tuado a Oeste de Vilarinho da Cas -tanheira, terá sido travada umaferoz batalha onde saí ram vito rio -sos os cristãos (...).

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para Oes te e péspara Este: ao re er -guer -se para a Vi daestaria vira do parao Sol nas cen te!

No interior daVila amuralhada, epróximo do cas telo,do lado Sul, estáum dos mais belosexem pla res do ro -mânico por tuguês:a igre ja de S. Sal va -dor de Ansiães. Ésem pre muito difí cilc o m p a r a r m o sobjec tos e esta be -lecer entre elesuma relação de va -lo res que serãosem pre sub jec ti -vos, quer por es ta -rem eivados degos to pessoal, quer Vista do Castelo de Ansiães.

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«Esta peça arquitectónica tem alguns elementos im portantes para figurar como um dosmais notáveis exemplares do românico português. Não pela sua di mensão ou exuberantedecoração, mas o seu ele vado valor está relacionado com o pórtico principal. Virado aOeste, como é da tradição, apresenta um tím pano repleto de simbolismo: quatro ar qui vol -tas, assentes em colunas já desaparecidas, protegem o Cristo em Majestade no interior damandorla ou amêndoa mística, a vesica piscis tão utilizada pelos Mestres Canteiros. ....»

triun fal que divide o corpo da igreja da capela-mor, etambém podemos admirar o que resta do antigo pe lou ri -nho e uma reconstituição de um cemitério celta.

Encostada à esquerda da entrada principal desta igre -ja, está uma Capela funerária que terá sido pan teão dafamília Sampaio. Lugar mágico pela so brie dade, tran qui -lidade e capaz de nos transmitir essa se renidade ne -cessária para reflectirmos não sobre o mun do dos mortos,mas sim sobre o enigmático ou tro lado da vida. Ainda po -demos contemplar quatro tú mulos onde temos a cu rio -sidade de encontrar a cruz de Malta que abarca todo ocom primento de uma tampa sepulcral.

pe los Mestres Canteiros. Na primeira coluna, a de co ra çãoé composta por elementos vegetais, neste caso al gas; nasegunda aparecem figuras do bestiário me die val sempreenigmáticas e que suscitam vivamente a nossa ima -ginação; na terceira, carrancas com va ria das ex pres sões;e na quarta, figuras em várias ati tu des, como a se gu rar umlivro, outra empunhando uma espada, outra a su fo car umhomem, outra a se gurar uma cruz contra o peito. O corpoda igreja tem duas portas laterais, a Norte e a Sul, ambascom a cruz orbicular nos tímpanos, mas a porta Sul é maisrica nos seus elementos decorativos. No in terior en -contramos alguns elementos decorativos e tam bém sim -bó licos: dois leões protegem a entrada prin cipal, arco

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Pórtico da igreja românica de S. Salvador de Ansiães.

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Bibliografia:

– Memórias Arqueológicas do Distrito de Bragança – Abade de Baçal

– Apontamentos Arqueológicos – Albino dos SantosPereira Lopo

– Guia de Portugal, vol.V, edição F. C. Gulbenkian –Pedro Vitorino (para a parte consultada).

Quem passar em Ansiães não poderá voltaro mes mo! Aqui, como peregrinos da vida ouca mi nhantes na senda da evolução, sentimosque o ser hu mano é algo mais do que a sim -ples luta pela so bre vi vên cia na sociedade, quehá algo mais do que as azá fa mas do dia-a-dia,que o mistério que levou o ho mem a cons truiresta cidade, que a vontade e o amor e a in te -ligência para a plasmar foi algo de on tem, é dehoje e será do futuro. Assim, caminhante, ou -sa descobrir e verás que te transformas sen dosem pre o mesmo!

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Três sepulturas me dievais escavadas na rocha. Nelas podemos apre ciar essa atitude do Ho mem Tradicionalde se pul tar com a ca be ça para Oes te e pés para Este: ao re er guer -se para a Vi da estaria vira do para o Sol nas cen te!

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ROTAS MÁGICAS DE ESPANHAAntonio Enrique

*

LUGARES SAGRADOS Espanha

* Ensaísta,poeta. Autor do«Tratado de la

AlhambraHermética».

revelasse os nomes dos implicados na conjura, negou-se atal manifestando que o crime era colectivo. O interessantedo caso é a frase que Tácito atribui ao prisioneiro: ‘Aquiain da existe a Espanha antiga’. A citação é convencional,pois ainda não existia a Espanha como tal, já que este é umconceito introduzido no século XII pelos provençais, massim poderia ser: ‘Aqui ainda existe a Hispânia antiga’.»

Este acontecimento ocorreu 25 anos antes da nossaera, nos tempos de Tibério. Este prisioneiro, depois de ma -tar o pretor Pisão, quando se encaminhava para o tor -mento, aproveitou uma distracção dos seus vigilantes epar tiu a própria cabeça com uma pedra. Isto serviu paraque posteriormente Plínio falasse da vehementia cordis

Existem lugares cheios de ressonância,centros telúricos onde se concentraram ele -mentos mágicos que os tornam únicos. Iti -nerários sugestivos que podemos percorrere conhecer.

O grande intelectual basco José M.ª deAreilza publicava no jornal ABC em 1972:«Tácito refere na sua prosa limpa um epi -sódio de Termância que antecipa Fuen teo -vejuna; o pretor Pisão quis, com efeito, co -brar tributo de maneira violenta aos aré -vacos, pelo que foi morto pelos nativos. Umjo vem da cidade detido e torturado para que

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ria com Sória porque é o coração, o centro absoluto e adiversidade de signos de todo o tipo é de maior densidadedo que em qualquer outra província conhecida.

A uns 3 km da margem direita do Douro está a ermidade San Saturio. Para aceder a ela há que percorrer todo umpasseio, sem dúvida dos mais evocadores e sugestivos deEspanha, visto que era o lugar de trânsito habitual de D. An -tonio Machado. Sob as árvores do caminho existem unsbancos muito curiosos porque, na realidade, não o são,sen do sim tampas de sepulturas cónicas cravadas no solo.

Toda a Sória é um lugar de adoração à divindade dosnossos antepassados, uma divindade inominável, emborapossivelmente a chamassem Lug. Tudo lá é um labirintoiniciático onde se venera um totem, muito em relação comSantiago, porque é a exemplificação de Saturno num busto.

Perto da saída, a uns 400 metros, chega-se ao mosteirode San Polo. Este foi propriedade dos templários. Um pou -co mais além, San Juan de Duero, um dos locais mágicosmais importantes de Espanha, porque o sincretismo é já, seme permitem o termo, de um impacto brutal. Trata-se de

um pátio com metade da arcada mudéjar e a outra metaderomânica. Os dois Joões limitam por um lado com o próprio

como um dos caracteres hispânicos que depois CláudioSánchez Albornoz vai tomar.

Tiermes, Termes ou Termância é, provavelmente, o lo -cal arqueológico mais rico na Europa, actualmente; é todoum vale imenso e até agora supõe-se que somente foidescoberta uma pequena parte. Entre Numância e Tier -mes assenta-se Uxama, uma das povoações mais sin -tomáticas de Espanha, que na Idade Média foi bispado. Étoda uma constelação de povos célticos.

Esta Termância ou Tiermes serve para nos introduziratra vés do eixo central do que é este esoterismo mo nu -mental espanhol. Aqui, evidentemente, o termo «mo nu men -tal» não tem a acepção de sumptuário, podendo-se sim aqui -latar como rasgo de identidade. Não é casual que Tier meses tivesse ali, junto a uma Numância que também des con -certou no seu dia os arqueólogos e historiadores, ao cons -tatarem que entre os achados se encontravam muitos res tosde armas romanas, mas muito poucas armas are va cas; isto,unido a determinadas notícias desvelou o mis té rio de umprovável suicídio colectivo por motivos desconhecidos.

Do ponto de vista mágico, todas as províncias sãoextremamente interessantes, mas eu, pessoalmente, fi ca -

Santuário rupestre no Castro celta de Ulaca, Ávila.

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chega assim aos nossos dias com aproximadamente 300mil exemplares. É um bosque sagrado e foi assim até quefinalmente se descobriu a deusa em redor de 1890. Umcamponês golpeou a urna com tão má fortuna que quebrouuma das rodetas. Encontramos o rosto impávido destadama e todos os elementos da sacralidade, entre eles afileira de pequenas ânforas, receptáculos das cinzas dosantepassados e o facto de que estivesse encerrada numaurna de pedra indica-nos que não foi sepultada em ma -terial de derrubamento, mas foi realmente um en -cobrimento de uma imagem provavelmente isíaca. Se gun -do os livros de História, aquele bosque foi plantado pelosfení cios, um dos povos mais enigmáticos da antiguidade,aos quais se chamava homens vermelhos e, para além deserem os inventores do alfabeto, dominavam todo o âmbito

da Arquitectura, pois não era em vão que Salomão utilizavaconstrutores fenícios.

Encontramos esta mesma topografia no grandepalmeiral que é a mesquita de Córdoba e volta a dar-se nobosque sagrado em Tartessos ou nas suas proximidades,no Couto de Doñana. Deixámos no caminho muitas vir -

Douro, o pai, e por trás o monte das Almas. Béc quer nãoinventa nada ao chegar a Sória, escuta as tra dições dossorianos do seu momento, do mesmo modo que emGranada, Washington Irving escuta e reflecte as tra dições jáexistentes. Os «Contos da Alhambra» não são invençõesmas um seguimento literário das tradições ini ciáticas dolugar.

EIXOS MÁGICOS GEOGRÁFICOS

Em Sória começa um dos três grandes eixos mágicos deEspanha, o da meseta, que se inicia no rio Ucero, o qualpassa através da Fenda dos Lobos. Estamos a uma dis -tância exacta entre Creus e Finisterra, quer dizer, no centrogeográfico de Espanha, que se filtra por esta Fenda,aprofundando-se na península até passar pelo Escorial, umdos lugares de maior repercussão telúrica; depois passapelos campos de Calatrava, lugar, como é bem sabido,afecto aos templários. Deste eixo central partem duasramificações: uma até ao Levante, com todo o ciclo doscavaleiros de Montesa nas províncias de Castellón e deValência, e outro ramal que conduz até à Extremadura,lugar extremamente conotado pela Cabala, já que é bemsabido que os sefarditas espanhóis preferiam deter mi -nados vales perdidos da Extremadura, com povoações e ju -dia rias praticamente íntegras, naturalmente im pulsionadospela necessidade de fugir do acosso do Santo Ofício. É umdos eixos fundamentais, embora certamente haja outros.

O eixo central é ligur. Não parece que os ligures sejamum povo, mas antes uma religião. Foram muitos os povosligures, os seguidores do deus Lug: vacceos, arevacos emesmo norte-africanos.

Outro eixo que excede as nossas possibilidades deinvestigação agora, é o Caminho de Santiago, um doslugares onde se concentram as forças telúrica e celestial,visto que é uma cópia da Via Láctea. O Caminho de San -tiago é justamente o Jogo da Glória, não circular nestecaso, mas recto com as mesmas casas que o referido jogo,até chegar a essa «Finisterra» do apóstolo.

Aqui não vamos aprofundar, embora fosse ver da -deiramente apaixonante, porque gostaria de falar bre -vemente do eixo mediterrânico. Neste encontramos umasistemática adoração dos bosques e dos menires. Estesbosques sagrados estão em toda a costa do levante es pa -nhola, desde a Catalunha até Tartessos. Encontramossem pre as mesmas referências, o culto à pedra junto como culto ao bosque sagrado e à Virgem, a Dama. Deste mo -do, Elche é um dos lugares verdadeiramente mais sa gra -dos de Espanha desde a mais rigorosa antiguidade. Atémea dos do século XII a cidade é tomada por Jaime I oConquistador e a primeira coisa que faz ao conquistá-la édeclarar sagrado e inviolável o bosque de palmeiras que

Rei David na Catedral de Santiago de Compostela.

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nenhum apelido Pedernal na zona) encontra no buraco deuma árvore uma estátua da Virgem, naturalmente negra.Como parecia que estava numa população limítrofe, entreBastetania e a Accitania (entre Baza e Guadix), em princípioBastetania fica com esta Virgem. Mas a população de Acci -tania considera que ela é sua e delega um mensageiropara recuperar a escultura. Ao chegar ali é recebido comotodo o mensageiro e agridem-no de uma maneira mais oumenos simbólica. Esta agressão representa o despertar daalma. Chega à Accitania e ao aparecerem as pessoas parao receberem, besunta-se de barro. A Virgem é uma virgemnegra e chama-se assim porque eram imagens de Ísiselaboradas com a terra negra do Nilo. Então besunta-secomo o sacerdote improvisado dessa virgem que não pôdeser trazida para a cidade e as pessoas vão pondo em todas

as portas a marca da mão, de tal maneira que a cidade,dias depois, parece uma imensa gruta de Lascaux com asmãos dos oficiantes. Exotericamente não é mais do queuma festa mais ou menos pitoresca, na qual participamduas cidades normalmente rivais, com discurso do alcaideincluído, mas por baixo dessa capa está o conteúdo de uma

gens: mesmo sobre a Dama de Baza não há a menor dú -vida que é do mesmo ciclo escultórico e ritual ou cul tural,mas encontramo-la como a Deusa Anna, sincretização dadeusa Ísis, venerada até aos nossos dias com um nomeque etimologicamente leva todos os rasgos: Rocío, rociana[Orvalho, orvalhada].

Encontramos o término de uma Arquitectura sagrada,da qual é portador o povo de Danan, os Tuatha de Danan,os herdeiros directos dos atlantes, num território que alémdisso se chamará Andaluzia, devido a Anteu, justamente.

LENDAS VIVAS

As lendas são um viveiro inesgotável de conteúdoiniciático. Como não me agrada ser enigmático, quero ex -

plicar e debruçar-me sobre determinadas tradições paraque se veja até que ponto o conteúdo mágico se oculta.

O lugar onde eu vivo, Guadix, tem uma festa que apa -rentemente é brutal, chamada a festa do «Cascamorras».Apa rentemente, é uma tradição exotérica. Um indivíduochamado Juan Pedernal (embora não se tenha encontrado

Pórtico da Glória, Catedral de Santiago de Compostela.

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tradição que não sabemos de quando remonta.E à beira da Accitania, um lugar muito conhecido por ser

pitoresco e pelos seus escritores, como Pedro António deAlar cón, Walter Starky e tantos outros, encontra-se a pou -sada chamada «El Molinillo». Esta é uma paisagem es -pecialmente tectónica, a colina parece um animal pré-his -tórico e ali, há muito tempo, há um santão que cura, se -gundo dizem as pessoas. Mas o que estamos pro va vel men -te longe de suspeitar, é que neste sítio sempre existiramsantões, quer dizer, mesmo nos tempos da Gra nada nazaritemos notícias de que Muley Hasán acudia a cer to santão deuma paragem denonimada «dentes da velha», quer dizer«El Molinillo», para que um santão muçulmano lhe fizesseprofecias, e temos notícias de que nesse sítio se curava pe -la Barahaca, a imposição das mãos.

Lug é a divindade sem imagem e semnome que constitui a religião de todo o Oci -dente pré-romano. Os povoadores mais anti -gos da península adoraram a um deus cha -mado Lug. É um deus benfeitor, que aben çoaas co lheitas, que protege o vinho, um deusbenévolo, risonho, que não tem ima gem, nãotem nome (denomina-se Lug como se deno -mina Yavé ao inominável na tradição judaica).

Estes lugares são os chamados «lares»pelos romanos e qualquer local associado a«Lug» é já por si um lugar mágico. A tradiçãocristã sin cretiza o culto à divindade Lug: todosos san tos que participam desta etimologia,logi camente, são o próprio Lug no seu dia.Por exemplo: Lorenzo, Lúcio, Luciano; todasas divindades ou santos menores que par -tilham esta etimologia que, curiosamente, éas so ciada ao fogo, quer seja no martírio ou nopro dígio, são Lug encoberto.

GERADORES DE ENERGIA

Podemos falar de vários tipos: o primeirodeles seria constituído pelos lugares ge ra -dores de estados activos e passivos. Sãonaturalmente conhecidos como mo nu men -tos arquitectónicos e neles operam asdimensões áuricas. Ao entrar num lugaronde estas se respeitam, percebe-se umcon densador de energia muito trans parente,muito activa e muito limpa. Em Granada,talvez o mais próximo que tenhamos seja oSalão do Trono do Palácio de Comares, naAlham bra. É uma pirâmide perfeita, 150vezes menor do que a de Keops, per fei -tamente orientada e basta pôr-se por baixo

para se sentir os efeitos dessa helicóide energética queparte do trono. Ao entrar em qualquer lugar que assumaas di mensões áuricas, cria-se por si própria uma com -pensação de energia positiva. O efeito mais perceptível emais elementar é sentirmos como se pesássemos menos,bem co mo um desejo muito grande de passear e de nosimpreg narmos.

Há outros lugares que são acumuladores de energiapassiva, especialmente as ermidas. Estas não costumamreunir o factor da epínomis e não são condensadores deenergia, mas lugares de grande impregnação. Todos esteslugares eram considerados santos desde a antiguidade.Aqui intervêm lendas hagiográficas, segundo as quais oseremitas se desnudavam para se impregnarem da força

Alhambra, Palácio dos Nazaris.Expressão do princípio hermético, «como é em cima é em baixo».

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seus tempos de poder, mandou fabricar uma espécie deboneco articulado sobre o seu catafalco, que tinha a pro -priedade, segundo nos contam os cronistas da época, deno momento em que se elevava a Sagrada Hóstia o bonecose ajoelhar. Dizem os cronistas que ele causou tal pavor nopovo que tiveram que o desmontar. Isto acontece emToledo, curiosamente uma povoação onde o cavaleiro ita -liano Turriano, no tempo de Felipe II, constrói este homem

de pau que todavia se comemora numa das ruas mais pró -ximas à catedral nos nossos dias.

Estes tipos misturam-se, não há esse lugar puro ge -rador em estado activo, nem há tão-pouco um acumuladorde energias passivas nem de recinto iniciático, sendo quese misturam as suas funções.

PROCURAR O MÁGICO

Às vezes o mágico está presente na nossa vida e noslugares mais insuspeitos. Como já referi eu vivo emGuadix, numa rua chamada San Miguel. São Miguel é umsanto bastante apreciado por todas as religiões mo no -teístas, venerado tanto por hebreus, muçulmanos ecristãos. Ele é um sincretismo da divindade egípcia Thot(Hermes para os Gregos), e este é aquele que pesa e passaas almas. É curioso que este sincretismo mágico se dêcom uma claridade tão grande no imediato e no quotidiano.Esta rua de San Miguel é uma espécie de cicatriz na facede uma colina sagrada; nesta colina sagrada há um oppi -dum fe nício e daqui parte uma arquitectura sagrada que osro manos respeitam: o cardo e o decumano, as ruas em

telúrica do lugar. A religião católica sincretizou de modomuito subtil este desejo de impregnação mediante formaspenitenciais (as pessoas iam descalças a essa ermida paracumprir uma penitência). Mas realmente não é assim: vãodescalças para se impregnarem da força do lugar. Estessão também lugares de energia positiva.

Haveria de falar finalmente dos recintos iniciáticos,especialmente da cripta. Isto forma parte da casta mi -

noritária, a sacerdotal. Encontramos criptas nos sub ter râ -neos das grandes catedrais e das capelas ou lugaresiniciáticos, como pode ser em Espanha a capela de MosénRabí, em Segovia, capela templária e, além disso, com ossignos maçónicos templários: o compasso e o esquadroes palham-se por toda a parte, naturalmente encobertossob os brasões da família de Bracamonte, mas são sím -bolos iniciáticos.

Em alguns destes lugares constatamos mesmo que osobjectos de iniciação se conservaram até à data. Em LasHuelgas de Burgos há uma capela em que existe um Cristoarticulado. Este Cristo era o que consagrava os cavaleirostemplários em primeiro lugar e os cavaleiros das outrasordens a seguir, naturalmente associadas ao Templo. Éum artefacto que por um processo mecânico imprime omovimento da espada sobre os ombros direito e esquerdodo cavaleiro optante. Isto enquadra-se numa tradição me -cânica muito conhecida pelos Árabes e, no século XV,determinados cronistas facilitaram-nos detalhes curiosossobre estes bonecos articulados. Quero recordar o maisfamoso deles, numa das capelas do transepto da catedralde Toledo; pois na Capela dos Luna, Álvaro de Luna, nos

Vista de Alhambra.

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LUGARES SAGRADOS | Espanha

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vinhas foram sempre associadas ao mundo mágico e emEspanha têm um certo prestígio associado ao seu cultivo.Pensem em La Rioja, província extremamente densatambém em conteúdo mágico. Existe também Nájera, umaautêntica Meca neste sentido. As vinhas cos tumam serassociadas também a lugares preferidos dos Templários,costuma haver sempre uma relação vinha-ouro-prata-lugar templário. Estes locais costumam estar, como nocaso de Cazorla, em lugares tectónicos mui to positivos.

GUIA DE ALGUNS LUGARES MAIS REPRESENTATIVOS

Quero assinalar alguns monumentos iniciáticos es pa -nhóis que são, para além disso, bastante pitorescos. Su -giro que as pessoas que têm tendência para viajar, fa çamum desvio até esses lugares, às vezes por caminhos muitoinóspitos, mas de alguma maneira há que receber estainiciação da peregrinação até chegar.

Talvez o templo de maior conteúdo iniciático, nestecaso ermida, seja o de Santa Maria de las Viñas. É um lugarque está entre Sória e Burgos e foi um enigma até hárelativamente pouco tempo, pois neste lugar, numa ermidaromânica, provavelmente com origem no século VI, de pa -ra mo-nos com uma série de gravações nas paredes,baixos-relevos extremamente interessantes. Estas gra -vações eram patas de ganso, pombas e uvas. Poste -riormente, sobre esta ermida há persistência de contínuasproibições de bispos. Hoje, sabemos que foi uma igrejagnós tica, daqueles que receberam o legado ligur, de Lug,e o sincretizaram com o cristianismo, mas tendo-se con -solidado muito lentamente para além de conti nua menteter tido que enfrentar as proibições dos bispos locais. Estelugar é extremamente interessante pelo que reflecte deoração perante um deus invisível, monoteísta, rigoro sa -men te unitário e é um dos lugares onde esse culto nuncase chegou a extinguir.

Merece referência a Colegiada de Santa Maria de Sar, àqual se pode chegar a partir de Santiago de Compostela,dan do um passeio realmente delicioso até lá. É um dos lu -gares mais impressionantes de Espanha, porque as paredeses tão absolutamente dobradas, as colunas bamboleiam-sede tal forma que integram uma espécie de cunha até à terra.Sentimos que, aproximadamente a uns 40 metros, o pro -longamento das linhas desses muros absolutamente in -clinados se une. Durante o século XVIII houve uma fortepolémica a esse respeito. Entendia-se que como está pertode Sar e é um lugar muito húmido, as paredes tinham ce -dido, mas a questão é que sempre foram assim e, para alémdisso, nunca caíram, nunca terminaram de se inclinardefinitivamente, mas com o tempo decidiram pôr um con -traforte para que não caísse, embora não fizesse falta,sendo que agora o edifício parece um estranho crustáceo.

pen te, abraçadas por outra rua mais larga; normalmente otemplo está no decumano, como sucede em Guadix. Estarua de San Miguel separa o mundo visível, a colina sa -grada, do mundo dos infernos, porque mais além está umaderrocada de terra que parece que vai dar aos abismos,pois é uma das concentrações de cavernas mais im -portantes da Andaluzia, um lugar superpovoado decavernas, algumas das quais têm indubitavelmente umaplanta iniciática.

Nesse bairro há uma igreja muitíssimo interessante: aigreja de Madalena, culto que os gnósticos espanhóispreservam, tendo em conta que de Madalena parte umatradição rigorosamente herética para a ortodoxia católica,mas alguns evangelhos apócrifos, como o de São Filipe,consideram que Maria Madalena foi a esposa carnal deJesus Cristo, enquanto homem. Os gnósticos vão pre servaraté aos nossos dias textos, nos quais está novamente a serinvestigado o tema de Madalena por teólogos muito sérios.E curiosamente essa igreja de Madalena, nessa espécie desubúrbio que dá com os infernos, é uma igreja de con versos.Ali foi a igreja dos moçárabes em tempos mu çul manos edepois dos mouriscos em tempos tridentinos.

Por último, queria fazer uma referência a Calahorra.Para além da localização, as inscrições do pátio muito pos -sivelmente estão feitas cabalisticamente, quer dizer, re -produzem salmos que não têm a ver com a estrutura;muito provavelmente o próprio castelo pode estar cifradonessas inscrições, e, por outro lado é interessante, doponto de vista simbólico, a porta dos Marqueses, quereproduz os 12 trabalhos de Hércules. O construtor do cas -telo era filho primogénito do grande Cardeal Mendoza.Mas, aqui, em Espanha não se fala de Hércules, mas simde Alcides (o Cid Campeador é, evidentemente, um sin -cretismo deste Alcides que é Hércules) e o cavaleiro quelevanta o castelo crê-se descendente, por isso ele é oconde de Cid, título com o qual se pôs tão insistente que osReis Católicos tiveram que o dar, porque ele acreditavafirmemente descender do Cid. E, com efeito, descendia doCid, embora não pela linha que ele imaginava, mas isso étema para outra ocasião. O segundo motivo do seu in -teresse é que os elementos essenciais da porta são todoselementos post mortem: Proserpina, Hércules, os tritões…é um itinerário mágico, porque do que se trata é de con -cretizar o paraíso que está atrás, supõe-se, na própria es -tância, depois de cruzar esse mare tenebrorum que estáinscrito em determinados lugares da porta, como um iti -nerário mágico plasmado na pedra.

AS VINHAS E OS TEMPLÁRIOS

São inumeráveis os indícios que podem nos des cortinarque um lugar é tectonicamente relevante. Por exemplo, as

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vados, quer dizer, que tinham que ser de crianças, mas poroutro lado, não se encontram escavados nem sequer meiometro na rocha, não caiu terra em cima e além disso é rochapura, mas existem por todos lados. Recordo também Cala -ta ñazor, onde existe um castelo em cujo sopé se en contrauma espécie de menir, com um sepulcro escavado destetipo. Normalmente, estes sepulcros estão todos escavadosde uma maneira desorganizada, juntos e não há for ma desaber o seu significado porque tão-pouco há no tí ciashistóricas, simplesmente parecem monumentos fu ne rários.

LUGARES DE PODER

Embora falemos de monumentos ini ciá -ticos, será mais correcto falar de «lugares depoder». O termo é re lativamente recente. Oes critor mexicano Castaneda observava queem determinados lugares as pessoas vib ra -vam noutro estado de consciência. Há pessoasque são sumamente especialistas na detecçãodestes lugares. Às vezes não é necessáriomais do que olhar para se dar conta da forçaque a Natureza necessitou para criar de ter -minadas paisagens; por exemplo, os Mallos deRiglos, uma paisagem única no mundo. Ronda,a machadada terrível da pedra, é um lugar deenor me res sonância. Ou o rio Duratón, pertode Segóvia, o qual de nominam «a lâmina»,por que verdadeiramente parece feito comuma faca titânica.

Nota: Desejo deixar aqui um reconhecimento à obra de Juan Garcia Atienza,em cujos livros sobre a Espanha Má gica aprendi e desfrutei tanto.

Outro lugar importante é o próprio Duranguesado, nocoração do País Basco, uma zona com uma paisagemabsolutamente irrepetível, com uma montanha sagrada, oMoncayo, que aqui, no Duranguesado é chamado Amboto,que é onde, segundo os camponeses, chega a deusa Marunuma nuvem para o habitar. Como todo o mundo sabe, oDuranguesado foi um dos lugares de maior proliferaçãoem bruxarias de toda a Espanha, teríamos que ir a Llerenapara encontrar um local semelhante.

Falemos, também, de um lugar incrível: um mosteiroimenso numa cidade que parece desabitada e fan tas ma -górica. Trata-se do Mosteiro de San Pantaleón de Losa,mui to perto de Burgos. Na porta da igreja, sempre junto aopoço iniciático, encontramos algo desconcertante: numdos mainéis da porta aparecem um gigante e uma ser -pente em zig-zag. Porém, o românico nunca representouuma serpente em zig-zag. Não sabemos o que significa: oque sabemos, sim, é o significado do atlante, simbolizadoneste gigante que representa «o guardião dos muitos se -gredos» que este mosteiro guarda.

A colegiada de Cervatos, na Cantábria, é um lugarmuito curioso pela proliferação de gárgulas em atitudeobs cena. São todas gárgulas nuas, com os seus membrosmuito visíveis e muitos deles em erecção, assim que nãohá dúvida de que não é por uma intencionalidade or -namental. Porquê nesta ermida de Cervatos se encontraesta proliferação de imagens em atitude rigorosamenteobscena? Aqui aparece outro dos brotos de bruxaria, quesão, no fundo, reacções de liberdade perante uns es tra toseclesiásticos talvez excessivamente rigorosos; mas háuma leitura transcendente disto, que hoje poderíamos de -nominar tantrismo: o acto de fazer de dois somente um,um acesso de sublimação sexual. Em qualquer caso a er -mida de Cervatos sublinha a natureza sexual do serhumano e tenta, de alguma forma, transcendê-la medianteo burlesco das próprias gárgulas.

Existe outra igreja interessante em Alcarria, zona demouriscos e lugar de presença templária, com casteloscomo o de Torija. Trata-se da igreja de San Torcaz – porcerto São Torquato, outro santo impossível. Aqui há umaespécie de cripta e uns losangos oblongos que mostram,nos respectivos ângulos, a estrela de David e a abelha,signo maçónico. Mas o curioso é que nesse sítio, sem quese saiba a razão, as abelhas vêm falecer. Não sabemos seestes losangos maçónicos foram pintados devido ao factonatural vinculado às abelhas, criatura altamente iniciática,como a mariposa, o unicórnio e tantas criaturas de ex -traordinário sentido esotérico; ou se as abelhas vieramposteriormente.

No priorado de San Frutos, no rio Duratón, encontram--se sepulcros escavados na rocha: estes sepulcros sãomuito pequenos e, além disso, estão muito pouco es ca -

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O MOSAICO COSMOLÓGICODE MÉRIDA

José Carlos Fernández*

*Investigador, escritore Director Nacional da

Nova Acrópole

SIMBOLOGIA O Mosaico Cosmológico

Todas as Espanhas inclinam as suas fascesNT1 perante Emérita.1

Mosaico cosmogónico romano descoberto na Casa do Mitreu, em Mérida.

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Uma das mais belas criações de Roma, tão bela no pla -no material como foi a sua oratória nos do mí nios doimaterial, é a arte do mosaico. As tecelas em pedra, pri -meiro brancas e negras e, posteriormente, em todo o es -pectro do arco-íris, em vidros e gemas pre ciosas, de se -nham pinturas perenes, insensíveis à ac ção do vento e daágua, da luz e do sedimento dos sé culos, que tudo cobre eoculta. Desenhos que no prin cípio eram toscos, pois osseus «quadradinhos» ou tecelas seguiam os perfis do de -senho com di fi cul da de, devido ao seu tamanho. Porém,quando a téc ni ca e o esforço perseverante o permitiram,as te ce las chegaram a ter pouco mais de um milímetro, oque permitia trabalhar os volumes e as formas com a pre -cisão de um pincel.

Encontramos nos mosaicos todo o tipo de re pre -sentações, segundo o carácter do seu pro prie tário: cenasda vida quotidiana – geralmente com um valor simbólico –,cenas de caça, de gla dia dores, de corridas de quadrigas nocirco, de peixes e aves, de animais marinhos… Recor -demos a Domus Au rea de Nero, onde o génio cruel desteImperador ti nha man dado construir o mosaico de um polvogi gan tesco, com tal conhecimento de óptica psico ló gi caque, diante das correntes de água especialmente dis pos -tas, a fera agi ta va os seus braços aterrorizando as vi sitasque ad mi ravam a temeridade do príncipe que en trava cal -mo no ba nho e os convidava também a fazê-lo.

Mas as representações mais frequentes são, sem dú -vida, as de carácter simbólico, geométrico, ale gó ri co emitológico: motivos simbólicos, por exemplo, co mo os deum mosaico que se encontra actual men te no Museu Pro -

tínuo, de uma vontade per ma nente e renovada, que sechama «instinto de so brevivência» no plano natural e «fi -de lidade à Lei, ao De ver Ser» no plano moral.

Este carácter simbólico entrelaça-se com o geo mé -trico, por exemplo, nos mosaicos do Corredor dos Ma cha -dos, na conhecida «Casa do Anfiteatro», em Mé rida. Nele,três faixas (ver me lho, amarelo e azul) se entrelaçam,numa dança sem fim, e rodea das de complexas figuraçõesgeo mé tri cas, das quais nas cem cabeças de machados du -plos, de cor cin zenta como o duro ferro possui. O sim -bolismo é cla ro: as três faixas referem-se às três coresprimárias, as três Forças que emanam do Lo gos Solar, àsquais a sabedoria esotérica da Índia cha mou Fohat, di fe -ren ciadora e, portanto, criadora, o azul; Prana, o alen tovital que conserva e renova tu do, o amarelo; e Kundalini, overmelho, des tru ti va, que liberta a Al ma da Natureza dassuas amarras e da prisão em que vive, da armadura deformas ve lhas e gastas, que de vem ser substituídas poroutras no vas e mais apro priadas. Os Machados re pre -sentam a von tade di vina que rege este processo, o núcleode fer ro, co mo uma Arma Mágica nas mãos de um Deus(Ares-Dio nisos na filosofia estóica romana, Anú bis e Hó rusna egíp cia), que abre os caminhos pa ra a Vida em todos osrei nos, que constrói o La bi rinto da Exis tência e ven ce oferoz Minotauro que é a inércia da matéria, o eco estéril evenenoso de um passado já morto.

Não há que descartar, de nenhum modo, o va lor mágicoe apotropaico(N.T.)2 de muitos destes mo ti vos, destinados nasua geometria a atrair as vi bra ções de cer tos poderes es -te lares segundo a magia e a ener gia das formas, com o

vincial de Córdova, no qual é re pre sentada, de um modoesquemático, uma ilha-pi râ mide coroada por um machadode duplo gume e ro deada toda ela por um muro ameadoque a separa e protege do bater das ondas do mar. Nestemo sai co, de profundo carácter filosófico, expressa-se o en -si namento egípcio de que toda a ordem, todo o ser, to da amanifestação, surgem por um impulso de von tade que faznascer das águas primordiais do caos uma vida que deveser protegida da dissolução atra vés de um esforço con -

mesmo critério, exacto, com que o fazem a arte mu çul -mana, os mandalas do bu dismo vaj rayana ou os yantras daarte hindu. As suás ticas, os nós de Salomão, os losangos,os qua drados entre la çados e as estrelas de seis pontas –en tre muitos ou tros – geram vibrações, não só no ima gi -nário, que pu rificam o ar de todo o tipo de en ti dades in de -se ja das, quando são dispostos num plano – o do mo sai co,por exemplo – por quem conhece a Ciência Sa gra da. Se -gun do a cosmovisão romana, tam bém cer tos animais pro -

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tegem destas mesmas in fluên cias (ca da tipo de animalpara uma influência es pecífica). Por exemplo, nesta Casado Anfiteatro, já men cio na da, em Mérida, temos o Mosaicodos Pei xes, onde es tão representados «medalhões de dis -tin tas formas en la çados entre si, que emolduram peixesma rinhos (mo reias, gorazes, pescadas, linguados, ga rou -pas, congros). E stas representações relacionam-se, tam -bém, com a cren ça de que o peixe protege a casa das in -fluências negativas2».

Os mosaicos mitológicos narram cenas da re li giãogrega, dos seus mitos, tão apreciados e es tu dados pelosromanos. Recordemos que na formação dos jovens, es -pecialmente nas Escolas de Oratória, eles evocavam com osseus discursos, recriando, vi vas na imaginação, estas cenas.

Para o romano culto estas imagens e narrações «cris -talizavam» verdades de vida, como para muitos ho je em diaas cenas da Vida e Paixão de Cristo; si tuações-tipo que aAl ma humana deve enfrentar no seu Caminho até Deus, nasua marcha através do tem po. Falam de vicissitudes, tó pi -cos nos quais se mos tra o problema humano e também asolução. Pen samos que estes mosaicos «adornavam», tãosó, as diferentes salas da mansão de um fazendeiro ro ma -no, mas o mais comum é que reflectissem ver dades da suavida interior, das suas esperanças, dos seus anseios, dasua natureza mais íntima.

As cenas «míticas» da Arte Cristã, extraídas na suamaior parte do Novo e do Antigo Testamento e da LegendaAurea de Jacques de la Voragine, e que configuram oimaginário medieval e re nas cen tis ta, não fazem senãorepetir o que fizeram os gre gos e os romanos; mas comoutras narrações, com ou tros esquemas; foi o mesmo quefez a ci vi li za ção maia, desenhando estelas e, princi pal -mente, ce râ mi cas com as cenas da sua obra sacra, o PopolVuh. O va lor psicológico e moral que tem para um cren tequal quer cena da vida de um santo ou do pró prio Je susCristo, é o mesmo que tinham para um ro ma no as cenasmitológicas, mais subtis no plano emo cio nal e mais pro -fundas no plano filosófico. Por tan to, e em geral, os qua -dros mitológicos que en con tra mos nos mo saicos são uma

forma da sua «His tória Sa grada», uma recordação deimagens e con ceitos vi vos, de ideias permanentes ecoloridas com as quais, pro va vel mente, se o seu dono en -con trou de pois da morte, pois de acordo com os en si na -mentos mís ti cos da an ti guidade, cada um en con tra-se, aope ne trar no In vi sível, com o próprio céu e in fer no que criouna sua mente. Senão, demos uma vis ta de olhos nos ma -gis trais textos do Livro dos Mor tos (Bardo Thödol), obra dobudismo ti betano atribuída ao ma go Pad ma sham bhava.

Um exemplo de tema mitológico é o de Orfeu en tre asferas, que encontramos repetido nos mo sai cos de muitascidades romanas. Em Augusta Emé rita encontramo-lotam bém, fazendo soar a sua lira e com um gorro frígio queo aparenta com o deus Mi tra. Aqui, está no interior de ummedalhão, ro dea do por diferentes animais. Quatro géniosalados, pos sível representação dos Quatro Elementos edas Qua tro Direcções do Espaço, dos Quatro Ventos ou dosQuatro Regentes do Karma, dominam a cena. Dois corvos,sobre o que parece uma figueira, sus sur r am as suasmensagens de morte e sabedoria, quer di zer, do mundooculto, ao herói. Um escorpião amea ça, junto aos seus pés.Simboliza a Alma Can to ra, o génio luminoso e divino quevive e canta no cen tro da alma e que, com o seu canto podemanter em paz e aparte, mansas, as paixões animais. Devecui dar-se, no entanto, da picada venenosa do eu in fe r ior, oes cor pião, sempre próximo, presente mes mo no círculomais íntimo da nossa natureza. O he rói canta sobre umtrono triangular – também no mo saico de El Pes quero, emBadajoz, o faz sobre uma plataforma trian gular –, o danossa essência di vi na e imortal.

Outro exemplo é o Mosaico de Dionísio e de Aria dna,obra do mestre mosaicista Annios Ponius, tam bém de Mé -ri da e de uma execução um tanto tos ca, com figuras de -formadas e sem ordem nem rit mo vi sual. Dionísio érepresentado com toga e o seu cor te jo de sá ti ros, ménadese panteras está a des per tar Aria dna do seu sono. Ariadna,a princesa de Cre ta, es quecida pe la ingratidão de Teseu, aponto de se des posar com Dionísio, convertendo-se, as -sim, nu ma Deusa. Co mo na cena pictórica da Casa dos

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Por baixo, aparecem o Sol, Oriens, de um lado, e a Luado outro. O Sol, na sua quadriga de cavalos bran cos, e aLua, como sempre faz, olhando para o Sol. Debaixo da Lua,Mons (a Montanha, quiçá do Olim po) e Nix (a Neve); o pri -

mei ro como um ho mem maduro e gi -gantesco em comparação com Nix, quedesde o seu regaço sai para se vertercomo uma divina inundação e influxo emtoda a margem di reita do Mosaico.

Na metade do quadro, praticamenteperdidas, es tão as representações dasQuatro Estações, mas so men te se con -servam parcialmente algumas. Au tumns(o Outono) e Aestas (o Verão) exibem sóos seus no mes e pouco mais. O primeirosustenta dois cachos de uvas e Aestas éuma criança, de costas, levando um pu -

nhado de espigas. Ver, a Primavera, maior que o úl timo,vestida com uma túnica e com um dos seios nu, agarra-opelo braço esquerdo e transporta um ra malhete de flores.

À mesma altura, mas no lado esquerdo do Mo saico,Natura, com o torso nu, faz o gesto de es ten der o seumanto como a vela inchada de um bar co, um manto quesobe desde as pernas pelas costas, até su perar o seucorpo. Adornada com braceletes, uma pul seira e um colar.

Por baixo, na margem direita, o Nilo e o Eu frates, osdois grandes rios da Antiguidade, que tan tas civilizaçõesalentaram no seu fértil seio. O Ni lo leva na sua mão es -quer da uma cana e uma vasi lha, da qual brota um ma -nancial de água. Sobre o re ga ço do Eufrates apoia-se umafigura infantil com uma vara na sua mão.

Mais abaixo, na base e no canto esquerdo do Mo saico,está Oceanus, o grande rio de água doce que ro deia o discoplano da Terra, majestoso e gi gan tes co, repousando sobreo fundo marinho e com as per nas cobertas por um manto.Os seus rasgos são pró prios de um homem maduro, comcabelo e bar ba abundantes; pende dos mesmos um crus tá -ceo e agar ra com a sua mão direita uma serpente ma rinha.Jun to a ele estão uma lança e um arpão perto de um gol -finho, bem como as deusas Tranquilitas, a calma do mar,representada como uma jovem nua, com lon gos cabelos,surgindo do mar; e Copiae, a abun dância e a riqueza, tãoassociadas ao mar, que apa re ce co mo uma figura femininanavegando. O seu pró prio corpo é o barco que navega; o seumanto, que faz de vela, é inchado pelo vento invisível e umEros re ma nela, apoiando-se no seu corpo.

No centro inferior do Mosaico está Pharus, Fa rol, comoum jovem nu em pé e vigilante sobre uma ro cha, se -gurando com as suas mãos uma tocha ace sa. À sua direita,Navigia, uma alegoria da na ve ga ção, muito semelhante aCopiae, segurando um mas tro que sustenta a vela de umbarco. A proa do bar co está figurada como uma flecha so -

Mis térios, em Pom peia, o beijo de Dionísio era o sím bolo damor te e da Iniciação, pois ambas des per tam a alma ador -mecida do sono que é a vida.

Um exemplo de mosaico alegórico é o chamado «Mo -saico Cosmológico», também em Mé -rida, e so bre o qual queremos centrareste artigo. Estes mo sai cos alegóri -cos são mais próprios de finais do sé -cu lo II ao IV d.C., com forte influênciada filosofia neo platónica e da cos mo -lo gia estóica. Neles, os deu ses e he -róis são substituídos por conceitos,os mes mos, em geral, que tantasvezes aparecem nas suas moe das.Cada mosaico alegórico, bem es tu -dado, é um Tratado de Filosofia, umemblema dos poderes e ideias quegovernam a natureza e alma humanas, um microcosmosonde tudo se encontra de vi da men te ordenado e disposto.

Neste mosaico que agora estudamos, um dos maisimportantes do mundo, tanto pela per feição da sua exe -cução, como pelo discurso fi lo só fico, aparece na parte su -pe rior do arco Caelum, o deus do Céu, sobre um trono,sus tentado por Pol um, como um Atlas segurando o mundointeiro. À di reita de Caelum, encontra-se Saeculum, delon gas bar bas e cabelos, personificação do tempo, quetrans porta um ceptro com a mão direita e um diadema dete ce las douradas e amarelas.

À sua esquerda, sempre na parte superior do Mo saico,Caos, o vazio da não-existência, ou seja, a ho mo geneidadepura e total, a plenitude auto-cons cien te da felicidade per -feita (e de onde, na Teogonia de He sío do, surgem Gaia, oTártaro, Eros, o Amor Pri mor dial, as Trevas e a Noite),apa rece como um an cião com barba e túnica semelhante àde Caelum. En tre ambos, há uma figura sem nenhumaiden ti fi ca ção, mas supõe-se que é Gaia (a Terra). Não deixade ser interessante que Caos seja a figura que coroa oMosaico, embora esteja de pé e por trás da mais im por -tante, Caelum.

Mais à esquerda, debaixo e voando, Nebula e Zé fir o, ané voa e o vento do Oeste. Em frente a eles, tam bémvoando, na parte oposta do Mosaico, Noto, o vento do Sulque arrasta a Nubs, as nuvens, sus ten tando um véu que épreenchido pelo vento como a vela de um barco.

Por baixo e à esquerda de Caelum, que de ter mi na oeixo central da composição, aparece Tonitrum, o trovão, fi -gurado como uma criança que empunha na mão direita umraio dourado. Como o Mosaico es tá partido – como éevidente na imagem – apro xi madamente em um quarto dasua superfície, dos ven tos Eurus e Bóreas, o vento do Estee o do Norte, ape nas se conservam as cabeças e torsos.Todos os ven tos aparecem com barbas e asas na cabeça.

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bre a sua ca be ça (do mesmo modo que em Copiae).No sector inferior direito, aparecem partes de uma

figura masculina em pé, que Javier Arce interpreta co moHércules e Bythos, o Abismo, sentado junto a ele comPontos, o mar, perto de ambos.

Este mosaico foi encontrado em finais dos anos ses -senta pelo arqueólogo Eugenio García Sandoval, na «Casado Mitreu», assim chamada porque perto en contraramvárias estátuas de Mitra3. Há ar queó lo gos que afirmam queeste não é um cri té rio suficiente pa ra identificar esta cons -trução com um Mitreu – Ja vier Arce, entre outros. Mas, noen tan to, os temas cos mogónicos e mistéricos do Mo sai co,unidos a ra zões geométricas, que exporemos mais adian -te, fazem su por que esta Mansão era uma Es cola de Mis -térios Mi traicos, tão ligados, por cer to, à filosofia teúrgicaneo platónica e aos viris en si na mentos estóicos.

O pavimento deste mosaico não é original, ten do sidoaplicado sobre outro mais antigo. O fundo é formado portecelas brancas e negras de 1 cm por 1 cm, enquanto queo quadro propriamente di to, é de 5 a 2 mm, o que dá umadimensão do tra ba lho, com vários milhões de tecelas cui -da do sa men te dis postas. As tecelas de ouro são de vidro,com a lâ mi na de metal no seu interior, e as letras quenomeiam as figuras alegóricas também são de vidro e demár mo re. A cor predominante é o verde, cor que re pre -sen ta a alma mater da Terra e de toda a Hu ma ni da de, as

Grandes Verdes ouÁguas Primordiaisdos tex tos egípcios.Verde que se con -verte num azul in -ten so na parte in -ferior do mosaico,que representa omun do marinho4.

Em relação àdatação, os ar queó -logos também não

chegam a acordo. Para uns, é uma jóia do pe río do An -tonino, um hino em pedra, de glória à Eter ni da de doImpério Romano, próprio da li te ra tu ra pa ne ge rista dosfinais do século II d.C. Para ou tros, é de fi nais do século IV,e mesmo do V d.C., um dos úl timos cantos do cisne dopaganismo fi lo só fico, que se refugiou nas provínciasquando co me ça ram as per seguições cristãs, mais vio -lentas, em ge ral, do que as pagãs. Há motivos queaparentam as ima gens do Mo saico com os ensinamentosdos ami gos e dis cí pu los do Imperador Juliano (o Tratadoso bre os Deu ses e o Cosmos, de Salústio, no qual este fi -ló so fo explica os Deuses que transcendem o Cos mos e osque o governam desde o seu interior), com o Hino de Hé -lios5, tão famoso, deste mesmo Im pe ra dor (é dos úl timos

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Planta do mosaico com o traçado do painel decorativo Círculos traçados para a distribuição das figuras

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hinos religioso-filosóficos do Mun do An tigo, um dos maisemotivos, pois se gun do as tra di ções esotéricas e osteurgos alexandrinos, Ro ma mor reu com este últimoImperador Iniciado. Os séculos posteriores até à derrotade Rómulus, em 476, foram os da lenta decomposição deum ca dá ver histórico, o do Império Romano). O próprio Dr.Arce Martinez identifica a personagem que está em pé namargem direita do Mosaico e que preside à cena, vigilante,com a do hino a Hércules da obra Dyonisíaca, de Nonno dePanópolis, do século V, e no qual Dionísio saúda este herói.Texto que, pela sua beleza, não resistimos à tentação de otrans cre ver neste artigo: «Deus da túnica de estrelas,Héracles, prín cipe do fogo, mestre do mundo, Sol, pastorda vida hu mana, sobre a qual se alarga a tua sombra… tuque fa zes girar o mundo em doze meses, filho do Tempo,tu dis pões todos os ciclos após os ciclos. Do teu carro ar -ras ta-se a eternidade que toma o rosto do ancião e depoiso da juventude… tu fazes nascer a imagem da lua… olhoresplandecente do firmamento, tu levas na tua qua driga oInverno depois do Outono, preparas o Verão que sucede àPrimavera… Dominada pelos rasgos da tua chama, a noiteretira-se… depois de se ter banhado nas águas do oceano.Tu levas a chuva portadora de fru tos sobre a terra fértil,estendes na alvorada um or valho que a irriga…»6.

Este investigador atribui a «Casa do Mitreu» e estemosaico a três possíveis personagens, três gran des aris -

tocratas e pagãos, os três vivendo no pri mei ro decénio dasegunda metade do século IV:

– Flavio Salústio, que foi vicarius hispaniorum e re si diuem Mérida entre 360 e 361, designado, pos sivelmente, peloimperador Juliano, possível autor, co mo mencionámos, dopequeno tratado Sobre os Deuses e o Cosmos.

– Volusio Venusto, que o sucedeu no cargo, no meadopor Juliano em Antioquia, antes de iniciar a cam panhapersa, e sobre o qual Macrobio, nas Sa tur nalia, destaca asua vida severa e piedosa bem co mo a sua espantosaerudição.

– Vetio Agonio Praetextato, que antes de ser no meadopelo imperador Juliano procônsul de Achaia foi consularda Lusitânia, governador provincial, com residência nacapital, em Emérita. «Praetextatus tem na sua posse comoé sabido, e como demonstra a epi grafia, o maior currículopagão do século IV: Au gur, pontifex Vestae, pontifex solis,quin dece mvir, cu rialis Herculis, sacratus libero etEleusinis, hie ro phan ta, neocorus, taurobolitus, pater pa -trum, que se com pleta com o qualificativo de Macrobio de:sa cra rum omnium praesul. Foi também restaurador dosdii consentes no Fórum Romano».

Por outro lado, o Dr. Dimas Fernández-Galiano usa ageometria sagrada e a astronomia para fazer um estudo,genial, sobre este mosaico. Diz, como já o tinha feito H. P.Bla vatsky, mais de cem anos an tes, na sua imortal

Triângulo Sol-Navigia-Lua. Triângulo Sol-Fogo-Raio, com os diferentes fogos do mosaico.

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pé romano (1 pé = 295,6 mm) e o mo sai co mede 12 por 16pés, sendo, portanto, a diagonal de 20. Cada um destesnúmeros é claramente evoca ti vo e simbólico.

4. Uma circunferência traçada desde o centro real domosaico, passa pelas cabeças de Oriens, Oc ca sus e Na vi -gia, três pontos que formam um triângulo isós celes, cujosla dos guardam a proporção 3/2, triân gulo que se repetevárias vezes com distintas me didas, unindo as per sonagense elementos do mo saico7, e ordenando os corpos da cons -

tru ção que os alberga,jun tamente com o an -terior, o Egípcio. O ân -gulo deste triângulo isós -celes, de 38º,90’, é exac -ta men te o da la ti tude dacidade de Mérida e, maises pe ci ficamente, do lu garonde se en con tra o Mo -saico. O que sig nificariaum co nhe ci mento per -feito da me dida do globoterrestre e de geografiaas tro nó mi ca. Também é,

e isto pode desculpar esse co nhe ci men to, o ân gulo doazimute da saída do Sol no sol s tício de Verão, quer dizer, oângulo do lugar em Mérida onde nasce o Sol no dia maislongo do ano. Esta é, tal vez, a causa pela qual Hélios, o Sol,Navigia e o Norte real, formam um ângulo no Mosaico.

5. Os três Fogos presentes, o celeste de Tonitrum, o aé -reo do Sol e o terrestre e aquático de Pharus unem-se, for -mando um triângulo isósceles. É como se Helios e o raioceleste focassem os seus raios para acender o Fogo querege a Terra, ou melhor, que guia a Humanidade e a im -pede de afundar-se com os escolhos do mar da vida.

6. Este raio celeste (Tonitrum) forma também o ei xo deuma cruz formada pelos ventos, o que per mite recordar osensinamentos orientais para quem Fohat – o fogo eléctricodo raio – celeste, é uma projecção dos Lipikas, os Regentesdo Karma e das Quatro Direcções do Espaço.

7. A lança de Oceano, um elemento muito raro na ico -nografia deste Deus, prolongada, une-se di rec ta mentecom a cabeça de Mons (Olimpo), linha que é perpendicularao Sol e que continuada faz a união com uma personagemquase destruída, e cujo tron co parece emergir da água. ODr. Fernandez-Ga lia no identifica-a com uma torrente dear, tufão ou tor nado. Isto dar-nos-ia uma cruz que faz umaale go ria dos Quatro Elementos.

Estes são alguns exemplos do pensamento filo sóficomatemático romano da época imperial, uma he rança dopensamento iniciático egípcio. Quando He ródoto afirmounos seus Livros de História que os sacerdotes egípcios es -tavam continuamente en tre gues a especulações ma te má -

Doutrina Secreta, que nele – na rea li dade, em quase todasas obras de arte antigas – há várias chaves ou níveis deinterpretação: geo mé trico, metafísico, astronómico, geo -gráfico, as tro ló gico, aos quais nós podemos somarmágico-ta lis mâ ni co, psicológico, etc. Seja como for, o es -que le to é ma temático-geométrico, pois como muito bemafir ma, é esta chave a que abre os mistérios da al ma e dointeligível, sendo, de facto, o fundamento eso té ri co da arteantiga: «Existem vários níveis de rea li dade, embora todosformem parte do mesmo, oUni verso. Isso leva a interrogar,por um lado, qual é o nexo queos une. E a resposta a estapergunta somente pode ser queesse nexo é de naturezamatemática (…). Para nós, ho -mens do século XX, amatemática é um simples mo -delo de compartimentação darea lidade que ajuda a com pre -en dê-la; mas no pensamentodo mundo an ti go, esse modelode compreensão fundia-se coma rea li da de, até ao ponto de a substituir. Para muitas fi lo -so fias, e especialmente para as que foram a coluna dopen samento da primeira Idade Média, como o pi ta go ris moe o platonismo, a matemática não só se en con tra va nabase da realidade, mas constituía, em certo mo do, a pró -pria essência dessa realidade».

Vamos destacar os pontos que considero mais im por -tantes deste estudo geométrico e astronómico:

1. Podemos diferenciar três centros da com po si ção: odo quadrado em que se encontra o mosaico, o da ha bi taçãoe o do mosaico propriamente dito. Os dois pri meiros tra -çam circunferências que dividem o mo saico em trêssectores, que correspondem às di vin da des alegóricas domundo celeste ou inteligível (e on de vibram os poderes deCaelum, Saeculum, Chaos, os Ventos, Mons – ou seja, oOlimpo – o Tro vão, Po lum, o Sol, e a Lua); o central,terrestre, em forma len ti cular (onde se encontram Natura,as Es tações, os Rios e Portus); e o inferior ou aquático(com Oceano, a Abundância, a Tranquilidade, Pha rus – queco mu ni ca este mundo com o terrestre –, Navigia, etc.)

2. O chamado Triângulo Egípcio, de proporções 3-4-5,rege a maior parte dos traçados, tanto ar qui tec tó nicos davila, como o traçado do mosaico e in clu sive da disposiçãodas figuras no interior do mes mo. Re cor de mos que oTriângulo Egípcio era, se gun do Plutarco, um símbolo doLogos, triplo, e que os Egípcios vin cu la vam a horizontal comIsis, a Nat u reza, 3; a vertical com Osíris, o Espírito ou Pen -sa men to Divino, 4; e Hó rus, a hipotenusa, o 5, o Homem.

3. A unidade de medida usada é, sem dúvida alguma, o

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ticas, não foi muito bem compreendido pelos nos sosacadémicos. O mun do real, inteligível, é matemático e osnúmeros são o mais perfeito símbolo dos arquétipos, emcer to modo são os primeiros arquétipos, as primeiras«ima gens» da Verdade Una. H. P. Blavatsky afir ma va, emIsis sem Véu, que quem quisesse penetrar na verdadeirafilosofia e no significado mais profundo dos hieróglifos,devia estudá-los in situ, com régua e esquadro, porque asestruturas geométricas de onde nascia a sua língua sa -grada eram a porta de entrada para a sua Ciência Secreta.Schwaller de Lubicz, na primeira metade do século XX fezisso, trabalhando lon gos anos nos Templos de Karnak e deLuxor, le van tando a ponta do Véu de Isis da sua Geometriae Matemática Filosófica. Analisou como ninguém fez nemrepetiu até agora o Papiro de Rhind, de con teú dos ma te -má ticos, penetrando em dimensões que nem sequer ti -nham sonhado os egiptólogos cépticos do seu tempo. Enesse mesmo século, a Matemática co meçou a estudarno vamente as chamadas fracções egípcias, e a sua pro -funda filosofia, bem como as leis harmónicas que se en -contram por trás delas, re des co briu o uso do zero nosdocumentos egípcios e um valor do número PI, associadoà fracção 355/113, que dá uma aproximação do seu valorreal em cem mi lésimas. O arquitecto russo Igor Shmelev,es tu dan do cinco painéis de madeira extraídos da tumba deKhesi-Ra, arquitecto do faraó Djoser (con tem po râneo, por -

tanto, do vizir, médico e mago Imhotep), decifrou as Leis daHarmonia com que os arquitec tos egípcios trabalhavam,todas elas derivadas do Nú mero de Ouro. No seu livroPhenomenon of the An cient Egyp, editado em 1993, afirmaque estas Leis foram traduzidas das mesmas Leis deHarmonia com que trabalha a Natureza e das quais um ar -quitecto de ve ser sacerdote, em vez de brincar vaidosa ein te lec tualmente, como uma criança caprichosa, com asfor mas e volumes.

Os filósofos e arquitectos romanos, muitos deles ini -ciados nos Mistérios, como o divino Vitrúvio, ex plicam aimportância de seguir estas Leis de Har mo nia Universal ea Casa do Mitreu é um dig ní s simo exemplo. Quer esta«Casa» fosse a residência de um dignitário romano quequis guardar nela emo tivamente a sua filosofia e con -cepção do mun do, ou se tratasse do Grande Mitreu deMérida, on de se formavam os discípulos do Grande Deus,e a Sa la do Mosaico uma das Salas dos Mistérios onde oAs pirante devia encontrar respostas a problemas danatureza e da sua própria alma, o Mosaico Cos mo lógicomostra-se como um coração palpitante de luz e cor, deensinamentos milenares, de harmonia ma temática, dealegorias-chave para entender e pe ne trar na Alma daNatureza, a qual, segundo a Voz do Silêncio, «não con -taminada pela mão da matéria, mos tra os seus tesourosunicamente ao olho do Es pírito, olho que jamais se fecha epara o qual não há véu algum em todos os seus reinos».

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N.T1. Insígnia que os cônsules da Antiga Roma levavam e que era composta deum feixe de varas em redor de um machado.

N.T2. Adjectivo que provém do grego apotrepein (afastar) e in dica em geral umgesto, uma expressão ou um objec to que se utiliza para afastar um influxomágico maligno.

1. Ausonio, Ordo Urb. Nob. IX 293 e ss. Nota extraída do artigo «El MosaicoCosmológico de Augusta Emé ri ta e las Dionisíacas de Nonno de Panópolis» deJa vier Arce, que aparece no livro El Mosaico Cosmológico de Mérida,Cuadernos Emeritenses n.º 12.

2. Mérida, Patrimonio de la Humanidad, pág. 26, com textos de Yolanda Barrosoe Francisco Morgado. Edi ção do Consorcio da Cidade Monumental His tó rico-Artística e Arqueológica de Mérida.

3. Na forma de Zurvan Cronos, Senhor da Eternidade. Com cabeça de leão e umaserpente enrolada no seu corpo, erguido e em pé. Esta representação de Mitraaparece geralmente com asas, ceptro de poder, uma cha ve, nas suas mãos,sobre o universo (como uma es fe ra com a faixa zodiacal e o equador, formandoo X a que se refere Platão no Timeu como um dos sím bo los do Logos Criador).Em algumas representações le va também no peito o raio de Zeus.

4. A descrição do mosaico foi feita seguindo o texto da página webfresno.cnice.mecd.es/jpan0004/paginas- merida/cosmologico.htm

5. Este hino diz que «este mundo daqui, divino e todo belo, mantido desde aabóbada celeste até aos limites mais extremos da Terra, está unido pelacontínua pru dência do Deus, e existiu desde a eternidade sem ter sidoengendrado, eterno para sempre estando protegido nada menos do que pelaquinta substância, o aether, cujo princípio é o reflexo do Sol; e num segundonível pelo mundo inteligível». Texto extraído do trabalho do Dr. Javier Arceanteriormente citado, pág. 104.

6. Dr. Javier Arce ibidem, pág. 104.7. Para um estudo mais detalhado remetemos para o tra balho do Dr. Dimás

Fernandez-Galiano, «El Gran Mi treo de Mérida: Datos comprobables», pág. 119--151 da obra El Mosaico Cosmológico de Mérida, Cua dernos Emeritenses n.º 12.

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Os Quatro Ventos, com centro no raio de Tonitrum (Trovão).

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INTRODUÇÃO

Aproximar-se ao pensamento do Ex tre -mo-Oriente é toda uma aventura que nosper mite descobrir a grandeza da civilizaçãoque floresceu aos pés dos imperadores fi -lhos do Céu.

Os desígnios do Céu foram transmitidosaos homens pelos primeiros reis divinos quegovernaram na noite dos tempos. Os seusensinamentos foram guardados no Livro dasMutações ou I Ching (Li-King), obra sim bó li -ca que resume nos seus hexagramas as leis

que regem a dinâmica da ordem uni ver sal que, desde amais remota antiguidade, recebeu o nome de Tao, querdizer, a senda por onde decorre todo o Cosmos existente.

Tao é o princípio, Tao é o caminho, Tao é o destino finalde todos os seres. Mas Tao contém dois aspectos con subs -tanciais nele, opostos mas, não obstante, complementares,dinâmicos e interdependentes: Yin e Yang.

O pequeno, o obscuro, o oculto, o feminino são Ying; ogrande, o claro, o evidente, o masculino são Yang.

Baseado no Ying e no Yang e nas suas múltiplascombinações codificadas nos 64 hexagramas, o I Chingguiou não só a conduta dos filhos do Céu e dos seus mi -nistros, mas também toda a vida na luminosa civilização

CONFÚCIO E AARTE DE GOVERNAR

Beatriz Diez-Canseco Bustamante

*DirectoraInternacional

Adjunta daNova Acrópole

FILOSOFIA Confúcio e a Arte de Governar

Confúcio ensina-nos que o Universo segue uma ordem, umaharmonia – a qual denomina «o caminho do Centro» (chung) –,

em cuja direcção deve também marchar o homem.

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que cresceu nas margens do rio Amarelo.Muitos séculos mais tarde – obedecendo ao ritmo

cadenciado do Tao – a cultura e a profunda religiosidade dopovo chinês decaíram até tal ponto que a antiga vertente dossábios sublimes se foi separando em duas correntes, uma,a metafísica e outra, a analítica e formalista, con servandooculta a essência comum que em ambas sempre palpitou.

Foi assim que, seis séculos antes da nossa era, frenteao obscurantismo e à barbárie reinantes, brotaram no ce -nário mágico do Extremo Oriente dois mestres: Lao Tsé,que através do Tao Te King mostrou o caminho de regressoao Tao, cósmico e metafísico, e Kung Fu Tsé (Confúcio),que indicou a via formal do Jen Tao – a via dos homens –

obstante, a sua obra não tem fronteiras, pertence a todasas nações, pertence a todos os povos.

SITUAÇÃO HISTÓRICA

Confúcio, conhecido como o sábio Kung (Kung Fu Tsé),apa rece na existência histórica em meados do século VI a. C.É considerado contemporâneo de Lao Tsé, na China, de Sid -dharta Gautama o Buda, na Índia, e de Pitágoras, na Grécia.

A China encontrava-se no seu período feudal. Sob a di -nas tia dos Tchou, o Império decompunha-se em lutas in -ter nas entre os estados, marcando uma época turbulenta

através da ética transcendente, depois da harmoniaperdida entre os homens nobres e os homens simples,para que voltassem os imperadores a conduzir o seu povopelo caminho dos altos cumes, pelo caminho do Céu.

Confúcio nasce na China, viveu e morreu na China. Não

e de caos político. A filosofia confuciana surge nestas cir -cunstâncias, com a finalidade de resgatar a cultura e o po -vo chinês do caos moral e político que imperava. Confúcioapoiou-se, para isso, na mais antiga tradição chinesa,adaptando-a a uma época mais humana e assentando as

«É melhor amar a verdade do que o frio conhecimento da mesma; é melhor comprazer-se naprática da verdade do que no simples amor a ela.»

Confúcio

Estátua de Confúcio, lago Dongting, Yueyang, China.

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perfeita. No ano seguinte encarregou-se dos campos pú -blicos e, sob a sua administração, o gado esteve sempre são.

Aos 22 anos abandonou as funções públicas para seconsagrar ao ensino. Abriu as portas a todos os jovens quetivessem sede de conhecimento. A todos recebeu bem,sem considerar ninguém demasiado pobre nem de ma -siado humilde. As únicas qualidades exigidas eram umamínima inteligência e um inegável desejo de aprender. Oen sino teórico era alternado com exercícios práticos e coma tradição oral eram explicados e desentranhados textosclássicos.

Um dos seus discípulos descreve-o como «bom sempretensões, cortês, ponderado e complacente». A im pres -são geral que deixava era a de um homem austero, quaseas cético, a quem repugnavam os elogios, firme nos seusjuí zos, infatigável, tanto no estudo como no ensino, so -mente intolerante perante a estupidez e a preguiça.

Confúcio não foi somente um sábio e um filósofo; prá -tico e realista, soube ser na ocasião propícia um ho mem deacção. Assim, em 500 a. C. acede à primeira magistraturado estado de Lu e em pouco tempo proporcionou tanta or -dem à cidade que os visitantes que vinham de todos ospon tos do Império sentiam-se como em sua própria casa.

A inveja levou os senhores dos estados vizinhos aconspirar contra Confúcio, valendo-se das debilidades dodu que de Lu, que esqueceu os seus deveres como go ver -nante. Confúcio, entristecido ao ver que tinha bastado um

instante para destruir todos os seusesforços rea lizados para assegurar aoestado a dig nidade com a qual ele so -nha ra, aban donou as suas actividadespolíti co-ad mi nis tra ti vas.

Passou os seus últimos anos de di -cado a estudar e a es cre ver, com pletou eordenou os Quatro Clássicos e com pôs oseu Tratado das Mutações (I Ching).

Conta a lenda que na Primavera de480 a. C., no de curso de uma caçadarégia, foi capturado e morto um ani malestranho. Como ninguém conhecia nema classe, nem o nome do animal,chamaram-lhe Confúcio e este, hor ro ri -za do, comprovou que se tratava de umunicórnio. Se gun do a tradição, esteanimal era tão bom e inofensivo que nem

uma formiga teria que o temer. O seu aparecimento era,portanto, o presságio de uma era de paz e de pros peridade…Mas foi aqui que uns ignorantes o mataram!

A interpretação deste relato mostra-nos que o homemsábio, se aparece num momento inoportuno, acaba porencontrar a morte. Confúcio sentiu-se profundamente afec -tado pelo facto e exclamou: «Por quem vieste, então? Por

bases de uma ordem social fundamentada nas leis imu tá -veis da Natureza.

BIOGRAFIA

A data de nascimento não é conhecida com exactidão,mas segundo as fontes mais aceites nasceu no ano de551 a.C. A sua terra natal foi Kuo Hi, que se encontravasob a jurisdição do duque Hsiang, responsável de todo oes tado de Lu, nas margens do mar da China, entre osrios Ama relo e Huai.

Confúcio pertencia a uma família nobre cuja origemremonta ao tempo da dinastia dos Chang. Os seus ime -diatos antecessores, guerreiros e políticos, foram to doshomens de valor, honoráveis e de excelente reputação.Os his toriadores comentam o arrojo, a audácia e asproe zas militares do seu pai, Kong o ancião.

Este era pai de nove filhas quando Confúcio nasceu.Diversos acontecimentos, sonhos e presságios se as so -ciam ao nascimento da nossa personagem, o desejadovarão que faltava na família. Assim, conta-se que, tendo asua mãe chegado ao final do período de gravidez, retirou--se para uma gruta que lhe tinha sido indicada em sonhoscomo um lugar propício para dar à luz o seu filho. En quan -to a sua mãe dava à luz, «dois dragões velaram toda a noitejunto à porta da morada… e as fadas acendiam incensórioscujo incenso perfu -ma va o ar».

Da sua infânciasabe-se muito pou -co. Diz-se que gos -tava de «brin caraos sábios im pe ra -do res»; era umacrian ça muito sériae desde uma idadeprecoce con ser tavava sos ri tuais e pro -cedia com os ges -tos ade quados, semque ninguém lhetives se ensina do,nas ce ri mónias esa crifícios.

Aos 17 anos tinha adquirido grande reputação entre osseus condiscípulos. Não obstante, como o seu pai tinhamor rido pouco tempo antes e a sua família se encontravaem situação difícil, não lhe foi possível, no início, dedicar-seuni camente ao estudo. Começou por ser vigilante de umarmazém de grão no seu distrito natal e durante o ano emque desempenhou esta função, tudo decorreu numa ordem

A sua filosofia, puramente humanista, sa -craliza o quo tidiano, eleva o sentido dos cos tu -mes e as relações hu ma nas adquirem mis ti -cismo. A sua aspiração foi a de purificar e con -cretizar as formas dos fenómenos temporaisde acordo com as mais profundas leis da vidae se gundo o ca minho do homem. Este caminhocon duzia à cultura, a uma cultura que não eraincompatível com a Natureza, mas que tinhade ser harmonizada e ordenada pela própriaNa tu reza. Mais do que uma religião, Confúciole gou-nos uma filosofia prática, profun da -men te peda gógica.

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quem vieste? Ai! Os dias dos meus ensinamentos estãocon tados…»

Dois anos após o acontecido, morreu.

PENSAMENTOCONFUCIANO

É melhor amar averdade do que o frioconhecimento da mes -ma; é melhor com pra -zer-se na prá tica daver dade do que nosim ples amor a ela.

A sua doutrina, de -nominada «a reli giãodos ritos» (Li) ou «areligião do cava lhei -rismo» (Ju), ca rac te -riza-se pela sua ên -fase na parte moral eprática, aplicadas aoindividual e ao colec -tivo, sem descartarpor completo o me ta -físico. O seu racio na -lismo fundamenta-sena mente superior(Ma nas) como via deacesso à perfeição e,co mo consequência, àfelicidade.

A sua filosofia, pu -ramente hu ma nista,sacraliza o quo ti diano,eleva o sen tido doscostumes e as re la -ções hu ma nas adqui -rem misticismo. A sua aspiração foi a de purificar econcretizar as formas dos fenómenos temporais de acordocom as mais profundas leis da vida e segundo o ca minhodo homem. Este caminho conduzia à cultura, a umacultura que não era incompatível com a Natureza, mas quetinha de ser harmonizada e ordenada pela própriaNatureza. Mais do que uma religião, Confúcio legou-nosuma filosofia prática, profundamente pedagógica.

A MORAL

A ética confuciana baseia-se no auro nedio (a harmoniadourada), no equilíbrio e na harmonização interior, que se

verão reflectidos nohomem de bem (jen),através de uma con -duta moderada queevi te os extremos; nãose apai xonar, não exa -gerar, não ter ímpetose não ter arranquesemo cionais.

Confúcio ensina-nos que o Universo se -gue uma ordem, umaharmonia – a qual de -nomina «o caminho doCentro» (chung) –, emcuja direcção deve tam -bém marchar o ho -mem. Esta lei cósmicatambém é reguladorado comportamento hu -mano. Quer dizer, nãosó nos indica o ca mi nhoque devemos se guir,mas também ajus ta asnos sas ac ções aos seusdesíg nios.

«O caminho rectodo Universo é o centro;a harmonia é a sua leiuniversal e constante».

A virtude con siste,portanto, em man ter--se com per severançano centro (chung).

«Quando o centro ea harmonia alcan ça -

ram o seu máximo grau de perfeição, a paz e a ordemreinam no Céu e na Terra, e todos os seres al can çam o seutotal de sen volvimento».

O homem alcança a felicidade através da perfeiçãointerior, da paz e da serenidade inalteráveis. O homemdeve meditar e pe ne trar na essência de todas as coisas,de di car toda a sua vida, com diligência e per se ve rança, àdescoberta do bem e da verdade.

O bem é o caminho do centro, o equilíbrio, a vibraçãoem har mo nia com o Universo. O mal é artificial, antina tu -ral; o ho mem é arrastado ao mar por um erro de juízo, pelopre do mínio da paixão sobre a razão.

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O homem deve meditar e pe ne trar na essência detodas as coisas, de di car toda a sua vida com diligência eper se ve rança à descoberta do bem e da verdade.

O bem é o caminho do centro, o equilíbrio, a vibraçãoem har mo nia com o Universo. O mal é artificial,antinatural; o ho mem é arrastado ao mar por um erro dejuízo, pelo pre do mínio da paixão sobre a razão.

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Magnânimo com o povo.Justo na distribuição dos trabalhos públicos entre oscidadãos.

O HOMEM NOBRE ENCONTRA-SE LIVREDE QUATRO ATADURAS:

Não tem orgulho.Não tem preconceitos.Não é obstinado.Carece de egoísmos.

O HOMEM NOBRE CAUSA UMA IMPRESSÃO TRIPLA:

Se o observamos de longe, parece inacessível e sério.Se nos aproximamos mais a ele, parece simples eafável.Se ouvimos as suas palavras, parece intransigente esevero.

«Para o homem nobre, o importante é aessência e nada mais.»

MORAL SOCIAL. HUMANITARISMO

A essência da moral social para Confúcio é o hu ma -nitarismo.«O fundamental do amor universal encontra-se nopróprio homem.»«Do sentimento de humanidade nasce o des pren -dimento.»«O sentimento de humanidade consiste em amar a to -dos os homens.»

O princípio fundamental do humanitarismo ou be ne -volência universal para todos os homens encontra-se, se -gundo Confúcio, na piedade filial, no respeito fraterno, nasinceridade e na lealdade.

Confúcio propugnou a doutrina do Jen-Tao («o caminhodo homem de bem») e ensinou também que a condutamoral do homem é a base do progresso social e a har -monia universal.

MORAL POLÍTICA

A moral política está dirigida ao príncipe ou governantee aos funcionários que exercem a autoridade sobre o povo,com o objectivo de reformar os seus costumes privados e

AS CINCO RELAÇÕES CARDINAIS

De soberano para súbdito: benevolência, que inclui oes pírito público e a piedade filial.

De pai para filho: rectidão, que compreende o valor, afra ternidade, a integridade e a pureza.

De irmão mais velho para irmão mais novo: correcção,que abarca o respeito, a solicitude, a humildade e a de fe -rência.

De esposo para esposa: conhecimento, que inclui oconhecimento da natureza humana, da Natureza em si e dodestino.

De amigo para amigo: boa fé, que compreende a ver -dade, a simplicidade, a sinceridade e a honestidade.

A MORAL INDIVIDUAL

A vida do homem moral é uma verificação individual daor dem moral do Uni ver so.

A moral individual é a base ou chave do desenvolvi men -to humano; o me lho ramento colectivo e po lítico parte deum melhoramento do ho mem em si mesmo e, para isso,Confúcio des creve a imagem de um homem modelo, umarquétipo: um ho mem sábio, nobre e su perior.

Este homem supe rior encontrar-se-ia no verdadeirocavaleiro (tsun tsé), aquele que não se desvia jamais dorecto caminho, da virtude. O seu amor pe la virtude está,pois, na íntima relação com o seu amor pela be le za, que éuma suprema ex pressão de moral e de equilíbrio.

«O homem sábio as pira à perfeição, o homem vulgar,ao bem-estar.»

Os homens mais elevados são os que por nascimentotêm a sabedoria (os santos ou sábios sublimes); aquelesque mediante o estudo e a recta conduta a adquirem, sãoos homens superiores.

A VIRTUDE E O CAMINHO DO CENTRO

As três virtudes capitais e universais para poder per -cor rer o caminho do centro são:

Prudência do entendimento.Amor a todos os homens.Força de ânimo.

QUALIDADE DO HOMEM NOBRE

Digno e comedido na sua vida pessoal.Deferente com o seu príncipe.

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A moral individual é a base ou chave do desenvolvimento humano; o me lho -ramento colectivo e po lítico parte de um melhoramento do ho mem em si mesmo e,para isso, Confúcio des creve a imagem de um homem modelo, um arquétipo: umho mem sábio, nobre e su perior.

Este homem supe rior encontrar-se-ia no verdadeiro cavaleiro (tsun tsé), aqueleque não se desvia jamais do recto caminho, da virtude. O seu amor pe la virtudeestá, pois, na íntima relação com o seu amor pela be le za, que é uma suprema ex -pressão de moral e de equilíbrio.

«Governar é manter-se correcto».

«Os governantes devem rodear-se decolaboradores que respondam aos seuspróprios sentimentos; para que os seussentimentos estejam inspirados no bempúblico, é necessário que coincidam comas leis do dever, e esta lei encontra-se navirtude do humanismo, o princípio de amora todos os homens.»

BIBLIOGRAFIA

· Historia Universal, César Cantú· Historia de China, Tsui Chi · Culturas Orientales, Raúl Ferrero · I Ching, Mirko Lauer· I Ching. El Libro del Oráculo Chino, Judica Cordiglia · Diccionario de Filosofía, José Ferrater Mora · Lao Tsé y las Enseñanzas del Tao, R. Wilhelm · Confucio. Los Grandes Libros, Antonio Zozaya · Confucio, Juan Marín · Confucio. Los Cuatro Libros Clásicos, Francisco Cardona

y María Montserrat Martí · Lao Tsé y Confucio, Samuel Wolpin · Kung Fu Tse, Fernando Schwarz, Revista Nueva Acrópolis N* 5, Perú. · Confucio, Revista Nueva Acrópolis N* 27, Perú.

públicos, já que somente desta maneira é possível umgoverno justo e próspero.

A arte do bom governante consiste em mostrar, comuma boa conduta e um bom carácter, o exemplo aoscidadãos.

AS VIRTUDES DO GOVERNANTE

Cultivar a sua própria conduta.Honrar os homens de valia.Sentir afecto e cumprir os seus deveres para com osseus governados.Mostrar respeito para com os altos ministros da nação.Identificar-se com os interesses e o bem-estar de todoo corpo de servidores públicos.Ser como um pai para o povo.Estimular o cultivo, o progresso e a renovação dasartes.Ser cordial e amável com os estrangeiros vindos deregiões distantes.Interessar-se pelo bem-estar dos príncipes do Império.

Podemos concluir, então, que a moral política se baseianuma aristocracia, com uma missão eminentementepedagógica.

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Nem tudo o que ocorre pode ser expli ca -do com uma série de causas e efeitos. Háco nexões de acontecimentos que não sãofáceis de explicar. A casualidade é, sem dú -vi da alguma, uma faceta da ciência que ser -viu de fonte de preocupação a diversos pen -sa dores ao longo dos séculos.

O ser humano, desde o momento em quese entendeu como tal, sempre procurou ex -pli car a realidade que o rodeava. Esta rea -lidade, muitas vezes, parecia-lhe caótica.As sim sendo, procurou meios com os quaispo deria dar um encadeamento lógico aosacontecimentos naturais que lhe apareciamà vista. Deste modo, empenhou-se em co -nhe cer o mundo e a natureza nos seus di -ver sos aspectos.

Já desde a origem da História conhecidasurgem di versos mitos que tentam explicarquem faz chover, por que é que chove, porque é que o Sol nasce originando a luz, por

JUNG E A SINCRONICIDADECentro de Estudos da Nova Acrópole do Brasil

PSICOLOGIA Jung e a Sincronicidade

que é que a Lua o substitui dando origem à noite, etc. Assuas explicações voltavam sempre a um Deus ou a umaespécie de entidade que, de maneira sobrenatural, faziacom que algo acontecesse no mundo fenomenal no qualhabitavam. Para que se tenha uma ideia quanto à velhaestrutura mental que procurava uma explicação para osfactos desconhecidos, basta que o leitor veja como oanoitecer e o amanhecer são descritos no livro egípcio Am-Triat, no qual é relatado como o Deus Sol morto se trans -forma em Kheper, ou escaravelho, na décima estação e co -mo, na décima segunda, sobe numa barca que o trans por -ta rá rejuvenescido para um novo ama nhecer.

A Historia transcorreu e, com o tempo, toda esta formade explicação mítica foi posta em dúvida e a denominadaciência moderna começou a seguir o conhecido modelo domé todo científico. De acordo com o referido modelo, se oevento B, por exemplo, pode ser observado, é porque estederiva de um evento A antecedente que o causou, e se umevento C se apresenta, indefectivelmente deve ter sidocau sado por B. Assim, tudo na Natureza ir-se-ia mani fes -tan do através de uma cadeia de acontecimentos, tudo es -

A dificuldade na compreensão da Lei da Sincronicidade reside so -bretudo na tendência unilateral do homem moderno ocidental em suporque todos os conceitos estão contidos numa relação causa-efeito do seupróprio modelo científico. O antigo ou mesmo o homem oriental dos nossosdias, não têm a dita preocupação. Estes homens vêem a vida como um todo,como uma interpenetração de um mundo físico e de um mundo es piritual.

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taria explicado através de uma causa que produz um efeito(re lação causa-efeito ou relação causal).

De acordo com estes padrões de pensamento, para quealgo seja considerado real, deve ser primeiro observável econtrolável. Depois tentar-se-á delimitar o fe nó me no queo antecede ou o provoca. Se não é possível en con traralguma relação entre o facto em questão e um an te ce -dente qualquer que o possa ter causado, este não é con si -derado, quer dizer, os cientistas deixam-no de lado com opretexto de não terem encontrado nenhuma relação cau -sal do facto em questão.

A ciência chegou a atribuir ao acaso certas situaçõesnas quais não encontrava relação causal. A Genética éuma delas. Hoje, sabe-se que se uma pessoa portadora deum genótipo Mm (normal portador para um Gene quedetermina a miopia) se casa com um portador/a dogenótipo mm (míope), este casal tem uma probabilidadede 50% de se verem afectados por esta enfermidade.Sabe-se que para ter um filho normal portador, basta queeste receba um gene normal (M) e um afectado (m); parater um filho afectado basta que receba dois genesrecessivos; mas na Genética o que causa a união de do mi -nante com ou -tro tam bémdo minante, oua união de doisr e c e s s i v o s ,ainda é atri -buí do ao aca -so, pois estepro cesso ain -da não con se -guiu ser pro -vado atra vésde uma re la -ção cau sal. Omes mo su ce -de em re la çãoà determina -ção dos sexos.

A ciência positivista passou a determinar a chamada cau -salidade através de um método estatístico e esta ver dadeestatística tornou-se o fundamento filosófico da atribuiçãoda causalidade. A Psicologia experimental, de facto, é umapar te da Psicologia que tem por objecto es tu dar a emissãode comportamentos por parte de um or ga nismo.

Um rato na caixa de Skinner, por exemplo, está obri gadoa pressionar a alavanca de accionamento do depósito deágua para poder beber. A Psicologia experimental ex plicaque a privação de água (A) provoca o comportamento dorato sobre a alavanca (B) e a recepção da água (C) vem co -mo consequência do comportamento do rato. Muitas ve zes,

no entanto, o evento A apresenta-se, como pude presen -ciar, sendo monitor de Psicologia experimental na Uni -versidade Federal do Pará, no Brasil, e o com por tamentode pressão sobre a alavanca não é emitido. A ex plicaçãodeste facto gira em torno de dois motivos: o acaso e ascaracterísticas idiossincráticas. Com isso con clui-se que aprópria Psicologia experimental é pura es tatística, já que oprocesso de relação causal em questão, que recebe o nomede Contingência Tripla de Skinner, no seu próprio enun -ciado afirma: «Na presença de um Sd (estímulo dis cri mi -nativo), a resposta ou comportamento previsto terá muitasprobabilidades de acontecer se, depois de emitido, éreforçado com um SR (estímulo reforçador)». No entantotudo isso somente apresenta uma alta margem deprobabilidades, mas a segurança nunca é total.

C. G. Jung postula que as explicações dos primitivosmitos tinham em conta a causalidade, mas esta cau sa li -dade era mágica e não pensada a partir de uma cadeia deacontecimentos como a nossa.

Ponhamos um exemplo: se uma pessoa adquire umbilhete de metro para ir comprar uma entrada de teatro edá-se conta de que os números de ambos os bilhetes são

iguais, e que depois disso alguém deixa umnúmero telefónico que é igual ao número dobilhete do metro e do teatro, a que relaçãocausal estariam todos estes factos sub me -tidos? Muitas pessoas diriam que isto não pas -sa de uma coincidência, e estamos de acordo,mas há certos tipos de coincidências, comoalgumas outras que Jung cita, que ul -trapassam os limites da casualidade, nãoobedecem a nenhuma causalidade conhecidae, para além disso, os factos mantêm um cer -to significado intrínseco comum. Citarei umaex periência de Jung, na qual ele relata umasérie de não menos de seis termos, cuja re la -ção é simplesmente casual, mas altamentesig nificativa:

«Na manhã do dia 1 de Abril de 1949 eu ti -nha transcrito um relato referente a uma

figura que era metade homem, metade peixe. No almoçohouve peixe. Alguém recordou-nos o costume do peixe deAbril (primeiro de Abril). Pela tarde, uma antiga pacienteminha, a qual não via há vários meses, mostra-me algu -mas figuras de peixes. À noite, alguém me mostra umapeça de bordado representando um monstro ma rinho. Namanhã seguinte vi outra antiga paciente que veio visitar-me pela primeira vez depois de dez anos. Na noite anteriorela tinha sonhado com um grande peixe. Alguns mesesdepois, ao empregar toda esta série de coin cidências numtrabalho maior, e tendo con cluído a sua redacção, dirigi-me a um local na margem do lago, em fren te da minha

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seu costume, teve o sumo cuidado e tentou procurar ou -tros casos que confirmassem ou refutassem a sua pro -posta. Ao fazê-lo, Jung encontrou uma bibliografia su ma -men te significativa. Para além de Schopenhauer e delepró prio, autores como Dariex, Flammarión, Schulz,Silberer ou Rhine, além de terem consultado bibliografiassemelhantes, também fizeram uso da estatística, ten tan -do explicar enigmas similares.

Dariex estudou os problemas de precognição te le -pática da morte e concluiu que casos como estes possuemuma probabilidade de se manifestarem ao acaso de 1 em4.144.545.

Flammarión estudou os casos conhecidos pelo nomede phantoms of living (fantasmas dos vivos) e encontrouuma probabilidade de que acontecesse por acaso com umvalor de 1 em 804.622.222.

Este autor cita, num dos seus livros (L’inconnu et lesproblèmes psychiques), que quando escrevia sobre aatmosfera, na parte que tratava sobre os ventos, foi sur -preen dido por uma rajada de vento sobre a sua mesa, jus -tamente no momento em que discorria sobre esteassunto. Também nos informa sobre um episódio de M.Des champs, que, sendo uma criança em Orleãs, um diarecebeu um pedaço de bolo de passas que um certo M. deFontgibu lhe deu. Dez anos depois encontrou bolo depassas num restaurante de Paris e pediu uma dose.Comunicaram-lhe que o bolo acabava de ser solicitadopor M. de Fontgibu, que se encontrava ali. Vários anosdepois, M. Deschamps foi convidado a partilhar bolo depassas, numa circunstância es pecial. Enquanto comia,

obser vou que desta vez só fal -tava a presença de M. de Fon -tgibu. Nesse momento a portaabriu-se e entrou um senhormuito an cião e desorientado; eraM. de Fontgibu que tinha erradoa direcção e tinha aparecido porengano na dita reunião. Flam -marión tinha certamente nassuas mãos um caso de sin cro ni -ci dade, mas ele preferiu explicareste facto baseando-se na hipó -te se, não menos inquietante, datelepatia.

Schulz, na sua obra Der Zu -fall Eine Vorfom des Schick sals,tra ta de demonstrar como objec -tos perdidos e roubados voltam,prodigiosamente, aos seus do -

nos. Narra, na referida obra, o caso de uma se nho ra que,tendo tirado uma foto do seu filho, enviou a pe lícula paraser revelada noutra cidade. Então, estalou a 2.ª Guerra

PSICOLOGIA | Jung e a Sincronicidade

casa, onde eu tinha passado por diversas vezes naquelamesma manhã. Desta vez encontrei um peixe morto, maisou menos com um pé de comprimento (cerca de 30 cms),sobre o muro do lago. Como ninguém pôde ter estado lá,não tenho nem ideia de como o peixe chegou àquele sítio».

Casos como este são praticamente impossíveis deserem estudados pela ciência actual, já que esta busca arelação causa-efeito e nesta série não se pode vislumbrarnenhuma possibilidade causal de que um acontecimentopossa ter provocado outro.

SINCRONICIDADE

Para explicar fenómenos como este, Jung propõe otermo Sincronicidade: uma aparição simultânea de doisou mais factores unidos pelo significado e sem relaçãocausal alguma entre si; seria, portanto, uma coincidênciasig nificativa. O segredo que liga um acontecimento a outroes taria relacionado com o significado do evento, quer di -zer, que a condição psíquica de Jung, naquele momento,estaria virada para os eventos marinhos e isso provocariauma espécie de evocação de outros acontecimentosrelacionados com o mesmo tema.

Jung inspirou-se, para criar o termo sincronicidade, emSchopenhauer, mais concretamente no seu tratado Aintencionalidade aparente no destino do indivíduo (Parer ga und

Para lipomena, Vol. I). Neste tratado, Scho pe nhauer fala de umaespécie de «(…) simultaneidade… daquilo que não tem co -nexão causal». E usando uma analogia geográfica cruzadade meridianos e paralelos, onde estes representariam asconexões acau sais e os primeirosas cadeias causais, explica comouma pessoa pode ser um herói dasua própria vida e um simplesfigurante da vida alheia, através deum esquema onde conexõescausais e acausais não se anulam,mas sim comple men tam-se. Naopinião de Scho pe nhauer «osujeito do grande so nho da vida… éum só»; quer dizer, a vontade, aprimeira causa de onde irradiamtodas as ca deias causais comomeridianos do pólo, graças aosparalelos cir culares, encontra-senuma rela ção de «si mul taneidadesig ni fi cativa». Destasimultaneidade significativa, Jungextraiu o termo sincronicidade.

Pode parecer que toda a aposta filosófica de Jung te -nha sido puramente subjectiva ou limitada à sua própriaexperiência. No entanto, antes de a publicar, como era o

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Mundial, provocando a perda da película. Anos de poisviajou à cidade para a qual tinha enviado a película e com -prou outra película virgem numa loja para tirar uma fotode uma filha. Quando mandou revelar a película deu--seconta de que esta já tinha sido usada, pois as fotos es -tavam sobrepostas. Apercebeu-se a seguir que as fotosque estavam por baixo, quer dizer, as que tinham sido ti ra -das anteriormente, eram as do seu filho, cuja película ti -nha perdido durante a guerra. Schulz explica o facto, ba -seando-se na atracção dos objectos, relacionados, se -gundo ele, por um sonho de uma Consciência maior do quea nossa.

Silberer, o único que estudou o problema sob o pontode vista psicológico antes de Jung, acreditava que estesfactos sucedem, não devido a eventos parapsicológicos,mas por arranjos inconscientes.

Rhine, na sua obra The Reach of Mind, foi o autor quedeu maior impulso ao desenvolvimento da ideia de Jung.

Rhine colocou um experimentador e um sujeito sen -tados frente a frente numa mesa, separados por uma divi -são de madeira. O experimentador, portador de um jogo decartas com cinco tipos diferentes de decoração (estrela,rectângulo, círculo, duas linhas onduladas e cruz, sendocada grupo de cinco cartas decorado por cada um destesmotivos) tirava uma carta do baralho, que tinha sidomisturado electronicamente; o sujeito tinha que adivinharo símbolo da carta que era tirada. O cálculo de proba bi li -da de de acertos por cada caso era de 5 em 25, mas o re -sul tado médio de cada sujeito foi de 6,5 em 25, em 800 ex -periências, ou seja, 1,5 mais do que probabilidade deacertos ao acaso, sendo a probabilidade de que tudo issosucedesse por pura casualidade de 1 em 250.000.

Durante todas estas experiências, houve o caso de umra paz que alcançou acertos de 10 em 25 e este mesmo ra -paz alcançou depois acertos de 25 em 25 (ou seja, todos),sendo a probabilidade de que isto tivesse sucedido poracaso de 1 em 298.023.233.876.935.125.

A distância entre o experimentador e o sujeito foi au -mentando de acordo com o número de tentativas, desdesi tuá-los na mesma sala, até separá-los a uma distânciade 350 Km. onde se puderam constatar acertos de 10,1 em25; 11,4 em 25 e 12,0 em 25 (recordemos que a média tipode acerto era de 5 em 25).

Usher e Burt refizeram a experiência e chegaram aafastar o experimentador e o sujeito, numa das ex pe riên -cias, 960 léguas e noutra 4.000 léguas, um deles esteve nacidade de Durham (Carolina do Norte) e outro em Zagreb(Jugoslávia).

Pelos resultados, pode-se concluir que a distânciaentre o experimentador e o sujeito pouco ou nada interferenas experiências. As propostas de explicação de trans mis -são energética entre ambos também são derrubadas, vis -

to que tal distância torna impossível qual quer tipo detrans missão de simples energia magnética, ci nética, etc.De facto, em algumas experiências, os re sul ta dos elevam-se proporcionalmente à distância.

Podemos supor, então, que o espaço é um valor re la -tivo. E, de acordo com todas estas experiências, também otempo é relativo. Há eventos que escapam à atracção des -tas forças. Mas se espaço e tempo são somente ele men -tos subjectivos arbitrários, necessários para a vida em co -mu nidade, mas não necessariamente existentes, o mes -mo poderíamos dizer da causalidade, já que ela pressupõeestes dois elementos.

Talvez o leitor possa sentir-se assustado com estascon clusões, mas a própria Teoria da Relatividade deEinstein propõe conclusões semelhantes, e a Física afir maque um minuto cósmico pode equivaler a mil milhões deanos terrestres. Assim, presente, passado e futuro, se riamsó instâncias arbitrárias na mente do homem mo der no.

Jung conclui deste modo o resultado de todas estasex periências:

«Temos de admitir que a distância é fisicamente va riá -vel e, em determinadas circunstâncias, pode ser reduzidaa zero por alguma disposição psíquica. Mais notável to -davia é o facto do tempo, em princípio, não ser um factorne gativo, quer dizer, a leitura antecipada de uma série decar tas que serão tiradas no futuro produz um número deacertos que ultrapassam os limites da probabilidade.

Jung não poupou rigor científico nas suas conclusões eantes de as publicar teve o cuidado de conversar com opró prio Einstein; o físico Wolfgang Pauli chegou a ajudá-lopes soalmente através da troca de ideias. Na formulaçãode Jung, a tríade clássica da Física (espaço, tempo e cau -salidade) deveria ser complementada com a inserção deum quarto princípio: a sincronicidade. Depois de diversasdis cussões com W. Pauli, que aceitava os argumentospsicológicos de Jung, ambos chegaram à conclusão deque a causalidade (ou conexão constante através de causae efeito) seria para a sincronicidade (ou conexão in cons -tante através da contingência ou da equivalência ou sig -nificação), assim como uma certa energia indestrutívelse ria para um continuum espacio-temporal.

Jung afirma que haveria, portanto, uma cor res -pondência entre a teoria psicológica e a física. A teoria daFísica dá explicações concretas e a psicológica daria umaequivalência entre causalidade e sincronicidade, devido afactores aos quais Jung chama Arquétipos. Estes unir-se--iam à causalidade, por estarem dotados de trans gres -sividade (capacidade de transgredir ou alterar). Isso deve-se ao facto de os arquétipos não se encontrarem ex clu -sivamente «na esfera psíquica, pois podem apre sen tar-setambém em circunstâncias não psíquicas (equi valência deum processo físico com um processo psí quico)». Esta união

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ou equivalência causalidade-sin cro nicidade seriacontingente à determinação causal, quer dizer, asincronicidade aconteceria devido a uma si tua ção causal,mas unida a ela por uma lei que não é cau sal, ou pelomenos assim a consideramos, por des co nhe cê-la. Osarquétipos, desta forma, seriam o fundamento da pro ba -bilidade psíquica, porque encerram acon teci men tos ordi -nários e instintivos de uma espécie de tipos de ex periên -cias, de eventos ou, simplesmente, acon te ci mentos. As simnos diz Goethe através de uma concepção má gica e sin cró -ni ca do seu famoso Fausto:

«Todos nós temos forças eléctricas e magnéticas den -tro de nós e exercemos um poder de atracção e re pul são,dependendo do contacto que tenhamos com algo afim oudiferente».

A dificuldade na compreensão da Lei da Sincronicidadere side sobretudo na tendência unilateral do homem mo -derno ocidental em supor que todos os conceitos estãocon tidos numa relação causa-efeito do seu próprio mo -delo científico. O antigo ou mesmo o homem oriental dosnos sos dias, não tem a dita preocupação. Estes homensvêem a vida como um todo, como uma interpenetração deum mundo físico e de um mundo espiritual.

A Sincronicidade, de acordo com Jung, pode ser umauxiliar natural à Psicoterapia, já que pode servir para queo paciente reflicta sobre a sua posição psicológica. No seulivro Sincronicidade: um princípio de conexões acausais,Jung conta o caso de uma das suas pacientes que era

bastante racionalista e que muda a sua opinião sobre avida quando, depois de ter sonhado com um escaravelhode ouro, narra o seu sonho a Jung para que este o in -terprete, e fica surpreendida ao ver um abelhão comumentrar pela janela do consultório. Como o abelhão real e oescaravelho do seu sonho tinham semelhanças físicas, ofacto serviu para fazer a paciente reflectir no tocante aodesconhecido. No entanto, o verdadeiramente prodigiosodo caso, embora a paciente o ignorasse, é que o es ca -ravelho de ouro do seu sonho é um antigo símbolo egípciodo renascimento para uma nova vida e, no seu caso, cer -tamente pressagiava uma abertura e um renascimentopa ra um estado psicológico de maior receptividade aomundo do mágico.

A Astrologia é outro exemplo de Sincronicidade. Estaciência é sin cró nica ao humor e à disposição psí quica dacriança recém-nascida, pois sabe-se que determinadasconfigurações planetárias coinci dem com o nascimentode pessoas com estados definidos de humor e dis posiçãopsíquica dos seus se me lhantes.

A Sincronicidade pode ser fa ci litada por determinadosesta dos afectivos. Jung diz que a au sên cia de interesse eo tédio são estados afec tivos que interferem nega tiva men -te na formação de sin cro ni ci da des, enquanto que a ex pec -tativa pas siva ou a participação directa em situações co -muns in ter fereriam positivamente, assim como a fé ou aesperança.

Jung não poupou rigor científico nas suas conclusões e, antes de aspublicar, teve o cuidado de conversar com o próprio Einstein; o físico W.Pauli chegou a ajudá-lo pessoalmente através da troca de ideias. Naformulação de Jung, a tríade clássica da Física (espaço, tempo ecausalidade) deveria ser complementada com a inserção de um quartoprincípio: a sincronicidade. Depois de diversas discussões com W. Pauli,que aceitava os argumentos psicológicos de Jung, ambos chegaram àconclusão de que a causalidade (ou conexão constante através de causae efeito) seria para a sincronicidade (ou conexão inconstante através dacontingência ou da equivalência ou significação), assim como uma certaenergia indestrutível seria para um continuum espacio-temporal.

PSICOLOGIA | Jung e a Sincronicidade

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A SABEDORIA DOS ANIMAISFrançoise Terseur

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Hoje abre-se um caminho novo de compreensão e de utilização dos recursosnaturais para melhorar o mundo e servir a vi da sem ferir ou prejudicar o nossoplaneta. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas a evolução da nossa hu ma -nidade faz-se passo-a-passo. Se conseguirmos de sen volver a união entre a in te li -gência e o amor, a ciência da Na tu re za e a sabedoria da vida, estaremos mais pertode re criar um novo paraíso na Terra; os nossos voluntários de qua tro patas, debarbatanas ou de asas estão connosco nesta imperiosa mudança para a Nova Era,e com eles apren deremos com certeza a tornarmo-nos mais humanos.

NATUREZA A Sabedoria dos Animais

*Escritorae Filósofa

Fotos dePedro Denis

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NATUREZA | A Sabedoria dos Animais

Os animais estiveram sempre ao nosso lado. Nosprimórdios da nossa hu manidade, eles de sem penharamum papel im por tante na sobre vivência da nossa espécie.Graças a esta coabitação ensi na ram-nos a seguir o ins tintopa ra ultrapassar as adver sidades do meio ambiente. Oshomens seguiam as manadas e com elas des locavam-separa alcançar novos territórios mais fér teis e acolhedores.Eles proporcionaram-nos não só o alimento como tambémforam os nossos mestres na arte da caça; graças ao seuinstinto infalível para antecipar mu dan ças de tempo oucalamidades naturais, ensinaram-nos a precaver-nos deperigos e a criar abrigos.

Nas cavernas da pré-his tória podemos admirar arelação mágica que unia os nossos antepassados aos seusanimais protec to res. Com alguns traços, os ar tistas daarte parietal reproduziam toda a beleza dos seusmovimentos e ainda hoje sentimos a vida palpitar nossantuários da terra mãe. No silêncio das profundezas dasgrutas ou ve-se o eco das suas lutas e o sopro quente dosbisontes aquece as húmidas paredes do seu esconderijo.Os chamanes da pré-história invocavam a protecçãoanimal para pactuar com a Natureza. Revestiam-se dassuas peles, adornavam os seus corpos com dentes, chifresou ossos, imitavam os seus traços e expressões nas suaspinturas faciais para assustar o inimigo, realizavam ritosde simulação ou magia simpática para se aproximar do seupoder, da sua força, astúcia e agilidade.

As penas das águias, do condor ou colibrienfeitavam os seus corpos e toucados nas suasdanças rituais; imitavam o movimento das asaspara voar com a sua ima ginação.

A memória dos animais orientou os homensna sua busca de melhores condições de vida.Com eles realizaram grandes migrações eforam desafiando o desconhecido. Os nossosantepassados viviam muito perto da Natureza esabiam ler o grande livro da vida. Elesconseguiam interpretar o voo dos pássaros ecap tavam sinais de alterações nas suas en tra -nhas. À medida que foram domesticados, osani mais contribuíram para o trabalho doshomens, ora como meio de transporte, ora para aagricultura. Os lobos e os felinos transfor ma ram-se emcães e gatos, tornando-se guardas de lugares sagrados.No antigo Egipto, o cão (chacal) Anúbis e o gato Bas tekalcançaram o título de deuses protectores dos tem plos echegaram a ser mumificados. Na Índia, o elefante tornou--se símbolo da sabedoria pela sua memória e bondade;diz-se deste animal de grande porte e comedor de frutos,que os seus excrementos largados ao longo do caminho,transportam sementes de futuras árvores e fecundam aterra; por onde passa o elefante brota uma vida nova. A

serpente também foi venerada co mo símbolo derenovação e de poder sobre a morte. Muitos templos fo -ram ador nados com a sua representação; guardiãs doste souros espirituais deram o nome de Nagas ou serpentesaos grandes iniciados da Índia. Um insecto como o es -caravelho tornou-se no Egipto o símbolo do co ra ção quese abre à luz do espírito. A andorinha, símbolo da almaque nunca se es quece de voltar à sua terra celestial. Asabelhas deram-nos o mel que permitiu a confecção doelixir dos deuses ou Ambrósia na Grécia Antiga. Mel queainda hoje é o ali men to base para muitos povos que vivemdos recursos da na tu reza selvagem: o zumbido das abe -lhas na colmeia serviu de inspiração para os sonslitúrgicos que os homens fa ziam soar no leito dos de fun -tos com o fim de ajudar a uni ficar a sua consciência com aalma do mundo. Este som hoje é um mantra poderosopara alterar o nível de con sciência.

Também aprendemos a arte da tecelagem com ashabilidosas aranhas e a seda é produzida pelo bicho quedeu nome a esta fabulosa fibra. A lã é-nos fornecida pe -las ovelhas e dos moluscos extraímos a tinta que servepara tingir as peças do nosso vestuário. Muitos dos re -médios populares vêm-nos dos animais, como o san gueseco de ma caco, o pó de chifre de veado, os ni nhos deandorinhas, o uso de venenos como o do es cor pião, deserpentes ou até das abelhas para ci ca tri zar feridas oupara o uso de formas de acupunctura, as san guessugas

para descongestionar obstruções da cir cu lação san guí -nea e que fizeram parte da antiga tradição da medicinanatural.

São infinitos os recursos que os animais nos con ce de -ram durante séculos. Fizeram parte da nossa educaçãoquando, através de fábulas, deram vida aos nossos defeitose virtudes. O antigo texto hindu «Pacha Tantra» é umarecompilação de histórias da época clássica (séc. II a.C.)que utiliza animais como protagonistas; Esopo (620 a.C.) éum célebre fa bulista grego que imor talizou os animais dan -do-lhes o rosto das nossas pai xões. Com narra tivas cur tas,

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simples e hu mo rís ticas educou o po vo. Es cu te mos uma dassuas fábulas:

A videira e a cabra

Uma cabra que era perseguida pelos caça doresrefugiou-se numa vinha e ali ficou escon di da atrás dasvideiras. Quando lhe pareceu que o perigo tinha passado,

levantou-se e começou acomer as folhas da vi -deira. Contudo, os caça -dores não andavam lon -ge e ou vindo o sus sur rodas folhas, vol ta ram à vi -nha, en con traram a ca -bra e mata ram-na. Elamereceu o castigo, por -que prejudi cou quem atinha prote gi do.

Moral da história:Muitos procuram refugiojunto dos ami gos quandoestão aflitos, mas depois

são ingratos com eles.La Fontaine, o famoso fabulista francês do século XVII

exprime o bom senso popular nas suas histórias. A suaobra iniciou milhares de jovens e adultos na compreensãode uma moral natural. La Fontaine dizia: «O homem é degelo para as verdades e de fogo para as men ti ras», por issoa moral das fábulas é uma pre ven ção contra os desviosdos homens.

Com o tempo, e à medida que o homem foi de sen -volvendo tecno lo gia que o emancipou da dependênciadirecta do ani mal, descobrimos ou tros benefícios da do -mes ticação: a ligação afectiva do homem com o animal deestimação re velou-se um dos melhores contributos para anossa ci vi lização. Ao aproximar-se do estudo da natureza, aciência pode constatar que, para além dos seus instintos,os animais possuem dons de sentir à distância, como sefosse precognição. A ciência fala-nos dos campos mórficos

que regem toda a natureza e que estão por detrás dasformas como uma rede inteligente que intercomunica como mundo físico. Os antigos chamavam a esses campos oAnima Mundi ou Alma do Mundo, que representa a grandematriz astral da Natureza. Se os animais são seresanimados que sentem, sofrem, antecipam e se ajustam àsmudanças do seu meio ambiente, é lógico pensar que,através deles, podemos interpretar os vários sinais queeles captam nessa dimensão superior. A magia antigadedicava-se a relacionar essas várias dimensões da vida, afim de poder agir em concordância com as leis da Natu reza.

No século do racionalismo (XVII), Descartes anunciavaque os animais eram máquinas sem alma, mas hoje aciência animal confirma novamente que cada espécie émovida por uma consciência grupal e constatou os se guin -tes aspectos:

— O animal tem consciência daquilo que o rodeia, doambiente em que vive ou onde se encontra.

— Tem consciência do que lhe acontece.— Tem consciência das emoções que sente.— Tem capacidade de aprender com as experiências que

vive.— Tem consciência das sensa ções do seu corpo, tais

como a dor, a fome, o calor e o frio.— Tem consciência das suas re la ções com os outros

ani mais e com o homem.

Em resumo, os animais são sen sí veis ao seu meio en -vol vente e respondem por afinidade, não possuem razãopró pria, mas são capazes de seguiras suas emoções. Quando se ligamao homem, adaptam-se e usufruemdo contágio com a sua vida mental;são como crianças que vi vem àsombra dos pais. Para eles somoscomo deuses que iluminam e orien -tam o seu caminho.

A serpente também foi venerada co mo símbolo de renovação e de poder sobre a morte.Muitos templos foram adornados com a sua representação; guardiãs dos tesourosespirituais deram o nome de Nagas ou serpentes aos grandes iniciados da Índia. Um insectocomo o escaravelho tornou-se no Egipto o símbolo do co ra ção que se abre à luz do espírito.A andorinha, símbolo da alma que nunca se esquece de voltar à sua terra celestial.

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EXEMPLOS DE CAPACIDADES DOS ANIMAIS

O comportamento altruísta existe nos animais: muitasmães sacrificam-se para salvar os seus filhos; também háanimais que põem a sua vida em risco ou sacrificam-semesmo para salvar humanos ou deixam-se morrer notúmulo dos seus amos.

Existem abutres que largam pedras sobre os ovos deavestruz, podendo assim alimentar-se.

Os pássaros migratórios seguem os campos mag né -ticos da Terra, outros anun ciam tremores de terra, eru -pções vulcânicas e cheias; um observador do Mali dizia quebastava observar os ninhosdos pássaros nas margens dorio Níger para saber o tempoque iria fazer, pois os ninhosaltos anunciam cheias emuito baixos são sinal degrande calor.

Os cientistas criaram umdetector de tempestades nomar graças à observação desinais emi tidos pelas me du -sas, quando vai ocorrer umamudança brusca de tempo.

O mocho possui um ol fac -to que capta o processo bioquímico e ne cro biótico queantecipa a morte; os seus gritos são sempre sinal de umamor te que acontece na sua proximidade.

Sem nunca ter estudado a resistênciados materiais de construção, as térmitascom os seus corredores, galerias e pilarespodem elaborar estruturas de mais de 4metros de altura.

Os alvéolos de uma colmeia têm aforma de decaedro e acabam na sua pontapor um tetraedro, ou seja, as abe lhas, semqualquer instrumento de medição,realizam o ângulo perfeito de um prismahexagonal de 109,18º.

Os corvos da Líbia quando têm ne ces -sidade de beber e o seu bico não alcança onível da água, deitam pedras na cavidadepara fazer subir o nível da água.

Um exemplo muito publicitado decomunicação com os animais é o caso deEmile Plocq (1873-1937), relojoeiro deprofissão, que nutria um amor e um in te -resse por mui tas espécies de animais, empar ticular pelos pássaros: conseguiudomesticar andori nhas que o seguiam por

todo o lado, e também peixes, ser pentes, le bres, martas,lagar tos, com quem co mu ni ca va de for ma telepática.

Quando saía de bicicleta, a vizinhança dizia que estavasempre acompanhado de vários pássaros que voavam noseu rasto. Mesmo quando mor reu, muitos dos acom -panhantes presentes no seu funeral foram os seus animaisde esti mação.

TERAPIA ASSISTIDA COM ANIMAIS

Hoje é sabido que os animais podem ajudar emtratamentos de problemas físicos e psicológicos: cães, ga -

tos, cavalos, póneis,golfinhos, peixes, ove -lhas, etc., são os pro -tagonistas de uma novaárea de ciência médicae vete rinária – a zoo -terapia, que pode re -velar-se útil em do -enças como alzheimer,esclerose múltipla,trom bose, etc. Já estãoa ser avaliados os múl -tiplos benefícios da co -laboração de ani mais:estão a ser trei nados

cães para auxílio na fisioterapia para idosos com re -sultados muito satis fatórios, por exem plo para os moti var a

NATUREZA | A Sabedoria dos Animais

Ao aproximar-se do estudo da natureza, a ciênciapode constatar que, para além dos seus instintos, osanimais possuem dons de sentir à distância, como sefosse precognição. A ciência fala-nos dos camposmórficos que regem toda a natureza e que estão pordetrás das formas como uma rede inteligente queintercomunica com o mundo físico. Os antigoschamavam a esses campos o Anima Mundi ou Alma doMundo, que representa a grande matriz astral daNatureza. Se os animais são seres animados quesentem, sofrem, antecipam e se ajustam às mudançasdo seu meio ambiente, é lógico pensar que, através deles,podemos interpretar os vários sinais que eles captamnessa dimensão superior. A magia antiga dedicava-se arelacionar essas várias dimensões da vida, a fim depoder agir em concordância com as leis da Natu reza.

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movimentar-se jogando com o seu companheiro canino.Os animais têm também contribuído, graças ao seu afectoe capacidade de sentir à distância, para detectar pessoasdesaparecidas ou presas sob os escombros em casos desismos ou desabamentos de terras. Foi ainda testado oolfacto dos cães pa ra alertar o seu dono em caso de crisede diabetes ou de esquizofrenia, já que ele capta os sinaisque antecedem a manifestação da doença. Os cães e osgatos cons tituem um remédio anti-stress e ajudam a res -tabelecer a pulsação cardíaca pelo simples gesto de osacariciar. Os cães-guia permitem melhorar a qualidade devida dos invisuais, e cada vez mais são os companheirosseguros para tudo: para aqueles que sofrem de solidão, desituações traumáticas, de depressão e para muitos outroscasos de alterações emocionais na infância.

Em muitos países da América do Norte e do Sul, bemcomo na Europa, um trabalho importante está a ser rea -lizado pela TAA (Terapia Assistida com Animais). Rea bi -litando o conceito de que o animal é um amigo do Ho mem,ele deve ser tratado com respeito e carinho para o su cessodo tratamento. Dennis Turner, professor de veterinária naUniver sidade de Zurique, che ga mesmo a dizer que «osanimais são a cura do século XXI», porque sabemos queeles ofe recem o seu amor e de dicação de forma in con -dicional e aceitam as pessoas tal como são.

ALGUNS EXEMPLOS DE TERAPIASASSISTIDAS COM ANIMAIS

A equinoterapia é um método terapêutico que utiliza ocavalo para os casos de paralisia cerebral, autismo, hi pe -ractividade, depressão infantil e deficiências motoras: osmovimentos do corpo do cavalo mexem com as arti cu -lações e melhoram a coordenação e o equilíbrio do de fi -cien te.

Em França foi criado para bebés e crianças dos de zas -seis meses aos dois anos e meio o clube dos «BabyPoneys» que tem por missão ajudar a estabilizar e fazercrescer os bebés, graças ao contacto com os póneis, queficam a cargo de cada criança para os escovar e acariciarantes de os montar. Os jogos realizados com elesdesenvolvem nessas crianças o autodomínio (em cima dopónei adquirem uma postura de afirmação), facilitam oseu desenvolvimento sensorial e afectivo (através docontacto, respeito e amor ao animal), ajudam a controlarmelhor os reflexos e o stress, treinam a obediência e adisciplina, evitando assim os impulsos e reacçõesbruscas.

Foram reconhecidos os mesmos benefícios com aterapia assistida por golfinhos, pois eles ajudam a criançaa comunicar, sobretudo em caso de traumas psicológicos;podem assim libertar-se das tensões e dos medos,mantendo uma relação de cumplicidade com o golfinho,

que por sua vez ajuda a criança a restabelecer o seu equi -lí brio psicossomático.

Seriam inúmeros os exemplos que poderíamos citar nodomínio da zooterapia e é certo que estamos face a umanova forma de educar e interagir com a Natureza. Hojeabre-se um caminho novo de compreensão e de utilizaçãodos recursos naturais para melhorar o mundo e servir a vi -da sem ferir ou prejudicar o nosso planeta. Ainda há umlongo caminho a percorrer, mas a evolução da nossa hu ma -nidade faz-se passo-a-passo. Se conseguirmos de sen vol vera união entre a inteligência e o amor, a ciência da Na tu re zae a sabedoria da vida, estaremos mais perto de re criar umnovo paraíso na Terra; os nossos voluntários de qua tropatas, de barbatanas ou de asas estão connosco nestaimperiosa mudança para a Nova Era, e com eles apren -deremos com certeza a tornarmo-nos mais humanos.

Os animais são sen sí veis ao seumeio en vol vente e respondem porafinidade, não possuem razão pró -pria mas são capazes de seguir assuas emoções. Quando se ligam aohomem, adaptam-se e usufruem docontágio com a sua vida mental; sãocomo crianças que vi vem à sombrados pais. Para eles somos comodeuses que iluminam e orientam oseu caminho.

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«Até aqui os terapeutas que levaram aos seus corações a contemplação danatureza e do que ela contém, que vivem somente para a alma, cidadãos do céu e domundo, encomendados ao Pai e Fazedor de tudo pela sua protectora a virtude, quelhes procura a amizade de Deus e acrescenta uma oferta que vai junto a ela:verdadeira excelência de vida, um dom preferível a qualquer boa fortuna e queconduz até aos cumes mais altos da felicidade».

Fílon de Alexandria,in De Vita Contemplativa1

MURMÚRIOS DA HISTÓRIA...

OS TERAPEUTAS

José Carlos Fernández

*Investigador, escritore Director Nacional da

Nova Acrópole

nasceram. Conhecemos, tam bém, os livros, os «superlidos», de autores que passeiam os louros do seu triunfo ese pavoneiam, de obras que, de facto, não contribuirãonem com um cisco para a mon tanha augusta da História.Livros e autores que serão necessariamente esquecidosvinte anos depois, o tempo de uma geração, pois em nadafizeram progredir o carro augusto em que a Humanidadeavança penosamente até ao futuro. Foram na verdademiragens, vozes mudas, ca retas de palhaços, sombras quenos assustaram ou cantos de sereias que semearam naalma falsas e perigosas es peranças, sementes de dis -córdia, ou seja, cancerígenas, no tecido das relaçõeshumanas.

Nenhum verso de algum poeta, nenhuma canção, ne -nhum exemplo se inspirará neles, nenhum murmúrio da

Estamos demasiado acostumados a vernos diferentes cenários da nossa vida quo -tidiana pessoas que elevam a sua voz natribuna pública (agora na chamada televisão,por exemplo, entre outras), para não di -zerem nada; pessoas que quebram o si -lêncio, que na sua natureza é divino, paranos martirizar com as suas mil palavras vãs,não críveis, em geral, nem pelo mesmo queas pronuncia. Estamos acostumados a versurgir no horizonte social factosaparentemente grandiosos, es tentóreos,com uma campanha mediática que às vezesas susta; gigantes com pés de barros que sedissolverão no mes mo marasmo em que

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RUBRICA Múrmurios da História

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pu ros de alma e anseios, que não querem corromper-se noata nor impuro das relações humanas tumultuosas. Sãomonges de vida solitária e isolada, dedicados integralmentea conquistar a sua alma, a cultivar o auto-domínio (en -cratein) e sobre ele edificar to das as virtudes que dão luz esustento à condição humana, a caminhar no invisível, diaapós dia numa vida eremítica copiada posteriormente pelosprimeiros cristãos do deserto, e que mil anos depois serviriade modelo – a Ciência Sagrada é uma – aos místicos do Islãonos seus mo ra bitos retirados, como os que na Serra daArrábida fa ziam os seus trabalhos místicos ouvindo o mur -múrio do mar português.

Fílon dizia que eram magos, interpretavam os sonhos eprofetizavam, curavam (daí o nome «Terapeute»), como ospitagóricos, não só as enfermidades do corpo, mastambém as da alma; com cantos e a sua própria irradiação4

de pureza… e com outros métodos que desconhecemos:«A vocação destes filósofos é indicada pelo nome de

terapeutas e terapéutrides [eles e elas, respectivamente],que é o seu verdadeiro nome, porque professam uma artede cu rar melhor do que a corrente nas cidades, que so men -te cura os corpos, enquanto que o deles também cura as al -mas oprimidas por doenças quase incuráveis, como os pra -zeres, os desejos, as aflições, os temores, a cobiça, a lou -cura, as injustiças e uma infinidade das outras paixões.»

Desejam a visão do Existente por si próprio, a Alma doSol (o Sol de Inteligência, o Logos Platónico, fonte de todaa vida, forma e vontade no «nosso» Universo), e rezamdiante do seu símbolo, o Sol sensível, ao amanhecer e aoentardecer; «ao sair o Sol rezam por um bom dia, bom nosentido verdadeiro de que a luz do céu à qual rezam, possapreencher as suas mentes. Ao anoitecer comprovam que asua alma está livre do peso dos sentidos e dos objectos desensação e repousando-se, ela converte-se na sala doconselho e tribunal de si mesma, perseguindo a busca daverdade» e nas suas reuniões cantam-lhe hinos sagradoselevando os seus braços e a suas almas em homenagem.Vestem-se com túnicas de linho branco, símbolo da pu -reza, e transportam nelas, como distintivo e talismã, pe -quenos machados de duplo gume, símbolo dos reis an -tigos, porque baseiam a sua vida inteira em tornarem-sedo nos e reis de si mesmos. Desde a aurora até à noiteentregam-se à meditação, aos estudos e exercícios es pi -rituais, não provando então nenhum alimento, apro vei tan -do cada um dos minutos de luz solar para fazer res -plandecer a luz espiritual nas suas almas; trabalhando noseu interior com os raios de luz solar, como faz uma abe -lha com o pólen da flor que transforma em mel: «Não co -mem nem bebem antes do pôr-do-sol, pois entendem quea filosofia encontra o seu lugar conveniente na luz e asnecessidades do corpo nas trevas». Prática que foi depoisadoptada pelo islamismo durante o mês do Ramadão.

His tória nos dirá uma só palavra a respeito, pois só asobras que têm futuro possuem um verdadeiro presente,co mo diria Cícero. Os outros falsos presentes não sãoreais, são sombras que passam, como as imagens de umsonho sem importância, que se desvanecem ao despertar.

Há, no entanto, obras que nasceram do silêncio e nosilêncio mas que, imbricadas no gesto do Rei do Mundo,enraizadas numa ordem divina, causaram autênticas e fe -cundas revoluções humanas, cujo exemplo foi repetido du -rante séculos, muitas vezes e por desgraça, até à sa -ciedade, até que se perdesse o motor original que lhes ti -nha dado origem. Estas são as Escolas de Filosofia, as fra -ternidades místicas e filosóficas, como a órfica, a pi ta -górica, a estóica, a dos discípulos de Buda, os Tem plá rios,etc., cujos actos ainda fazem ondular o horizonte da vida,cujos murmúrios ainda se ouvem, musicais e di vinos nestehorizonte da História, empurrando-nos para dian te, comouma velha oração mil vezes repetida em mil anos.

Uma destas fraternidades místicas e filosóficas é a dosTerapeutas, muito semelhante à Escola Pitagórica, quedemonstra que existiram «mosteiros pagãos» antes docristianismo e nos quais a nova religião se inspirou, não sócomo ideal a seguir, mas ao usar a própria palavra «mos -teiro»2. Pois dito termo foi inventado por Fílon de Ale -xandria no seu escrito A Vida Contemplativa, para se referira esta ordem mistérica contemplativa e depois di vulgadopor Eusébio de Cesareia na sua História Ecle siástica que odifundiu assim através dos séculos vindouros. E éprecisamente a eles dois que devemos os poucos dadosque dispomos sobre estes filaleteus (amantes da verdade)terapeutas. O primeiro quis aparentá-los, faltando àverdade, com uma fraternidade judia3, e o segundo comuma seita cristã, pois não queria que o seu século, nem osfuturos, concebessem uma opor tunidade mística fora doCristianismo. Era necessário tra çar uma linha que se -parasse o antes e o depois, sendo que ninguém que pro -curasse Deus e se elevasse em con templações místicas,podia ser outra coisa senão cristão. No entanto, comomuito bem demonstra o professor Fer nández-Galiano, foiuma atitude interessada, dogmática e sectária, cons -cientemente mentirosa, pois muitas das re gras e formasdesta Ordem nada têm de «cristãs» como veremos. E nelasnem sequer se faz referência ao profeta que deu início àEra de Peixes.

O mais provável é que Fílon, o filósofo judeu ale xan drinotão estudioso de Platão e de Pitágoras, tivesse apren didocom eles, no círculo mais externo ou que tivesse re ferênciasmuito directas de como eram, embora na sua VidaContemplativa se veja claramente que ele não foi iniciado nasabedoria interna, nem nas regras da Ordem. Estes ver -dadeiros filósofos – amantes da sabedoria – são, segundo osensinamentos platónicos, «homens de ouro», quer dizer,

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RUBRICA | Múrmurios da História

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– antes que «médico» – «servidor de um Deus», pois aDeus consagravam as suas vidas e almas, a sua vigília e osseus sonhos, que se tornavam assim de natureza proféticaou férteis, como as visões místicas, de profundos sig -nificados: «Mantêm viva sempre a memória de Deus, sema esquecer nunca, de moda que até nos sonhos a imagemnão é outra senão as da excelência e dos poderes divinos.Verdadeiramente, muitos, ao dormir, proclamam nos seussonhos as verdades da sagrada filosofia.»

Que semelhantes são estas normas de filosofia e vidacom a face externa dos ensinamentos e práticas dos dis -cípulos avançados e contemplativos nas Casas da Vida, oscentros anexos nos Templos Egípcios! E com o exemplo devida do maior taumaturgo da Antiguidade Clássica, Apolóniode Tiana, que criou em Roma uma Escola Teosófica; ou coma pureza das lições do eclético Amónio Saccas, a quem ospróprios Deuses, segundo a tradição, en sinaram os seusmis térios; e do filósofo neoplatónico Plotino.

Verdadeiramente desde a mais remota antiguidade,antes, inclusive, que fossem forjadas a Vénus de Tam Tamou de Berekhar Ram, existe uma Ciência Sagrada, umaFilosofia Natural, que fazendo uso, passo a passo, da razãodivina no homem, quer que este recupere de novo essacondição que fez Platão afirmar que «somos deuses, masesquecemos isso.»

1. Tradução do Dr. Dimás Fernández-Galiano, na monografia que cito maisadiante.

2. A palavra «mosteiro» é usada por Fílon para se referir à habitaçãoconsagrada nas suas casas onde se encerravam «para se iniciarem nosmistérios da vida santa».

3. Ver as provas que o Dr. Dimás Fernández-Galiano apresenta no seuexcelente trabalho «Um mosteiro pitagórico: os terapeutas deAlexandria», que se pode ler na internet e o qual estou a seguir muito deperto neste artigo.

4. O que estamos nós, no século XXI, a fazer com a bio-energia e a terapiamusical senão imitar estes velhos conhecimentos, iniciáticos, que sãopróprios das almas puras? A diferença é que nós, nem somos puros, nemsomos magos, nem possuímos as chaves destes conhecimentos iniciá ti -cos, pelo que estamos, muitas vezes, a brincar com o fogo.

5. De facto, a filosofia neoplatónica relaciona o 7 com a Deusa virgem eguerreira Atena. Para além de ser o número que rege a natureza inteira eos seus processos evolutivos – existem sete dimensões ou planos deconsciência nela – e a sua pureza ser, portanto, a da natureza virgem; estapureza referia-se e era representada por este número porque,geometricamente, com régua e compasso, não se pode inscrever umheptágono numa circunferência. O 7 é também o número virgem, porqueda década é o único que é ao mesmo tempo não engendrado, por ser umnúmero primo, e que não engendra nenhum número desta década.

6. Recordemos que o 50 é o número de anos – revoluções da Terra –necessário para que, segundo ensina a astronomia nas suas cátedras e atribo dos dogones, nos seus ritos iniciáticos, se realize o ciclo interno deSírio (o giro recíproco de Sírio A em torno de Sírio B), lançando, nestaconjunção um impulso de Vida – os cientistas chamariam «raioscósmicos» – a todo o sistema, do qual o Sol forma parte. 50 é também onúmero da Harmonia, pois representa a hipotenusa do triângulo sagradoegípcio 3-4-5, para além de significar a Mente, humana e cósmica, aconsciência, portanto, e Vénus, que segundo a astrologia esotérica é o«gémeo luminoso da Terra» (esta última é o número 4).

7. Segundo o mesmo texto de Fílon no qual fala dos terapeutas.

Fílon diz-nos que se encontram em «muitos lugares domundo», embora seja no Egipto onde abundam, em cada umdos nomos e principalmente em redor de Alexandria. Vivemem recintos isolados, sem sair das suas pequenas ermidasindividuais, com um recinto que é um santuário para as suaspráticas espirituais. O número 7 é para eles sagrado, pois éo número da pureza e da perpétua vir gindade5, por isso, emcada sete dias se reúnem em con gre gação para ouvir osensinamentos dos mais sábios entre eles, para partilhar opão e o sal – o seu único alimento – e para os seu hinos edan ças extáticas em honra da divindades. Para osterapeutas também é sa grado o número 506, o «mais santodos números e o mais im portante da natureza»7 e, por isso,em cada 50 dias e co roando o seu ciclo de sete por sete, rea -lizam uma festa mística em que prolongam as suas ce -rimónias até ao ama nhecer, em felicidade inefável decomunhão mística, dando por finalizada a referida festa comos cânticos de saudação ao sol nascente. Nestas cerimóniase discursos filosóficos, participam tanto eles como elas, poisa di vin dade não faz dis tinção de sexos na sua chamada sa -grada. E é fun damental não esquecer isto, para diferenciá-los das ordens monásticas que se sucederam na IdadeMédia, eles respondem a uma chamada, a um divinoimpulso, não ao cos tume, ao interesse, nem ao desejo dosoutros: «E os que se preparam para este serviço, não se -guindo simplesmente um costume, nem como seguidoresde conselhos de outros, mas levados por uma paixãoamorosa enviada pelo céu, permanecem arrebatados epossuídos como bacantes e coribantes até que alcançam oobjecto ansiado.» Se queremos procurar exemplos his -tóricos a posteriori desta vocação e deste espírito, talvez te -nhamos que esperar pelos dis cípulos de São Francisco deAssis, a sua pobreza e co munhão com a alma da natureza ede todos os seres vivos; ou antes, ainda, pelos cátaros nasua incessante busca de pu rificação.

Para seguir esta senda de felicidade abandonaram to -dos os seus bens, deixando para trás irmãos, filhos, mu -lher, pai, mãe e muitos parentes e amigos. «É tal o seu an -seio de vida bendita e imortal que entendem que a sua vidamor tal já terminou e abandonam as suas propriedades»,re nunciando a todo o contacto com o mundo e à ne ces -sidade de deixar obras materiais ou filhos nos tur bilhõesdo tempo (Vénus Pandemos), para deixar os filhos da Von -tade e da Inteligência Divinas (Vénus Urânia): «Ansiosospor ter como companheira a sabedoria, desdenharam ospra zeres do corpo e não desejam descendência mortal,mas sim esses filhos imortais que somente as almasqueridas de Deus podem dar à luz sem necessidade departeira, porque o Pai semeou nelas os seus raios es pi -rituais permitindo-lhes apreender as ver dades dasabedoria.»

O nome Therapeutés significa, na sua primeira acepção

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HIERÓGLIFOSA LINGUAGEM SAGRADA DO

ANTIGO EGIPTOCristiana Isa Baptista

«Falemos do invisível, falemos das coisas que não podem ser vistasou ouvidas a menos que te afastes do mundo e te unas às estrelas».

Excerto de texto iniciáticoSegundo Período Intermédio.

EGIPTOLOGIA Hieróglifos

*Egiptólogae escritora.

Deus Thot.

sacerdotes e escribas advertem aqueles que aprendemes ta arte para que não a encarem como um co mum mé -todo de escrita: «as imagens são sagradas assim co mo ossons que saem delas através da tua boca, aquele que nãocom preender o que isso significa não deverá falar» – Texto

Na perspectiva do povo do antigo Egiptoto dos os aspectos relacionados com a lin -guagem e escrita possuíam um valor sa -grado. O misterioso sistema de símbolos re -presentados um pouco por toda a parte, aolongo dos vários períodos dinásticos, en cer -ram um significado mais profundo do queaque le que aparentam quando procuramosdes codificá-los. De facto, o termo «hie ró gli -fos» do grego hiero + glyphos en cer ra a cha -ve para o mais profundo segredo des te sis -tema ancestral.

«Medu Netjer» ou as palavras do deusno seu significado original eram dotadas deuma essência muito mais complexa do queum simples sistema de expressão e co mu -nicação. Na verdade, existem algumas re -ferências em textos sobreviventes nos quais

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mil anos. Todo aquele que transpunha a entra da de umtemplo ou admirava um antigo mural podia apenas ima -ginar o que murmuravam os lábios mudos da an tiga ci vi li -zação; até uma descoberta de aparente pouca im por tân ciater revelado a chave que quebraria o silêncio mi le nar.

Durante as incursões francesas no Egipto foi en con -trado um bloco de pedra com 762 Kg, medindo à volta de114 cm de altura, que colocava em evidência uma inscriçãogra vada em três alfabetos distintos: hieroglífico, demóticoe grego. O facto de aquela que viria a ser mundialmentecon hecida como a Pedra de Roseta mencionar um textoalusivo a Ptolomeu V, igualmente escrito em três lin gua -gens diferentes, permitiu que o linguista francês JeanCham polion procedesse à descodificação dos atributos decada hieróglifo utilizando o nome do regente como pontode partida. Após vários anos de pesquisa levada a cabo porinves tigadores ingleses, franceses, alemães e italianos ocaminho para a interpretação das escrituras do AntigoEgip to fora revelado, e os autores destes textos recu pe -raram uma vez mais a sua voz.

O PERCURSO DO ESCRIBA

«Se conheces a leitura e a escrita e és puro nas tuas in -ten ções jamais passarás fome nas terras do grande fa -raó». O escriba ou «sesh» era uma das peças fun da men -tais da sociedade egípcia responsável por todo o tipo deano ta ções: jurídicas, filosóficas, médicas, matemáticas,ad mi nis trativas, religiosas ou puramente ficcionais…

O estatuto social do escriba podia variar de um simplescopis ta até alguém com um elevado cargo político, gover -namental, militar ou re ligio so. De qualquer for ma o co nhe -ci mento re lacionado com a arte da lei tura e da escrita cons -tituía uma porta a ber tapara um mundo de mui -tas possi bilida des.

A educação de umes criba começava aosse te anos de idade numdos três tipos de esco -las dis poníveis no seutem po:

— escolas dos palá -ci os – exclusivamente pa -ra crianças da no bre za.

— escolas dos tem -plos – normalmente aber -tas a uma maior per cen -tagem da co mu nidade,onde os sa cer dotes dotem plo que es colhiamde dicar algum do seu

do reinado de Hatshepsut XVIII dinastia. Segundo as an ti -gas crenças egípcias a linguagem escrita bem como osprin cipais cânones artísticos e estilos arquitectónicos ti -nham outrora sido introduzidos em «Khemet», nome ori -ginal do Egipto, por Djuti ou Thot, nomenclatura pela qualé actualmente conhecido o deus com cabeça de íbis, mes -tre de todo o conhecimento, criador da escrita, literatura,geo metria sagrada e também responsável por todos os en -sinamentos matemáticos, de engenharia, astronomia, as -tro logia, medicina, medição do tempo e magia. A autoriados principais tratados de carácter mágico e ritualístico,co mo o livro dos mortos recaía também sobre este MagoSupre mo, que nos textos mitológicos oferece os seu au xíliomágico aos restantes deuses, sempre que estes so licitama sua sábia intervenção, e presta ainda os seus ser viçosenquanto escriba na sala do julgamento anotando oresultado da pesagem dos corações de todos os defuntosquan do equiparados à pluma de Ma’at, símbolo da recti -dão, harmonia e justiça universal. Na verdade, as dúvidasque ainda persistem quanto à forma como a escrita rapi -damente emergiu na região continuam actualmente a fo -mentar debates e a dividir os especialistas. Este facto estáso bretudo relacionado com a escassez de vestígios so bre -viventes relativamente aos estágios primários deste sin -gular sistema de escrita (com aproximadamente 4500 anos)que atravessou um natural processo de evolução des de oEgípcio Antigo, passando pelo Egípcio Médio tra dicio nal, atéàs formas simplificadas do símbolo como a es crita hie -rática, cujo nome deriva de uma semelhante ex pressãogrega que significa «ao estilo de um sacerdote», sendo estaquase exclusivamente utilizada sobre papiros com o intuitode tornar mais rápida e fácil a anotação de a ssun tos le gis -lativos e administrativos, veio a sofrer ainda alte rações esimplificações que estiveram na base da escri ta demótica,popular durante o século VII A.C. e mais tar de defi ni ti -vamente abandonada em V D.C. quando apenas sete sím -bolos demóticos sobreviviam ainda no no vo alfabeto cop ta,oriundo do período romano quando a deca dência do Egí pcioMédio Tradicional conduziria ao seu abandono.

Durante o quinto século da era cristã, o final do períodode domínio romano no Egipto coincidiu com o desa pare -cimento da representação hieroglífica e após o grande in -cêndio da biblioteca de Alexandria, onde uma extensa per -cen tagem dos papiros foi irremediavelmente perdida, nãoprevaleceu qualquer documento conhecido que pude ssefornecer indicações quanto à descodificação da miste riosalinguagem, facto que abriu caminho ao novo período copta.Nos primórdios do século sétimo a inexistência de fon tesde informação disponíveis não permitia a apren dizagem dosistema hieroglífico pelo que as misteriosas pala vras an -cestrais mergulharam num profundo e aparentemente in -que brável silêncio que viria a prolongar-se por qua se dois

Escriba egípcicio.

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tem po ao ensino, prestavam os seus ensinamentos co moforma de servir a sua comunidade, além das restantesres pon sabilidades ligadas à manutenção do templo e ri -tos diá rios.

Por vezes existia ainda um terceiro tipo de escola, deca rácter privado, onde escribas experientes eram en -carregues de ensinar um grupo reduzido de alunos nosquais se integravam frequentemente raparigas.

Tudo o que um jovem aprendiz necessitava para dar iní -cio ao seu trabalho eram dois godés para tintas – preto ever melho (a primeira era utilizada para escrever os textosenquanto a segunda indicava o início de uma frase, umpará grafo, o resultado de um problema matemático e eraainda utilizada para assinalar seres de carácter maléficonos textos mágico-religiosos) e um ponteiro fino e longo.

No mundo de um escriba profissional, ponteiros e go -dés podiam até ser uma questão de moda; todos possuíamo seu estojo personalizado que podia revelar um estilosim ples e discreto ou valioso e ostensivo.

O popular papiro era na verdade um material dis -pendioso e considerado um desperdício às mãos de umapren diz facto pelo qual este se encontrava confinado àprática so bre pe que nas tabu le tas de pe dra, ba rro, ma dei -ra ou tecido, en quan to o papiro fica va reser vado às mãosdos profissionais.

coro em uníssono os alunos repetiam os ensinamentos emvoz alta ou dedicavam-se à prática da cópia e durante seteanos este seria o método de aprendizagem até os seusestudos serem completados com sucesso. Aos catorzeanos o jovem escriba poderia optar por dar início à suaacti vidade como copista em instituições públicas egovernamentais ou, por outro lado, procurar especializar-se numa disciplina particular tal como a medicina, a mú -sica, a escultura, a arquitectura… Se esta fosse a via es -colhida seria necessária a orientação de um tutor privadoque lhe proporcionaria um aprofundamento dos co -nhecimentos na matéria escolhida, razão pela qual erafrequente os jovens candidatarem-se ao lugar de apren -dizes nos locais onde aspiravam a vir trabalhar no futuro.A face prática era portanto parte integral do processo deaquisição de conhecimento e demoraria também ela seteanos, sendo que aos vinte e um o aprendiz ascendia àposição de profissional. Caso a via iniciática/sacerdotalfosse a opção seguida o complexo período de formaçãopodia ainda prolongar-se.

FUNCIONAMENTO DO SISTEMA HIEROGLÍFICO

Apesar de à primeira vista os hieróglifos poderem serconfundidos com um sistema puramente pictográfico, averdade é que estes não funcionam desse modo. De umaforma geral podem ser agrupados em três categoriasdistintas:

Fonogramas – de acordo com a própria palavra estespossuem sempre uma marca fonética podendo agrupar-seem três tipos: unilíteros (1) (representam apenas umfonema), bilíteros (2) (representam dois fonemas) etrilíteros (3) (representam três fonemas).

1.

X- A j- M ª- F »-W

R -hF - N

2.

K- Aw<- wa B -ms P- mr

y - ir G- mw

Exemplo de texto hieroglífico.

Os rolos contendo os textos de aprendizagem eramfornecidos pelos sacerdotes e o seu conteúdo variava entreo moralismo, a filosofia de vida, a religião, passando pelaexaltação da grandeza do faraó e do seu reino, até àspalavras encorajadoras acerca da beleza da escrita e dafelicidade de ser escriba dirigidas aos jovens alunos. Alémdisso o estudante egípcio recebia também formação emmatemática, astronomia, astrologia, medicina, arte emúsica sob a constante e atenta supervisão do professor.As leituras eram normalmente efectuadas em grupo, num

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dos palácios aos edifícios públicos, os hieróglifos en con -tra vam-se por toda a parte, nada devia ser deixado com umaspecto vazio.

3.

?- anc - F - nfr E- Htp 1 -sbA

Ideogramas – estes símbolos significam aquilo querepresentam, cada um pode significar mais do que umapalavra e apesar de possuírem valor fonético nãorepresentam fonemas, mas sim palavras:

pr - Casap r –bocaV Hr

rostow rd-péB ra@ Determinativos – quando um símbolo é acrescentado a

uma palavra com a intenção de ajudar a determinar osignificado da mesma então estamos perante umdeterminativo, estes não possuíam um valor fonético e opropósito da sua representação era tornar uma palavraainda mais explícita. Aqui fica um exemplo:

snt (que pode ler-se Senet) cujo significado é ir -mã pode também escrever-se com o auxílio do de -terminativo de mulher no fim da palavra que seria lidaexactamente da mesma forma mas o leitor compreenderiatambém que a palavra se referia a alguém do sexofeminino

Não existiam espaços entre palavras ou frases, por tal,era necessário entender onde uma palavra terminava eonde começava a seguinte:

Neste exemplo pode ler-se: «Osíris, Senhor de Abidos,o bom deus abençoado com a vida eterna».

A ESCRITA E A ARTE EM UNÍSSONO

O vazio e a falta de preenchimento eram dois conceitosque os antigos egípcios preferiam não considerar. Tudodeveria ter a sua própria identidade: murais de pedra,colunas, tectos, corredores… dos templos aos túmulos,

A escrita na sua funçãoartística, templo de Hórus, Edfu.

Esta tendência fazia parte da base cultural do Egiptograças à qual podemos ainda hoje apreciar cerâmica,objectos decorativos, e até pequenas estátuas e amuletospreenchidos com feitiços e orações. Em nenhum outrolugar do mundo antigo a escrita era considerada umaexpressão artística numa escala tão grandiosa como nestacivilização. Combinados com diferentes cores e tonalida -des, estes símbolos eram um reflexo da harmonia e doequilíbrio podendo, por esta razão, ser escritos em linhasimaginárias horizontais e verticais, e lidos da esquerda paraa direita ou em sentido contrário -- de acordo com a direc -ção para a qual apontavam as imagens representadas. Noca so de duas figuras centrais se confrontarem, como aimagem de um faraó que efectua ofertas a um determinadodeus, os textos que ilustravam a cena também se con -frontavam. A palavra no Antigo Egipto assumia por isso umadas mais elevadas formas de arte visual.

Ankh, a Chave da Vida.

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A MAGIA NO INTERIOR DO SÍMBOLO

Não era apenas ao som que eram atribuídas pro prie -dades mágicas, também os símbolos possuíam sig -nificados particulares que podiam afectar as pessoas deuma forma positiva ou negativa, dependendo do símbolouti lizado. Acreditava-se que alguns deles tinham o poderde encarnar benefícios tais, que se tornaram popularesamu letos de sorte e protecção como a famosa ankh (cha veda vida) ou o olho de Hórus. De igual forma outros podiamatrair forças negativas e energias funestas razão pe la qualos escribas frequentemente mutilavam estes sím bolos ouescolhiam não os representar integralmente. Pa lavra, artee magia, vários e apenas um, a expressão última de Ma’atna terra – harmonia e sabedoria, o equi líbrio cósmico, achave que abre o portão da eternidade.

«Entra, viajante, e ficarás a saber que avida está apenas a um passo da eternidade,

tu decidirás o tamanho desse passo»

Baixo-relevo, Luxor.

Nota: Para o leitor que deseje aprofundar o conhecimento da língua hie -roglífica egípcia, estão abertas inscrições para cursos e workshopsnos centros da Nova Acrópole em Portugal. Mais informações emwww.nova-acropole.pt e pelo tel. 939 800 855.

Oudjat, o Olho de Hórus.

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Figura de referência em Portugal noâmbito da antropologia da religião e da eso -te rologia e autor de obras como FernandoPessoa e os Mundos Esotéricos e Os JardinsIniciáticos da Quinta da Regaleira, JoséManuel Anes defendeu na conferência«Ennoea, Alquimia, Sebastianismo e V Im -pério», proferida no Espaço D. Dinis, uma di -nâmica de mitos portugueses, centrada nasestruturas antropológicas do imaginário, emestreita relação com a alquimia.

Segundo o autor, a elaboração dos mitosnão é um processo nem um acto gratuito.

Paracelso (1493 - 1541), alquimista e mé -di co que lançou as bases da medicina ex pe -rimental no contexto da sua época, defendia

que a imaginação cria do ra não é o mes mo que a merafantasia. Efec tiva mente, existem dife ren ças. A ima gi naçãocriadora é um acto de elaboração sim bólica e mítica, sendoque a fan tasia é algo desor ganizado, por vezes com algumadi mensão patológica.

Alguns tratados clássicos de Alquimia exal tam, in clu sive,a importância da imaginação criadora. O Rosário dos Filó -sofos, obra de alquimia operativa que surgiu na Idade Médiae no Renascimento, afirma, na pág. 31, que «a Na turezaefec tua a sua operação pouco a pouco. E quero que tu actuesas sim, e so bretudo que a tua imaginação se con duza se gun -do a natureza. E deves ver segundo a na tu reza, graças à qualos corpos são re ge nerados nas entranhas da ter ra. Imagina--o por meio da imaginação verdadeira e não fan tás tica».

As estruturas do imaginário permitem-nos or ga ni zar ecriar mundos superiores ao nosso mundo dos sen tidos. Os

ENNOEA, ALQUIMIA,SEBASTIANISMO E V IMPÉRIO

REPORTAGEM DE CONFERÊNCIA PROFERIDA POR JOSÉ MANUEL ANES

Carla Costa*

Qual o denominador comum entre o tratado Ennoea, a Alquimia,o Sebastianismo e o V Império? A resposta a esta questão foiapresentada numa conferência conduzida por José Manuel Anes, noâmbito do ciclo de palestras «Portugal profundo e esotérico», or ga ni -za do pela editora Ésquilo e pela Nova Acrópole.

CONFERÊNCIA Alquimia e V Império

*Profissional decomunicação

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mitos são, neste contexto, uma realidade da al ma que exis -te em todos os povos, em todas as épocas e, dizem os es -pecialistas do imaginário, que há uma estrutura uni versal.Mircea Eliade fala de uma ontologia do sagrado, sendo queGilbert Durand fala das estruturas antro po ló gicas doimaginário, arquétipos que são símbolos univer sais. Masnão são apenas os fi ló sofos, idealistas e me ta físicos quefalam nessa universalidade do espírito humano e das suascriações. Levi-Strauss, materialista, também a refere.

Neste âmbito, a manifestação de um anseio por umaentidade física ou metafísica é recorrente, justificando-sepela necessidade de algo ou de alguém que restitua e ouresolva os problemas no nosso mundo, permitindo o seuimpulso espiritual. Neste contexto, essa entidade, trariaain da o céu à terra, o que constitui uma acção dupla: a es -piritualização deste mundo, por um lado, e a cor po ri za çãoou a mumificação do espírito, por outro.

Em Portugal, tal está assente his to ri ca mente num se -bas tianismo alimentado pela espera do rei D. Se bas tião,pou co tempo depois do seu desaparecimento na batalha deAlcácer-Quibir, em 1578. Devido à au sên ciade descendentes no período em que nas ceu,o que aus pi ciava um futuro incerto para o rei -no, e por ser uma es perança que pu des secon duzir à restauração da antiga glória, D. Se -bastião foi intitulado de «O Desejado».

Após a sua morte, e apesar da suapopularidade ter diminuido devido à perda deindependência nacional associada ao seu de -clínio, D. Sebastião tornou-se uma espéciede salvador da pátria que viria resgatar o paíse o seu povo. A morte física da pátria levou opovo a mi tificar. Gonçalo Anes, mais co nhe -cido por Bandarra -- cujas trovas influen cia -ram o pensamento sebastianista e mes siâ -nico de autores como Padre António Vieira eFer nando Pessoa --, juntamente com S. Joãode Al co ba ça, Frei Bernardo de Brito, entreou tros, foram então a verdadeira escola demitificação.

Estas circunstâncias provam que, apesardos mitos poderem estar inscritos na matrizespiritual de um po vo, há acontecimentosque os desencadeiam em de ter minadosmomentos his tóricos. Os mitos são ca pa zesde mobilizar uma nação e não somentenuma di men são alienante. Os mitos são fac -tores de resistência nacional, cultural e política. Há, destemo do, uma his tória do mito e há, também, claramente, asua dialéctica com os mo men tos históricos.

Facto é que décadas depois da Restauração, ocor ridaem 1640, várias profecias prometiam um império mun dial

para Portugal, a restituição da sua glória passada, o V Im -pé rio. Pa ra o Padre António Vieira, o V Im pério re pre sen -tava a cons tituição de um império católico e português. Sé -cu los mais tarde, e segundo Agostinho da Silva, estamos jápe ran te um império diferente, o Im pério do Espírito Santo.Di zia ele: «restaurar a criança em nós, e em nós a co roar -mos im pe ra dor, eis aí o pri meiro passo para a formação doim pério».

A glória de que se falava a partir de finais do século XVIseria então restítuida ao nosso país na pessoa do En co ber -to, representada por D. Sebastião, concepção mítica queencontra influências de alguns mitos de origem judaico--cris tã, como o Messianismo e o mito Arturiano.

O Encoberto é, posto isto, mais do que um rei; é, no fimde contas, um projecto alquímico, uma vez que, e co mo jáfoi referido, o programa da alquimia é a es pi ri tua lização damatéria e a corpori fi cação do espírito.

É o Ennoea que dá o mote para esta li ga ção entre aalquimia e o sebas tianismo, par ti cular mente numa pas sa -

gem célebre e já muitoutilizada por vá riosau to res, refe rin do quea alquimia é o se -bastianismo labo ra to -rial e que os se bas -tianistas são os fi ló -sofos her mé ticos anível nacional. No En -noea «estão dis cre -tamente com paradosos sebastianistas comos herméticos, por -que tanto a dúvidatem a existência dolá pis (a Pedra Filo so -fal) como a do sr. ReiD. Sebastião, este anoen cobertos.» Em su -ma, é difícil fazer aPe dra Filosofal e édifícil encontrar o ReiD. Sebastião.

O Ennoea foi es -crito em 1730 e pu bli -cado em 1732 (parte I)e 1733 (parte II), por

An selmo Caetano de Abreu Gusmão e Cas telo Branco,médico por tuguês formado em Coimbra. Este tratado, queé um longo diálogo, en tre Eno dato (o próprio autor) eEnódio (um seu dis cípulo), foi pu blicado com as licenças doSanto Ofício e com as licenças do Paço, devido à

Fac-símile do início do Diálogo Terceiro do Ennoae

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intervenção durante o processo do padre Rafael Bluteau,verdadeiro afic cio na do em alquimia.

Em Portugal, pouco se tem escrito sobre alquimia, sen -do que há quem considere que ela praticamente não existiu.Uma dessa pessoas é Dalila Pereira da Costa que defende,no livro A Nau e o Graal, que, no nosso país, não hou ve,verdadeiramente, alqui mia de labo ra tório, mas sim umaalquimia nacional, a al qui miaque foram os Des co bri men tos.

No entanto, e segundo An -tónio Amorim da Costa no tra -balho online O Rei Alphonso, «arealidade é, todavia, dife ren te.Se, por via de regra, os al qui -mistas mais afamados, de Ar -naldo de Vilanova (1240-1311)ou Nicolau Flamel (1330-1417)a Bernardo-o-Trevisano (1406-1490) ou Paracelso (1493-1541), foram grandes via jantesà procura do grande segredoda Pedra Filosofal, teremos deadmitir que Por tu gal tenha sidotam bém país de se jado e vi -sitado por alguns deles que porcá se terão de mo rado (e, por -ventura, fixado), dei xan do atrásde si alguns discípulos, fer vo -ro sos de po sitários de seusensinamentos, de cujas prá ti -cas se podem encontrar vestígios, aqui e ali».

Facto é que encontramos várias referências da al qui -mia em Portugal. Assim, e como refere António Amo rim daCosta, em 1557, o Padre António de Gouveia, natural dosAçores, foi preso, na capital do país, acusado, entre outroscrimes, de práticas alquímicas. Cinco anos depois, oembaixador de Portugal em Ma drid, D. Francisco Perei ra,remete uma carta ao ainda menor Rei D. Sebastião, re co -mendando, pelas suas habilidades, o cristão-novo DiogoMen des à corte portuguesa, crente na possibilidade da

trans mutação dos metais. Na mesma época, Frei VicenteNo gueira detinha uma biblioteca onde constavam preciosostra tados alquímicos, com obras de Hermes Tris me gisto,Raimundo Lúlio, Basílio Valentino, Paracelso, H. Cor neliusAgrippa, o Lexicon Alchemiae e o Artis Auriferae, que aInquisição acabou por apreender e destruir.

Já no século XVII, surgiam cinco tratados sobre a PedraFilosofal, impressos por Thomas Har per, emLon dres. Desta colectânea de tra tados, os doispri mei ros são atribuídos a Afonso, Rei dePortugal. No en tanto, a escassez de informaçãoacaba por semear a dúvida quanto à autoria dostratados. Terão tais escritos sido re digidos por si,ou por um alquimista que, optando por manter oanonimato através da utilização de umpseudónimo, visava alcançar maior visi bilidade eaceitação da sua obra? Tal modalidade eracomum. No entanto, e ainda que per ma neçamosno campo especulativo, não podemos negar oscontactos inter nacionais mantidos por Afonso Vcom figuras históricas e instituições in diciadas deconotações com a Alquimia, caso dos Duques deBorgonha, Filipe, o Bom, e Carlos, o Temerário,os quais foram os primeiros Grão--mestres daOrdem do Tosão de Ouro.

Neste período, a prática química em Portugal,ao serviço da Medicina e da Farmácia, bastanteinfluen ciada por L. Fioravanti, conhece um novofulgor, com João Bravo Chamisso a considerar aalquimia como «parte integrante da cirurgia», e

com Duarte M. Ar raes. No Mosteiro de Odivelas, por estaaltura, D. Feliciana de Milam, segundo o testemunho deDiogo Manoel Ayres de Azevedo, redigia um longo discursosobre a exis tência da Pedra Filosofal.

No século XVIII, o espírito científico começa a dis -seminar-se pela Europa e a alquimia começa a retirar-seda cena pública. É neste período que surge, em Por tugal,Ennoea, tratado que se insere numa larga tradição al -química de índole teórica e prática e que, infelizmente, nãoé conhecido na Europa.

As estruturas do imaginário permitem-nos organizar e criar mundos superioresao nosso mundo dos sentidos. Os mitos são, neste contexto, uma realidade da alma

que existe em todos os povos, em todas as épocas e, dizem os especialistas doimaginário, que há uma estrutura universal. Mircea Eliade fala de uma ontologia

do sagrado, sendo que Gilbert Durand fala das estruturas antropológicas doimaginário, arquétipos que são símbolos universais.

Desenho de Lima de Freitas«Pessoa e o Caminho da Serpente».

CONFERÊNCIA | Alquimia e V Império

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A alquimia, tradição antiga que combina elementos dequí mica, física, astrologia, arte, metalurgia, medicina, mis ti -cis mo e religião, não existe se não possuir uma lin gua gemsimbólica. O discurso enig mático, povoado por ale gorias esímbolos, revela-se nu ma exu berância quecaracteriza a verdadeira alqui mia tradi cio -nal. Vejamos o casa mento hermé ti co doleão com a águia, pre sente no Diálogo III doEnnoea, pp. 39-40, que poderá ser uma ale -goria às Bodas Alqui mícas entre o enxofre eo mercúrio, duas matérias primas do pro -cesso alquí mico:

«Tomai a Virgem com asas, lavada,limpa, e prenha da Seminal, e espiritualma téria do primeiro contacto masculino, ficando ilesa aglória da sua virgindade, com as faces tintas de roxo;ajuntai-a com o segundo sujeito mas culino sem suspeita,nem perigo de adultério; e, por fim, parirá um venerávelfruto de ambos os sexos, do qual sairá uma imortalprosápia de poderosíssimos Reis (…). Nestes ajuntamentosde que faço menção, tudo é puro, sem mancha de ví cio: nãose per de a vir gin dade, nem se comete adul tério. Juntai poisa Águia com o Leão, e es con dei-os no seu claustro diá fa no,com a por ta muito bem tapada, para que não saia por ela asua respiração, ou lhe entre o ar estranho. A Águia aco me -tendo o Leão, o despedeçará e o comerá. E logo ador -mecerá com um profundo, e dilatado sono, in chan do-lhetanto o estômago, que feita hidrópica, se con verterá comadmirável metamorfose num Corvo mui to negro; esteperdendo paulatinamente as penas, prin cipiará a voar, e

com o seu vôo se remontará tanto, que sa cudirá sobre simesmo água das núvens, até que fi cando molhado dispa deboa vontade as asas, e des cen do por falta delas, seconverta em um bran quíssimo Cisne».

Ainda no Ennoea,pp. 81-83, a obra al -química é resumida noTestamento Her mé ti -co, poesia escrita emcastelhano, que apre -senta tanto carac -terísticas sim bó li cascomo operativas:

«Si en Mercúrio no alterado,Dissuelves Oro nativo, El Rebis has conseguido,Y el fermento deseado: Ponle en vaso sigilado,En fogo lento a coser, Advertiendo, que ha de serTan suave el movimiento, Que solo el entendimiento,Pueda llegarlo a entender.

(…)

En dos alas solamente,Consiste toda la Obra, Y lo de más todo sobra,Porque és engaño patente: Toma un cuerpo permanente,Y aun te custe disuelo, Abate el Águia al suelo,Y no la dexes bolar; Porque el intento es hallar,Modo de unir Tierra y Cielo.»

O mercúrio dos filósofos, a pedra filosofal queos al quimistas tentavam produzir em laboratórionum pro cesso alquímico, chamado por eles de «AGrande Obra», equivale, deste modo, à espera doRei que desapareceu, funcionando também comouma metáfora pa ra um trabalho espiritual. Postoisto, o Encoberto -- per sonagem física e metafísicaque assume, no caso português, o rosto de D. Se -bas tião -- pode ser con siderado um al qui mista --cu ja «Grande Obra» seria unir a terra ao céu, es -piritualizando a primeira e cor po ri zan do a segunda--, responsável pela condução de uma na ção, rumoà edi fi ca ção de um V Im pé rio.

O Encoberto é, posto isto, mais do queum rei; é, no fim de contas, um projectoalquímico, uma vez que, e como já foireferido, o programa da alquimia é a

espiritualização da matéria e acorporificação do espírito.

Bodas alquímicas.(Donum Dei, séc. XVII)

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HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS DEMARIA MADALENA

ENTREVISTA A HELENA BARBAS

Carla Costa*

Maria Madalena é uma personagem vestida de sombras que povoa o ima -ginário colectivo. Mas quem é, de facto, esta mulher? Helena Barbas, docentena F.C.S.H da Universidade Nova de Lisboa, ensaísta, tradutora e crí ticaliterária que lhe dedicou a sua tese de doutoramento, fala, na pri meira pessoaà NA na sequência de uma conferência que proferiu no Es pa ço D. Dinis, dopercurso desta figura fascinante ao longo de vários mo men tos históricos.

ENTREVISTA Helena Barbas

*Profissional decomunicação

pla e à Provença, de Marselha a Vezelay e aos restantespaíses. O seu nome, enquanto signo quase vazio, vai sendopreenchido ao longo do diferentes espaços e tempos his -tórico-culturais.

Existem muitas histórias sobre esta personagem?

Não há uma história pronta e acabada de MariaMadalena. As novas descobertas que surgiram nos últimostempos, são sobretudo mais um capítulo para estashistórias. Só no século XIV registavam-se 3 corpos destaSanta na Europa. Por exemplo, há uma tradição que dizque ela morreu e ficou em Jerusalém, há uma segundaque diz que ela foi para Éfeso, e ainda uma terceira que atransporta de Éfeso para França: uma para Marselha, paraSan Martinans, e outra para a Borgonha, para Vezelay.Existia então uma especulação em torno dos seus restosmortais que, para além de estarem na origem de umasérie de problemas, estão na base da construção dediversas lendas. Ela é ainda confundida com outras per -sonagens, situação que provoca várias polémicas no sé -

Quem é Maria Madalena?

Ela é a pecadora convertida em santaque segue Cristo até casa de Simão, lheunge os pés e os limpa com os seus cabelos.Ela é ainda a primeira testemunha da Res -surreição. Mas, para falarmos de MariaMadalena, é necessário recorrer às variadasversões da sua história que contribuirampara a formação de uma imagem-tipo. Estatem a origem judaica do Novo Testamento,alimenta-se a partir das querelas es po le -tadas pela posse francesa das relíquias dasan ta e divulga-se pela particular devoçãoda Ordem Dominicana. Sem nunca sair de -claradamente do campo do religioso, outrosinteresses de carácter social emergem,alguns tão pouco espirituais como a simplespreocupação económica de mosteiros emdeclínio; ultrapassa ainda várias fronteiras,de África à Europa, de Éfeso a Cons tan tino -

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sa das possuídas por cada um dos mosteiros são ver da -deiras. De referir ainda a estratégia comum nos his to -riadores medievais de datar acontecimentos para uns anosantes visando conceder-lhes veracidade, realidade am pla -mente estuda por Victor Saxer. Isto tem, evi den temente,

uma importância em termos económicos ere li giosos uma vez que a história dasrelíquias vai suscitar peregrinações,construindo-se toda uma sé rie de comércioem torno desta situação, num contexto emque os mos tei ros estão em declínio.

A primeira referência a Maria Madalena, eque sistematicamente serve de base aoestudo da personagem, consta nosEvangelhos, mas quando é aparece aprimeira versão lendária digna de nota dasua vida?

Embora Madalena sirva de tema acomentários da maioria dos Padres daIgreja, protagonize sermões e poemas decarácter sagrado e profano desde o séculoVII - utilizados, muitas vezes e de algumaforma, como propaganda para defender alocalização das relíquias, ou no norte ou nosul de França -, e apareça em ciclos depeças teatrais, a primeira versão digna denota da sua vida surge só pelo séc. IX, coma obra Vida de Santa Maria Madalena e suairmã Santa Marta, divulgada em latim,atribuída ao Pseudo-Rábano Mauro, tidocomo o primeiro e mais seguido biógrafo deMadalena.

Como surge a divulgação das histórias deMadalena tal qual nos chegam àactualidade?

Esta passa pelas vidas dos santos quecomeçam a ser escritas em vernáculo porvolta do século XIII/XIV. Esta escrita emvernáculo tem por objectivo converter opovo, cujos índices de analfabestimo eramelevados. Como consequência, os livros emlatim começam a ser traduzidos para asvárias línguas vernáculas. Nessa altura,

elabora-se a denominada Bíblia dos Povos, uma bíblia sóde imagens que vão ser aproveitadas para fazer outrasrepresentações um pouco mais eruditas nas igrejas com ointuito de explicar a doutrina às pessoas.

culo XVI e que, já no nosso século, leva à publicação demais de 200 livros que tentam decidir se Madalena é uma,duas ou três pessoas diferentes nos Evangelhos. Nestecontexto, Maria Madalena constrói-se como personagem –e como mito – a partir de uma pluralidade de narrativas,que recorrem aos mais diversos e variados media.

Cristo e Madalena, oficina de Martin Schongauer, (1479-1480), Altar de igreja dominicana.Museu d’Unterlinden, Colmar.

Como já referiu, estas duas possíveis localizações em território francês das relíquias de Maria Madalenasuscitaram uma série de disputas...

De facto. Durante a idade média, os monges mobilizam-se para roubar as relíquias e movem os seus esforços juntodo poder para que, pelo menos, estes atestem que as os -

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Pode falar-nos, genericamente, do conteúdo de Le gen -da Aurea?

A obra determina a existência de um santo patrono porcada dia do calendário, sendo a sua vida construída obe -decendo a uma grelha retórica que é, de alguma forma,aplicada a todos. Voragine começa por explicar o nome do

santo o qual marca, por um lado, a sua origemprofana e, ao mesmo tempo, a sua passagem àorigem divina. O autor revela ainda a juventudede todos os santos. Esta é muitas vezes umavida de pecado na juventude que cede lugar aum evento que os leva, em alguns casos, a re -converterem-se e a reconduzirem a sua vidapara o espaço da oração e da pregação.

Qual o teor da informação presente na LegendaAurea sobre Maria Madalena?

A narrativa da vida de Santa Maria Madalena,que constitui o capítulo XCVI da Legenda Aurea,aparece divida em 5 unidades e é, das mais de293 vidas, uma das quarenta figuras femininasaí representadas. Na introdução consta uma eti -mologia sagrada e espiritual do nome. No casode Maria Madalena, o autor diz que o seu pri -meiro nome significa mar amargo, iluminadorae iluminada, categorias que correspondem àsopções da sua vida: a penitência, a con -templação e a glória eterna. Voragine, continuacom a sequência narrativa onde consta a versãodo seu comportamento dissoluto após receber aherança dos pais. Segue-se o encontro comJesus em casa de Simão, a cena de com aslágrimas lavar os pés ao Messias, de os enxugarcom os cabelos e ungir com um perfume, entreoutras enumerações que evidenciam a preo cu -pação de afirmar a unidade da sua figura comoa mulher de quem Cristo expulsou os demónios,a pecadora que se arrepende, e a irmã de Mariade Betânia – assunto que vai desencadear umapolémica considerável nos séculos XVI e XVII.Aparece também referida como uma dasmirróforas. Esta intenção reiteira-se logo deseguida numa espécie de síntese dos váriosepisódios da sua aparição no Novo Testamento.A narrativa continua numa terceira parte, ondese registam variantes recuperadas de an te -riores ciclos sobre a Madalena, seja como sim -ples contaminação das lendas mais próximas

incluídas na própria colectânea de Voragine. A quarta partecor responde ao episódio da vida contemplativa de Ma da le -

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Há alguma manifestação artística significativa quemarque a cristalização de ideias e a construção de umaimagem-tipo de Maria Madalena?

Legenda Aurea, uma compilação das vidas e milagresdos Santos, escrita em 1264 por Jacopo da Voragine. Oautor escreveu as primeiras 182 vidas, que duplicam poucodepois da sua morte (1298),por mãos diversas durantequase três séculos. O volumede referência passa a ser aedição de 1283. Nele seencontram ainda resquíciospré-evangélicos, bíblicos epagãos, marcas de heresiasantigas e motivações con -temporâneas. A ele irãorecorrer poetas e pintores aolongo dos séculos. Contra elese irão manifestar autori -dades históricas e religiosas.De referir que no período emque o autor escreve – ou copia– textos sobre Maria Madalenaacontece uma enorme polé -mica agravada pelo rebentarda rivalidade entre mosteirosem torno das relíquias destaheroína lendária. Entre 1265--67, os santos restos são tidosco mo transladados, ou rou -bados, de S. Maximin, na Pro -vença, e trazidos para Vezelayna Borgonha, com a coni -vência real de Luís IX. Apesardas dificuldades de comu -nicação, o caso terá dado al -gum escândalo, pela hipótesede existência de três corposda Santa.

Legenda Aurea conheceuo mes mo sucesso em Por -tu gal?

Sem dúvida. Há umdocumento de 1513, de no -minado «Flos Sancto rum»,que é um resumo do texto me -dieval, que se preocupa emcon densar as informações principais, e que sis te ma ti ca -men te as retém pela mesma ordem.

A Castelã, Madalena, Carlo Crivelli (1475).Rijksmuseum, Amesterdão.

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ela é ou não prostituta. A dimensão do dilema é destecalibre.

Neste âmbito, surgiram tentativas para desviar esteprimeiro encontro e testemunho para outraspersonagens evangélicas?

Temos a tentativa de a associar a S. Tomé ou, ainda, anossa senhora. No século XVI, depois do Concílio deTrento, há um esforço enorme para desviar esteaparecimento de Cristo a nossa senhora, porque, esegundo Santo Inácio de Loyola, Jesus era tão bom filhoque só poderia ter aparecido a sua mãe. Há então umarasura e censura, geral e colectiva, pelo menos emPortugal e em Espanha, sobre o aparecimento de Jesus aMadalena.

Este é um problema interessante....

Sim, porque é preciso três testemunhas para que umfacto seja consagrado relevante ou possa ser legalmenteaceite. É por isso que as mirróforas são sempre 3 ou mais.Cristo não pode aparecer à mãe, porque esta é uma pessoada família e não serve como testemunha. A representaçãode Madalena enquanto mirrófora está assim relacionadacom o facto de ser legalmente preciso alguém a atestarque houve ressurreição. Verdade é que, tanto nosEvangelhos Apócrifos como Canónicos, a pessoa queaparece como testemunha da ressurreição é MariaMadalena.

Por que razão Maria Madalena é apelidada de Apóstolados Apóstolos?

Por ter anunciado aos apóstolos que Cristo tinharessuscitado. É ela que traz a boa nova aos outrosapóstolos. Na versão portuguesa de Lustra Torum, estasurge como a papisa dos papas. No entanto, quando elatransmite a S. Pedro que Cristo ressuscitou os apóstolosnão acreditam nela. Há aqui uma série de elementos quevão ser posteriormente aproveitados tanto pela tradiçãognóstica como pela tradição apócrifa para dar umadimensão diferente à figura de Madalena. Encontramosisso registado no Evangelho de Maria Madalena.

Qual a importância do Evangelho de Maria Madalena?

Maria Madalena é a única mulher a quem é atribuídoum Evangelho. Este é um Evangelho gnóstico conhecidoatravés de um manuscrito copta do séc. V e conservado emBerlim. Das suas 19 páginas originais apenas noschegaram 6. De acordo com os especialistas, o textodivide-se em duas partes combinadas artificialmente: uma

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na, ao retirar-se para um local ermo, situado na Provença,em Saint-Baume. Chega-se, então, à quinta e última partedo texto de Voragine, que é constituída por um relatório demilagres feitos por Maria Madalena – um percurso postmor tem natural a todo o santo e que dá continuidade auma vida de excepção.

Existe, então, uma contaminação da história da vida deMaria Madalena com as lendas de outras santas?

Seguramente. Há um aspecto retórico da vida dos san -tos que tem uma implicação no processo de criação len -dária, mais especificamente na criação de laços de famíliaentre os santos que se encontram próximos uns dosoutros. Por outro lado, quando se está a escrever a vidados santos e não se tem muita informação, a tendência é irbuscá-la à vida de outros. Temos uma comunhão dossantos assim com uma comunhão da vida dos santos.Deste modo, há episódios que não são, efectivamente, deMa ria Madalena.

Pode referir algumas dessas contaminações?

Como resultado do processo referido anteriormente,identifica-se a contaminação com a lenda da Santa MariaEgipcíaca, prostituta eremita que se encontra a prestarpenitência no deserto; a lenda da Santa Catarina que éuma pregadora eloquente que convence e vence todos osgrandes oradores humanos; a lenda de Santa Margarida ea irmã de Madalena, Santa Marta, que com uma cruzconseguem expulsar um dragão; a lenda de Santa Doroteiaque subia todos os dias aos céus para tomar as suasrefeições e a lenda de Santa Plácida, prostituta que temum encontro com o Bispo, situação que evidencia anecessidade de uma testemunha para provar que ela ésanta e esteve sozinha no deserto.

Mencionou anteriormente as mirróforas. Quem sãoestas mulheres e qual o seu papel?

As mirróforas são as mulheres que vão visitar o túmulode Cristo e que o encontram vazio. É este papel daMadalena junto do túmulo que lhe vai dar toda a dimensãoque tem hoje e suscitar toda a preocupação, católica e nãocatólica, em torno da figura, porque, segundo S. Paulo,sem ressurreição não há cristianismo e a testemunha queexiste da ressurreição é Maria Madalena. O problema éque a tradição transmite que Maria Madalena é umaprostituta. Portanto, a ressurreição tem como testemunhauma mulher e uma prostituta, que são duas condiçõesmais do que negativas em termos sociais. Isto leva, porexemplo, em 1627, a faculdade de teologia da Sorbonne afechar durante seis meses, para os teólogos discutirem se

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Todas estas informaçõesque agora aparecem comopro fundamente es canda losasjá tinham sido uti liza das naidade média de todas asmaneiras possí veis e ima -ginárias o que de mons tra aexistência de uma estruturade arte para es tas narra ti vas.

De regresso a Legenda Aurea. Porque razão esta obra se tornou tão im -portante?

Este texto tornou-se um best-sellereuropeu medieval, traduzido para todasas línguas vernáculas da Europa, comduas funções: ser utilizado como ma -

ENTREVISTA | Helena Barbas

nual e catálogo de eventos das vidas dos santos para ospregadores. De facto, esta obra foi de tal importância queserviu de inspiração para as representações pictóricas epara a escrita. Surgem assim múltiplas interpretações deuma história que tem os seus primeiros registos em textosreligiosos, se liberta do espaço hagiográfico e invade ocampo não só da literatura e pintura, mas de outras artes.

Podemos concluir que as figurações da personagem,tal como apareceram na literatura ou nas artesplásticas, sofrem influências desta obra?

Com certeza. Nota, no entanto, que tanto no campo daes crita sagrada, como no da profana, assim como na pin -tura, qualquer que seja o país, constata-se que estas são

primeira que narra o diálogo de Cristo com Maria, tendopor tema a noção de pecado; uma segunda em que Pedroenfrenta Maria Madalena, e os discípulos debatem, entresi, o valor do discurso de revelação daquela e a pos si bi li -dade de aceitarem tais ensinamentos ministrados por umamulher. Ao tornar-se protagonista de uma ex pe riên cia derevelação, Madalena adquire o direito natural de a provo -car nos outros -- de pregar e evangelizar. É evidente que, apartir do momento que aparece uma figura feminina comesta dimensão nos evangelhos gnósticos, os textos têm deser olhados de outro modo.

Mas é só neste Evangelho que Maria Madalena aparecedeclaradamente como discípula predilecta de Cristo?

Tanto no Evangelho de Tomé como noEvangelho de Filipe, Maria Madalenaaparece como tal: por vezes com pa nheirade Jesus ou a interlocutora cujo enten -dimento está à altura do diálogo queestabelece com o Salvador, sendo, porisso, digna de revelação. Esta sua relaçãocom o Salvador passa ainda, em Filipe,pe lo contacto físico do beijo. Aquele é umbeijo simbólico, gesto que transmite erecebe o «Logos». Também nestes textosé tal a proximidade entre Maria Madalenae Cristo que, a agressi vidade dos res -tantes apóstolos, em par ticular o ciúme ea misoginia de Pedro, é de sen cadeada.

Cristo em casa de Marta e Maria, Tintoretto (1570). Alte Pinakothek, Munique.

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Êxtase de Madalena – Mulher Selvagem, gravura europeia do século XV.

«O problema é que a tradiçãotransmite que Maria Madalena éuma prostituta. Portanto, a res -sur reição tem como testemunhauma mulher e uma prostituta, quesão duas condições mais do quene gativas em termos sociais. Istoleva, por exemplo, em 1627, a fa -culdade de teologia da Sorbonne afechar durante seis meses, para osteólogos discutirem se a ela é ounão prostituta.»

verdade histórica que inspira Reforma e Contra-Reforma.

Qual a representação iconográfica de Maria Madalenaque considera mais apaixonante?

A Madalena orante de Donatello é uma imagem es -pantosa. Esta estátua, com um metro e 80 de altura emmadeira de pinho, é impressionante porque é a re pre sen -tação da paixão fria. Olhando-se para esta estátua dá paraperceber que a Maria Madalena não interessa abso lu ta -mente nada se as pessoas lhe rezam ou não, se foi com -panheira de Cristo ou não. Está numa dimensão filosóficaque ultrapassa todas estas pequenas histórias que têmsido feitas em torno dela. De referir que esta é a grande

representação de Madalena – enquantopenitente – que vai inspirar todo oRenascimento.

Qual a sua opinião sobre a possível ligaçãoentre Maria Madalena e Jesus Cristo?

Maria Madalena aparece como noiva devárias das personagens evangélicas: de S. JoãoBaptista, que desiste do seu casamento com elapor causa de Jesus. Ela, despeitada e indignada,acaba por se tornar prostituta. Há outra versãoque é ela quem abandona S. João Baptista paraseguir Jesus e que são eles os noivos das Bodasde Canãn (serve de base à intriga do livro deKazantzakis, e ao filme nele inspirado - AÚltima Tentação de Cristo, de Martin Scorcese -e reaparece em O Evangelho segundo Jesus

uma elaboração que resulta do aglomerar de elementosdíspares através de séculos. Todavia, este processo deaglutinação desencadeia-se de modo irregular e desigual,apresentando momentos de maior intensidade a par deoutros que revelam uma menor preocupação ou quaseesquecimento da figura. Os períodos de maior interessecoincidem, naturalmente, com as etapas de cristalizaçãodo tema. E estas ocasiões de grande inquietude podem serdatadas, uma vez que se atestam e vão a par com asquerelas religiosas que surgem em torno da personagem,caso, por exemplo, do longo esforço de destruição, oureconstituição da personagem que começa com a grandequerela em torno da identidade evangélica de MariaMadalena que rebenta em 1516, alimentada pelo desejo de

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Cristo, de José Saramago). Existe também outra versãoque diz que ela é noiva de Judas. Dada esta profusão deversões, não é possível apresentar uma res pos taconclusiva.

Qual o papel do Concílio de Trento na definição de MariaMadalena?

Os decretos saídos do Concílio de Trento esforçam-separa corrigir a sua representação física – seja textual oupictórica - os seus comportamentos e ‘psicologia’. Efec -tivamente, o Concílio de Trento impõe regras muito es tritasàs representações dedicadas a Santa Maria Madalena quedeixa de poder ser representada nua e de corpo inteiro. Elanão pode ser sedutora e todas as implicações eróticaspassam a ser proibidas ao público. No entanto, encon tramosum boom de representações eró ticas da Madalena nassacristias e nos oratórios dos padres. Madalena tem aindade ser morena para cumprir com a verosimilhança de ser deorigem semita. Um dos outros aspectos muito en graçados

que advêm do Concíliode Tren to é o facto deCris to não poder terninguém re pre sen -tado à sua frente. Demaneira que, quan doMa dalena lhe lava ospés com as lágrimas eos seca com os ca -belos, tem de estar àsua recta guar da.

Podemos afirmar queMaria Madalena ‘res -sus citou’ no século XX?

A descoberta deum evangelho com oseu nome por entre osmanuscritos de NagHammadi con ferem-lhe di gni da de. Em ter -mos in ter nacionais,re criam-se sentidos,úteis ao tempo e à his -tória. Madalena pas saa preencher os ca nô -nes femi nistas (é in vo -cada por Angela Car -ter), ou da teologia

femi nina (torna-se pa tro na da primeira mulher ordenadabis po pela Igreja Angli ca na). Continua a ins pirar pintores,

ines perados como Francis Bacon. E são legião osromances que prota goniza. Por cá, Em 1991, JoséSaramago escreve Evangelho de Jesus Cristo e Paula Regopinta uma representação de Madalena – à qual volta em2003 -, ambos inspirados no Flos Sanctorum de 1513.Ambos recuperaram as estratégias de reprodução e deuso daquele lendário como manual para pintura e manualpara os artistas. Temos ainda a pintura de 1997, deBarahona Possolo em que Madalena surge como eremita,de cabelo curto.

Vai publicar «Maria Madalena — História e Mito». Comosurgiu esta possibilidade?

Tudo aconteceu a partir de um convite do Paulo Loução,da Ésquilo, para realizar um livro de divulgação sobreMaria Madalena baseado na minha tese de doutoramento.

Qual o objectivo deste livro?

Desmontar as novas mitologias que surgem. Todasestas informações que agora aparecem como pro -fundamente escandalosas já tinham sido utilizadas naidade média de todas as maneiras possíveis e imagináriaso que demonstra a existência de uma estrutura de artepara estas narrativas.

A Penitente, Maria Madalena, Donatello(1445-1455). Museu del Duomo, Florença.

«É ela que traz a boa nova aos outrosapóstolos. Na versão portuguesa deLustra To rum, esta surge como a pa -pisa dos papas. No entanto, quando elatrans mite a S. Pedro que Cristo res -suscitou os apóstolos não acreditamnela. Há aqui uma série de elementosque vão ser posteriormente aprovei -tados tanto pela tradição gnóstica co -mo pela tra dição apócrifa para daruma dimensão diferente à figura deMada lena. En con tramos isso regis tadono Evangelho de Maria Ma da lena.»

ENTREVISTA | Helena Barbas

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Tolkien, autor d’O Senhor dos Anéis, que chegou a es cre -ver um ensaio sobre o poema – Beowulf: The Monsters andthe Critics (Londres, 1958).

Antes deste ensaio o épico não era tomado em grandeconsideração pelos estudiosos, visto como o fruto de umaima ginação primitiva e infantil. Mas a análise de Tolkienveio mudar perspectiva. Tolkien argumentou que o poemadevia ser tomado em linha de conta não devido ao seucarácter histórico, mas sim ao seu conteúdo artístico,sendo que os elementos sobrenaturais (o monstro Gren -del, a sua mãe e o dragão) deveriam ser encarados comoarqué tipos antigos que tinham profundas raízes no In -consciente Colectivo do ser humano, ou seja, eram mitos.

O termo mito significa fala ou narrativa em grego,devendo ser compreendido como a «palavra verdadeira»,já que transmite as verdades arquetípicas aos homens nu -ma linguagem simples, embora velada, necessitando decha ves para a sua interpretação. Assim sendo, Beowulftrans porta em si um conjunto de símbolos que procuravamfa cultar ao ser humano um conjunto de conhecimentosque são um legado da humanidade.

Tolkien faz uma analogia muito interessante re -lativamente ao autor do poema. Ele compara-o com umho mem que herdou um campo cheio de pedras antigas eque as usa para construir uma torre. Os amigos deste des -troem-na porque reconhecem que as pedras pertenciam a

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Aproveitando o facto de se encontrar nassalas de cinema o filme de Robert Zemeckis,iremos abordar neste artigo alguns aspectosrelacionados com esta história.

Beowulf é um poema épico heróico, es -crito em inglês arcaico, de autoria des -conhecida. Acredita-se que tenha sido es -crito entre os séculos VIII e XI, existindo so -mente um manuscrito datado do séc. XI.

Este mito é um dos mais importantes dalite ratura inglesa tendo sido mesmo elevadoao estatuto de épico nacional. Influencioumui tos escritores tais como o próprio

BEOWULF - A SABEDORIAMÍTICA QUE VEM DO NORTE

Cleto Saldanha*

*Investigador e formador do

Programa Kairós.

«Tolkien argumentou que o poema devia ser tomado em linha de conta não devido ao seucarácter histórico, mas sim ao seu conteúdo artístico, sendo que os elementos sobrenaturais(o monstro Grendel, a sua mãe e o dragão) deveriam ser encarados como arquétipos antigosque tinham profundas raízes no Inconsciente Colectivo do ser humano, ou seja, eram mitos.

MITO Beowulf

Manuscrito medieval deBeowulf

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uma construção anterior, e detêm-se a olhar as gravaçõese inscrições que nelas se encontravam. O que estaspessoas não perceberam é que do cimo da torre destruídao homem foi capaz de olhar o mar. O mito é uma forma deper petuar verdades que vêm do fundo desse imenso«oceano» que é o Tempo, sendo uma forma de evitar odes gaste que este provoca.

Analisemos agora a história do poema e alguns factosin teressantes.

Beowulf é um guerreiro de Geatland (uma terraidentificada com o Sul da actual Suécia) que parte da suate rra, com 14 guerreiros, para enfrentar um monstro cha -mado Grendel que estava a matar e a aterrorizar as terrasdo rei Hrothgar (situadas na actual Dinamarca). Beowulfen frenta o monstro, à noite, dentro de uma casa onde elee os companheiros tinham ficado a pernoitar. Tendo en fei -ti çado as armas dos guerreiros e, deste modo, tendo-setor nado imune a elas, Grendel é derrotado pelo heróiquan do este consegue, com as suas próprias mãos, ar -rancar um dos braços do monstro, obrigando-o a retirar-se para os pântanos e morrer.

Neste confronto podemos constatar a luta do Homemcon tra o seu lado animal. O sítio escuro representaria o in -terior do ser humano, obscuro, sombrio, onde moram osseus medos, angústias, ódios e instintos básicos. Todases tas características encontram-se integradas na figurade Grendel que é totalmente dominado por estes aspectosinferiores. No entanto, o Homem tem a capacidade de oscombater e, com coragem e determinação, submetê-los àsua Vontade, não se deixando dominar por eles. É isso quesim boliza a derrota do monstro.

Um segundo confronto ocorre quando a mãe deGrendel aparece para vingar a morte do filho. Ela conseguema tar um dos melhores guerreiros do rei e é perseguidapor Beowulf e mais alguns homens até uma caverna si -tuada por baixo de um lago. Aí o herói embrenha-se so -zinho nas águas para poder enfrentar a ameaça, que con -segue ultrapassar quando corta a cabeça da oponente.

Aqui iremos observar o confronto com uma parte subtildo Homem: a sua Mente. Mas antes teremos que dar umapequena explicação. Várias civilizações antigas con cebiam oser humano como estando formado por sete ní veis: oprimeiro deles era a parte física, a seguinte a vital ouenergética, aparecendo depois, sucessivamente, as par tesemocional, mental concreta, mental pura, intuitiva eespiritual. Os instintos, ódios, medos e paixões radicam nopla no emocional. Acima deste encontra-se a mente con -creta, que é aquela que o Homem utiliza no quotidiano, écomo um computador que possui e utiliza para pensar, cal -cular, estruturar, etc. É uma ferramenta útil, quando bemutilizada, no entanto, é através dela que o ser humano tem apercepção do mundo em seu redor e de si mesmo, criando

muitas vezes uma imagem falsa de ambas as coi sas. Podemos observar que a mãe de Grendel é encontrada

numa caverna, debaixo de um lago. A água é o local ondepodemos ver uma imagem reflectida, mas se o Homemnão tiver a capacidade de entrar nela toma essa imagemcomo real. Se mergulhar constata que uma outrarealidade se en contra por baixo da superfície.

Do mesmo modo, segundo a filosofia da Índiaan tiga, o mundo onde o ser humano vive nãopa s sa de uma superfície que reflecte a ver -dadeira Realidade, aquela que é trans cen den -te, imutável e que se encontra mais além dama téria. Porém, o Homem só poderá aceder aessa realidade se conseguir libertar-se doslimi tes impostos pela mente concreta e dual.Após a libertação dos condicionalismos o Ho -mem acede aos seus elementos superiores(Men te Pura, Intuição e Espírito) aproximando-se da sua verdadeira natureza divina.

Por último, e vários anos depois das duas lutas acima re -feridas, numa altura em que Beowulf governava a sua te rra,um último confronto tem lugar devido à ameaça de umdragão. O dragão ou serpente alada, foi um dos sím bolos daSabedoria no Oriente. É curioso constatar que es ta lutaacontece 50 anos depois das anteriores, ou seja, o Ho memmesmo depois de se libertar da mente não alcan ça logo aSabedoria. A conquista desse aspecto implica, en tre outrascoisas, a capacidade de superar a morte, en tendendo-acomo um aspecto da Vida-Una que percorre to do o Universo.Aquilo que denominamos como «morte», se gundo astradições antigas, não era mais do que a pa ssagem para umoutro tipo de vida num plano diferente, num plano maissubtil onde o corpo físico não era ne ce ssário. Com pre en -den do isto o Homem não teria que temer a morte, pois elanão era o fim, mas o começo de uma nova e tapa, que olevaria a passar por mais experiências que o fa riam evoluir.Beowulf enfrenta o dragão e consegue de r ro tá-lo, mastambém é ferido mortalmente, acabando por fa lecer. Nestemundo material o seu papel tinha sido cum prido.

Estes são alguns dos elementos que nos podem ajudara encontrar nos símbolos deste riquíssimo poema a sabe -doria que encerra, ou seja, a penetrar na profundidade dosar quétipos universais que veicula e, deste modo, termos acapa cidade de os unir e construir uma torre de onde po -ssamos contemplar esse imenso mar que é o passado hu -mano.

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No âmbito das actividades organizadas pela Nova Acrópolede Portugal em 2007, até Outubro, destacamos tam bém aexcelente conferência sobre «Bernardo de Cla ra val e aIndependência de Portugal» proferida por Pedro Go mesBarbosa, coordenador de História Medieval na Fa cul dadede Letras da UL, as visitas à Quinta da Regaleira guia daspor José Manuel Anes, membro do ISER/UNL, e as saí dascul turais a diversos monumentos nacionais orien tadas porin vestigadores tais como José Carlos Fer nán dez, JoséAntunes, José Ramos e Paulo Alexandre Lou ção.Merece também relevo a adesão crescente dos jovens aoKAIRÓS, programa de voluntariado e formação gratuitapa ra jovens (vide www.nova-acropole.pt/kairos.htm). Ne -s te âm bito organizou-se um jantar de apoio ao programaKai rós que contou com excelentes intervenções culturaisde Hele na Barbas, José Carlos Fernández e Paulo Ale -xan dre Loução.Aproveitamos a oportunidade para agradecer às res pec tivasentidades e amigos o contributo que deram à nossa acçãocultural e filosófica, nomeadamente a Maria Máxi ma, queproferiu uma brilhante palestra sobre o nosso que rido D.Dinis, a José de Freitas, pela sua mestria nas au las de ChiKung, à Câmara Municipal de Odivelas pelo apoio àExposição «D. Dinis – O Rei-Civilizador», ao Insti tu toPortuguês da Juventude pelo apoio prestado ao Pro gra maKairós, e aos já citados investigadores de refe rên cia, HelenaBarbas, José Manuel Anes e Pedro Gomes Barbosa.

Por determinação da UNESCO, ater cei ra quinta-feira do mês deNovem bro é consagrada ao DiaMundial da Filo sofia. Neste ano de2007, no dia 15 de Novembro, a No va Acrópole, como Es -co la de Filosofia à Maneira Clá s sica, que conta já com 50anos de actividade, associou-se a es tas comemorações anível mun dial estabelecendo em mui tos casos parceriasins titucionais com as comissões naci onais da UNESCO eou tras entidades oficiais.Em Portugal, organizámos eventos públicos nos cincocen tros localizados em Braga, Porto, Aveiro, Coimbra eLis boa. Destacamos o banquete filosófico realizado naNo va Acrópole do Porto e o Teatro levado a efeito no Espa -ço D. Dinis, em Lisboa.Ins pirados no sympósion platónico, alunos e membros daNo va Acrópole da Cidade Invicta organizaram um jantar-ter túlia onde estiveram presentes grandes génios da filo -so fia tais como Pitágoras, Hipárquia, Epicteto, Plotino, Hi -pá tia, Floria, Avicena, Hildegarda e Kant. Decorreu comgran de animação e espírito filosófico de convívio.Em Lisboa, na cidade miticamente fundada por Ulisses,membros da No va Acrópole e voluntários do ProgramaKairós apre sen taram um teatro no Espaço D. Dinis onde aMusa da His tóri a, Clio, abriu as portas do tempo permitindoque Con fúcio, Platão, Séneca, Hipátia, Hil degarda vonBingen e Mai mónides transmitissem a sua mensagematemporal aos humanos do século XXI. Verdadeirosamadores (aqueles que amam, que têm entusiasmo no quefazem), os protagonistas desta peça teatral tiveram o gran -de mé ri to de nos conseguir fazer «viajar» até à atmosferamen tal dos grandes filósofos evocados.

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

EVENTO Nova Acrópole

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Lisboa, António Costa, no dia 14/09/2007, na recepção emque o município lisboeta distinguiu a figura deste PrémioNobel da Paz. Nesse momento pudemos sentir de pertotoda a força que insufla nas suas palavras.

Como reitera o nosso amigo Paulo Borges é importanteconstarmos que nos tempos históricos conhecidos, oprimeiro ocidental que chegou à montanhas do Tibete foium português, o Padre António de Andrade, jesuíta, que,em 1624, escrevia numa das suas cartas: «Os Lambas sãoseus sacerdotes (…); he gente de muito bom viuer, não secasão, ocupãose a maior parte do dia em rezar; e pellomenos o fazem pellas manhãas (…). (…) parece gente muitomansa, e até nos seculares se ouuirá raramente huapalavra mal soante; têm casas de oração, como as nossasigrejas, mas muito limpas.»

Fazemos votos para que esta memória histórica sejaconfirmada no futuro por uma comunicação profundaen tre as raízes espirituais do Oriente e do Ocidente, eque a ro da da fortuna traga melhores dias ao pacífico po -vo tibe ta no.

Tivemos a oportunidade de seguir a visita que SuaSantidade o Dalai Lama efectuou a Portugal no passadomês de Setembro.

Desde o início, este líder religioso e político do Tibeteexpressou claramente a sua atitude de tolerância religiosae cultural proclamando a necessidade do seu humanodesenvolver os poderes do coração generoso a partir dasua fonte interior. «O dinheiro e os bens materiais não sãosuficientes para conseguirmos um estado de felicidade,esta é algo que podemos encontrar no interior de nóspróprios», afirmou na conferência de imprensa.

Dedicou três a comentar o clássico do Budismo Maha -yana, A Via do Bodhisattva de Shantideva, obra já pu bli ca -da em português pela editora Ésquilo na colecção «Sa be -doria do Oriente» que conta com a direcção editorial deJosé Carlos Fernández e o apoio do Centro de EstudosOrien tais da Nova Acrópole.

Ao revés desta atitude de Paz e incentivo à harmoniaestiveram certas entidades políticas portuguesas «es que -cidas» do tremendo genocídio cultural que o Tibete sofre edo apoio internacional que recebemos para que fosse pos -sível a independência de Timor. Na verdade, são milhõesde tibetanos que sofreram e sofrem diariamente a opres -são de um regime que não compreende uma riquíssimacul tura milenar cujo legado pertence a toda a humanidade.

«Eu sou asiático e você é europeu, mas podemo-nosrelacionar positivamente, somos SSeres Humanos!», afir -ma va o Dalai Lama ao Presidente da Câmara Municipal de

DALAI LAMA EM PORTUGAL

REPORTAGEM Dalai Lama Lisboa 2007

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Esotérico-Astrológico da Última Ceia e a Mensagem Vivado Renascimento» de diversos autores com destaque paraos artigos de Jorge Angel Livraga, Fundador da Nova Acró -pole. Posteriormente trouxemos a público outra sua obra«OO Despertar do Homem Interior em Pleno Século XXI».

Concomitantemente, estabelecemos uma parceria coma editora Ésquilo, a qual passou a publicar estudos de in -ves tigadores da Nova Acrópole na colecção «AAkrópolis»,cria da para o efeito, na que já foram publicadas as obras«GGrécia Mágica – O Fogo Secreto dos Gregos», que incluiestudos de José Carlos Fernández e Paulo Alexandre Lou -ção, e o «EEgipto Iniciático» da autoria de Fernand Schwarz,cujo lançamento decorreu com muito êxito na Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa com a presença do autor.

Desde há um ano a esta parte, as Edições Nova Acró -pole tomaram novo fôlego lançando duas novas co lec ções,a «Pirâmide Invisível» e a «Mnemósine».

Na colecção «PPirâmide Invisível» foi publicado o in -teressante ensaio filosófico «AA Sabedoria de Sócrates» daautoria de Fernand Schwarz, Director da Nova Acrópole emFrança e destacado antropólogo e egiptólogo. Da lavra deDelia Steinberg Guzmán, Directora Inter na cional da NovaAcrópole, e do Director Nacional, José Carlos Fernández,deu-se à estampa uma obra sobre «OOs Templá rios, o Ca mi -nho de Santiago e outros Mistérios». Se gui damente pu -blicou-se «AAtlântida – Mito ou Rea lida de», de vários au to -res, organizada por José Carlos Fernández.

Na colecção «MMnemósine», publicámos «OO Simbolismo

EDIÇÕES Nova Acrópole

NOVIDADES EDITORIAIS

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A Nova Acrópole, com o apoio institucional do InstitutoPor tuguês da Juventude (Projecto de Voluntariado 2415) ea colaboração da editora Ésquilo, está a lançar o pro gramaKairós, um projecto de voluntariado cultural que visa co la -bo rar na formação extra-escolar dos jovens dos 18 aos 30anos através de um curso gratuito de 32 sessões de 2 ho -ras que inclui as seguintes vertentes:

— Filosofia comparada do Oriente e do Ocidente— Como falar bem em público— Exercícios práticos de memória, atenção,

concentração e auto-domínio— História viva: visitas a lugares mágicos de Portugal— Relação do Ser Humano com a Natureza

E tem os seguintes objectivos:

— Ampliar a cultura geral dos jovens e da sua capacidade de selecção e tratamento dainformação.

— Promover a educação cívica e a consciência dacidadania.

— Contribuir para uma melhor integração dos jovensna vida activa e profissional na sociedade.

— Promover a consciencialização da necessidade dadefesa do património cultural e natural de Portugal.

As inscrições para o Curso de Formação Gratuito noâmbito do Programa Kairós estão abertas nos nossoscentros de Lisboa, Porto, Braga, Coimbra e Aveiro.

Mais in formações possíveis através do nosso sitewww.nova-acropole.pt e do telefone 939 800 855.

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GRATUITA PARA JOVENS

FORMAÇÃO PARA JOVENS Nova Acrópole

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www.nova-acropole.pt/kairos.htm

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