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- GUIA DE LEITUR A -PA R A O P R O F E S S O R
Adelina Gelatina
Audrey CallejaIlustrações Audrey CallejaTradução Sérgio MarinhoNível leitor 10 - 11 anos (Fluente)Ciclo escolar 5º - 6º anos56 páginas
o livro A obra conta a história da se-
paração dos pais da pequena Adelina,
descrevendo de maneira poética como
ela supera e compreende essa ruptura da
ordem familiar. Após uma incursão nas
próprias emoções e angústia, a menina
emerge transformada e amadurecida,
resgatando a confiança nos laços afe-
tivos que a ligam a seus pais e a suas
meias-irmãs.
O leitor adentra o universo de Adelina
por meio de um sonho, que é representado
por desenhos de traços rápidos, como se
fossem esboços de criança, introduzin-
do o tema da imaginação infantil como
a autora Audrey Calleja é uma premiada artista francesa que ilustra livros com textos próprios ou de outros autores. É o caso de 27 premières (2006), Contes du bout des doigts (2008) e Adelina Gelatina, este o único título dela lançado no Brasil. Nascida em 1982 na cidade de Mâcon, mudou-se para Lyon em 2010, depois de se formar pela faculdade de Belas-Artes e apresentar Adelina Gelatina como trabalho de conclusão de curso, em 2008. Quando publicado um ano mais tarde, o livro foi indicado para o prêmio de álbum mais inovador do ano no Salão do Livro e da Imprensa Juvenil de Montreuil. Entre as principais características do trabalho de Calleja estão o equilíbrio entre texto e imagens, que não se repetem nem se anulam ao longo da narrativa, e a preocupação com o projeto gráfico, que, segundo a autora, reflete a maneira como ela trabalha nas cadernetas em que esboça suas ideias, pois assim “pode imaginar melhor como será o livro quando virarmos suas páginas”.1 Para saber mais sobre a artista e seu trabalho, acesse: www.audreycalleja.com (em francês).
1 CALLEJA, Audrey. “Audrey Calleja: auteur illustratrice”. L’Oeil dans sa poche, n. 13.
Disponível em: <www.loeildanssapoche.com/AUDREY-CALLEJA>. Acesso em: 22 abr. 2015.
TEMAS Família / Separação / Fantasia / Superação
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uma “língua” distinta da que falam os adultos. As imagens são
uma combinação de figuras singelas, delicadas, como uma nu-
venzinha e um pequeno avião, a outras de cunho surrealista,
como mulheres com cabeça de flor e animais superdimensiona-
dos (p. 6). Nessa mesma página, quando o dia começa e Adelina
desperta, outro estilo de ilustração é empregado: de traços mais
retos e seguros, os desenhos narram o cotidiano da protagonista
e de sua família.
Aqui e ali, surgem os primeiros sinais de tensão. O pai de
Adelina está ausente e essa falta já não é bem-vista pela mãe,
que, aparentando cansaço e infelicidade, conclui mais tarde,
com amargor: “Acho que me casei com um fantasma!” (p. 23).
A visão materna com relação ao pai é oposta à de Adelina e
suas meias-irmãs, que o veem como um herói capaz de derro-
tar bandidos e espantar insetos. Esse choque de perspectivas
fica claro não só no texto, mas principalmente nas imagens:
quando são as filhas a mencioná-lo, o pai é representado com
uma capa vermelha, o que remete a super-heróis e príncipes
encantados de contos de fadas; quando é a mãe quem fala dele,
as ilustrações mostram uma figura excessivamente pequena,
de cabeça baixa, com um rosto sem expressão.
Depois que o pai se muda de casa, levando consigo as duas
meias-irmãs de Adelina, entra na história um personagem
inusitado: um gato branco de patas pretas. A menina o ganha
de presente da mãe, que busca alegrá-la diante das perdas
recentes, e o batiza de Cléber, que, de início, não difere de
outros bichos de estimação. No entanto, a imagem do gato se
modifica conforme Adelina se vê sozinha com suas emoções
e mergulha a fundo no próprio mundo, como se estivesse
momentaneamente se retirando do centro dos acontecimentos
e se voltando para dentro de si mesma. Aos poucos, Cléber
se antropomorfiza e passa a usar roupas, calçar sapatos, falar,
andar ereto sobre duas patas.
antropomorfismo
É um recurso narrativo bastante comum na literatura infantil, especialmente nos livros para leitores mais novos. Trata-se de dotar animais, plantas ou objetos de características humanas, como nas fábulas, gênero que se define pela transmissão de mensagens moralizantes às crianças por meio de personagens animais. É o caso das histórias da lebre que aposta corrida com o jabuti e do lobo que pede água à ovelha: apostar corrida e fazer um pedido verbalmente são ações próprias dos seres humanos, mas protagonizadas, nas fábulas, pelos animais. As fábulas são um gênero textual muito utilizado pelas escolas e também pelas famílias para refletir sobre temas como egoísmo, desobediência, capacidade de dividir os pertences com os outros e assim por diante.
No entanto, não é apenas nas fábulas que animais, plantas ou objetos inanimados ganham forma e comportamento humano. Em toda a literatura infantil é possível encontrar personagens antropomórficos: uma espiga de milho que se torna um sábio conselheiro (Visconde de Sabugosa, em Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato), um boneco de lata que se revela um importante companheiro de viagem (Homem de Lata, em O mágico de Oz, de L. Frank Baum), um galo que é o melhor amigo de uma menina que sonha em ser escritora (o galo Rei, em A bolsa amarela, de Lygia Bojunga) etc.
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OBRA EM CONTEXTO
j o g o d e p r o p o r ç õ e s
Cléber não é um personagem fundamental em Adelina Ge-
latina apenas por ser meio gato, meio gente. Ele também é meio
criança, meio adulto; é quem segura a mão de Adelina, que foi
“jogada no mundo adulto” (p. 32) contra sua vontade, e traduz
alguns dos mistérios que se apresentam a ela. Ao mesmo tempo
que entende o que a menina está vivendo (como se também
fosse criança), garante que, ao final da busca, ela encontrará as
respostas que procura (como só um adulto poderia garantir).
Por exemplo, quando Adelina perde uma das botas da mãe,
que calçou ao mexer nas coisas dela e que, metaforicamente,
é o símbolo de seu esforço para caminhar sobre o pedregoso
território adulto, Cléber lhe diz: “Vamos encontrá-la. Até lá,
caminhar será complicado; você vai mancar um pouco” (p. 39).
Cléber aparece antropomorfizado pela primeira vez na
página 36, logo após a tentativa frustrada de Adelina de falar
com o pai. O gato surge em primeiro plano, agigantado, e a
menina, ao contrário, minúscula. Eles passam, então, a cami-
nhar juntos por cenas variadas, que aglutinam elementos de
realidade e de fantasia.
O jogo de proporções entre Adelina e Cléber é a marca vi-
sual dos sentimentos de incompreensão e solidão da pequena
protagonista, obrigada a amadurecer da noite para o dia. Da
mesma forma, a retomada de proporção a partir da página 50
marca o retorno de Adelina, agora transformada, a sua família.
Um pouquinho antes, na página 49, o gato Cléber reassu-
me a forma original, depois de colocar Adelina na cama: é o
sinal de que a menina já não precisa mais de um guia em seu
mundo. Ela encontrou o caminho; consegue compreender que
suas meias-irmãs, embora morando em outra casa, continuam
a ser suas irmãs por parte de pai e que seu pai não deixou de
sê-lo, ainda que não more mais com sua mãe.
Acredita-se que a primazia de persona-gens antropomórficos nas histórias infantis se deva à facilidade da criança em se identificar com animais ou seres que claramente não existem na experiência imediata. Assim, a linguagem da brincadeira, do jogo não é interrompida pela lógica adulta, em que as contradições e as impossibilidades são afastadas, despreza-das em favor de um contorno rígido das emoções. Para a criança, pode ser difícil ultrapassar esse muro de lógicas e sentidos, palavras e definições. Ela os acessa mais facilmente pelo portal da fantasia, da brincadeira e, assim, tem a oportunidade de dar vazão aos próprios sentimentos e nomeá-los.
guias famosos da literatura
A literatura ocidental é farta de exemplos de personagens que, como Cléber, con-duzem os heróis por jornadas perigosas. É o caso de Virgílio, de A divina comédia, obra-prima do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), escrita em três partes — Inferno, Purgatório e Paraíso — e finalizada no ano de sua morte. Além de Virgílio, poeta romano que viveu entre 70 a.C. e 19 a.C., admirado por Dante, há também outro guia nessa consagrada obra em versos: Beatriz, a mulher amada que o autor jamais desposou. Os três livros de A divina comédia se estruturam em torno da busca de Dante por Beatriz. Onde estará sua alma? O poeta parte por uma longa jornada através dos três destinos possíveis para as almas mortas, segundo a tradição cristã. Ele começa pelo Inferno; Beatriz não está lá. Em seguida, vai ao Purgatório e lá a encontra, porém a amada, alma supremamente boa e pura, logo ascende ao Paraíso, e é por esse território que conduzirá Dante.
Na literatura infantojuvenil, um dos muitos exemplos de personagens guias é o gato sorridente de Alice no País das Maravilhas. Ele aparece e desaparece, como uma lâmpada que se alterna entre iluminar os caminhos da heroína pelo aparentemente ilógico e nonsense País das Maravilhas e deixá-la sozinha, mas de posse de informações sobre o funcionamento daquele estranho território, que permitirão a ela tomar decisões importantes.
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f i na l f e l i z
A jornada de Adelina é bem-sucedida, e esse talvez seja
um dos grandes ganhos do trabalho com o livro em sala de
aula: encorajar os alunos que se veem em situações familiares
semelhantes a enfrentar o momento de crise e superá-lo.
A obra, contudo, vai além, chamando a atenção de todos
para o autoconhecimento e para os temas mais amplos ligados
à família contemporânea, entre os quais as novas configurações
familiares, que têm sido discutidas no âmbito sociopolítico do
país. Esse pode ser o foco, por exemplo, de boas conversas sobre
as famílias mosaico (formadas por filhos de outros casamentos,
como a de Adelina), cada vez mais presentes na sociedade, so-
bre a adoção de crianças por casais do mesmo sexo ou, ainda,
sobre o polêmico tema do abandono afetivo.
Outro grande personagem guia da litera-tura infantil é, na verdade, bem pequeno. Trata-se do Grilo Falante, conselheiro e acompanhante de Pinóquio ao longo de toda a sua jornada de amadurecimento e humanização. É ele quem dá conselhos, orienta e relembra o boneco dos combi-nados feitos com Gepeto, o carpinteiro amoroso que esculpe Pinóquio e vê nele o filho que não teve.
Em Adelina Gelatina, o gato Cléber é o guia que vai garantir à heroína as informações e o apoio para que ela vença os desafios e se mantenha íntegra até o final da jornada.
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NA SALA DE AULA
1 Como se trata de um livro em que texto e ilustrações são
inseparáveis e igualmente responsáveis por contar a história, o
trabalho com leitura de imagens é imprescindível, sobretudo
apontando aspectos representativos dos desenhos, alguns dos
quais já explorados no texto sobre o livro. Comece a leitura
de imagens pelo reconhecimento dos aspectos mais visíveis,
por exemplo: quais são as cores, que elementos nas ilustrações
podem remeter a outros gêneros (como histórias em quadri-
nhos, cartazes de propaganda e assim por diante). Também é
interessante analisar os diferentes tipos de letra que aparecem
nas ilustrações e que textos eles enunciam (fala em balões, texto
narrativo, carimbos etc.). Por que a autora teria usado fontes
distintas para compor as páginas e mesmo as ilustrações? Se
possível, deixe que os alunos explorem o exemplar individual-
mente ou em duplas, para que possam fazer esse levantamento
prévio da materialidade do livro e, em seguida, discutir com os
colegas o que descobriram.
2 No momento seguinte a essa exploração inicial, vale a pena
compartilhar com a turma a descrição que a autora faz de uma
das ilustrações. Sem indicar em que página ela está (p. 30-1), leia
o trecho a seguir para os alunos e peça que a localizem. Uma vez
identificada, sugira que encontrem todos os elementos apon-
tados pela autora, como a sequência de desenhos que antecede
o aconchego de Adelina no abraço da mãe. Esse testemunho
da autora sobre o livro é um importante exemplo de como
se podem ler imagens e quais aspectos é possível enxergar em
um livro ilustrado, servindo como modelo para que os alunos
escrevam sobre o que veem ou produzem.
Em Adelina Gelatina, eu quis retratar a história de uma família contem-
porânea, uma família reorganizada. O livro se desenvolve pelo olhar de
Adelina, a caçula de uma família que se recompôs, se decompôs, uma
família cuja existência está sendo reacomodada. O que me interessa é o
sentimento, a emoção que um desenho pode transmitir. Para provocar
uma sensação de conforto absoluto, como na cena em que Adelina
se aconchega no abraço da mãe, preencho duas páginas inteiras com
apenas uma ilustração e nenhum texto. E a coloco na sequência de
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páginas cheias de imagens desproporcionais, confusas e repletas de
texto, como se os sentimentos estivessem todos misturados.2
3 Ainda com base na observação proposta no exercício anterior,
explore com os alunos a noção de proporcionalidade, que, em
matemática, é compreendida como o estabelecimento de uma
relação entre duas variantes. É o que acontece entre Adelina
e Cléber. Nas primeiras imagens, o gato não chega a ter nem
metade do tamanho da menina, ao passo que, da página 36
em diante, Cléber se torna mais de três vezes maior que Ade-
lina. Essa é uma importante chave interpretativa do livro a ser
explorada com os alunos. Peça que estabeleçam os índices de
proporcionalidade entre os personagens ao longo da história
para identificar os momentos em que essa proporção parece ser
invertida e que, em seguida, relacionem essa inversão aos temas
tratados no livro, como a sensação de Adelina de estar sozinha
ou perdida “no mundo dos adultos”.
4 A passagem do tempo é representada nos vários relógios que
aparecem na história. Proponha que os alunos tentem ler as
horas marcadas nas páginas 7, 12 e 16. Com base nessa leitura,
sugira que montem linhas do tempo em que a narrativa seja
recontada por meio de marcadores simples, registrando apenas
acontecimentos importantes.
5 A presença-ausência do pai é o motivo da separação. Discuta
com os alunos: como essa característica fica clara nas imagens?
Espera-se que eles consigam perceber que a ausência do pai é
representada principalmente pela falta de traços no rosto.
6 As páginas 8 e 9 retratam um conflito entre Adelina e suas
meias-irmãs. O que motivou a briga? A ideia é que os alunos
problematizem o fato de que a protagonista “não se parece com
ninguém” e que foi “achada na esquina” (p. 9). Esse conflito
revela que Adelina e as duas meninas são parentes apenas por
parte de pai, o que se confirma pela imagem da página 26 (o
pai sobre dois troncos de árvore: as irmãs ao lado de um deles,
Adelina do outro). Será que, ao dizerem que Adelina não se
parece com ninguém, as meias-irmãs não querem falar que
Adelina não se parece com elas? Esse pode ser o mote para uma
2 CALLEJA, Audrey. “Audrey Calleja: auteur illustratrice”. Ver nota anterior.
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conversa sobre famílias mosaico (ou recompostas, reconsti -
tuídas) e meios-irmãos. É importante mostrar aos alunos que a
protagonista resolve esse conflito no final do livro ao concluir:
“Ainda somos uma família” (p. 52).
7 Peça aos alunos que, com base na árvore genealógica da pá-
gina 26, cada aluno construa a sua, incluindo, quando for o
caso, os parentes que não têm laços consanguíneos, mas que
são membros de sua família, como meios-irmãos, um tio (ou
tia) que se casou com uma irmã (ou irmão) de um de seus pais
e assim por diante.
8 Adelina Gelatina (em francês: Adelle mortadelle) ganhou uma
bela exposição na França, cujas imagens podem ser vistas em:
www.audreycalleja.com/index.php?/adele-mortadell/exposition
Proponha então aos alunos que experimentem fazer um ce-
nário sobre a obra, em colaboração com a disciplina de Artes,
tendo como pano de fundo as relações familiares. A ideia é que
coloquem em prática o que discutiram acerca de dimensões e
escala. Eles também podem representar a família de Adelina
com bonecos e depois encenar a história, com outros desdo-
bramentos. Aproveite essa atividade para exercitar com a turma
a releitura de imagens.
elaboração do guia Beatriz Antunes (filósofa pela Unicamp, autora do
material didático Cosmogolé e professora de recuperação em Língua
Portuguesa na rede estadual de ensino de São Paulo). edição Graziela R. S.
Costa Pinto. preparação Marcia Menin. revisão Carla Mello Moreira.