Adeus a Filosofia Cioram

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54 BltE.VIÁRlO DE DI!COMI'OSIÇÀO suas entregas pusessem em perigo o equilíbrio bes!ial do mundo ... Foram felizes em meio a uma paisagem? - lamentarão em imincn· (es desgostos; estiveram orgu lhosos de seus projetos e di! seus so- nhos'? logo. como de uma utopia, corrigidos por sofri- mentos demasiado positivos. Assim, há sacrificados que pagam a inconsciência do:c- outros, que expiam não somente sua própri1:1 feliddadç mus também o de desconhl.lcidos. O equilíbrio se reslabdece uestu maneira; a pro- porção das nlegrias c das penas tot•na-se harmoniosa. Se um priudpio universal decretou que ao grupo das vitimas. andarás ao longo de teus dias pisoteando· o de para!so que escondias dentro dé ti. e o pouco fmpeto que se revdavo em tt::us olhat·es c em teus sonhos se sujar& ante u impmezu do tempo, du mátéria c dos homens. Como pedestnl terús um mulad<lr e tribuna um aparelho dt: tortura. S6 serás digno de. uma glória leprosa e de umu coroa de baba. Tentar andar ao lado desses a quem tudo é devido, para quem todos os caminhos são livres? Mos o pó e a pr6pri11 cinza se erguerão para barrar-te as portas do tempo e as saídas do sonho. Seja qual ror a direção para onde te encaminhes, teus passos se atolarão, tuas vozes clamarão os hinos da lama e, sobre tua cabeça inclinada até o coração, onde só habita n pie- dade por ti mesmo, passará apenas o hálito dos bem-aventurados, joguetes bendiros de uma ironia sem nome. e tão pouco culpados como tu mesmo. ADEUS À FILOSOFIA Mastei-mc da rllosoria no momento em que lle tornou impossível para mim descobr-ir em Kanl alguma frnquez;u humana, ulgum acento verdadeira em Kant c em todos os filósofos. Comparada 11 música. à místicn e à poesiA, a alivldade rilosófica provém de uma seiva diminuída e de uma profundidade suspciw, que guardum rrc:.tígio!i somente para os tímidos e os Ubios. Aliás, a filosofia - pessoal, refúgio nas idéias anêmicas - é o recurso de C!':.N'EAl..OGIA DO FANATISMO 55 os que se esquivam u exuberância comtptora da vida. Qu-nse todos os rilósofos terminaram l1em: é o argumento supremo umu·u o filosofia. O fim do próprio Sócrutes não tem nnda de lrá- fllO: é um l1lill-elltendido, o rim ôc um pedagogo - e se Nielzsche foi como poctu e visiomirio: expiou seus êxtases, não llll> raciocínios. Não se pode eludir a existência com explicações, se pode npmtú la. amá-la ou odiá-la, adorá-lu ou ten\ê·la, nessa alterhância dl· fcliciuadc e de horror que exprime o l'itmo mesmo do ser, suus su:ts dissonâncias, suas veemências amargas ou alegres. Quem não está exposto, por surpresa ou por necessidade, n uma d'-'r rotu irrefutável. quem não ergue então a!. mãos em pt<ece para lll gd deixá-las cair ainda mais vazias que us respostas da filosofia? lllrlamos que a sua missão nos proteger enquanto a inadvertência da sorte nos deixa caminhar aquém da desordem, e nos abandonar qunndo somos obrigados a mergulhar nela. E como poderia l:ier dlftm:nte, quando se quão pouco dos sofrimentos ua humanidade PIISSóu para a sua filosofia. O excrdclo filosófico não é fecundo; t: upcnas se é filósofo impuncmcnLc: um oficio I!.Cm destino que enche úe pensamentos volumosos as horas m:utrus c dcsocupauas, us horas rcfrutitrias ao Antigo Tesrarnento. a Bach 11 Shakespcarc. E esses pensamentos, por acuso, se moL.:riulli:aram uma só página equivalente a umu exclamação de !6. a um terror de Macbeth ou à altura de uma Cantata? O universo não se Jis· cute: se exprime. E a filosofia não o exprime. Os verdadeiros pro- blemas só começam upós havê-lo percol'rido ou após o capitulo de um imenso tomo. qt1e põe o ponto rinal em sinal abdicação ante o Desconhecido, onde se emafzam todos os nos- sos e com o qual precisamos lut;:tr, porque é naturalmente rnais imediato. mais importanle I.JUe () pão cotidiano. Aqui o ntósofo nos llbandona: inimigo do desastre, ele é sensato como a c tão pruucnte quanto ela. E l'icamos em companhia de um velho pestilento. de um poeLu instrufdo de todos os dellrios c de um mú- 5ico cuja sublimidade a esfera do coração. Só começa· mos a viver realmente no final da filosofia, sobre suas ruínas, quan- do compr!.!cndemos sua terrfvc1 nulidade, e que era inútil recorrer n ela, incapaz ue qttalquer auxflio. (Os grandes sistemas, no fundo, são apenas brilhantes tautolo· gins. Que vantagem há em saber que a natureza do ser consiste na

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Cioram

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54 BltE.VIÁRlO DE DI!COMI'OSIÇÀO

suas entregas pusessem em perigo o equilíbrio bes!ial do mundo ... Foram felizes em meio a uma paisagem? - lamentarão em imincn· (es desgostos; estiveram orgulhosos de seus projetos e di! seus so­nhos'? Despt~rtarão logo. como de uma utopia, corrigidos por sofri­mentos demasiado positivos.

Assim, há sacrificados que pagam a inconsciência do:c- outros, que expiam não somente sua própri1:1 feliddadç mus também o de desconhl.lcidos. O equilíbrio se reslabdece uestu maneira; a pro­porção das nlegrias c das penas tot•na-se harmoniosa. Se um ob~;curo priudpio universal decretou que perlen~erás ao grupo das vitimas. andarás ao longo de teus dias pisoteando· o bo~dinho de para!so que escondias dentro dé ti. e o pouco fmpeto que se revdavo em tt::us olhat·es c em teus sonhos se sujar& ante u impmezu do tempo, du mátéria c dos homens. Como pedestnl terús um mulad<lr e ~Jomo tribuna um aparelho dt: tortura. S6 serás digno de. uma glória leprosa e de umu coroa de baba. Tentar andar ao lado desses a quem tudo é devido, para quem todos os caminhos são livres? Mos o pó e a pr6pri11 cinza se erguerão para barrar-te as portas do tempo e as saídas do sonho. Seja qual ror a direção para onde te encaminhes, teus passos se atolarão, tuas vozes só clamarão os hinos da lama e, sobre tua cabeça inclinada até o coração, onde só habita n pie­dade por ti mesmo, passará apenas o hálito dos bem-aventurados, joguetes bendiros de uma ironia sem nome. e tão pouco culpados como tu mesmo.

ADEUS À FILOSOFIA

Mastei-mc da rllosoria no momento em que lle tornou impossível para mim descobr-ir em Kanl alguma frnquez;u humana, ulgum acento d~.: verdadeira tl'i~>teza: em Kant c em todos os filósofos. Comparada 11 música. à místicn e à poesiA, a alivldade rilosófica provém de uma seiva diminuída e de uma profundidade suspciw, que guardum rrc:.tígio!i somente para os tímidos e os Ubios. Aliás, a filosofia -u~ttlliétud~ pessoal, refúgio nas idéias anêmicas - é o recurso de

C!':.N'EAl..OGIA DO FANATISMO 55

tc>~los os que se esquivam u exuberância comtptora da vida. Qu-nse cp1~ todos os rilósofos terminaram l1em: é o argumento supremo umu·u o filosofia. O fim do próprio Sócrutes não tem nnda de lrá­fllO: é um l1lill-elltendido, o rim ôc um pedagogo - e se Nielzsche ~u~·uhrou. foi como poctu e visiomirio: expiou seus êxtases, não

llll> raciocínios. Não se pode eludir a existência com explicações, só se pode

npmtú la. amá-la ou odiá-la, adorá-lu ou ten\ê·la, nessa alterhância dl· fcliciuadc e de horror que exprime o l'itmo mesmo do ser, suus {l'lllilnçõ~. su:ts dissonâncias, suas veemências amargas ou alegres.

Quem não está exposto, por surpresa ou por necessidade, n uma d'-'rrotu irrefutável. quem não ergue então a!. mãos em pt<ece para lllgd deixá-las cair ainda mais vazias que us respostas da filosofia? lllrlamos que a sua missão ~ nos proteger enquanto a inadvertência da sorte nos deixa caminhar aquém da desordem, e nos abandonar qunndo somos obrigados a mergulhar nela. E como poderia l:ier dlftm:nte, quando se vê quão pouco dos sofrimentos ua humanidade PIISSóu para a sua filosofia. O excrdclo filosófico não é fecundo; t: upcnas I'I:SI~eilável. s~mpre se é filósofo impuncmcnLc: um oficio I!.Cm destino que enche úe pensamentos volumosos as horas m:utrus c dcsocupauas, us horas rcfrutitrias ao Antigo Tesrarnento. a Bach ~ 11 Shakespcarc. E esses pensamentos, por acuso, se moL.:riulli:aram ~m uma só página equivalente a umu exclamação de !6. a um terror de Macbeth ou à altura de uma Cantata? O universo não se Jis· cute: se exprime. E a filosofia não o exprime. Os verdadeiros pro­blemas só começam upós havê-lo percol'rido ou ~sgotado. após o ~ílLimo capitulo de um imenso tomo. qt1e põe o ponto rinal em sinal d~ abdicação ante o Desconhecido, onde se emafzam todos os nos­sos inslunt~s. e com o qual precisamos lut;:tr, porque é naturalmente rnais imediato. mais importanle I.JUe () pão cotidiano. Aqui o ntósofo nos llbandona: inimigo do desastre, ele é sensato como a raz~o. c tão pruucnte quanto ela. E l'icamos em companhia de um velho pestilento. de um poeLu instrufdo de todos os dellrios c de um mú-5ico cuja sublimidade tran~c:ende a esfera do coração. Só começa· mos a viver realmente no final da filosofia, sobre suas ruínas, quan­do compr!.!cndemos sua terrfvc1 nulidade, e que era inútil recorrer n ela, incapaz ue qttalquer auxflio.

(Os grandes sistemas, no fundo, são apenas brilhantes tautolo· gins. Que vantagem há em saber que a natureza do ser consiste na

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56 BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO

~vontade de viver'', na "idéia". ou na fantasia d~; L>eus ou da Quf­mica? Simples proliferação de paluvnls, sutis deslocamentos de sen­tidos. O que é repele o abraço verbal. e u experi~nuia íntima não nos revela nutla al~m do insumtc privilegiado e inexprim.ívcl. Aliás, o ser mesmo nõo é muis que uma pr'"tcnsão do Nado.

Só se define por des.:spcro. I! preciso uma fórmulá. é preciso mesmo muitas, nem que seja para dar uma justificação no espírito e uma fachaJu ao nada.

Nem o conceito nem o êxtnse são operativos. Quando a música nos subm~:rge atl! as "intimidades" do ser. vultamos rapidamente à superfície: os efeitos da ilusão se dissipam e o saber revela-se nulo.

As coisas que tocamus c ns que concebemos são tão lmpravá· veis qu~tnto nossos sentidus ~ nossa razão: só estmnos seguros em nosso universo Vt!rbal, manobrávd a nosso bel-prazer. e ineficaz. O ser é mudo é o espírito tagarela. h;so se chama ,·vnl1ecer.

A originalidade do:. filósofos :;e reduz a invenlur tel'mos. Como só há três ou quc:!tro ülitudes ante o ntundo - I! mais ou menos outras tantas mancírt:u; de morrer -. as nuanças que as diversifi­cam c as multiplicam só dependem da escolha de vocábulos, de:.· providos de IOdo alcunn~ mctaffsico.

Afundamos em um univérso pleonástico, onde os interrogações e as réplh:as se equivulcm.)

DO SANTO AO ClNTCO

A burla rebaixou tudo à categoria de pretexto. salvo o Sol c o l!s­perança, salvo as duas condic;õ~.-s du vida: o astro do mundo c o astro do coração, um d~slumbrahle. o outro invislvcl. Um esque­leto. aquecendo-se ao sol l! espernndo. seria mois vigoroso que um Hércules desesperado c colisado du lut: um ser. totlllhlcnle permcá­vd à Esperança. seria muís poderoso que Deus t: mais vivo que n Vida. Mncb.cth. "aweury o/ tire swr ", é a última das criaturas. pois a verdàdell'a morte niio é u podridão. mas o noju de Lodu irradia· ção, a repulsa por tudo o que é germe. por tudo ~,, qu~;: noresce sob o ~ulor da ilusãu.

GENEALOGIA DO f-ANATISMO 57

O homem profanou as coisas que na:.ccm e morrem sob o sol. salvo o sol, as ooisas que nascem e morrem na esperança, salvo a c~pernnça. Não tendo ousado ir mais longe, pôs limites a seu cinismo. 1:: que um dnico. que se pretende conseqüente. só o é em pala­vrus; seus gestos fazem dele o ser muis contraditório: ninguén~ po­deria viver depois de haver dizimado suas ~upcrstíções. Para chegar nu cinismo total, seria pr·eciso um esforço inverso ao da santídude e ao menos igualmente consid~r·ávcl: ou, cntüo, imuginar um :-anto que, chegadu ao cuml! clc sua purificação. descobrisse a vaidade do u•abnlho a que se dl!dit.:ara - c o ridfculo tlc Deus ...

Tal monstro de clnríVidência muJariíl os coordenadas do vicla: teria rorça c a11t0ridade para pôr em questão as condiç.õcs mcsmns Jc suA I.!Xislênch1; já não correria o risco de contruJizer-se; nenhum de~falecirnt!nto humano dtlbiiHaria mais suas ousadins; havendo per· diclo o rc.spcito religioso que tl'ibutnmos. involunlariumcntc, a nos· t;m; última:. ilusões. zombaria de St!U coraçào e do sol ...

RETORNO AOS ELEMENTOS

s~ a filosofln não houvesse feito nenhum progresstl desde os l)ré­~ocráti.:os. não haveria nenhuma razão para queixas. Furios du mis­c:dimea dus concci1os. acabamos por perc~;:bcr que nossa vida se ugita sempre nos elementos com os quais eles ~.:onstituíilm o mundo, 'JUC são a tcrn.1. a água. o rogo e o ar que nos condicionam. que c~lll ff~ica I'Udill1C11tUr dclimílU O CSpUÇU dl! nOSSaS provas C O prin­l.:tpio de nossos lorrnt!ntos Ao haver complicado c~tc!~ dados ele· nwntur·es, perdemos - fasdnados peJo c~ntirlo e pclu cdifÍI!ÍO tltrs ~~~~rias - u compreensão <.lo Destino. o qual. entrctalito, imutável. é u mesmo qu~ nos primeiros dias do munJo. NO!i!SU cxlst~m:ia, r,·tluzido u suu t.:ssência. continua sendo um combat~; contro os de· mcntos tlc sempre. combate que nosso sabe1· nfio suaviza de ne· uhuma maneira. Os h~róis de qualquer época não :>;10 menos inre­Hn::. l.jUI.! us Jc f lomcro e. se se tornaram {111rSOmlgeu)), <= que dimi­tiUilllm d~: ~llcnlo c de grnndeza. Como os resultado~ tiJ t:i~n~.:ía JW~l~:riam mudar a posição mcwfísica do homcm'l E que l'i!prL!scn·