ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA E O DIREITO À EDUCAÇÃO ... · Pensar a educação como ponto...

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UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO CONSELHO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI MARIA RUTE PEREIRA DE SOUZA ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA E O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR SÃO PAULO 2011

Transcript of ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA E O DIREITO À EDUCAÇÃO ... · Pensar a educação como ponto...

  • UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SO PAULO CONSELHO DE PS-GRADUAO E PESQUISA

    PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI

    MARIA RUTE PEREIRA DE SOUZA

    ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA

    E O DIREITO EDUCAO ESCOLAR

    SO PAULO 2011

  • UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SO PAULO CONSELHO DE PS-GRADUAO E PESQUISA

    PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI

    MARIA RUTE PEREIRA DE SOUZA

    ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA E O DIREITO EDUCAO ESCOLAR

    Dissertao de mestrado apresentada Banca Examinadora como exigncia parcial dos requisitos do curso de ps-graduao Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei da Universidade Bandeirante de So Paulo UNIBAN, para a obteno do ttulo de MESTRE em Adolescente em Conflito com a Lei, sob a orientao da Professora Doutora Lavnia Lopes Salomo Magiolino

    SO PAULO

    2011

  • MARIA RUTE PEREIRA DE SOUZA

    SOUZA, MARIA RUTE PEREIRA DE ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA E O DIREITO EDUCAO ESCOLAR / Maria Rute Pereira

    de Souza. So Paulo: [s.n.] 2011. 155 f; 30cm. Trabalho Final (Ps-graduao Stricto Sensu) Universidade

    Bandeirante de So Paulo, Curso de Mestrado Profissional. Orientador: Professora Doutora Lavnia Lopes Salomo

    Magiolino. 1. Direito educao 2. Adolescente 3. Escola 4. Proteo integral I. Ttulo

  • ADOLESCENTE EM LIBERDADE ASSISTIDA E O DIREITO EDUCAO ESCOLAR

    Trabalho apresentado como requisito parcial para concluso do curso de Mestrado

    Profissional: Adolescente em Conflito com a Lei.

    Presidente e Orientadora

    Nome: Lavnia Lopes Salomo Magiolino

    Titulao: Doutora

    Instituio: UNIBAN BRASIL

    Assinatura: __________________________________________________

    Titulares:

    2 Examinadora

    Nome: Rosa Elisa Mirra Barone

    Titulao: Doutora

    Instituio: UNIBAN BRASIL

    Assinatura: __________________________________________________

    3 Examinadora

    Nome: Rosemary Ruggero

    Titulao: Doutora

    Instituio: UNINOVE

    Assinatura: __________________________________________________

    Suplentes:

    4 Examinadora

    Nome: Irandi Pereira

    Titulao: Doutora

    Instituio: UNIBAN BRASIL

    Assinatura: __________________________________________________

    3 Examinadora

    Nome: Eliana Silvestre

    Titulao: Doutora

    Instituio: UEM - Maring

    Assinatura: __________________________________________________

    NOTA FINAL: ___________

    Biblioteca

    Bibliotecrio: _________________________________________________

    Assinatura: _________________________________ Data: ___ / ___ / ___

    So Paulo, ___ de ________________ de 20____

  • DEDICATRIA

    A meu Pai (in memoriam), que sempre se preocupou em garantir meu direito educao, e grande mulher, minha me, que me ensinou, com seu exemplo, a ter fora para vencer os desafios que a vida nos impe, tornando possvel uma infinidade de caminhos.

  • AGRADECIMENTOS

    Trabalho finalizado, um momento singular, a angstia inquietante dos

    ltimos dias, a expectativa notada nos olhares de todos que acompanharam esta

    trajetria mostraram-me a resposta bvia: sim, nunca estive sozinha...

    Em cada linha, em cada conceito ou ideia, o reconhecimento de vozes,

    incentivo, energia que me trouxe at aqui.

    Obrigada!!!!!

    A Deus, por ter me carregado nos braos em todos os momentos em que

    a tristeza, a incerteza, a dvida quiseram se apossar de mim, obrigada a Ti pela

    vida e capacidade de obter esta vitria.

    Ao Sergio, companheiro querido de uma vida, pela compreenso e

    respeito pelos interminveis momentos que sacrifiquei em nome deste projeto.

    Aos meus filhos, Vanessa Christine, Caroline Alexandra e Igor Alexandre,

    pelo carinho da presena, mesmo quando das minhas mais absolutas ausncias e

    principalmente pelo seu amor incondicional, vocs sempre foram meus

    sustentculos, motivo de orgulho e admirao. Serei eternamente grata a vocs por

    terem sido to amorosos e compreensivos.

    minha menina-neta Bibi, por me ensinar o que realmente importa: a

    fora de seu amor, seu sorriso, seu aconchego, voc me ensinou a crescer.

    Ao Professor Paulo Artur Malvasi, pelas primeiras orientaes que

    fundamentaram este trabalho.

    Professora Lavnia, que, num momento crucial da jornada, se fez

    presente, modificando e transcendendo compreenso e apoio ao longo deste que foi

    meu maior desafio profissional e acadmico e que, com pacincia e um lindo sorriso,

    me fez acreditar, persistir e conseguir finalizar a travessia.

    Professora Irandi, responsvel por transformar este trabalho.

    s Professoras Isa Guar e Rosa Barone, que contriburam com

    conhecimentos novos e necessrios realizao deste trabalho.

    Professora Regina Umaras, por acreditar e me fazer sempre acreditar

    que eu chegaria aqui.

    Professora Ana Maria Falsarella, pelas ideias essenciais, pelo apoio

    que recebi.

  • Ao Professor Roberto Negro, pelas leituras incansveis de meus escritos

    e pelo incentivo.

    Professora Ftima Volpiani Carnels, pela confiana que depositou em

    mim, garantindo e permitindo condies para a realizao e finalizao deste

    trabalho.

    Aos meus amigos da Diretoria de Ensino Regio Osasco, gestores,

    professores, em especial a Professora Akiko, que contriburam com o levantamento

    de dados e informaes preciosas para a realizao da pesquisa.

    Aos meus tantos amigos e amigas, de perto e de longe, que me

    incentivaram, fazendo-me rir quando queria chorar, que acreditaram que tudo daria

    certo, mesmo quando eu duvidei, vocs foram muito importantes para mim! Em

    especial, ao Guido, Helena e Solange.

  • O problema fundamental em relao aos direitos humanos hoje, no tanto o de justific-

    los, mas de proteg-los. Trata-se de um problema no filosfico, mas poltico.

    Norberto Bobbio

  • RESUMO

    A dissertao aborda o tema do direito educao aos adolescentes em conflito com a lei

    no cumprimento de medida socioeducativa de liberdade assistida aplicada pelo sistema de

    justia e operacionalizada pelo executivo, por meio de programas denominados

    socioeducativos. A pesquisa tem como objetivo conhecer as estratgias utilizadas pela

    instituio escolar na garantia do direito educao tendo em vista a adoo, pelo Brasil, do

    paradigma da doutrina da proteo integral, um conjunto de direitos para o universo infanto-

    juvenil, sem nenhum trao discricionrio, presente em outros tempos da legislao

    brasileira. Os procedimentos metodolgicos foram embasados em uma abordagem

    qualitativa, de base exploratria, combinada com a anlise documental. A pesquisa de

    campo se deteve na prtica dos profissionais da educao pertencentes ao sistema pblico

    de ensino estadual localizado no municpio de Osasco, regio metropolitana da Grande So

    Paulo, tendo sido utilizados instrumentais prprios para a coleta de dados junto aos

    professores e gestores (diretor, vice-diretor, professor-coordenador). As bases tericas e

    legislativas adotadas na compreenso e anlise do problema tomam o direito educao e

    o direito da criana e do adolescente como direitos pblicos subjetivos, ou seja, direitos de

    todos e dever do Estado. Os resultados da pesquisa apontam para um distanciamento

    perceptvel entre o direito proclamado e o que executado na prtica com relao aos

    adolescentes em conflito com a lei no cumprimento da medida de liberdade assistida, seja

    pelo desconhecimento da lei e dos diferentes marcos regulatrios, seja pela dificuldade de

    interpretao dos mesmos por parte dos profissionais da educao.

    Palavras-chave: educao, escola, adolescente em conflito com a lei, proteo integral,

    medida socioeducativa.

  • ABSTRACT

    This dissertation addresses the question of the right adolescents in conflict with the law

    under social-assisted liberty (which applied by the justice system and operated by the

    executive through social educational programs) have to education.

    The research aims at evaluating the strategies used by the school, in guaranteeing the right

    to education with a view to the adoption by Brazil of the paradigm of the full protection

    doctrine, a set of rights to children and Youth universe, with no trace discretion, present in

    other times in the Brazilian law.

    The methodological procedures were based on a qualitative approach, basically exploratory,

    combined with document analysis. The field research has focused on the practice of

    education professionals belonging to the state public school system located in the city of

    Osasco, metropolitan region of the great So Paulo. Instruments to collect data with teachers

    and managers (director, deputy director and teacher-coordinator) have also been used. The

    theoretical basis and laws adopted in the understanding and analysis of the problem take the

    right to education and the right of children and adolescents as a subjective public right, or

    right and duty of all of the state.

    The survey results point to a noticeable gap between the proclaimed right and what is

    implemented in practice with respect to adolescents in conflict with the law in compliance

    with the measure of assisted freedom, either through ignorance of the law and the different

    regulatory frameworks, or the difficulty education professionals have in interpreting these

    regulatory frameworks.

    Keywords: education, school, adolescents in conflict with the law, integral protection, social

    educational measures.

  • Sumrio

    1 INTRODUO .................................................................................. 13

    2 O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI E A GARANTIA

    DE DIREITO ...................................................................................... 25

    2.1 POLTICA DE DIREITOS .................................................................. 25

    2.2 DIREITO EDUCAO ................................................................... 32

    2.3 O PAPEL SOCIAL DA ESCOLA NA EFETIVAO DO DIREITO

    EDUCAO DE CRIANAS E ADOLESCENTES ........................... 39

    2.4 O DIREITO EDUCAO E O ADOLESCENTE EM CONFLITO

    COM A LEI ........................................................................................ 47

    2.5 O DIREITO EDUCAO COMO GARANTIA DE DIREITOS AO

    ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI ................................... 56

    3 CAMPO DE PESQUISA: A PROBLEMTICA DO

    ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NO CONTEXTO

    ESCOLAR......................................................................................... 69

    3.1 DA METODOLOGIA .......................................................................... 72

    3.2 DOS PROCEDIMENTOS DA PESQUISA DE CAMPO .................... 74

    3.2.1 Pesquisa Exploratria (Bloco E) ........................................................ 74

    3.2.2 Definio e execuo do Projeto de Pesquisa ( Blocos A,B,C e D) .. 75

    3.2.3 Aplicao de questionrios ............................................................... 76

    3.2.4 Categorias de anlise ........................................................................ 77

    3.3 ANLISE DOS DADOS DA PESQUISA ........................................... 78

    3.3.1 As escolas pesquisadas, suas caractersticas: a gesto em

    foco..................................................................................................... 78

    3.3.2 Os gestores escolares ....................................................................... 81

    3.3.3 Os professores .................................................................................. 88

    3.3.3.1 O conhecimento do ECA ................................................................... 89

    3.3.3.2 O professor e o adolescente em conflito com a lei ........................... 94

    3.3.3.3 A prxis docente e suas concepes de educao para todos ........ 98

    4 CONSIDERAES FINAIS .............................................................. 104

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................. 110

    ANEXOS ............................................................................................................ 116

  • 13

    1 INTRODUO

    Pensar a educao como ponto de partida para a construo da

    identidade pessoal, intelectual e social da criana e do adolescente sempre esteve

    presente no cotidiano da minha carreira profissional desde os idos da dcada de

    1980 at os dias atuais.

    O tema aqui abordado a garantia do direito educao escolar ao

    adolescente em conflito com a lei emerge de minha trajetria de insero social e

    profissional na rea da infncia e adolescncia no municpio de Osasco, regio

    metropolitana da Grande So Paulo. Tal trajetria marcada pelo fato de eu assumir

    o cargo de supervisora de ensino1 da rede pblica estadual da educao desse

    municpio e ser responsvel pela garantia da escolarizao formal de adolescentes

    em medida socioeducativa de internao na Fundao CASA2 e, tambm, na

    assessoria de polticas pblicas na rede pblica estadual de incluso de

    adolescentes em medidas socioeducativas de Prestao de Servios Comunidade

    (PSC) e Liberdade Assistida (LA) no sistema de ensino (art. 53, 117 e 118 do

    ECA)3,respectivamente.

    Essa insero profissional despertou-me para a busca de referncias

    tericas, tcnicas e legais sobre a gesto de polticas pblicas que garantam o

    direito educao escolar e sua qualidade a todos os estudantes e, em especial,

    aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. Assim, o presente

    estudo fruto da inquietao, observao e reflexo sobre diversas situaes que

    se apresentam no cotidiano escolar de minha atuao em Osasco.

    Em que pese o que preconizado na Constituio da Repblica

    Federativa do Brasil4 (CF) de 1988 quanto ao direito educao, pode-se verificar a

    existncia de lacunas entre o direito proclamado e a sua efetivao no trato da

    garantia de escolarizao formal e regular de adolescentes em cumprimento de

    1 As atribuies da ao supervisora de ensino so, entre outras, exercer acompanhamento junto

    equipe escolar, garantindo a efetivao da implantao das polticas pblicas educacionais, as quais agregam a esse trabalho as informaes referentes garantia do direito educao conforme estabelecido na Constituio Federal e leis decorrentes. Para tanto, in loco, essa ao tem sido exercida desde 1987 at a data atual. 2 Fundao CASA - Centro Atendimento Socioeducativo ao Adolescente.

    3 Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei Federal n 8069/90.

    4 Constituio Federal promulgada em 05 de outubro de 1988.

  • 14

    medidas socioeducativas, em especial a Liberdade Assistida (LA) e Prestao de

    Servio Comunidade (PSC), as definidas como regime aberto.

    Em seu captulo III Da Educao, da Cultura e do Desporto, Seo I

    Da Educao, a Constituio Federal estabelece o seguinte:

    Art.205. A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o

    exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho (CF, 1988).

    O art. 208 detalha o direito educao, como dever do Estado, aquele

    compreendido entre a Educao Infantil e o Ensino Mdio e, nesse sentido, a

    educao definida como direito pblico subjetivo: direito de todos e dever do

    Estado.

    Cabe ressaltar que, na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional 5

    (LDBEN), o dever do Estado com a educao pblica compulsria dar-se- mediante

    a garantia de ensino fundamental, obrigatrio e gratuito6, inclusive para os que a ele

    no tiveram acesso na idade prpria e com proposta de universalizao para o

    ensino mdio 7 (art. 4, inciso I). A Emenda Constitucional n 598 define o inciso I do

    art. 208 como sendo educao bsica9 obrigatria e gratuita dos 04 (quatro) aos 17

    (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os

    que a ela no tiveram acesso na idade prpria.

    Para compreender o significado da abrangncia do termo educao

    bsica, inclusa na referida LDBEN, Cury (2008) aponta que

    A expresso educao bsica no texto de uma Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional LDBEN um conceito, um conceito novo, um direito e tambm uma forma de organizao da educao nacional. [...] Como direito, ela significa um recorte universalista prprio de uma cidadania ampliada e ansiosa por encontros e reencontros com uma democracia civil, social, poltica e

    5 Lei Federal n 9394, promulgada em 20 de dezembro de 1996.

    6 Importante a distino entre o preconizado na LDBEN, ensino fundamental, obrigatrio e gratuito,

    enquanto direito pblico subjetivo, que, enquanto lei complementar, carece de regulao em funo do estabelecido na nova redao sobre o que educao obrigatria, dada pela Emenda Constitucional n 59/2009, que amplia a garantia constitucional do direito pblico subjetivo educao bsica. 7 Redao dada pela Lei n 12.061, de 2009.

    8 Emenda Constitucional n 59, aprovada em 11 de novembro de 2009.

    9 A LDBEN, no art. 22, estabelece os fins da educao bsica: A educao bsica tem por finalidade

    desenvolver o educando, assegurar-lhe a formao comum indispensvel para o exerccio da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.

  • 15

    cultural. E a que se situa o papel crucial do novo conceito inclusive como nova forma de organizao da educao escolar nacional. Essa nova forma atingiu tanto o pacto federativo quanto a organizao pedaggica das instituies escolares. Esse papel o como tal porque educao lhe imanente o de ser em si um pilar da cidadania e o inda mais por ter sido destinado educao bsica o condo de reunir as trs etapas que a constituem: a educao infantil, o ensino fundamental e o ensino mdio (CURY, 2008, p. 294).

    Ento, ao situarmos a Educao Bsica como compulsria, implica

    entendermos a educao como direito pblico subjetivo e, para fundamentar tal

    compreenso, necessrio conceber esse direito em termos de uma poltica pblica

    a ser, de fato, implementada pelo Estado brasileiro. Cabe afirmar que as polticas

    pblicas so construdas a partir de demandas sociais reconhecidas como direitos,

    pois, historicamente, vo se institucionalizando e incorporando no dia a dia da vida

    pblica, representando a materialidade da interveno do Estado.

    [...] polticas pblicas sociais referem-se a aes que determinam o padro de proteo social implementado pelo Estado no que concerne distribuio de benefcios sociais, de forma a diminuir as desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento econmico (AZEVEDO, 2001, apud MARTINS, 2010, p. 498).

    Assim, a educao, como um direito pblico subjetivo, um componente

    da poltica pblica social enquanto instrumento de sua realizao, e a concepo de

    direito pblico subjetivo significa a possibilidade de o indivduo transformar a norma

    geral e abstrata em algo que possua como prprio e que, enquanto seu,

    inalienvel, ou seja, impossvel de transferir a outrem. Nesse ponto, cabe observar a

    definio desse direito e dessa obrigao do Estado no contedo do 1, art. 208 da

    CF (1988): O acesso ao ensino obrigatrio e gratuito direito pblico subjetivo.

    Essa concepo de educao predominantemente social contempla

    definitivamente a educao como direito fundamental, pois o direito pblico subjetivo

    o poder da vontade humana que, protegido e reconhecido pelo ordenamento

    jurdico, tem por objeto um bem ou interesse (JELLINEK, apud DUARTE, 2004,

    p.113).

    A educao compulsria reconhecida como um direito fundamental, um

    interesse do e concedida ao indivduo por um ordenamento jurdico e institucional

    (Estado), eleva seu detentor condio de sujeito desse direito; e o Estado, tendo a

    tutela jurdica, encontra-se em condio de ser exigido quando houver omisso,

    leso, abuso do direito educao ou oferta irregular de um bem social. A exigncia

  • 16

    a ser buscada cabe desde aos rgos do sistema de garantia dos direitos, grupos de

    pessoas, sindicatos, movimentos sociais at a pessoa diretamente envolvida na

    questo, como preceitua GARRIDO DE PAULA (1995):

    Atender ao direito social protegido pela lei significa cumprir, qualitativa e quantitativamente, as obrigaes que dele decorrem, produzindo aes e servios que satisfaam os titulares daquele direito. Existindo oferta irregular dessas aes e servios por parte do Estado, a fora subordinante do direito social violado conduz necessidade de prestao jurisdicional, de modo que a ordem social violada pelo Poder Pblico, notadamente atravs de seu Poder Executivo, possa ser restaurada pelo Poder Judicirio. Assim, reconhece-se que o interesse tutelado pelo direito social tem fora subordinante, isto , subordina o Estado ao atendimento das necessidades humanas protegidas pela lei. Assim, deflui do direito pblico subjetivo fora subordinante em relao ao Estado, no s no que diz respeito ao cumprimento voluntrio das obrigaes, mas tambm na garantia de acesso ao Judicirio para o suprimento coercitivo das omisses governamentais (GARRIDO DE PAULA, 1995, p. 15).

    H ainda uma relao direta entre direito pblico subjetivo e o direito da

    criana e do adolescente consubstanciado, no art. 227 da Constituio Federal de

    1988, como um dever da famlia, da sociedade e do Estado em assegurar criana,

    ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, um rol de direitos e, dentre

    eles, a educao escolar10.

    A educao, enquanto direito natural inerente pessoa humana e

    ampliado no como um privilgio e, sim, como um direito pblico subjetivo, s se faz

    efetiva se as instituies capazes de responder por sua materializao agirem de

    modo articulado e em rede (Poder Pblico, sociedade em geral, famlia). Conforme

    anota PEREIRA (2006):

    [...] a garantia do direito educao implica numa articulao de instituies e atores no sentido da finalidade de se alcanar a cidadania plena de todos, e, no caso particular, do adolescente sentenciado (PEREIRA, 2006, p. 152).

    Aps 1988, o ordenamento jurdico e institucional brasileiro adotou o

    paradigma da doutrina da proteo integral na garantia de direitos populao

    10

    Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso. Redao dada Pela Emenda Constitucional n 65, de 2010 (CF, 1988).

  • 17

    infanto-juvenil, independentemente de sua condio socioeconmica, intelectual, de

    etnia e gnero. A legislao tem carter universal enquanto abrangncia para esse

    grupo, lembrando que a seara do Direito da Criana e do Adolescente tem

    prescrio no tempo, ou seja, compreende a faixa etria de zero a 18 anos

    incompletos11. Tal especificao temporal est consubstanciada nos princpios

    fundamentais na Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana12, adotada

    pela Assembleia Geral das Naes Unidas a partir de 20 de novembro de 1989.

    A ideia da proteo integral adotada na legislao brasileira tomada na

    compreenso de Machado (2003) como

    [...] um conjunto de deveres atribudos famlia, comunidade, sociedade em geral e ao Poder Pblico para a garantia dos diversos direitos fundamentais da criana e do adolescente - direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais, tratando-os como indivisveis e interdependentes. A integralidade verifica-se, portanto, nesta diversidade de direitos protegidos de forma interligada. (...) Trata-se de uma responsabilidade solidria na medida em que, a cada um destes protagonistas, atuando em dimenses distintas, cabe a promoo e proteo de todos os direitos assegurados em lei. Neste caso, a integralidade pode ser verificada atravs das aes amplas, diversificadas e interdependentes realizadas por estes protagonistas no que tange aos deveres que possuem para garantia dos direitos da populao infanto-juvenil (MACHADO, 2003, p. 388).

    Nessa perspectiva, a criana, o adolescente e o jovem no so mais tidos

    como objetos de tutela e, sim, sujeitos de direitos, o que sugere o reconhecimento

    do status de cidados, sujeitos capazes de interferir na sua prpria histria e na

    histria de sua comunidade, conforme anota LIBERATI (2011):

    O princpio impositivo da lei enquanto declaratrio estabelece ser a funo hermenutica de interpretao da garantia do direito, assegurando a efetividade do direito pblico subjetivo de educao, colocando a proteo integral no mais como fundamento assistencialista e sim como poltica pblica13.

    11

    ECA - Art. 2 - Considera-se criana, para os efeitos desta Lei, a pessoa at doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Pargrafo nico. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto s pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 12

    Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana - Artigo 1 - Nos termos da presente Conveno, criana todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicvel, atingir a maioridade mais cedo. 13

    Prof. Dr. Wilson Donizeti Liberati, conceituao anotada pela pesquisadora em aula de 10 de maro de 2011 da disciplina de Direito e Sistema de Justia: Adolescente autor de ato infracional do Programa Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei.

  • 18

    Sobre a noo objeto de tutela h na literatura, em especial a jurdica,

    vrias posies firmadas a partir da Conveno Internacional sobre os Direitos da

    Criana (1989) como tambm diversos so os olhares sobre a questo na

    antropologia, sociologia, psicologia, pedagogia.

    A ttulo de ilustrao, Nogueira Neto (2008) aponta duas posies: uma, que

    prima pela institucionalizao e pela apartao das crianas e dos adolescentes da

    sociedade, famlia e comunidade, tendo em vista a noo de incapacidade dos

    mesmos; e, outra, pela capacidade plena, numa espcie de autodeterminao

    quase que absoluta, a saber:

    [...] tem-se registrado a ocorrncia de duas posies antagnicas dessa questo dos direitos da criana e do adolescente em funo da Conveno. Uns acentuam exacerbadamente a necessidade da tutela, quase que anulando a autonomia ontolgica deles: vendo-os como vulnerveis em si (no, vulnerabilizados), sem responsabilidade alguma por seus atos necessitando de verdadeira tutela da famlia, da sociedade e do Estado e de respostas puramente assistencialistas. Para esses, a triagem, a apartao (institucionalizao), o controle ainda o melhor caminho: o lugar dessas crianas e adolescentes no ninho gaiola. Quando no por essa linha, outros por sua vez colocam exageradamente a tnica da sua reflexo e da sua ao numa autodeterminao quase que absoluta da criana e do adolescente e repudiam como castradoras quaisquer formas de proteo. E, acabam, de um lado, anulando todo e qualquer resqucio da responsabilidade/poder parental e da responsabilidade do Estado e da sociedade pela sobrevivncia, pelo desenvolvimento e pela proteo da criana e do adolescente, como se fosse possvel reeditar, com sucesso absoluto, teorias e experincias como as de Summerhil, Christiana, Childrenjs Liberationists, kiddy-libbers e congneres (NOGUEIRA NETO, 2008, p. 28).

    O autor ressalta que, escolhida a segunda alternativa, os adolescentes

    em conflito com a lei, por sua vez, seriam apenas inadaptados sociais,

    irresponsveis; susceptveis apenas de encaminhamentos do servio social, de

    psicoterapias de anlises, de profissionalizao, etc., sem qualquer medida jurdico-

    judicial de carter sancionador. O autor ainda mostra que a no instaurao de

    procedimento apurao de ato infracional no se pode fazer apreenso em

    flagrante e, desse modo, fecha-se [sic] os olhos a situaes de abandono... finge-se

    uma liberalidade falsa de relao a tudo isso ou assume-se uma sensao de

    incapacidade e de impossibilidade (NOGUEIRA NETO, 2008, p. 29).

  • 19

    E, sobre a noo sujeito de direitos, existe tambm na literatura jurdico-

    judicial e nos diversos campos do conhecimento uma gama de posies e a que

    interessa presente pesquisa a adoo da gramtica de direitos, em que se

    percebe a criana, o adolescente e o jovem com direitos indisponveis que, por isso

    mesmo, devem ser exigidos no sentido de forar a prevalncia do seu interesse: do

    seu melhor interesse. O que est em questo no a instituio de novos direitos

    e, sim, a necessidade de efetivao da norma, de implantao e implementao

    (operacionalizao) de um sistema de proteo de direitos, isto , espaos pblicos

    institucionais e mecanismos de promoo, controle e garantia (proteo) dos

    direitos, segundo Noqueira Neto (2008: 30).

    Nesse sentido, so, portanto, responsveis o Estado, a sociedade e a

    famlia no mais pela tutela e, sim, pela proteo integral da criana e do

    adolescente (art. 227 da CF, 1988).

    Convm ressaltar que a legislao brasileira, em consonncia com

    diversos tratados internacionais14 adotados pela Organizao das Naes Unidas

    (ONU), define que, determinados grupos de crianas, adolescentes e jovens, pela

    situao de vulnerabilidade ou risco social15 e pessoal, so ainda destinatrios de

    outros direitos (porque no dizer de mais direitos) como o caso do adolescente

    em conflito com a lei, conforme se depreende dos contedos do art. 227 da CF

    (1988), pargrafo 3, incisos IV a VII, a saber:

    Art.227 [...] [...] 3 - O direito proteo especial abranger os seguintes aspectos: [...]

    14 Importante aqui a compreenso da importncia jurdica sobre a formatao e fora de lei de Tratados e Convenes Internacionais. No Brasil as Convenes Internacionais so internalizadas no arcabouo jurdico interno com status de lei ordinria, tornando-se, pois, uma norma de aplicao obrigatria no pas. O Direito Internacional tem como fonte internacional, entre outros, os Tratados e Convenes. Uma Conveno Internacional um acordo de vontades, regido pelo Direito Internacional, estabelecido por escrito, entre Estados, agindo na qualidade de sujeitos internacionais, do qual resulta a produo de efeitos jurdicos (DOLINGER, 1996). Podendo ainda ser conceituado o Tratado conforme adotado pela Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados, (Viena, em 26 de maio de 1969 com entrada em vigor internacional em 27 de janeiro de 1980), artigo 2 - 1. Para os fins da presente Conveno: a) "tratado" significa um acordo internacional concludo por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento nico, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominao especfica. 15

    No entendimento de SIERRA e MESQUITA (2006), a vulnerabilidade como um conjunto de fatores, que pode aumentar ou diminuir a situao de risco social, tem uma dimenso alm da carncia econmica. Outros tipos de carncia, como desnutrio, condies precrias de habitao e saneamento, subemprego, subconsumo, falta de integrao e suporte familiar e baixos nveis educacionais e culturais, tm a mesma importncia que a econmica.

  • 20

    IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuio de ato infracional, igualdade na relao processual e defesa tcnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislao tutelar especfica; V - obedincia aos princpios de brevidade, excepcionalidade e respeito condio peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicao de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estmulo do Poder Pblico, atravs de assistncia jurdica, incentivos fiscais e subsdios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criana ou adolescente rfo ou abandonado; VII - programas de preveno e atendimento especializado criana, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins (CF, 1988, Redao dada Pela Emenda Constitucional n 65, de 2010).

    A doutrina da proteo integral pressupe a garantia dos direitos

    individuais estabelecidos no Estatuto da Criana e do Adolescente, ficando a poltica

    de direitos sob a responsabilidade do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) e,

    como visto, a materializao dessa doutrina pressupe uma articulao entre as

    aes desencadeadas pelos diversos atores desse sistema e, por isso, uma atuao

    em rede.

    Ao considerarmos a referida doutrina como a que visa ao melhor interesse

    da criana, do adolescente e do jovem na ateno ao princpio da prioridade

    absoluta, isso implica

    [...] raciocinar a partir do desenvolvimento de cada criana. Sua

    primeira referncia a famlia, atravs dos pais. Em seguida, como

    locus privilegiado de socializao e de aquisio de conhecimento,

    indispensvel instrumento cultural de sobrevivncia, a escola.

    Finalmente, a partir da complexificao das relaes sociais, os

    Conselhos de Polticas Pblicas, como o de Educao e de Direitos,

    e os Conselhos Tutelares (MARQUES, 2004, p. 31 grifos nossos).

    E, se a garantia do direito educao implica um trabalho em rede, numa

    articulao das instituies e atores do SGD, tendo como objeto alcanar a

    cidadania plena de todos, importncia maior deve ser considerada no contexto ao

    adolescente em conflito com a lei, pois, se as redes de proteo dos direitos de

    crianas e adolescentes tm como marco de referncia o sistema de garantia de

    direitos definido no ECA16, a relevncia da educao escolar como fortalecedora da

    16

    Art. 86 - A poltica de atendimento dos direitos da criana e do adolescente far-se- atravs de um conjunto articulado de aes governamentais e no-governamentais, da Unio, dos estados, do Distrito Federal e dos municpios (ECA, 1990). Art. 88 - So diretrizes da poltica de atendimento:

  • 21

    rede de proteo integral ao adolescente em conflito com a lei faz eco dos princpios

    do Estatuto.

    A escola, por princpio e funo, deve acolher e garantir a melhor

    educao aos estudantes e, em especial, aos adolescentes em conflito com a lei por

    estes se encontrarem em cumprimento de deciso judicial. No entanto, o que ainda

    se percebe a resistncia, de parte do sistema educacional, em incluir os referidos

    adolescentes e, assim, contribuir para o fortalecimento da rede de proteo social,

    como uma das instituies do poder executivo na composio do SGD.

    Nesse contexto, o objeto de estudo da presente dissertao visa

    discusso da questo da incluso dos adolescentes em medidas considerada mais

    branda (restrio da liberdade) como a Liberdade Assistida (LA) cumprida pelos

    adolescentes em meio aberto. No que se refere s medidas consideradas graves

    (privao de liberdade), como o caso da Internao, os adolescentes frequentam a

    escola regular e formal no interior das Unidades de Atendimento no caso do

    Estado de So Paulo, na instituio pblica denominada Fundao CASA17.

    I - municipalizao do atendimento; II - criao de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criana e do adolescente, rgos deliberativos e controladores das aes em todos os nveis, assegurada a participao popular paritria por meio de organizaes representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais; III - criao e manuteno de programas especficos, observada a descentralizao poltico-administrativa; IV - manuteno de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criana e do adolescente; V - integrao operacional de rgos do Judicirio, Ministrio Pblico, Defensoria, Segurana Pblica e Assistncia Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilizao do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; VI - integrao operacional de rgos do Judicirio, Ministrio Pblico, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execuo das polticas sociais bsicas e de assistncia social, para efeito de agilizao do atendimento de crianas e de adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rpida reintegrao famlia de origem ou, se tal soluo se mostrar comprovadamente invivel, sua colocao em famlia substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei; (redao dada pela Lei n 12.010, de 29 de julho de 2009) VII - mobilizao da opinio pblica para a indispensvel participao dos diversos segmentos da sociedade (ECA, 1990, inciso includo pela Lei n 12.010, de 29 de julho de 2009). 17

    O ECA, em seu artigo 112, prev medidas socioeducativas aplicveis aos adolescentes quando verificada a prtica do ato infracional, que, em ordem crescente de severidade, consistem em: I. Advertncia: admoestao verbal por parte da autoridade judiciria. II. Obrigao de Reparar o Dano: restituio do bem, promoo do ressarcimento do dano ou compensao do prejuzo da vtima. III. Prestao de Servios Comunidade: realizao de tarefas gratuitas, de interesse geral, por perodo no excedente a seis meses. IV. Liberdade Assistida: acompanhamento psicossocial, em um prazo mnimo de seis meses. V. Insero em regime de Semiliberdade: como forma de transio para o meio aberto, possibilitada a realizao de atividades externas.

  • 22

    Como visto nas primeiras linhas desta parte introdutria, a razo

    motivadora do desenvolvimento deste objeto de estudo decorre de minhas

    experincias vivenciadas no campo de trabalho como supervisora de ensino e, por

    conseguinte, de uma pesquisa exploratria realizada para o aprofundamento do

    tema, tomando como recorte parte do universo das escolas pblicas estaduais

    sediadas em Osasco.

    Nesse sentido, o suporte da pesquisa recai sobre a dinmica contraditria

    das relaes que se estabelecem entre a educao formal escolar, enquanto um

    direito fundamental que, na qualidade de direito pblico subjetivo, torna essa escola

    responsvel pela garantia da educao, devendo responder pela educao escolar

    ao adolescente em conflito com a lei.

    O presente estudo objetiva deter o olhar sobre a instituio escolar,

    considerando parte de seu corpo funcional (professores e gestores diretores, vice-

    diretores e coordenadores pedaggicos), tendo em vista a materializao da

    doutrina da proteo integral na poltica socioeducativa ao adolescente em conflito

    com a lei - especificamente, no caso em questo, do adolescente que cumpre

    medida socioeducativa, em meio aberto, considerando o recorte do objeto de

    pesquisa, a Liberdade Assistida (LA)18.

    Os objetivos definidos para a pesquisa compreendem:

    a) levantar dados e informaes sobre a insero dos adolescentes em

    conflito com a lei no sistema escolar pblico estatal em particular, no municpio de

    Osasco de competncia da poltica estadual de educao;

    b) compreender como as escolas pesquisadas lidam com o direito

    educao do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa, a partir do

    olhar de parte de seus profissionais;

    c) destacar limites e possibilidades da escola (comunidade escolar) em

    relao garantia do direito fundamental de educao com qualidade, bem como a

    VI. Internao em estabelecimento educacional: constitui medida privativa da liberdade, prazo indeterminado, no podendo exceder a trs anos (ECA, 1990). 18

    ECA - Art. 118 - A liberdade assistida ser adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. Art. 119 - Incumbe ao orientador, com o apoio e a superviso da autoridade competente, a realizao dos seguintes encargos, entre outros: II - supervisionar a freqncia e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrcula.

  • 23

    concepo dos referidos profissionais em relao aos direitos preconizados no

    Estatuto da Criana e do Adolescente, colocando-se em perspectiva a teoria (o que

    o ECA prope) e a prtica (o cumprimento da lei) ao adolescente em cumprimento

    de medida socioeducativa.

    No desenvolvimento da pesquisa a metodologia adotada a de

    abordagem exploratria e qualitativa sobre o tema da garantia da educao escolar

    e do direito da criana e do adolescente (na acepo de direito pblico subjetivo),

    combinada anlise documental e anlise terica sobre a temtica do adolescente

    em conflito com a lei.

    O campo emprico de pesquisa foi definido a partir do total de escolas do

    sistema de educao, de responsabilidade da poltica estadual de educao

    jurisdicionada no municpio de Osasco: de 52 escolas, foram selecionadas duas a

    partir de um levantamento exploratrio realizado preliminarmente quando da

    definio do objeto de pesquisa. Os instrumentos privilegiados para a investigao

    do tema de estudo foram questionrios estruturados com parte dos profissionais da

    educao (professores e gestores). Os contedos dos instrumentais partiram da

    incipiente produo sobre o tema do direito educao aos adolescentes em

    conflito com a lei; a ausncia de debate e reflexo crtica sobre a relao escola e

    adolescente em cumprimento de medida socioeducativa, na prtica escolar e, ainda,

    sobre a necessidade de se colocar o tema na agenda da poltica pblica sobre a

    garantia da doutrina da proteo integral populao adolescente e jovem.

    As referncias tericas trabalhadas na compreenso e anlise do tema de

    estudo esto vinculadas concepo do direito pblico subjetivo da educao e

    tambm do direito da criana e do adolescente e, para tanto, foram privilegiadas as

    contribuies de diversos autores como Miguel Arroyo, Paulo Afonso Garrido de

    Paula, Wilson Donizeti Liberati, Martha de Toledo Machado, Irandi Pereira,

    Romualdo Portela de Oliveira, Wanderlino Nogueira Neto, entre outros. Sobre a

    gramtica de direitos, foi tomada a legislao em vigor como a Constituio da

    Repblica Federativa do Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases de Educao Nacional, o

    Estatuto da Criana e do Adolescente e parte dos Tratados e Convenes

    Internacionais ratificados pelo Governo brasileiro. E, sobre os procedimentos

    metodolgicos, foram tomadas as referncias de Maria Ceclia de Souza Minayo,

    Otvio Cruz Neto e Romeu Gomes.

  • 24

    A apresentao da pesquisa, alm desta parte introdutria, segue a

    seguinte ordenao:

    Na primeira parte tem destaque a poltica de direitos a partir do

    entendimento consubstanciado no art. 227 da CF (1988), que atribui criana e ao

    adolescente a condio de sujeitos de direitos, trazendo a discusso da

    conceituao de proteo integral, art. 98 do ECA, e o reconhecimento terico do

    direito educao reivindicado na legislao brasileira e em tratados e Convenes

    Internacionais. Ao se discutir o papel social da escola, busca-se compreender a

    complexidade das relaes existentes no ambiente educacional entre seus atores e

    em especial o adolescente em conflito com a lei. O tema do direito educao,

    como garantia de direitos ao adolescente em conflito com a lei, assume dimenso

    relevante para se perceber a distncia entre o preconizado na lei e a aplicao desta

    na trajetria educacional formal da criana e do adolescente, em especial do

    adolescente que cumpre medida socioeducativa em meio aberto de Liberdade

    Assistida.

    Na segunda parte se discute a problemtica do adolescente em conflito

    com a lei dentro do contexto escolar, abordando-se a metodologia adotada no

    desenvolvimento da pesquisa, privilegiando-se para tanto a apresentao dos

    resultados, a anlise dos resultados, observando-se as bases legais, tericas e

    metodolgicas adotadas para a anlise da pesquisa.

    Por ltimo, na parte trs, apresentam-se as consideraes finais que a

    anlise ensejou na pesquisa sobre a complexidade do princpio da doutrina de

    proteo integral de direitos e a execuo dessa poltica pelo sistema educacional

    no atendimento ao adolescente em conflito com a lei.

  • 25

    2 ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI E A GARANTIA DE

    DIREITOS

    2.1 POLTICA DE DIREITOS

    O art. 98 do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) parte da

    premissa de que so sujeitos de medidas de proteo integral todas as crianas,

    adolescentes e jovens que compreendem a faixa etria entre zero a 18 anos de

    idade e, em condies especiais, at 21 anos19.

    A proteo integral um princpio assumido pelo ECA a partir da adoo

    da Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana, aprovada pelos Estados-

    membros da Organizao das Naes Unidas, em 1989. Cabe ressaltar que, antes

    mesmo disso, o Brasil, na Constituio da Repblica, j adotara o direito proteo

    integral para o universo criana e adolescente (art. 227).

    Interessante observar as anlises de Nogueira Neto (2008) sobre as

    ideias de proteo integral, proteo especial e tutela no campo da infncia e

    adolescncia sob a tica dos direitos humanos:

    Todas as crianas e os adolescentes precisam de proteo integral, intrinsecamente. Mas, em determinadas circunstncias, situaes, condies, momentos, quando vulnerabilizados ou em desvantagem social, algumas crianas e alguns adolescentes exigem medidas especiais de proteo ou aes afirmativas do seu direito (discriminaes positivas). Em outras, quando em conflito com a lei penal, exigem medidas (sancionadoras) socioeducativas. As necessrias limitaes ao exerccio de seus direitos devem ser entendidas como estratgicas para garantir a plenitude desses direitos. Isto , limita-se a autonomia deles para assegurar a plenitude de sua cidadania e no para torn-los menos-cidados, cidados de segunda classe, ainda mais marginalizados. No se protege uma pessoa como se protege um pequeno animal feroz e perigoso ou um anjo jaula ou altar. No se pode esquecer que ela, de qualquer maneira, um ser que j tem todos os direitos de um cidado e como tal deve ser tratado, revertendo-se todo e qualquer processo que resulte no abortamento de sua cidadania. A eles h que se garantir, alm do mais, sua participao proativa e no

    19

    Art. 98 As medidas de proteo criana e ao adolescente so aplicveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaados ou violados: I por ao ou omisso da sociedade ou do Estado; II por falta, omisso ou abuso dos pais ou responsvel; III em razo de sua conduta (ECA, 1990).

  • 26

    meramente reativa, na construo de sua vida, nos processos de extenso de sua cidadania. Sua participao igualmente de alguma forma no desenvolvimento dos servios e programas/projetos pblicos, administrativos e judiciais, governamentais e no-governamentais, num sentido lato (NOGUEIRA NETO, 2008, p. 28).

    Ento, no caso dos adolescentes em cumprimento de medidas

    socioeducativas, a restrio ou a privao de liberdade imposta pela legislao no

    significa nem restrio ou privao de direitos. A proteo integral direito de todos

    os adolescentes e a proteo especial medidas especiais um direito que se deve

    estender a determinados adolescentes que, por especial situao e/ou condio,

    encontra-se em desvantagem ou em perigo pessoal e/ou social.

    Sobre a proteo integral devida ao grupo etrio criana e adolescente, o

    STF, em 2008, assim se pronunciou:

    A proteo integral da criana e do adolescente devida em funo de sua faixa etria, porque o critrio adotado pelo legislador foi o cronolgico absoluto, pouco importando se, por qualquer motivo, adquiriu a capacidade civil, quando as medidas adotadas visam no apenas responsabilizao do interessado, mas ao seu aperfeioamento como membro da sociedade, a qual tambm pode legitimamente exigir a recomposio dos seus componentes, includos a os menores (STF, 1. Turma, HC 94938/RJ, Rel. Min. Crmen Lcia, DJ 12.08.2008 apud ARAJO JNIOR, 2010, p. 3).

    O direito educao bsica considerado lquido e certo, ou seja, um

    direito do cidado e um dever do Estado. Para tanto, o sistema de garantia de

    direitos deve se articular e se integrar numa ao sistmica para que a educao

    escolar seja uma realidade em termos quantitativos e qualitativos para toda a

    populao brasileira, incluindo-se aquela que no pode realiz-la no tempo e em

    idade correspondente aos ciclos de ensino-aprendizagem. A ideia de ao sistmica

    compreende aquela em que h o esforo dos poderes (legislativo, judicirio,

    executivo) e seus respectivos rgos (ministrios, secretarias, departamentos) e ou

    mesmo instncias (conselhos, fruns, consrcios) no dever de articular-se em rede

    para que as polticas pblicas possam ser efetivadas.

    O enfrentamento pelos sistemas de polticas pblicas (educao, sade, assistncia social, cultura, segurana, etc.) e pelo sistema de justia (varas judiciais, promotorias de justia, defensorias pblicas e outras procuradorias sociais), de questes como as dos

  • 27

    adolescentes em conflito com a lei, das crianas e adolescentes em situao de rua, explorados no trabalho infantil, submetidos a abusos e exploraes sexuais por exemplo h que ser posto numa ambincia sistmica, isto , no seio de uma concertao sistmica pela promoo e proteo (defesa) dos seus direitos humanos, ou pelo menos, minimamente, no ambiente institucionalizado sistema de garantia e direitos (NOGUEIRA NETO, 2008, p. 77).

    Retomando-se o estabelecido nos incisos I a III do art. 98 do ECA sobre o

    fato de que as medidas de proteo devam ser aplicadas por diferentes razes

    no ter acesso educao formal ou ser submetido a um processo educacional que

    leve ao fracasso escolar de crianas e adolescentes ou mesmo que os pais ou

    responsvel legal se omitam do dever de assistir e educar os filhos menores de

    idade essas podem ser consideradas violaes de direitos. E, ainda, h os

    casos de adolescentes que, em funo de sua conduta, acabam por fazer vtimas.

    Com frequncia cada vez mais evidente, percebe-se que muitas crianas e jovens enveredam pelo caminho alucinante das drogas; tornam-se delas dependentes e, muitas vezes, traficam-na. A droga atrai a prostituio; duas situaes que no se separam. Enfim, a prpria criana ou adolescente poder colocar em risco de ameaa ou violao os seus direitos, em virtude de sua conduta. Esse comportamento poder estar relacionado com a prtica infracional, que dar origem ao judiciria ou tutelar de imposio da medida protetiva mais adequada para o caso (LIBERATI, 2010, p. 100).

    O ECA reconhece como ato infracional 20 uma dada conduta anloga ao

    crime ou contraveno penal (art. 103) e, por isso mesmo, implica aplicao de

    medidas socioeducativas, restritivas ou privativas de liberdade (art. 112)21. O

    Estatuto no criminaliza o adolescente, ele o responsabiliza, com as medidas

    socioeducativas, na faixa etria entre 12 e 18 anos de idade22 e, a criana23, com

    20

    Art. 103 Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contraveno penal (ECA, 1990). 21

    Art. 112 - Verificada a prtica de ato infracional, a autoridade competente poder aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertncia; II - obrigao de reparar o dano; III - prestao de servios comunidade; IV - liberdade assistida; V - insero em regime de semi-liberdade; VI - internao em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. 22

    Art. 104 So penalmente inimputveis os menores de dezoito anos, sujeitos s medidas previstas nesta lei. Pargrafo nico: Para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente data do fato (ECA, 1990).

  • 28

    menos de 12 anos no passvel de responsabilizao, pois ao ato infracional

    praticado por criana correspondero as medidas previstas no art. 101. A mudana

    trazida pelo Estatuto da Criana e do Adolescente em relao s legislaes

    anteriores (Cdigos de Menores de 1927 e 1979) a de que nenhum adolescente

    ser privado de liberdade sem o devido processo legal (art. 110), devendo ser

    assegurado um rol de garantias, dentre as quais se destacam a defesa tcnica por

    advogado; assistncia judiciria gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei;

    o direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; e o direito de

    solicitar a presena de seus pais ou responsvel em qualquer fase do procedimento

    (art. 111, incisos III a VI, respectivamente).

    A deciso de se incluir na esfera de ao do Estatuto a pessoa que tem

    menos de 18 anos de idade se ancora na Conveno Internacional sobre os Direitos

    da Criana24, pois, para os efeitos dessa norma, "se entende por criana todo o ser

    humano menor de 18 anos". O princpio da inimputabilidade at aos 18 anos de

    idade toma por base a condio peculiar de desenvolvimento, permanecendo

    assegurados a toda criana e adolescente e, por conseguinte, ao adolescente em

    conflito com a lei, todos os seus direitos fundamentais, incluindo-se a o direito

    educao. O direito educao e a proteo integral ao adolescente em conflito

    com a lei so inspirados nas agendas e lutas dos movimentos sociais (nacional e

    internacional) e respaldados em diversos tratados e convenes, como a Conveno

    sobre os Direitos da Criana, (1990); as Regras Mnimas das Naes Unidas para a

    Administrao da Justia Juvenil (Regras de Beijing) (1985); as Regras Mnimas das

    Naes Unidas para a Proteo dos Jovens Privados de Liberdade (1990); as

    Diretrizes das Naes Unidas para a Preveno da Delinquncia Juvenil (Diretrizes

    de Riad) (1990); e a Declarao Mundial de Educao para Todos (Declarao de

    Jomtien) (1990).

    23

    Art. 2 - Considera-se criana, para os efeitos desta Lei, a pessoa at doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Pargrafo nico. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto s pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade (ECA, 1990). 24

    Conveno sobre os Direitos da Criana. Adotada pela Assembleia Geral nas Naes Unidas em 20 de Novembro de 1989.

  • 29

    A ttulo de exemplo, as Diretrizes das Naes Unidas para a Preveno

    da Delinquncia Juvenil (Diretrizes de Riad) 25, ao tratar do adolescente em conflito

    com a lei, dispem que

    IV. Dos PROCESSOS DE SOCIALIZAO 9. Dever ser prestada uma ateno especial s polticas de preveno que favoream a socializao e a integrao eficazes de todas as crianas e jovens, particularmente atravs da famlia, da comunidade, dos grupos de jovens nas mesmas condies, da escola, da formao profissional e do meio trabalhista, como tambm mediante a ao de organizaes voluntrias. Dever ser respeitado, devidamente, o desenvolvimento pessoal das crianas e dos jovens que devero ser aceitos, em p de igualdade, como co-participantes nos processos de socializao e integrao. A.[...] B. Educao 23. Os sistemas de educao devero cuidar e atender, de maneira especial, aos jovens que estejam em situao de risco social. Devero ser preparados e utilizados, plenamente, programas de preveno e materiais didticos, assim como planos de estudos, critrios e instrumentos especializados (ONU, Diretrizes de Riad, 1990).

    No item 23 das Diretrizes de Riad, ao se tratar dos adolescentes em

    conflito com a lei, estabelece-se que os sistemas de ensino devem ser preparados

    para prestar ateno especial s polticas de preveno que favoream a

    socializao e a integrao eficazes de todas as crianas e jovens.

    No caso dos adolescentes sentenciados, a oferta regular de programas de educao escolar obrigatria pela condio de tutela a que esto submetidos no cumprimento das decises judiciais, notadamente sob medidas de semiliberdade e de internao. (PEREIRA, 2006, p. 134).

    Ainda sobre a insero dos adolescentes em conflito com a lei

    educao escolar compulsria, cabe verificar o que dispe o ECA sobre a questo,

    no art. 53, ao reafirmar que toda criana e todo adolescente tem direito educao,

    tendo em vista sua finalidade, o pleno desenvolvimento de sua pessoa (...),

    assegurada a igualdade de condies para o acesso e a permanncia na escola

    (inciso I) , o que, somado atribuio do direito e da obrigatoriedade ou a chamada

    dupla obrigatoriedade educao, implica garantia de cumprimento eficaz do direito

    educao enquanto dispositivo de direito pblico subjetivo.

    25

    Princpios Orientadores das Naes Unidas para a Preveno da Delinquncia Juvenil (Princpios Orientadores de Riad). Adotados e proclamados pela Assembleia Geral das Naes Unidas na sua Resoluo 45/112, de 14 de Dezembro de 1990.

  • 30

    O dever do Estado de efetivar o direito educao no o isenta da

    obrigao de garantir ao adolescente em medida socioeducativa em regime de

    Liberdade Assistida (LA), na qual se incumbe, ao orientador social, a

    responsabilidade de supervisionar a frequncia e o aproveitamento escolar do

    adolescente, promovendo inclusive sua matrcula (inciso II, art. 119, ECA), ou em

    regime de Prestao de Servios Comunidade (PSC), em que a frequncia

    escola no pode ser prejudicada pelo cumprimento das tarefas atribudas (pargrafo

    nico, art. 117, ECA), ficando clara, no plano legal, a existncia de mecanismos e

    procedimentos que visam implementao da poltica pblica de educao para

    todos.

    O enfoque da presente pesquisa centra-se na garantia do direito

    educao ao adolescente em medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e,

    nesse sentido, cabe destacar que o Estatuto no art. 119, inciso II, estabelece como

    incumbncia do orientador, sob a superviso de autoridade competente,

    supervisionar a frequncia e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo,

    inclusive, a matrcula deste no sistema de ensino.

    A determinao do citado artigo corrobora a necessidade de se garantir o

    acesso e a permanncia na escola formal, visto a realidade encontrada no contexto

    social do adolescente em conflito com a lei ainda ser de excluso e desinteresse

    pela educao escolar compulsria. Uma pesquisa, realizada junto ao sistema de

    cadastro de alunos de uma unidade da Fundao Casa Osasco em 2010, com 77

    internos matriculados no Ensino Fundamental II, mostrou que apenas 27% dos

    adolescentes estavam matriculados na escola antes da aplicao da medida

    socioeducativa de internao (mesmo em defasagem idade-srie), sendo o

    percentual dos matriculados, mas no assduos, de 29% (Fonte da pesquisa Setor

    de cadastro de alunos da DERO, elaborado pela pesquisadora).

    Os aspectos defasagem idade-srie e evaso do sistema escolar

    aparecem como chancela a comportamentos que colocam o adolescente em risco

    de ameaa ou violao de seus direitos em virtude de sua conduta 26 como tambm

    grave manter a excluso de adolescentes em medida socioeducativa de Liberdade

    Assistida ou para os egressos do sistema socioeducativo que ainda encontram a

    escola de portas fechadas para a sua incluso no sistema educacional.

    26

    Inciso III, artigo 98, ECA.

  • 31

    Cabe ressaltar que um dos requisitos para o cumprimento de medida

    socioeducativa pelo adolescente o retorno, a permanncia e o sucesso escolar e,

    segundo o art. 208 do Estatuto, cabe, ao Poder Pblico, a obrigao dessa

    garantia27.

    A dificuldade da escola em lidar com essa garantia de direitos fruto, em

    parte, da ausncia de metodologias capazes de trabalhar com o adolescente em

    medida socioeducativa pelas diferentes formas de vivncia na prtica de delitos e no

    enfrentamento dos sistemas de segurana e justia. A atuao sistmica e em rede

    de diversos atores vinculados s polticas pblicas pode contribuir para a construo

    de metodologias de incluso do adolescente em medida socioeducativa aos bancos

    escolares. Esse tipo de atuao articulada/integrada/complementar, de um lado, e

    a relao interinstitucional/intersetorial/interdisciplinar, por outro, pode conduzir a

    estratgias criativas e amplas para a permanncia e o sucesso escolar dos

    adolescentes, ou seja, a efetivao da garantia da educao, enquanto direito

    pblico subjetivo.

    Os princpios da poltica de direitos ao segmento criana, adolescente e

    jovem, como os da poltica de educao, esto postos na letra da lei; contudo, na

    prtica do direito h um longo caminho a se percorrer para a diminuio dessa

    distncia. A articulao e integrao do sistema de garantia de direitos, a presso

    popular e a participao da famlia e/ou do responsvel legal pelos adolescentes em

    cumprimento de medidas socioeducativas podem levar construo de um pacto

    social em torno do paradigma escola, dever do Estado, dever da famlia e

    responsabilidade da sociedade, em que se efetive o verdadeiro papel social da

    escola pblica como o da proteo integral de crianas, adolescentes e jovens,

    definidos nos ordenamentos legais vigentes a partir de 1988.

    27

    Artigo 208 do ECA Regem-se pelas disposies desta Lei as aes de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados criana e ao adolescente, referentes ao no-oferecimento ou oferta irregular: I- do ensino obrigatrio.

  • 32

    2.2 DIREITO EDUCAO

    Refletir a respeito dos Direitos Humanos nos remete a pensar em

    dignidade humana que, em princpio, deve ser compreendida como inerente a todo

    ser humano indistintamente, no havendo uma pessoa que tenha mais dignidade

    que outra o que justifica a chamada igualdade substancial28. E nessa chave de

    raciocnio que se assenta o direito da criana e do adolescente perante a

    Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Isso se confirma nas

    palavras de Garrido de PAULAque, em seu texto O direito da criana e do

    adolescente, bem define:

    [...] para atingir este objetivo, que a garantia da dignidade da pessoa humana, o direito da criana e do adolescente se funde em dois princpios fundamentais, a proteo integral e a condio de pessoa em processo peculiar de desenvolvimento. No possvel pensar o direito da criana e do adolescente perdendo de vista o destinatrio desse direito, que algum que atravessa modificaes na sua existncia que jamais vo ocorrer novamente [...] (GARRIDO de PAULA, 2010, p. 05). 29

    Assim sendo, o princpio basilar de proteo integral criana e ao

    adolescente, conforme estabelecido no artigo 1 do ECA, inova ao adotar tal

    doutrina como objeto de atendimento, conforme LIBERATI, (2010):

    A Lei 8069/1990 revolucionou o Direito Infanto-Juvenil, inovando e adotando a doutrina da proteo integral. Essa nova viso baseada nos direitos prprios e especiais das crianas e adolescentes, que, na condio peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteo diferenciada, especializada e integral (TJSP,AC 19.688-0, Rel. Lair Loureiro, apud LIBERATI, 11 Ed., 2010, p. 15).

    Para que se conjuguem os aspectos da proteo diferenciada,

    especializada e integral e de pessoas na condio peculiar de desenvolvimento, faz-

    se essencial percepo de que, nessa etapa da vida, compete ao Estado

    desenvolver polticas pblicas e famlia fornecer os meios adequados para um

    28

    A igualdade substancial, nas palavras do professor Celso Ribeiro Bastos, consiste no tratamento uniforme de todos os homens. No se cuida, como se v, de um tratamento igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida. (BASTOS, 2001, p. 5 apud GONZAGA, 2009, p. 2). 29

    Dr. Paulo Afonso Garrido de Paula Procurador de Justia do Ministrio Pblico do Estado de So Paulo e professor da Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, responsvel pela cadeira de Direito da Criana e do Adolescente, foi um dos autores do anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Criana e do Adolescente. Disponvel em: http://www.portalpromenino.... Acesso em: 20 de junho de 2011.

    http://www.portalpromenino.../

  • 33

    desenvolvimento sadio e harmonioso, o que implica uma vida livre de crueldade,

    coero, violncia e opresso.

    Logo, pensar desenvolvimento saudvel implica garantir integridade

    emocional e fsica, o que nos remete vida digna e, por conseguinte, ter vida digna

    implica ter acesso ao conhecimento, educao e, em especial, ter o direito a ter a

    posse do saber. Saber esse que, no mundo ocidental, traz em seu bojo a ideia do

    direito e do dever em determinado nvel de escolarizao, com caractersticas

    emancipadoras e disciplinadoras. Emancipadoras no aspecto direito, educao,

    direito de todos, dever do Estado e da famlia [...] 30, pois a educao como direito

    possibilita a garantia de acesso a outros bens sociais, sade, trabalho, moradia,

    previdncia social, entre outros, diminui a desigualdade social, busca por justia e

    emancipa.

    Ao mesmo tempo, essa mesma garantia de direito emancipadora, castra,

    reprime, coercitiva, pois disciplinadora na sua obrigatoriedade, conforme os

    textos legais j citados, inciso I do artigo 208 da Constituio Federal (1988) [...]

    educao bsica obrigatria e gratuita dos 04 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de

    idade [...], podendo ser responsabilizada a famlia quando no garantir tal direito.

    Ou seja, educao no s direito, mas tambm dever.

    E, se o estabelecido no artigo 205 A educao, direito de todos, e

    dever do Estado e da famlia, [...] implica que, se a educao direito de todos,

    obrigao do Estado garantir a vaga, cabendo famlia o dever de matricular e fazer

    garantir o direito estabelecido, tendo para isso, conforme estabelecido no pargrafo

    primeiro do artigo 208, o mecanismo destinado a reforar e detalhar a importncia da

    declarao do direito educao: O acesso ao ensino obrigatrio e gratuito direito

    pblico subjetivo. Considera-se, portanto, que o acesso ao ensino obrigatrio31

    lquido, certo e indisponvel, podendo ser exigido do Poder Pblico que dever

    garantir vagas a todos que estejam dentro da faixa etria discriminada no dispositivo

    legal.

    Vale aqui lembrar os ensinamentos de Jos Cretella Jr sobre direito

    pblico subjetivo:

    30

    Artigo 205 da Constituio Federal de 1988, Dos fins da Educao. 31

    CF - Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de: I - educao bsica obrigatria e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela no tiveram acesso na idade prpria; (Redao dada pela Emenda Constitucional n 59, de 2009).

  • 34

    Tratando-se de direitos subjetivos h, pois, dois sujeitos: sujeito ativo, o credor, pessoa de quem emana a exigncia, o poder de exigir; sujeito passivo, o devedor, pessoa sobre quem recai a exigncia, o dever de cumprir a obrigao jurdica resultante de regra de direito (CRETELLA Jr, 1993, v. 8, p. 4.413-4, apud OLIVEIRA, 1999, p. 31).

    E, se o Estado o sujeito ativo nessa relao, a obrigatoriedade se

    desdobra em outro momento, configuram-se como sujeitos ativos, conforme os

    ensinamentos de Cretella, os pais, que devem (obrigatoriamente) matricular seus

    filhos, existindo, pois, dois sujeitos responsveis pela garantia do direito educao.

    Nesse cenrio, esse sujeito de direito, aqui, mais especificamente, a

    criana e o adolescente, passa a ser protagonista. Portanto, sujeitos ativos, capazes

    de verem e se envolverem com a educao enquanto posse de conhecimentos,

    construtores de uma identidade social e cultural; em contrapartida, o sujeito ativo,

    aquele que organizou ou construiu o contrato social ou o contrato ideolgico

    (Estado), e a famlia, os sujeitos que vo garantir o direito, transformando o suposto

    protagonista em objeto do direito.

    Caracteriza-se, ento, essa relao direito-dever como uma educao

    que se d mais pelo dissenso decorrente de polticas pblicas, nas quais contedos

    valorativos e vises de mundo discrepantes se entrechocam. Essa concepo

    aproxima-se da educao alicerada no modelo de interveno coercitiva e

    repressora, que legitima aes e programas que, disfarados de poltica social de

    benemerncia, aprimoram e solidificam mecanismos de controle social, configurando

    a ter o dever a criana e o adolescente de estar na escola, sob pena de

    responsabilizao do sujeito ativo e do sujeito passivo.

    Assim, inexistindo a oferta da educao obrigatria (educao bsica,

    artigo 208, inciso I, CF), ou sendo sua oferta irregular, estabelece-se a possibilidade

    de se apurar a responsabilidade da autoridade omissa ou, se for o caso, do

    comportamento omisso da famlia quando no houver a efetividade da matrcula ou

    do acompanhamento escolar do filho ou pupilo. Esto, assim, dados as garantias, os

    mecanismos de procedimentos para se efetivar o direito fundamental da educao,

    pois,

    [...] no ECA, a educao merece destaque como contedo do pargrafo nico, art. 4 como uma garantia de prioridade e, nas alneas c e d, a preferncia na formulao e na execuo das polticas sociais pblicas e a destinao privilegiada de recursos pblicos nas reas relacionadas com a proteo infncia e

  • 35

    juventude, respectivamente. No artigo 5, qualquer omisso ou ao que colida ou impea a garantia de seus direitos fundamentais (a educao um bem fundamental), a instituio e mesmo seus responsveis podero ser punidos na forma da lei (PEREIRA, 2006, p. 149)32.

    Como vimos, a educao definida como direito de todos33 enquanto

    direito constitucional, e, nessa perspectiva, estabelecidos dispositivos nas leis

    complementares para sua garantia, no isentando dessa obrigao do Estado,

    enquanto sistema escolar, e da famlia, enquanto garantidora desse dever, os

    adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. Ao contrrio, a

    educao compulsria parte dos requisitos jurdicos do ECA na aplicao de

    medidas socioeducativas, conforme dispe o inciso II, artigo 119 desse Estatuto34.

    Percebe-se uma distncia entre o preconizado na lei e a garantia efetiva

    do direito na prtica escolar, no sendo, pois, surpresa que a sociedade

    contempornea atribua, equivocadamente, escola, o papel deseducador, pois, por

    essa perspectiva, ela tambm no estaria considerando necessria a presena

    desses adolescentes que, afinal, no reproduzem a imagem do aluno ideal.

    Surgem, assim, premissas do senso comum, extremamente equivocadas e

    apartadas de um contexto educacional amistoso, tais como: aluno bom aquele

    que obedece s regras da instituio-escola; adolescentes oriundos de famlias

    desreguladas s trazem problemas; melhor no virem para escola35. Ou, ainda,

    que esta sociedade seja composta por adolescentes que encontram dificuldades em

    valorizar a escola, que se desinteressam ou que se deparam com a dura labuta de

    enfrentar diariamente um espao ao qual no se sentem pertencentes.

    32

    Art. 4 - dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder pblico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivao dos direitos referentes vida, sade, alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria. Pargrafo nico. A garantia de prioridade compreende: c) preferncia na formulao e na execuo das polticas sociais pblicas; d) destinao privilegiada de recursos pblicos nas reas relacionadas com a proteo infncia e juventude (ECA, 1990). Art. 5 - Nenhuma criana ou adolescente ser objeto de qualquer forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso, punido na forma da lei qualquer atentado, por ao ou omisso, aos seus direitos fundamentais (ECA, 1990). 33

    Artigo 205 da CF/88, artigo 2 da LDBEN, Lei n 9394/96, artigo 53 do ECA, Lei n 8069/90. 34

    Art. 118 A liberdade assistida ser adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. Art. 119 - Incumbe ao orientador, com o apoio e a superviso da autoridade competente, a realizao dos seguintes encargos, entre outros: II - supervisionar a frequncia e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrcula (ECA, 1990). 35

    Discurso reproduzido no cotidiano escolar por professores, educadores e gestores, observados no exerccio da ao supervisora.

  • 36

    Diante disso, quando se discute a importncia da garantia dos direitos

    humanos, as consequncias do racismo, da violncia, do abuso de drogas e da

    intolerncia com adolescentes em conflito com a lei, a sociedade contempornea se

    depara com o fato de serem essas questes aquelas com as quais a escola deve

    lidar. Contudo, isso nos leva a pensar que, se a escola no consegue atrair e

    manter o interesse dos adolescentes, de maneira geral, como far para abordar esse

    aspecto complexo, ou seja, receber, cuidar, educar e preparar o adolescente autor

    de ato infracional, que cumpre medidas socioeducativas de LA ou PSC, garantindo a

    ele o direito humano educao?

    A Declarao do Direito Educao aparece na Constituio Federal

    (1988) em seu artigo 6: So direitos sociais a educao [...], destacando-se com

    primazia a educao, que reafirmada enquanto direito no artigo 205 - A educao

    direito de todos [...], detalhada na sua efetivao no artigo 208 e reconhecida como

    direito fundamental, quando, no pargrafo primeiro desse artigo, se refora a

    importncia da declarao do direito educao, afirmando-se: O acesso ao ensino

    obrigatrio e gratuito direito pblico subjetivo. Dado a importncia desse

    dispositivo, recorremos novamente aos ensinamentos de Cretella:

    O artigo 208, 1 da Constituio vigente no deixa a menor dvida a respeito do acesso ao ensino obrigatrio e gratuito que o educando, em qualquer grau, cumprindo os requisitos legais, tem o direito pblico subjetivo, oponvel ao Estado, no tendo este nenhuma possibilidade de negar a solicitao, protegida por expressa norma jurdica constitucional cogente (CRETELLA apud OLIVEIRA, 1999, p. 64).

    Compreender a abrangncia e importncia desse dispositivo legal nos

    remete aos movimentos e campanhas gestadas no final dos anos 1980, incio dos

    anos 1990, organizadas na defesa dos direitos da criana e do adolescente e que

    colocavam na agenda, como direito humano fundamental, o direito educao.

    Enquanto a norma construda pelo consenso institui a educao como Direito

    Humano, a Constituio Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    Nacional e o Estatuto da Criana e do Adolescente estabelecem o direito

    educao como direito pblico subjetivo.

    Impe-se, em decorrncia dessa garantia, uma atuao mais ampliada e

    comprometida dos gestores pblicos, pautada no novo ordenamento constitucional,

  • 37

    que visa implementao de poltica pblica educacional que garanta educao de

    qualidade para todos.

    A LDBEN (1996), em seu artigo 1, apresenta um conceito amplo de

    educao o qual contempla tambm os processos educacionais que acorrem fora

    dos limites da escola quando estabelece: [...] na vida familiar, na convivncia

    humana, no trabalho, nas instituies de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais

    e organizaes da sociedade civil e nas manifestaes culturais. Contudo, essa lei

    define, por fim, ser seu objeto a educao escolar, tendo no ensino sua dimenso

    especfica e sendo desenvolvida em instituies prprias. Por esse vis, a

    instituio escolar, representante oficial dessa poltica social, que deveria garantir

    tal direito.

    Mas, como pensar o papel do Estado e a escola como seu representante

    oficial em meio ao fato de esta instituio se negar a receber os adolescentes em

    conflito com a lei? Ao fazer isso, a escola no acaba por violar o direito inalienvel

    educao sobretudo, quando no permite a igualdade de acesso aos diversos

    nveis de educao -, mais a fundo, acaba por ferir o aspecto epistemolgico ao no

    garantir o processo de produo, sistematizao e socializao do conhecimento

    com qualidade? Por outro lado, como pensar a questo dos direitos humanos e das

    polticas pblicas?

    Segundo Costas Douzinas (2007), o fim dos Direitos Humanos chega

    quando eles perdem o seu fim utpico [...] (p. 384). importante a compreenso de

    que os Direitos Humanos perdem seu fim quando passam a serem instrumentos de

    poltica de dominao, poltica esta que deve continuamente ser objeto de discusso

    dentro do contexto escolar, na busca de equidade. Assim sendo, no podemos

    deixar de considerar a importncia das polticas pblicas que se caracterizam pela

    afirmao de direitos e do papel social da escola, seu comprometimento consciente,

    possibilitando formao integral, consolidando um futuro digno com respeito ao

    adolescente como sujeito de direitos.

    No entanto, vale ressaltar a necessidade de se reforar ser o processo

    ensino-aprendizagem voltado aos Direitos Humanos, devendo este visar

    propagao de boas prticas e no dar maior enfoque aprendizagem e respeito

    desses direitos a partir da narrativa de uma violao. No h necessidade que haja

    uma violao para o ser humano ter direito. Esse ponto nevrlgico pode explicar o

  • 38

    sentimento de injustia em relao ao respeito aos direitos, assim como, se fazer

    perceber o direito que todos tm e, muitas vezes, desconhecem.

    Lafer (1997) nos traz elementos importantes para essa discusso,

    tomando as contribuies de Hannah Arendt. Para o autor, Arendt ensina que ter

    direito consiste numa construo poltica, ou ainda, em formar conhecimento dessas

    construes histricas que fazem a histria humana, nos intervalos das diferentes

    opinies, porque a Histria que se constri com dilogo e negociao, por meios

    no violentos, ainda que, muitas vezes, possam ser conflitivos e de difcil

    negociao.

    A maneira pela qual uma sociedade, a partir de seus prprios valores, busca adotar um agir voltado para a construo do bem comum, no subjetiva, tem que ter uma finalidade a partir de uma realidade e agir em funo de um projeto maior, um projeto de compromisso tico consciente da importncia de uma reflexo terica e de uma prxis reflexiva (TELES, 2010).36

    Reconhecer o direito educao e reivindicar que o que est no texto da

    Declarao Universal de Direitos Humanos e nos trechos da Constituio Federal de

    1988, ligados educao, seja garantido para todas as crianas e adolescentes e,

    tambm, aos que estejam em medidas socioeducativas traz algumas implicaes.

    Isso implica a eliminao de todas as formas de preconceitos, no incentivo ao

    respeito diversidade, participao de grupos socialmente discriminados e de

    compromissos ticos junto aos destinatrios do direito. A funo social, expressa na

    norma e no compromisso da misso institucional, bem como na qualidade do servio

    profissional prestado, consiste e, assim, possibilita essa mesma reflexo terica

    junto aos profissionais da educao.

    Dessa forma, em consonncia s ilustres palavras de Costa (2010) 37,

    consideramos que uma questo tica assumir que no dependemos

    exclusivamente do poder poltico para garantir o direito educao a todos,

    conforme o valor expresso nas normas. Tal fato sinaliza a importncia de se (re)ver

    as oportunidades que se tm formado (ou no) na sociedade escolar frente tarefa

    humanizadora que visa transformar o aspecto disciplinador em emancipador da

    36

    Prof. Doutor Edson Teles, conceituao anotada pela pesquisadora em aula de 17 de abril de 2010, da disciplina de tica e Direitos Humanos, do Programa Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei. 37

    Educador Antnio Carlos Gomes da Costa, 20 de agosto de 2010, em palestra proferida no V Seminrio Nacional Adolescente em Conflito com a Lei, promovido pela UNIBAN Brasil em So Paulo (anotado pela pesquisadora).

  • 39

    educao enquanto direito humano, mais ainda, enquanto oportunidade de se ter um

    futuro melhor.

    2.3 O PAPEL SOCIAL DA ESCOLA NA EFETIVAO DO DIREITO

    EDUCAO DE CRIANAS E ADOLESCENTES

    Discutir o papel social da escola e o direito educao representa um

    debate atual e necessrio, visto ser ainda o conceito de garantia inovador no campo

    desses temas vinculados criana e ao adolescente e, mais especificamente,

    garantia do direito educao do adolescente em conflito com a lei. O tema

    inovador quando temos em vista a criana e o adolescente como sujeitos de direitos,

    em relao ao antigo ordenamento cuja principal norma era o Cdigo de Menores,

    com seu carter nitidamente discriminatrio, que considerava a criana e o

    adolescente como menor objeto de medidas de proteo.

    Cabe aqui uma breve anlise acerca do contexto histrico da educao

    no Brasil, o papel da escola e a articulao entre esta e a garantia de direitos.

    O primeiro movimento oficial de educao formal38 apareceu na

    Constituio Poltica do Imprio do Brasil, em 1824, e trazia em seu Inciso XXXII do

    artigo 179 - A Instruco primria gratuita a todos os Cidados [...], prevalecendo,

    aqui, a ideia assistencialista e de caridade na poltica governamental, como observa

    Del Priore (2010):

    [...], pelo menos at o fim do sculo XIX, o abandono de crianas, o trabalho infantil e a questo da falta de educao, ou seja, o pouco prestgio da escola, acabaram por criar uma enorme dessensibilizao em torno da nossa infncia. A criana era um trabalhador braal como qualquer outro, e tinha que sobreviver graas a suas artes, sua inventividade e sua criatividade sem grande apoio da sociedade (p. 4).

    38

    Por educao formal, aqui, compreende-se a prtica educativa que ocorre nos espaos escolarizados e acontece de forma intencional e com objetivos determinados. Conforme ensinamentos de Brando, O que Educao, p. 26, 2007, 49 edio, O ensino formal o momento em que a educao se sujeita pedagogia (a teoria da educao); cria situaes prprias para o seu exerccio, produz os seus mtodos, estabelece suas regras e tempos, e constitui executores especializados.

  • 40

    Nesse perodo, segundo Del Priore (2010), as Rodas dos Expostos39,

    localizadas nos muros das Santas Casas, eram a fonte para a fora do trabalho

    infantil, pois as crianas recolhidas, cuidadas e atendidas pelas Irms de caridade

    eram aproveitadas nos servios domsticos, no comrcio e, no caso de crianas em

    situao de abandono e as oriundas de famlias pobres, eram recrutadas pela

    Companhia de Aprendizes Marinheiros ou Aprendizes do Arsenal de Guerra (p.

    198). A marca da poltica social desse perodo passava pela internao de crianas

    e jovens em orfanatos e colgios internos, o primeiro destinado aos pobres com

    status de ameaa social e o segundo, educao dos filhos da elite (CUSTDIO e

    VERONESE, 2009, p. 33).

    A Constituio republicana de 1891 estabeleceu que [...] o ensino ser

    leigo e livre em todos os graus e gratuito no primrio. Faz-se importante lembrar

    que o percentual de analfabetos, no ano de 1900, segundo o Anurio Estatstico do

    Brasil, do Instituto Nacional de Estatstica, consistia em 75%. Alm disso, vale

    ressaltar que parcela populacional de crianas e de adolescentes no

    pertencentes elite cabia o acesso s indstrias nascentes e agricultura, de

    maneira que a mo de obra infantil era proibida na lei, mas no se fazia valer na

    prtica.

    A referncia para se estabelecer responsabilidade sobre a criana recaa

    sobre o Cdigo Penal dos Estados Unidos do Brasil. O mesmo estabelecia ser

    inimputvel a criana menor de nove anos e inimputveis as crianas entre nove e

    14 anos, que no tivessem discernimento. Quando constatado seu discernimento em

    relao prtica da ao criminosa, as crianas e adolescentes eram recolhidos em

    estabelecimentos disciplinares industriais at perfazerem 17 anos.

    J na primeira metade do sculo XX, a educao no Brasil marcada por

    reformas de abrangncias estaduais, caracterizando a no existncia de um sistema

    de ensino que fosse unificado, voltado para o interesse do aluno que, sendo pobre

    ou excludo, tinha o trabalho como soluo para sua aprendizagem profissional. Del

    Priori aponta ter, no incio do sculo XX, o trabalho infantil sido visto com

    preocupao, quando em decorrncia deste os adolescentes comearam a ganhar

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    O nome Roda dos Expostos se refere a um artefato de madeira fixado ao muro ou janela das Santas Casas de Misericrdia, no qual era depositada a criana, sendo que, ao se girar o artefato, a criana era conduzida para dentro das dependncias, sem que a identidade de quem ali a colocasse fosse revelada.

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    importncia, ao mesmo tempo em que, estando nas ruas, comearam a praticar

    pequenos delitos. Com isso, em 1902 so criadas as primeiras Casas de Correo:

    As Casas de Correo so criadas justamente para canalizar estas crianas, tir-las das ruas e faz-las, de alguma maneira, aprender algum tipo de atividade ou serem punidas pelas faltas que cometeram. H um grande debate na poca, sobretudo entre juzes e criminalistas, a respeito do discernimento que as crianas teriam a respeito das faltas cometidas (DEL PRIORE, 2010, p. 9).

    O que se percebe que a teoria da ao do discernimento40 persistia na

    previso de permanncia nessas Casas de Correo por perodo que no

    exce