Adolf Hitler, Leitor

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João Pereira Coutinho Adolf Hitler, leitor Como observava o filósofo alemão Walter Benjamin, a biblioteca de um homem é a sua mais fiel (auto) biografia Ah, as virtudes da leitura! Não existe político ou intelectual "engagé" que, em programas de governo ou artigos de ocasião, não fale apaixonadamente sobre a importância do ato para uma vida luminosa. Sempre tive dúvidas. Ler não é verbo desgarrado. Nem questão de quantidade. Ler é uma questão de qualidade. Não interessa que o sujeito leia muito. Interessa que ele leia o que vale a pena. Más leituras em más cabeças costumam ter efeitos trágicos. Adolf Hitler é um caso: 70 anos atrás, o "Führer" enfiava uma bala na cabeça. A rendição da Alemanha na Segunda Guerra Mundial viria logo a seguir. E, nas explicações convencionais sobre a emergência do "monstro", Hitler é precisamente isso: um "monstro", sem explicação humana ou racional. Lamento discordar: Hitler é um produto perfeitamente compreensível de uma Alemanha arruinada pela Primeira Guerra --e novamente arruinada pela Grande Depressão da década de 1930. Além disso, a instabilidade política da República de Weimar foi terreno fértil para que um demagogo talentoso e ressentido conquistasse uma nação inteira. Mas Hitler não se explica apenas com os conhecidos fatos da história. Aquele homem pensava, escrevia e discursava daquela maneira porque era também um leitor voraz. Timothy W. Ryback, em livro que recomendo ("A Biblioteca Esquecida de Hitler"), permite conhecer o erudito Adolf. Quando morreu em seu bunker, Hitler deixava 16 mil 1

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Joo Pereira Coutinho Adolf Hitler, leitorComo observava o filsofo alemo Walter Benjamin, a biblioteca de um homem a sua mais fiel (auto) biografia Ah, as virtudes da leitura! No existe poltico ou intelectual "engag" que, em programas de governo ou artigos de ocasio, no fale apaixonadamente sobre a importncia do ato para uma vida luminosa. Sempre tive dvidas. Ler no verbo desgarrado. Nem questo de quantidade. Ler uma questo de qualidade. No interessa que o sujeito leia muito. Interessa que ele leia o que vale a pena. Ms leituras em ms cabeas costumam ter efeitos trgicos. Adolf Hitler um caso: 70 anos atrs, o "Fhrer" enfiava uma bala na cabea. A rendio da Alemanha na Segunda Guerra Mundial viria logo a seguir. E, nas explicaes convencionais sobre a emergncia do "monstro", Hitler precisamente isso: um "monstro", sem explicao humana ou racional. Lamento discordar: Hitler um produto perfeitamente compreensvel de uma Alemanha arruinada pela Primeira Guerra --e novamente arruinada pela Grande Depresso da dcada de 1930. Alm disso, a instabilidade poltica da Repblica de Weimar foi terreno frtil para que um demagogo talentoso e ressentido conquistasse uma nao inteira. Mas Hitler no se explica apenas com os conhecidos fatos da histria. Aquele homem pensava, escrevia e discursava daquela maneira porque era tambm um leitor voraz. Timothy W. Ryback, em livro que recomendo ("A Biblioteca Esquecida de Hitler"), permite conhecer o erudito Adolf. Quando morreu em seu bunker, Hitler deixava 16 mil volumes para a posteridade. Desses 16 mil, existem hoje uns 1.200 nos Estados Unidos. Olhando para essas obras, e sobretudo para os sublinhados e anotaes dos livros que Hitler ter realmente lido, possvel compreender melhor a sua cabea destrutiva. Ponto prvio: enganam-se os que pensam que o nacional-socialismo, na sua imensa boalidade, se fez sombra das pginas complexas de Fichte, Schopenhauer ou Nietzsche. Desses trs, Hitler retirou, quando muito, uma expresso aqui, um pensamento acol --tudo para enfeitar os seus textos com uma iluso de conhecimento. Hitler era um leitor voraz, repito; mas era um mau leitor voraz: porque procurava no pensamento alheio argumentos, ou pseudo argumentos, que apenas reforassem as suas lunticas teorias. Mas Hitler era tambm um mau leitor porque, resumindo uma longa histria, os seus livros de eleio eram lixo puro para qualquer intelecto civilizado. Deixando de lado o nmero impressionante de obras de ocultismo e espiritismo que s reforaram a sua messinica paranoia, a Hitler interessava sobretudo "meditaes" cientficas, ou pseudocientficas, sobre a decadncia da Alemanha e a contaminao --material, intelectual, rcica-- de que era vtima o povo alemo. Isso comeou logo na Primeira Guerra Mundial, quando um pequeno livro sobre Berlim, da autoria de Max Osborn (ironicamente, um autor judeu), foi lido e relido pelo ento cabo austraco. Em "Berlin", Osborn defendia uma cidade limpa de "elementos estranhos" que pudessem degradar arquitetonicamente "uma distintiva viso teutnica". O livro teve uma influncia to profunda em Hitler que, anos mais tarde, nos seus desejos grandiosos de refazer Berlim, era no livro de Osborn que o "Fhrer" pensava ainda. E quem fala em corrupo arquitetnica, fala em corrupo internacionalista. O nacionalismo de Hitler encontra-se em autores romnticos como Herder ou o referido Fichte? No, no se encontra: est antes na prosa medocre de um Otto Dickel que, contra o fatalismo de Oswald Spengler, apelava aos instintos mais primrios da nao germnica para que regenerasse o Ocidente. Por ltimo, a "praga judaica": como explicar essa funesta obsesso? Com livros, sempre com livros. No apenas com as obras infames de Stewart Chamberlain ou Henry Ford. Mas lendo --e levando a srio-- os avisos de Madison Grant, um autor de terceira categoria, para quem a "raa nrdica" (ou "ariana", como Hitler preferia chamar-lhe) se deixara abastardar pelo contato com "raas inferiores". A miscigenao que ocorreu na Amrica Latina era a prova dessa bastardia. Nos 70 anos da morte de Hitler, escutaremos os clichs recorrentes sobre a ascenso e queda do "monstro". Mas jamais conheceremos verdadeiramente esse "monstro" se nos esquecermos da singela observao de Walter Benjamin: a biblioteca de um homem a sua mais fiel (auto)biografia. https://www.youtube.com/watch?v=bE28d-zpRqA2