Adolfo Sánchez Vásquez - Ética

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ADOLFO SÁNCHEZ VÁSQUEZ ÉTICA Capítulo I Objeto da Ética 1. - Problemas Morais e Problemas Éticos NAS RELAÇÕES cotidianas dos indivíduos entre si, surgem continuamente problemas como estes: Devo cumprir a promessa x que fiz ontem ao meu amigo Y, embora hoje perceba que o cumprimento me causará certos prejuízos? Se alguém se me aproxima, à noite, de maneira suspeita e receio que me possa agredir, devo atirar nele, aproveitando que ninguém pode ver, a fim de não correr o risco de ser agredido? Com respeito aos crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados que os executaram, cumprindo ordens militares, podem ser moralmente condenados? Devo dizer sempre a verdade ou há ocasiões em que devo mentir? Quem, numa guerra de invasão, sabe que o seu amigo Z está colaborando com o inimigo, deve calar, por causa da amizade, ou deve denunciá-lo como traidor? Podemos considerar bom o homem que se mostra caridoso com o mendigo que bate à sua porta e, durante o dia — como patrão — explora impiedosamente os operários e os empregados da sua empresa? Se um indivíduo procura fazer o bem e as consequências de suas ações são prejudiciais àqueles que pretendia favorecer, porque lhes causa mais prejuízo do que benefício, devemos julgar que age corretamente de um ponto de vista moral, quaisquer que tenham sido os efeitos de sua ação? Era todos estes casos, trata-se de problemas práticos, isto é, de problemas que se apresentam nas relações efetivas, reais, entre indivíduos ou quando se julgam certas decisões e ações dos mesmos. Trata-se, por sua vez, de problemas cuja solução não concerne somente à pessoa que os propõe, mas também a outra ou outras pessoas que sofrerão as consequências da sua decisão e da sua ação. As consequências podem afetar somente um indivíduo (devo 1

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ADOLFO SNCHEZ VSQUEZ

ADOLFO SNCHEZ VSQUEZ

TICACaptulo IObjeto da tica

1. - Problemas Morais e Problemas ticosNas relaes cotidianas dos indivduos entre si, surgem continuamente problemas como estes: Devo cumprir a promessa x que fiz ontem ao meu amigo Y, embora hoje perceba que o cumprimento me causar certos prejuzos? Se algum se me aproxima, noite, de maneira suspeita e receio que me possa agredir, devo atirar nele, aproveitando que ningum pode ver, a fim de no correr o risco de ser agredido? Com respeito aos crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados que os executaram, cumprindo ordens militares, podem ser moralmente condenados? Devo dizer sempre a verdade ou h ocasies em que devo mentir? Quem, numa guerra de invaso, sabe que o seu amigo Z est colaborando com o inimigo, deve calar, por causa da amizade, ou deve denunci-lo como traidor? Podemos considerar bom o homem que se mostra caridoso com o mendigo que bate sua porta e, durante o dia como patro explora impiedosamente os operrios e os empregados da sua empresa? Se um indivduo procura fazer o bem e as consequncias de suas aes so prejudiciais queles que pretendia favorecer, porque lhes causa mais prejuzo do que benefcio, devemos julgar que age corretamente de um ponto de vista moral, quaisquer que tenham sido os efeitos de sua ao? Era todos estes casos, trata-se de problemas prticos, isto , de problemas que se apresentam nas relaes efetivas, reais, entre indivduos ou quando se julgam certas decises e aes dos mesmos. Trata-se, por sua vez, de problemas cuja soluo no concerne somente pessoa que os prope, mas tambm a outra ou outras pessoas que sofrero as consequncias da sua deciso e da sua ao. As consequncias podem afetar somente um indivduo (devo dizer a verdade ou devo mentir a X?); em outros casos, trata-se de aes que atingem vrios indivduos ou grupos sociais (os soldados nazistas deviam executar as ordens de extermnio emanadas de seus superiores?). Enfim, as consequncias podem estender-se a uma comunidade inteira, como a nao (devo guardar silncio em nome da amizade, diante do procedimento de ura traidor?).Em situaes como estas que acabamos de enumerar, os indivduos se defrontam com a necessidade de pautar o seu comportamento por normas que se julgam mais apropriadas ou mais dignas de ser cumpridas. Estas normas so aceitas intimamente e reconhecidas como obrigatrias: de acordo com elas, os indivduos compreendem que tm o dever de agir desta ou daquela maneira. Nestes casos, dizemos que o homem age moralmente e que neste seu comportamento se evidenciam vrios traos caractersticos que o diferenciam de outras formas de conduta humana. Sobre este comportamento, que o resultado de uma deciso refletida e, por isto, no puramente espontnea ou natural, os outros julgam, de acordo tambm com normas estabelecidas, e formulam juzos como os seguintes: "X agiu bem mentindo naquelas circunstncias"; "Z devia denunciar o seu amigo traidor", etc.Desta maneira temos, pois, de um lado, atos e formas de comportamento dos homens em face de determinados problemas, que chamamos morais, e, do outro lado, juzos que aprovam ou desaprovam moralmente os mesmos atos. Mas, por sua vez, tantos os atos quanto os juzos morais pressupem certas normas que apontam o que se deve fazer. Assim, por exemplo, o juzo: "X devia denunciar o seu amigo traidor", pressupe a norma "os interesses da ptria devem ser postos acima dos da amizade".Por conseguinte, na vida real, defrontamo-nos com problemas prticos do tipo dos enumerados, dos quais ningum pode eximir-se. E, para resolv-los, os indivduos recorrem a normas, cumprem determinados atos, formulam juzos e, s vezes, se servem de determinados argumentos ou razes para justificar a deciso adotada ou os passos dados.Tudo isto faz parte de um tipo de comportamento efetivo, tanto dos indivduos quanto dos grupos sociais e/tanto de ontem quanto de hoje. De fato, o comportamento humano prtico-moral, ainda que sujeito a variao de uma poca para outra c de uma sociedade para outra, remonta at as prprias origens do homem como ser social.A este comportamento prtico-moral, que j se encontra nas formas mais primitivas de comunidade, sucede posteriormente muitos milnios depois a reflexo sobre ele. Os homens no s agem moralmente (isto , enfrentam determinados problemas nas suas relaes mtuas, tomam decises e realizam certos atos para resolv-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decises c estes atos), mas tambm refletem sobre esse comportamenlo prtico e o tomam como objeto da sua reflexo e de seu pensamento. D-se assim a passagem do plano da prtica moral para o da teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva, vivida, para a moral reflexa. Quando se verifica esta passagem, que coincide com os incios do pensamento filosfico, j estamos propriamente na esfera dos problemas terico-morais ou ticos. diferena dos problemas prtico-morais, os ticos so caracterizados pela sua generalidade. Se na vida real um indivduo concreto enfrenta uma determinada situao, dever resolver por si mesmo, com a ajuda de uma norma que reconhece e aceita intimamente, o problema de como agir de maneira a que sua ao possa ser boa, isto , moralmente valiosa. Ser intil recorrer tica com a esperana de encontrar nela uma norma de ao para cada situao concreta. A tica poder dizer-lhe, cm geral, o que c um comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim o bom visado pelo comportamento morai, do qual faz parte o procedimento do indivduo concreto ou o de todos. O problema do que fazer em cada situao concreta um problema prtico-moral e no terico-tico. Ao contrrio, definir o que o bom no um problema moral cuja

soluo caiba ao indivduo em cada caso particular, mas um problema geral de carter terico, de competncia do investigador da mora, ou seja, do tico. Assim, por exemplo, na Antiguidade grega, Aristteles se prope o problema terico de definir o que o bom. Sua tarefa investigar o contedo do bom, e no determinar o que cada indivduo deve fazer em cada caso concreto para que o seu ato possa ser considerado bom/ Sem dvida, esta investigao terica no deixa de ter consequncias prticas, porque, ao se definir o que o bom, se est traando um caminho geral, cm cujo marco os homens podem orientar a sua conduta nas diversas situaes particulares. Neste sentido, a teoria pode influir no comportamento moral-prtico. Mas, apesar disso, o problema prtico que o indivduo deve resolver na sua vida cotidiana c o problema terico cuja soluo compete ao investigador, a partir da anlise do material que lhe proporcionado pelo comportamento efetivo dos homens, no podem ser identificados. Muitas teorias ticas organizaram-se em torno da definio do bom, na suposio de que, se soubermos determinar o que , poderemos saber o que devemos fazer ou no fazer. As respostas sobre o que o bom variam, evidentemente, de uma teoria para outra: para uns, o bom a felicidade ou o prazer; para outros, o til, o poder, a. autocriao do ser humano, etc.Mas, juntamente com este problema central, colocam-se tambm outros problemas ticos fundamentais, tais como o de definir a essncia ou os traos essenciais do comportamento moral, diferena de outras formas de comportamento humano, como a religio, a poltica, o direito, a atividade cientfica, a arte, o trato social, etc. O problema da essncia do ato moral envia a outro problema importantssimo; o da responsabilidade. possvel falar em comportamento moral somente quando o sujeito que assim se comporta responsvel pelos seus atos, mas isto, por sua vez, envolve o pressuposto de que pde fazer o que queria fazer, ou seja, de que pde escolher entre duas ou mais alternativas, e agir de acordo com a deciso tomada. O problema da liberdade da vontade, por isso, inseparvel do da responsabilidade. Decidir e agir numa situao concreta um problema prtico-moral; mas investigar o modo pelo qual a responsabilidade moral se relaciona com a liberdade e com o determinismo ao qual nossos atos esto sujeitos um' problema terico, cujoestudo da competncia da tica. Problemas ticos so tambm 0 da obrigatoriedade moral, isto , o da natureza e fundamentos tio comportamento moral enquanto obrigatrio, bera como o da realizao moral, no s como empreendimento individual mas tambm como empreendimento coletivo.Os homens, porm, em seu comportamento prtico-moral, no somente cumprem determinados atos, como, ademais, julgam ou avaliam os mesmos; isto , formulam juzos de aprovao ou de reprovao deles e se sujeitam consciente e livremente a certas normas ou regras de ao. Tudo isto toma a forma lgica de certos enunciados ou proposies. Neste ponto, abre-se para a tica um vasto campo de investigao que, em nosso tempo, constituiu uma sua seo especial sob o nome de meta-tica, cuja tarefa o estudo da natureza, funo e justificao dos juzos morais. Precisamente este ltimo um problema meta-tico fundamental: ou seja, examinar se se podem apresentar razes ou argumentos e, em tal caso, que tipo de razes ou de argumentos para demonstrar a validade de um juzo moral e, particularmente, das normas morais.Os problemas tericos e os problemas prticos, no terreno moral, se diferenciam, portanto, mas no esto separados por uma barreira intransponvel. As solues que se do aos primeiros no deixam de influir na colocao e na soluo dos segundos, isto , na prpria prtica moral; por sua vez, os problemas propostos pela moral prtica, vivida, assim como as suas solues, constituem a matria de reflexo, o fato ao qual a teoria tica deve retornar constantemente para que no seja uma especulao estril, mas sim a teoria de um modo efetivo, real, de comportamento do homem.

2. - O Campo da tica

Os problemas ticos caracterizam-se pela sua generalidade e isto os distingue dos problemas morais da vida cotidiana, que so os que se nos apresentam nas situaes concretas. Mas, desde que a soluo dada aos primeiros influi na moral vivida sobretudo quando se trata no de uma tica absolutista, apriorstica ou puramente especulativa , a tica pode contribuir para fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral. Assim, por exemplo, se a tica revela uma relao entre o comportamento moral e as necessidades e os interesses sociais, ela nos ajudar a situar no devido lugar a moral efetiva, real, de um grupo social que tem a pretenso de que seus princpios e suas normas tenham validade universal, sem levar em conta necessidades e interesses concretos. Por outro lado, se a tica, quando trata de definir o que o bom, recusa reduzi-lo quilo que satisfaz meu interesse pessoal, exclusivo, evidentemente influir na prtica moral ao rejeitar um comportamento egosta como moralmente vlido. Por causa de seu carter prtico, enquanto disciplina terica, tentou-se ver na tica uma disciplina normativa, cuja funo fundamental seria a de indicar o comportamento melhor do ponto de vista moral. Mas esta caracterizao da tica como disciplina normativa pode levar e, no passado frequentemente levou a esquecer seu carter propriamente terico. Certamente, muitas ticas tradicionais partem da idia de que a misso do terico, neste campo, dizer aos homens o que devem fazer, ditando-lhes as normas ou princpios pelos quais pautar seu comportamento. O tico transforma-se assim numa espcie de legislador do comportamento moral dos indivduos ou da comunidade. Mas a funo fundamental da tica a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. Por outro lado, a realidade moral varia historicamente e, com ela, variam os seus princpios e as suas normas. A pretenso de formular princpios e normas universais, deixando de lado a experincia moral histrica, afastaria da teoria precisamente a realidade que deveria explicar. Tambm certo que muitas doutrinas ticas do passado so no uma investigao ou esclarecimento da moral como comportamento efetivo, humano, mas uma justificao ideolgica de determinada moral, correspondente a determinadas necessidades sociais, e, para isto, elevam os seus princpios e as suas normas categoria de princpios e normas universais, vlidos para qualquer moral. Mas o campo da tica nem est margem da moral efetiva, nem tampouco se limita a uma determinada forma temporal e relativa da mesma.A tica teoria, investigao ou explicao de um tipo de experincia humana ou forma de comportamento dos homens, o da moral, considerado porm na sua totalidade, diversidade e variedade. O que nela se afirme sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de fato numa comunidade humana moderna. isso que assegura o seu carter terico e evita sua reduo a uma disciplina normativa ou pragmtica. O valor da tica como teoria est naquilo que explica, e no no fato de prescrever ou recomendar com vistas ao em situaes concretas.Como reao a estes excessos normativistas das ticas tradicionais, procurou-se nos ltimos tempos limitar o domnio da tica aos problemas da linguagem e do raciocnio moral, renunciando-se a abordar questes como a definio do bom, a essncia da moral, o fundamento da conscincia moral, etc. Pois bem; embora as questes sobre a linguagem, natureza e significado dos juzos morais tenham uma grande importncia e, por isto, se justifique que sejam estudadas de maneira especial na meta-tica , no podem ser as nicas questes tratadas na tica e tambm no podem ser abordadas independentemente dos problemas ticos fundamentais, levantados pelo estudo do comportamento moral, da moral efetiva em todas as suas manifestaes. Este comportamento se apresenta como uma forma de comportamento humano, como um fato, e cabe tica explic-lo, tomando a prtica moral da humanidade em seu conjunto como objeto de sua reflexo. Neste sentido, como qualquer teoria, a tica explicao daquilo que foi ou , e no uma simples descrio. No lhe cabe formular juzos de valor sobre a prtica moral de outras sociedades, ou de outras pocas, em nome de uma moral absoluta e universal, mas deve, antes, explicar a razo de ser desta pluralidade e das mudanas de moral; isto , deve esclarecer o fato de os homens terem recorrido a prticas morais diferentes e at opostas.A tica parte do fato da existncia da histria da moral, isto , toma como ponto de partida a diversidade de morais no tempo, com seus respectivos valores, princpios e normas. Como teoria, no se identifica com os princpios e normas de nenhuma moral em particular e tampouco pode adotar uma atitude indiferente ou ecltica diante delas. Juntamente com a explicao de suas diferenas, deve investigar o princpio que permita compreend-las no seu movimento e no seu desenvolvimento.Como as demais cincias, a tica se defronta com fatos. Que estes sejam humanos implica, por sua vez, em que sejam fatos de valor. Mas isto no prejudica em nada as exigncias de um estudo objetivo e racional. A tica estuda uma forma de comportamento humano que os homens julgam valioso e, alm disto, obrigatrio e inescapvel. Mas nada disto altera minimamente a verdade de que a tica deve fornecer a compreenso racional de um aspeto real, efetivo, do comportamento dos homens.

3. - Definio da ticaAssim como os problemas tericos morais no se identificam com os problemas prticos, embora estejam estritamente relacionados, tambm no se podem confundir a tica e a moral. A tica no cria a moral. Conquanto seja certo que toda moral supe determinados princpios, normas ou regras de comportamento, no a tica que os estabelece numa determinada comunidade. A tica depara com uma experincia histrico-social no terreno da moral, ou seja, com uma srie de prticas morais j em vigor e, partindo delas, procura determinar a essncia da moral, sua origem, as condies objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliao moral, a natureza e a funo dos juzos morais, os critrios de justificao destes juzos e o princpio que rege a mudana e a sucesso de diferentes sistemas morais.

A tica a teoria ou cincia do comportamento moral dos homens em sociedade, ou seja, cincia de uma forma especfica de comportamento humano.

A nossa definio sublinha, cm primeiro lugar, o carter cientfico desta disciplina; isto , corresponde necessidade de uma abordagem cientfica dos problemas morais. De acordo comesta abordagem, a tica se ocupa de um objeto prprio: o setor da realidade humana que chamamos moral, constitudo como j dissemos por um tipo peculiar de fatos ou atos humanos. Como cincia, a tica parte de certo tipo de fatos visando descobrir-lhes os princpios gerais. Neste sentido, embora parta de dados empricos, isto , da existncia de um comportamento moral efetivo, no pode permanecer no nvel de uma simples descrio ou registro dos mesmos, mas os transcende com seus conceitos, hipteses e teorias. Enquanto conhecimento cientfico, a tica deve aspirar a racionalidade e objetividade mais completas e, ao mesmo tempo, deve proporcionar conhecimentos sistemticos, metdicos e, no limite do possvel, comprovveis. Certamente, esta abordagem cientfica dos problemas morais ainda est muito longe de ser satisfatria, e das dificuldades para alcan-la ainda continuam se beneficiando as ticas especulativas tradicionais e as atuais de inspirao positivista.A tica a cincia da moral, isto , de uma esfera do comportamento humano. No se deve confundir aqui a teoria com o seu objeto: o mundo moral. As proposies da tica devem ter o mesmo rigor, a mesma coerncia e fundamentao das proposies cientficas. Ao contrrio, os princpios, as normas ou os juzos de uma moral determinada no apresentam esse carter. E no somente no tm um carter cientfico, mas a experincia histrica moral demonstra como muitas vezes so incompatveis com os conhecimentos fornecidos pelas cincias naturais e sociais. Da podermos afirmar que, se se pode falar numa tica cientfica, no se pode dizer o mesmo da moral. No existe uma moral cientfica, mas existe ou pode existir um conhecimento da moral que pode ser cientfico. Aqui, como nas outras cincias, o cientfico baseia-se no mtodo, na abordagem do objeto, e no no prprio objeto. Da mesma maneira, pode-se dizer que o mundo fsico no cientfico, embora o seja a sua abordagem ou estudo por parte da cincia fsica. Sc, porm, no existe uma moral cientfica em si, pode existir uma moral compatvel com os conhecimentos cientficos sobre o homem, a sociedade e, em particular, sobre o comportamento humano moral. este o ponto em que a tica pode servir para fundamentar uma moral, sem ser cm si mesma normativa ou preceptiva. A moral no cincia, mas objeto da cincia; e, neste sentido, por ela estudada e investigada. A tica no a moral e, portanto, no pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescries; sua misso explicar a moral efetiva e, neste sentido, pode influir na prpria moral.Seu objeto de estudo constitudo por um tipo de atos humanos: os atos conscientes e voluntrios dos indivduos que afetam outros indivduos, determinados grupos sociais ou a sociedade em seu conjunto.Na definio antes enunciada, tica c moral se relacionam, pois, como uma cincia especfica e seu objeto. Ambas as palavras mantm assim uma relao que no tinham propriamente cm suas origens etimolgicas. Certamente, moral vem do latim mos ou mores, "costume" ou "costumes", no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hbito. A moral se refere, assim,'ao comportamento adquirido ou modo de ser conquistado pelo homem. tica vem do grego ethos, que significa analogamente "modo de ser" ou "carter" enquanto forma de vida tambm adquirida ou conquistada pelo homem. Assim, portanto, originariamente, ethos e mos, "carter" e "costume", assentam-se num modo de comportamento que no corresponde a uma disposio natural, mas que adquirido ou conquistado por hbito. precisamente esse carter no natural da maneira de ser do homem que, na Antiguidade, lhe confere sua dimenso moral.Vemos, pois, que o significado etimolgico de moral e de tica no nos fornecem o significado atual dos dois termos, mas nos situam no terreno especificamente humano no qual se torna possvel e se funda o comportamento moral: o humano como o adquirido ou conquistado pelo homem sobre o que h nele de pura natureza. O comportamento moral pertence somente ao homem na medida em que, sobre a sua prpria natureza, cria esta segunda natureza, da qual faz parte a sua atividade moral.

4. - tica e Filosofia

Ao ser definida como um conjunto sistemtico de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral, a tica se nos apresenta com um objeto especfico que se pretende estudar cientificamente. Esta pretenso se ope concepo tradicional que a reduzia a um simples captulo da filosofia, na maioria dos casos, especulativa.A favor desta posio se propem vrios argumentos de importncia desigual, que conduzem negao do carter cien-tfico e independente da tica. Argumenta-se que esta no elabora proposies objetivamente vlidas, mas juzos de valor ou normas que no podem pretender essa validade. Mas, como j assinalamos, isso se aplica a um tipo determinado de tica a normativa que se atribui a funo fundamental de fazer recomendaes e formular uma srie de normas e prescries morais; mas esta objeo no atinge a teoria tica, que pretende explicar a natureza, fundamentos e condies da moral, relacionando-a com as necessidades sociais dos homens. Um cdigo moral, ou um sistema de normas, no cincia, mas pode ser explicado cientificamente, seja qual for o seu carter ou as necessidades sociais s quais corresponda. A moral dizamos antes no cientfica, mas suas origens, fundamentos e evoluo podem ser investigadas racional e objetivamente; isto , do ponto de vista da cincia. Como qualquer outro tipo de realidade na-tural ou social a moral no pode excluir uma abordagem cientfica. At mesmo um tipo de fenmeno cultural e social como o dos preconceitos no uma exceo no caso; verdade que os preconceitos no so cientficos e que com eles no se pode constituir uma cincia, mas certamente possvel uma explicao cientfica (sistemtica, objetiva e racional) dos preconceitos humanos pelo fato de constiturem parte de uma realidade humana social.Na negao de qualquer relao entre a tica e a cincia se quer basear a atribuio exclusiva da primeira filosofia. A tica ento apresentada como uma parte de uma filosofia especulativa, isto , construda sem levar em conta a cincia e a vida real. Esta tica filosfica preocupa-se mais em buscar a concordncia com princpios filosficos universais do que com a realidade moral no seu desenvolvimento histrico e real, donde resulta tambm o carter absoluto e apriorstico das suas afirmaes sobre o bom, o dever, os valores morais, etc. Certamente, embora a histria do pensamento filosfico esteja repleta deste tipo de ticas, numa poca em que a histria, a antropologia, a psicologia e as cincias sociais nos proporcionam materiais valiosssimos para o estudo do fato moral, no se justifica mais a existncia de uma tica puramente filosfica, especulativa ou dedutiva, divorciada da cincia e da prpria realidade humana moral.Em favor do carter puramente filosfico da tica, argumenta-se tambm, que as questes ticas constituram sempre uma parte do pensamento filosfico. E assim foi na realidade. Quase desde as origens da filosofia, e particularmente desde S-crates na Antiguidade grega, os filsofos no deixaram de tratar em grau maior ou menor destas questes. E isto vale, especialmente, para o vasto perodo da histria da filosofia durante o qual, por no se ter ainda elaborado um saber cientfico sobre diversos setores da realidade natural ou humana, a filosofia se apresentava como um saber total que se ocupava praticamente de tudo. Mas, nos tempos modernos, lanam-se as bases de um verdadeiro conhecimento cientfico que , originariamente, fsico-matemtico , e, na medida em que a abordagem cientfica se estende progressivamente a novos objetos ou setores da realidade, inclusive realidade social do homem, vrios ramos do saber se desprendem do tronco comum da filosofia para constituir cincias especiais com um objeto especfico de investigao e com uma abordagem sistemtica, metdica, objetiva e racional comum s diversas cincias. Um dos ltimos ramos que se des-' prendeu do tronco comum foi a psicologia, cincia simultaneamente natural e social, embora ainda hoje haja quem se empenhe em fazer dela sob a forma de tratado da alma uma simples psicologia filosfica.Hoje trilham este caminho cientfico vrias disciplinas entre elas a tica que eram tradicionalmente consideradas como tarefas exclusivas dos filsofos. Mas, atualmente, este processo de conquista de uma verdadeira natureza cientfica assume antes a caracterstica de uma ruptura com as filosofias especulativas que pretendem sujeit-las e de uma aproximao com as cincias que lhes pem cm mos proveitosas concluses. Desta maneira, a tica tende a estudar um tipo de fenmenos que se verificam realmente na vida do homem como ser social c consti-tuem o que chamamos do mundo mora!; ao mesmo tempo, procura estud-los no deduzindo-os de princpios absolutos ouapriorsticos, mas afundando suas razes na prpria existncia histrica e social do homem.Ora, o fato de que a tica assim concebida isto , com um objeto prprio tratado cientificamente busque a autonomia prpria a um saber cientfico no significa que esta autonomia possa ser considerada como absoluta com relao aos demais ramos do saber e, em primeiro lugar, com relao prpria filosofia. As importantes contribuies do pensamento filosfico neste terreno desde a filosofia grega at os nossos dias , longe de ser relegadas ao esquecimento, devem ser altamente valorizadas porque, em muitos casos, conservam a sua riqueza e vitalidade. Da a necessidade e a importncia do seu estudo. Uma tica cientfica pressupe necessariamente uma concepo filosfica imanentista e racionalista do mundo e do homem, na qual se eliminem instncias ou fatores extramundanos ou super-humanos e irracionais. De acordo com esta viso imanentista e racionalista do mundo, a tica cientfica incompatvel com qualquer cosmoviso universal e totalizadora que se pretenda colocar acima das cincias positivas ou em contradio com elas. As questes ticas fundamentais como, por exemplo, as que concernem s relaes entre responsabilidade, liberdade e necessidade devem ser abordadas a partir de pressupostos filosficos bsicos, como o da dialtica da necessidade e da liberdade. Mas, neste problema como em outros, a tica cientfica deve apoiar-se numa filosofia estreitamente relacionada com as cincias, e no numa filosofia especulativa, divorciada delas, que pretenda deduzir de princpios absolutos a soluo dos problemas ticos.Ademais, como teoria de uma forma especfica do comportamento humano, a tica no pode deixar de partir de determinada concepo filosfica do homem. O comportamento moral prprio do homem como ser histrico, social e prtico, isto , como um ser que transforma conscientemente o mundo que o rodeia; que faz da natureza externa um mundo sua medida humana, c que, desta maneira, transforma a sua prpria natureza. Por conseguinte, o comportamento moral no a manifestao de uma natureza humana eterna c imutvel, dada de uma vez para sempre, mas de uma natureza que est sempre sujeita ao processo de transformao que constitui precisamente a histria da humanidade. A moral, bem como suas mudanas fundamentais, no so seno uma parte desta histria humana, isto , do processo de autocriao ou autotransformao do homem que se manifesta de diversas maneiras, estreitamente relacionadas entre si: desde suas formas materiais de existncia at as suas formas espirituais, nas quais se inclui a vida moral.Vemos, assim, que se a moral inseparvel da atividade prtica do homem material e espiritual , a tica nunca pode deixar de ter como fundamento a concepo filosfica do homem que nos d uma viso total deste como ser social, histrico e criador. Toda uma srie de conceitos com os quais a tica trabalha de uma maneira especfica, como os de liberdade, necessidade, valor, conscincia, socialidade, etc., pressupem um prvio esclarecimento filosfico. Tambm os problemas relacionados com o conhecimento moral ou com a forma, significao e validade dos juzos morais exigem que a tica recorra a disciplinas filosficas especiais, como a lgica, a filosofia da linguagem e a epistemologia. Em suma, a tica cientfica est estreitamente relacionada com a filosofia, embora, como j observamos, no com qualquer filosofia; e esta relao, longe de excluir o seu carter cientfico, o pressupe necessariamente quando se trata de uma filosofia que se apia na prpria cincia.5. - A tica e Outras CinciasAtravs de seu objeto uma forma especfica do comportamento humano a tica se relaciona com outras cincias que, sob ngulos diversos, estudam as relaes e o comportamento dos homens em sociedade e proporcionam dados e concluses que contribuem para esclarecer o tipo peculiar de comportamento humano que o moral.Os agentes morais, em primeiro lugar, so indivduos concretos que fazem parte de uma comunidade. Seus atos so morais somente se considerados nas suas relaes com os outros; contudo, sempre apresentam um aspecto subjetivo, interno, psquico, constitudo de motivos, impulsos, atividade da conscincia que se prope fins, seleciona meios, escolhe entre diversas alternativas, formula juzos de aprovao ou de desaprovao, etc.; neste aspecto psquico, subjetivo, inclui-se tambm a atividade subconsciente. Ainda que o comportamento moral responda como veremos necessidade social de regular as relaes dos indivduos numa certa direo, a aividade moral sempre vivida interna ou intimamente pelo sujeito em um processo subjetivo para cuja elucidao contribui muitssimo a psicologia. Como cincia do psquico, a psicologia vem em ajuda da tica quando pe em evidncia as leis que regem as motivaes internas do comportamento do indivduo, assim como quando nos mostra a estrutura do carter e da personalidade. D a sua ajuda tambm quando examina os atos voluntrios, a formao dos hbitos, a gnese da conscincia moral e dos juzos morais. Em poucas palavras, a psicologia presta uma importante contribuio tica quando esclarece as condies internas, subjetivas, do ato moral. Assim, portanto, na medida em que os atos morais so atos de indivduos concretos, por estes vividos ou interiorizados de acordo com a sua constituio psquica, a tica no pode prescindir da ajuda da psicologia, entendida no somente no sentido tradicional de cincia do psquico consciente, mas tambm como psicologia profunda, ou dos fatores subconscientes que escapam ao controle da conscincia e que no deixam de influenciar o comportamento dos indivduos.A explicao psicolgica do comportamento humano possibilita a compreenso das condies subjetivas dos atos dos indivduos e, deste modo, contribui para a compreenso da sua dimenso moral. Probleraas morais como o da responsabilidade e da culpabilidade no se podem abordar sem considerar os fatores psquicos que intervieram no ato, pelo qual o sujeito se julga responsvel e culpado. A psicologia, cora a sua anlise das motivaes ou impulsos irresistveis, faz-nos ver tambm quando um ato humano escapa a uma avaliao ou julgamento moral. Por todas estas razes, estudando o comportamento moral, a tica no pode prescindir dos dados fornecidos e das concluses deduzidas pela psicologia. Deste modo, quando se superestima este aspecto subjetivo do comportamento humano, isto , a funo dos fatores psquicos e se tende a esquecer o aspecto objetivo e social do comportamento humano, at o ponto de transform-lo em chave, da explicao do comportamento moral, cai-se no psicologismo tico, isto , na tendncia a reduzir o moral ao psquico, e a considerar a tica como um simples captulo da psicologia. Contudo, embora os atos morais tenham seu respectivo aspecto psquico, a tica no se reduz psicologia.A tica apresenta tambm estreita relao com as cincias que estudam as leis que regem o desenvolvimento e a estrutura das sociedades humanas. Entre estas cincias sociais, figuram a antropologia social e a sociologia. Nelas se estuda o comportamento do homem como ser social sob o ponto de vista de determinadas relaes; estudam-se, tambm, as estruturas nas quais se integram estas relaes, assim como as formas de organizao e de relao dos indivduos concretos dentro delas. Estas relaes, assim como as instituies e organizaes sociais, no existem sem os indivduos, mas s cincias sociais interessa, sobretudo, no o aspecto psquico ou subjetivo do comportamento humano que como dissemos, uma tarefa da psicologia mas as formas sociais em cujo mbito atuam os indivduos.O sujeito do comportamento moral o indivduo concreto, mas, sendo um ser social e, independentemente do grau de conscincia que tenha disto, parte de determinada estrutura social e inserido numa rede de relaes sociais, o seu modo de comportar-se moralmente no pode ter um carter puramente individual, e sim social. Os indivduos nascem numa determinada sociedade, na qual vigora uma moral efetiva que no a inveno de cada um em particular, mas que cada um encontra como dado objetivo, social. Esta moral, como veremos mais adiante, corresponde a necessidades e exigncias da vida social. Por esta relao entre moral e sociedade, a tica no pode prescindir do conhecimento objetivo das estruturas sociais, de suas relaes e instituies, proporcionado pelas cincias sociais e, em particular, pela sociologia como cincia da sociedade.Mas, por importante que seja e o em alto grau o conhecimento dos fatores sociais do comportamento moral, este no se reduz uma mera expresso daqueles; por outro lado, embora os atos morais sejam condicionados socialmente, no se reduzem sua forma social, coletiva e impessoal. Para que se possa falar propriamente do comportamento moral de um indivduo, preciso que os fatores sociais que nele influem e o con-dicionam sejam vividos pessoalmente, passem pela sua conscincia ou sejam interiorizados, porque somente assim poderemos responsabiliz-lo por sua deciso e por sua ao. Exige-se efe-tivamente que o indivduo, sem deixar de ser condicionado socialmente, disponha da necessria margem individual para poder decidir e agir; somente com esta condio poderemos dizer que se comporta moralmente. Por todas estas razes chegamos concluso de que o estudo do comportamento moral no pode exaurir-se no seu aspecto social e de que a tica no se reduz sociologia. A reduo dos atos morais aos fatos sociais e a procura da chave de explicao dos primeiros nos segundos leva ao sociologismo tico, isto , tendncia a transformar a tica num captulo da sociologia. Esta ltima fornece dados e concluses indispensveis para o estudo do mundo moral, mas no pode substituir a tica.Enquanto a sociologia pretende estudar a sociedade humana em geral, na base da anlise das sociedades concretas, ao mesmo tempo em que investiga os fatores e condies da mudana social, isto , da passagem de uma formao social a outra, a antropologia social estuda, principalmente, as sociedades primitivas ou desaparecidas, sem preocupar-se com a sua insero num processo histrico de mudana e de sucesso. No estudo do comportamento dessas comunidades, entra tambm a anlise de seu comportamento moral. Seus dados e concluses assumem grande importncia no exame das origens, fonte e natureza da moral. Os antroplogos conseguiram estabelecer relaes entre a estrutura social de uma comunidade e o cdigo moral que as rege, demonstrando assim que as normas que hoje, de acordo com nosso cdigo moral atual, parecem em certos casos imorais como a de no respeitar a vida dos ancios e dos prisioneiros correspondem a certa forma de vida social. As concluses dos antroplogos constituem uma sria advertncia contra as pretenses dos tericos da moral que, desconhecendo a relao entre esta e as condies sociais concretas, procuram elevar ao plano do absoluto certos princpios e certas normas que correspondem a uma forma concreta de vida social. E esta advertncia se justifica tambm mediante o estudo quase sempre negligenciado pela tica tradicional da histria da moral como processo de sucesso de determinadas morais efetivas por outras.Se existe uma diversidade de morais no s no tempo, mas tambm no espao, e no somente nas sociedades que se inserem num processo histrico definido, mas inclusive naquelas sociedades hoje desaparecidas que precederam as sociedades histricas, preciso que a tica como teoria da moral tenha presente um comportamento humano que varia e se diversifica no tempo. O antroplogo social, de um lado, e o historiador, do outro, colocam diante de nossos olhos a relatividade das morais, seu carter mutvel, sua mudana e sucesso de acordo com a mudana e a sucesso das sociedades concretas. Mas isto no significa que no passado moral da humanidade haja somente um amontoado de runas, nem que tudo aquilo que, em outros tempos, foi moralmente vital, se extinga por completo, ao desaparecer a vida social que condicionava determinada moral. Os dados e as concluses da antropologia e da histria contribuem para que a tica se afaste de uma concepo absolutista ou supra-histrica da moral, mas, ao mesmo tempo, lhe impe a necessidade de abordar o problema de se, atravs desta diversidade e sucesso de morais efetivas, existem tambm, ao lado de seus aspectos histricos e relativos, outros que perduram, sobrevivem ou se enriquecem, elevando-se a um nvel moral superior. Em resumo, a antropologia e a histria, ao mesmo tempo que contribuem para estabelecer a correlao entre moral e vida social, propem tica um problema fundamental: o de determinar se existe um progresso moral.Toda cincia do comportamento humano, ou das relaes entre os homens, pode trazer uma contribuio proveitosa para a tica como cincia da moral. Por isto, tambm a teoria do direito pode trazer semelhante contribuio, graas sua estreita relao com a tica, visto que as duas disciplinas estudam o comportamento do homem como comportamento normativo. De fato, ambas as cincias abordam o comportamento humano sujeito a normas, ainda que no campo do direito se trate de normas impostas com um carter de obrigao exterior e, inclusive, de maneira coercitiva, ao passo que na esfera da moral as normas, embora obrigatrias, no so impostas coercitivamente.A tica se relaciona, tambm, com a economia poltica como cincia das relaes econmicas que os homens contraem no processo de produo. Esta vinculao se baseia na relaoefetiva, na vida social, entre os fenmenos econmicos e o mundo moral. Trata-se de uma relao cm dois planos:a) Na medida em que as relaes econmicas influem na moral dominante numa determinada sociedade. Assim, por exemplo, o sistema econmico no qual a fora do trabalho se vende como mercadoria c no qual vigora a lei da obteno do maior lucro possvel gera uma moral egosta e individualista que satisfaz o desejo do lucro. O conhecimento desta moral tem de se basear nos dados e nas concluses da economia poltica a respeito desse modo de produo, ou sistema econmico.b) Na medida em que os atos econmicos produo de bens atravs do trabalho e apropriao e distribuio dos mesmos no podem deixar de apresentar uma certa conotao moral. A atividade do trabalhador, a diviso social do trabalho, as formas de propriedade dos meios de produo e a distribuio social dos produtos do trabalho humano, colocam problemas morais. A tica como cincia da moral no pode negligenciar os problemas morais apresentados, especialmente em nossos dias, pela vida econmica; ora, a economia poltica, como cincia das relaes econmicas ou dos modos de produo, contribu para a elucidao dos mesmos.Vemos, portanto, que a tica se relaciona estreitamente com as cincias do homem, ou cincias sociais, dado que o comportamento moral no outra coisa seno uma forma especfica do comportamento do homem, que se manifesta cm diversos planos: psicolgico, social, prtico-utilitrio, jurdico, religioso ou esttico. Mas a relao da tica com outras cincias humanas ou sociais, baseada na ntima relao das diferentes formas de comportamento humano, no nos deve fazer esquecer o seu objeto especfico, prprio, enquanto cincia do comportamento moral.

Captulo IIMoral e Histria

1. - Carter Histrico da Moral

por moral entendemos um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relaes dos indivduos numa comunidade social dada, o seu significado, funo e validade no podem deixar de variar historicamente nas diferentes sociedades. Assim como umas sociedades sucedem a outras, tambm as morais concretas, efetivas, se sucedem e substituem umas s outras. Por isso, pode-se falar da moral da Antiguidade, da moral feudal prpria da Idade Mdia, da moral burguesa na sociedade moderna, etc. Portanto, a moral um fato histrico c, por conseguinte, a tica, como cincia da moral, no pode conceb-la como dada de uma vez para sempre, mas tem de consider-la como um aspecto da realidade humana mutvel com o tempo. Mas a moral histrica precisamente porque um modo de comportar-se de um ser o homem que por natureza histrico, isto , um ser cuja caracterstica c a de estar-se fazendo ou se autoproduzindo constantemente tanto no plano de sua existncia material, prtica, como no de sua vida espiritual, includa nesta a moral.A maioria das doutrinas ticas, sem excluir aquelas que se apresentam como uma reflexo sobre o jactam da moral, procuram explicar esta luz de princpios absolutos e a priori, c fixam a sua essncia e a sua funo sem levar em conta as morais histricas concretas. Mas, ignorando-se o carter histrico da moral, o que esta fo realmente, no mais se parte do fato da moral e cai-se necessariamente em concepes a-histricas da mesma. Desta maneira, a origem da moral se situa fora da histria, o que equivale a dizer dado que o homem real, concreto, um ser histrico fora do prprio homem real.Este a-historicismo moral, no campo da reflexo tica, segue trs direes fundamentais:a) Deus como origem ou fonte da moral. No caso, as normas morais derivam de um poder sobre-humano, cujos mandamentos constituem os princpios c as normas, morais fundamentais . Logo, as razes da moral no estariam no prprio homem, mas fora e acima dele.b) A natureza como origem ou fonte da moral. A conduta moral do homem no seria seno um aspecto da conduta natural, biolgica. As qualidades morais ajuda mtua, disciplina, solidariedade, etc. teriam a sua origem nos instintos e, por isso, poderiam ser encontradas no s naquilo que o homem como ser natural, biolgico, mas inclusive nos animais. Darwin chega a afirmar que os animais experimentam quase todos os sentimentos dos homens: amor, felicidade, lealdade, etc.c) O Homem (ou homem em geral) como origem e fonte da moral. O homem do qual se fala aqui um ser dotado de uma essncia eterna e imutvel inerente a todos os indivduos, sejam quais forem as vicissitudes histricas ou a situao social. A moral constituiria um aspecto desta maneira de ser, que permanece e dura atravs das mudanas histricas e sociais.Estas trs concepes coincidem quando procuram a origem e a fonte da moral fora do homem concreto, real, ou seja, do homem como ser histrico e social. No primeiro caso, procura-se fora do homem, num ser que o transcende; no segundo, num mundo natural ou, pelo menos, no especificamente humano; no terceiro, o centro de gravidade se desloca para o homem, mas para urn homem abstraio, irreal, situado fora da sociedade e da histria. Diante destas concepes, preciso acentuar o carter histrico da moral em consequncia do prprio carterhistrico-social do homem. Embora seja verdade que o comportamento moral se encontra no homem desde que existe como tal, ou seja, desde as sociedades mais primitivas, a moral muda e se desenvolve com a mudana e o desenvolvimento das diversas sociedades concretas. o que provam a substituio de certos princpios e de certas normas por outros, de certos valores morais ou de certas virtudes por outras, a modificao do contedo de uma mesma virtude atravs do tempo, etc. Mas o reconhecimento destas mudanas histricas da moral levanta, por sua vez, dois problemas importantes: o das causas ou fatores que determinam estas mudanas e o do seu sentido ou direo. Para responder primeira pergunta, teremos de olhar retrospectivamente at as origens histricas ou, mais exatamente, pr-histricas da moral, ao mesmo tempo em que baseados nos dados objetivos da histria real tentaremos encontrar a verdadeira correlao entre mudana histrico-social e mudana moral. A resposta a esta primeira pergunta nos permitir enfrentar a segunda, isto , a do sentido ou direo da mudana moral, ou, em outras palavras, o problema de se existe ou no, atravs da mudana histrica das morais concretas, um progresso moral.

2. - Origens da MoralA moral s pode surgir e efetivamente surge quando o homem supera a sua natureza puramente natural, instintiva, e possui j uma natureza social: isto , quando j membro de uma coletividade (gens, vrias famlias aparentadas entre si, ou tribo, constituda por vrias gens) . Como regulamentao do comportamento dos indivduos entre si c destes com a comunidade, a moral exige necessariamente no s que o homem esteja cm relao com os demais, mas tambm certa conscincia por limitada e imprecisa que seja desta relao para que se possa comportar de acordo com as normas ou prescries que o governam.

Mas esta relao de homem para homem, ou entre o indivduo c a comunidade, inseparvel da outra vinculao originria: a que os homens para subsistir e defender-se mantm com a natureza ambiente, procurando submet-la. Esta vinculao se manifesta, antes de mais nada, no uso e fabrico de instrumentos, ou seja, no trabalho humano. Atravs do trabalho, o homem primitivo j estabelece uma ponte entre si e a natureza e produz uma srie de objetos que satisfazem as suas necessidades. Com seu trabalho, os homens primitivos tentam pr a natureza a seu servio, mas sua fraqueza diante dela tal que, durante longo tempo, se lhes apresenta como um mundo estranho c hostil. A prpria fragilidade de suas foras diante do mundo que o rodeia determina que, para enfrent-lo e tentar domin-lo, reunam todos os seus esforos visando a multiplicar o seu poder. Seu trabalho adquire necessariamente um carter coletivo e o fortalecimento da coletividade se transforma numa necessidade vital. Somente o carter coletivo do trabalho e, em geral, da vida social garante a subsistncia e a afirmao da gens ou da tribo. Aparece assim uma srie de normas, mandamentos ou prescries no escritas, a partir dos atos ou qualidades dos membros da gens ou da tribo que beneficiam a comunidade . Assim nasce a moral com a finalidade de assegurar a concordncia do comportamento de cada um com os interesses coletivos.A necessidade de ajustar o comportamento de cada membro aos interesses da coletividade leva a que se considere como bom ou proveitoso tudo aquilo que contribui para reforar a unio ou a atividade comum e, ao contrrio, que se veja como mau ou perigoso o oposto; ou seja, o que contribui para debilitar ou minar a unio; o isolamento, a disperso dos esforos, etc. Estabelece-se, assim, uma linha divisria entre o que bom e o que o mau, uma espcie de tbua de deveres ou obrigaes baseada naquilo que se considera bom ou ti! para a comunidade. Destacam-se, assim, uma srie de deveres: todos so obrigados a trabalhar, a lutar contra os inimigos da tribo, etc. Estas obrigaes comuns comportam o desenvolvimento das qualidades morais relativas aos interesses da coletividade: solidariedade, ajuda mtua, disciplina, amor aos filhos da mesma tribo, etc. O que mais tarde se qualificar como virtudes ou como vcios acha-se determinado pelo carter coletivo da vida social. Numa comunidadeque est sujeita a uma luta incessante contra a natureza, e contra os homens de outras comunidades, o valor uma virtude principal porque o valente presta um grande servio comunidade. Por razes anlogas, so aprovadas e exaltadas a solidariedade, a ajuda mtua, a disciplina, etc. Ao contrrio, a covardia um vcio horrvel na sociedade primitiva porque atenta, sobretudo, contra os interesses vitais da comunidade. E se deve dizer a mesma coisa de outros vcios como o egosmo, a preguia, etc.O conceito de justia corresponde tambm ao mesmo princpio coletivista. Como justia distributiva, implica na igualdade na distribuio (os vveres ou a presa de guerra se distribuem na base da mais rigorosa igualdade: justia significa repartio igual e, por isso, em grego, a palavra dik significa originariamente as duas coisas) . Como justia retribuidora, a reparao de um mal causado a um membro da comunidade colctiva (os agravos so um assunto comum: quem derrama sangue, derrama o sangue de todos e, por isso, todos os membros do cl ou da tribo so obrigados a vingar o sangue derramado) . A diviso igual, de um lado, e a vingana coletiva, de outro, como dois tipos de justia primitiva, cumprem a mesma funo prtica, social: fortalecer os laos que unem os membros da comunidade.Portanto, esta moral coletivista, caracterstica das sociedades primitivas que no conhecem a propriedade privada nem a diviso em classes, uma moral nica e vlida para todos os membros da comunidade. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma moral limitada pelo prprio mbito da coletividade; alm dos limites da gens ou da tribo, seus princpios e suas normas perdiam a sua validade. As outras tribos eram consideradas como inimigas e, por isso, no lhes eram aplicadas as normas e os princpios que eram vlidos no interior da prpria comunidade.De outra parte, a moral primitiva implicava numa regulamentao do comportamento de cada um, de acordo com os interesses da coletividade, mas nesta relao o indivduo via a si mesmo somente como parte da comunidade ou como sua encarnao ou seu suporte. No existiam propriamente qualidades morais pessoais, pois a moralidade do indivduo, o que havia de bom, de digno de aprovao no seu comportamento (seu valor, sua atitude com respeito ao trabalho, sua solidariedade, etc), era qualidade de qualquer membro da tribo; o indivduo existia somente em fuso com a comunidade, e no se concebia que pudesse ter interesses pessoais, exclusivos, que entrassem cm choque com os coletivos. Esta absoro do individual pelo coetivo, a rigor, no deixava a possibilidade de uma autntica deciso pessoal e, por conseguinte, de uma responsabilidade pessoal, que, como veremos, so ndices de uma vida moral em sentido prprio. A coletividade se apresenta como um limite da moral (com relao ao exterior, porque o seu mbito coincide com o da comunidade, e com relao a si prprio, porque o coletivo absorve o individual); por isso, trata-se de uma moral pouco desenvolvida, cujas normas e princpios so aceitos sobretudo pela fora do costume e da tradio. Os elementos de uma moral mais elevada, baseada na responsabilidade pessoal,. somente podero evidenciar-se quando forem criadas as condies sociais para um novo tipo de relao entre o indivduo e a comunidade. As condies econmico-sociais que tornaro possvel a passagem para novas formas de moral sero exatamente o aparecimento da propriedade privada e a diviso da sociedade em classes.3. - Mudanas Histrico-Sociais e Mudanas da Moral

O aumento geral da produtividade do trabalho (em consequncia do desenvolvimento da criao de gado, da agricultura e dos trabalhos manuais), bem como o aparecimento de novas foras de trabalho (pela transformao dos prisioneiros de guerra em escravos), elevou a produo material at o ponto de se dispor de uma quantidade de produtos excedentes, isto , de produtos que se podiam estocar porque no eram exigidos para satisfazer necessidades imediatas. Criaram-se, assim, as condies para que surgisse a desigualdade de bens entre os chefes de famlia que cultivavam as terras da comunidade e cujos frutos eram repartidos at ento com igualdade, de acordo com as necessidades de cada famlia.Com a desigualdade de bens tornou-se possvel a apropriao privada dos bens ou produtos do trabalho alheio, bem como o antagonismo entre pobres e ricos. Do ponto de vista econmico, o respeito pela vida dos prisioneiros de guerra, que eram poupados do extermnio para serem convertidos em escravos, transformou-se numa necessidade social. Com a decomposio do regime comunal e o aparecimento da propriedade privada, foi-se acentuando a diviso em homens livres e escravos. A propriedade dos proprietrios de escravos, em particular livrava da necessidade de trabalhar. O trabalho fsico acabou por se transformar numa ocupao indigna de homens livres. Os escravos viviam em condies espantosas e arcavam com o trabalho fsico, particularmente o mais duro. Seu trabalho manual, em Roma, foi a base da grande produo. A construo das grandes obras e o desenvolvimento da minerao foi possvel graas ao trabalho forado dos escravos. Somente nas minas de Cartagena, na provncia romana da Espanha, trabalhavam quarenta mil. Os escravos no eram pessoas, mas coisas, e, como tais, seus donos podiam compr-los, vend-los, apost-los nos jogos de cartas ou inclusive mat-los.A diviso da sociedade antiga em duas classes antagnicas fundamentais traduziu-se tambm numa diviso da moral. Esta deixou de ser um conjunto de normas aceitas conscientemente por toda a sociedade. De fato, existiam duas morais: uma, dominante, dos homens livres a nica considerada como verdadeira ; e outra, dos escravos, que no ntimo rejeitavam os princpios c as normas morais vigentes e consideravam vlidos os seus prprios, na medida em que adquiriam a conscincia de sua liberdade. A moral dos homens livres no s era uma moral efetiva, vivida, mas tinha tambm seu fundamento e sua justificao tericas nas grandes doutrinas ticas dos filsofos da Antiguidade, especialmente em Scrates, Plato e Aristteles. A moral dos escravos nunca conseguiu alar-se a um nvel terico, embora como testemunham alguns autores antigos alcanasse algumas formulaes conceptuais. Aristteles opinava que uns homens so livres e outros escravos por natureza, e que esta distino justa e til. De acordo com esta concepo, que correspondia s idias dominantes naquela poca, os escravos eram objeto de um tratamento desapiedado, feroz, que nenhum dos grandes filsofos daquele tempo julgava imoral.

Assim reprimidos e embrutecidos, os escravos no podiam deixar de ser influenciados por aquela moral servil que os fazia considerar a si prprios como coisas; por isso, no lhes era possvel vencer com seus prprios esforos os limites daquela moral dominante. Mas, em plena escravido, cobraram aos poucos uma obscura conscincia de sua liberdade e chegaram, em alguns casos, a deflagrar uma luta espontnea e desesperada contra os seus opressores, cujo exemplo grandioso a insurreio de Esprtaco. Uma luta semelhante no teria sido possvel sem a aceitao e o desenvolvimento de uma srie de qualidades morais: esprito de sacrifcio, solidariedade, disciplina, lealdade aos chefes, etc. Mas, nas condies espantosas em que viviam, era impossvel que os escravos pudessem elaborar uma moral prpria como conjunto de princpios e de regras de ao e ainda menos que surgissem do seu meio os tericos que pudessem fundament-la e justific-la. Prtica e teoricamente, a moral que dominava era a dos homens livres.Os traos desta moral mais estreitamente relacionados com seu carter de classe extinguiram-se com o desaparecimento da sociedade escravista, mas isso no significa que todos os seus traos tenham sido perecveis. Em alguns Estados escravistas, como em Atenas, a moral dominante apresenta aspectos muito fecundos no somente para o seu tempo, mas tambm para o desenvolvimento posterior da moral. A moral ateniense est intimamente relacionada com a poltica como tcnica de dirigir e organizar as relaes entre os membros da comunidade sobre bases racionais. Da a exaltao das virtudes cvicas (fidelidade e amor ptria, valor na guerra, dedicao aos negcios pblicos acima dos particulares, etc.). Mas isto tudo se refere aos homens livres, cuja liberdade tinha por base a instituio da escravido e, por sua vez, a negao de que os escravos pudessem levar uma vida poltico-moral. Mas, dentro destes limites, nasce uma nova e fecunda relao para a moral entre o indivduo e a comunidade. De um lado, cresce a conscincia dos interesses da coletividade e, de outro, surge uma conscincia reflexa da prpria individualidade. O indivduo se sente membro da comunidade, sem que, de outro lado, se veja como nas sociedades primitivas absorvido totalmente por ela. Esta compreenso da existncia de um domnio pessoal, ainda que inseparvel da comunidade, de capital importncia do ponto devista moral, pois conduz conscincia da responsabilidade pessoal que constitui parte de uma autntica conduta moral.Com o desaparecimento do mundo antigo, que assentava sobre a instituio da escravido, nasce uma nova sociedade cujos traos essenciais se delineiam desde os sculos V-VI de nossa era, e cuja existncia se prolongar durante uns dez sculos. Trata-se da sociedade feudal, cujo regime econmico-so cial se caracteriza pela diviso em duas classes sociais fundamentais: a dos senhores feudais e a dos camponeses servos; os primeiros eram donos absolutos da terra e detinham uma propriedade relativa sobre os servos, presos a ela durante a vida inteira. Os servos da gleba eram vendidos e comprados com as terras s quais pertenciam c que no podiam abandonar. Eram obrigados a trabalhar para o seu senhor e, em troca, podiam dispor de uma parte dos frutos do seu trabalho. Embora a sua situao, comparada com a dos escravos, continuasse sendo muito dura, porque eram objeto de toda espcie de violncias e arbitrariedades, tinham direito vida c formalmente reconhecia-se que no eram coisas mas seres humanos.Os homens livres das cidades (artesos, pequenos industriais, comerciantes, etc.) estavam sujeitos autoridade do senhor feudal c eram obrigados a oferecer-lhe certas prestaes em troca da sua proeo. Mas, por sua vez, o senhor feudal estava numa relao de dependncia ou vassalagem (no por fora, mas voluntria) com respeito a outro senhor feudal mais poderoso, ao qual devia lealdade em troca da sua proteo militar, constituindo-se assim um sistema de dependncias ou de vassalagem na forma de uma pirmide cujo vrtice era o senhor mais poderoso: o rei ou imperador, Neste sistema hierrquico se inseria tambm a Igreja, dado que possua seus prprios feudos ou terras. A Igreja era o instrumento do senhor supremo, ou Deus, ao qual todos os senhores da terra deviam vassalagem e exercia, por isso, um poder espiritual indiscutvel em toda a vida cultural; mas, ao mesmo tempo, o seu poder se estendia aos assuntos temporais, gerando constantes conflitos com reis e imperadores, que se procuravam dirimir, de acordo com a doutrina das "duas espadas".A moral da sociedade medieval correspondia s suas caractersticas econmico-sociais e espirituais. De acordo com o papel preponderante da Igreja na vida espiritual da sociedade, a moral estava impregnada de contedo religioso e como o poder espiritual eclesistico era aceito por todos os membros da comunidade senhores feudais, artesos e servos da gleba ta contedo garantia uma certa unidade moral da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, e de acordo com as rgidas divises sociais em estamentos e corporaes, verificava-se uma estratificao moral, isto , uma pluralidade de cdigos morais. Assim havia um cdigo dos nobres ou cavaleiros com a sua moral cavalheiresca e aristocrtica; cdigos das ordens religiosas com a sua moral monstica; cdigos das corporaes, cdigos universitrios, etc. Somente os servos no tinham uma formulao codificada de seus princpios e de suas regras. Mas, entre todos estes cdigos, preciso destacar o da classe social dominante: o da aristocracia feudal. A moral cavalheiresca e aristocrtica se distinguia como a dos homens livres da Antiguidade por seu desprezo pelo trabalho fsico e a sua exaltao do cio e da guerra. Um verdadeiro nobre tinha o dever de exercitar-se nas virtudes cavalheirescas: montar a cavalo, nadar, atirar flechas, esgrimir, jogar xadrez e compor versos em honra da "bela dama". O culto da honra e o exerccio das altas virtudes tinham como contrapartida as prticas mais desprezveis: o valor na guerra se acompanhava com faanhas cruis; a lealdade ao senhor era obscurecida no raramente pela hipocrisia, quando no pela traio ou pela felonia; o amor "bela dama" ou "dama do corao" combinava-se com o "direito de pernada", ou com o direito de impedir as npcias de uma serva ou inclusive de violent-la.A moral cavalheiresca partia da premissa de que o nobre, por ser tal, por razes de sangue, j possua uma srie de qualidades morais que o distinguiam dos plebeus e dos servos. De acordo com esta tica, o natural a nobreza de sangue por si s j possua uma dimenso moral, ao passo que os servos, por sua prpria origem, no podiam levar uma vida realmente moral. Contudo, apesar das terrveis condies de dependncia pessoal, em que se encontravam e pelos obstculos de toda espcie para elevar-se at a compreenso das origens sociais de seus males, no seu prprio trabalho e, particularmente, no protesto e na luta para melhorar as suas condies de existncia, os servos iam apreciando outros bens e qualidades que no podiam encontrar aceitao no cdigo moral feudal: a sua liberdade pessoal, o amor ao trabalho na medida em que dispunham de uma parte de seus frutos, a ajuda mtua e a solidariedade com os companheiros da mesma sorte, E apreciavam, sobretudo, como uma esperana e uma compensao de suas desventuras terrenas, a vida feliz que a religio lhes prometia para depois da morte, junto com o pleno reconhecimento nessa vida de sua liberdade c de sua dignidade pessoal. Assim, pois, enquanto no se libertaram realmente da sua dependncia pessoal, a religio lhes oferecia sua liberdade e igualdade no plano espiritual e, com isso, a possibilidade de uma vida moral, que, neste mundo real, por serem servos, lhes era negada.No interior da velha sociedade feudal deu-se a gestao de novas relaes sociais s quais devia corresponder uma nova moral; isto , um novo modo de regular as relaes entre os indivduos e entre estes e a comunidade. Nasceu e se fortaleceu uma nova classe social a burguesia possuidora de novos e fundamentais meios de produo (manufaturas e fbricas), que iam substituindo as oficinas artesanais e, ao mesmo tempo, foi-se formando uma classe de trabalhadores livres que, por um salrio, vendiam ou alugavam por uma jornada a sua fora de trabalho. Eram os trabalhadores assalariados ou proletrios que, desta maneira, vendiam uma mercadoria a sua capacidade de trabalho ou fora de trabalho que possui a propriedade peculiar de produzir um valor superior ao que pago para ser usada (mais-valia, ou valor no remunerado, que o operrio produz ou cria).Os interesses da nova classe social, dependentes do desenvolvimento da produo e da expanso do comrcio, exigiam mo-de-obra livre (c, portanto, a libertao dos servos), assim como o desaparecimento dos entraves feudais para criar um mercado nacional nico e um Estado centralizado que acabassem com a fragmentao econmica e poltica. Atravs de uma srie de revolues nos Pases Baixos e na Inglaterra, e particularmente na Frana (no ltimo tero do sculo XVIII), consolida-se econmica e politicamente o poder da nova classe em ascenso, c, nos pases mais desenvolvidos, a aristocracia feudal-latifundiria desaparece do primeiro plano.

Neste novo sistema econmico-social, que alcana a sua expresso clssica nos meados do sculo XIX, na Inglaterra, vigora, como fundamental, a lei da produo de mais-valia. De acordo com esta lei, o sistema funciona eficazmente s no caso de garantir lucros, o que exige, por sua vez, que o operrio seja considerado exclusivamente como um homem econmico, isto , como meio ou instrumento de produo e no como homem concreto (com seus sofrimentos e desgraas). A situao em que o operrio se encontra com respeito propriedade dos meios fundamentais de produo (despossessao total) gera o fenmeno da alienao ou do trabalho alienado (Marx). Como sujeito desta atividade, produz objetos que satisfazem necessidades humanas, mas sendo, por sua vez, uma atividade essencial do homem, o operrio no a reconhece como tal ou como atividade realmente sua, nem se reconhece nas suas obras; pelo contrrio, seu trabalho e seus produtos se lhe apresentam como algo estranho e at hostil, dado que no lhe proporcionam seno misria, sofrimento e insegurana.Neste sistema econmico-social, a boa ou m vontade individual, as consideraes morais no podem alterar a necessidade objetiva, imposta pelo sistema, de que o capitalista alugue por um salrio a fora de trabalho do operrio e o explore com o fim de obter uma mais-valia. A economia regida, antes de mais nada, pela lei do mximo lucro, e essa lei gera uma moral prpria. Com efeito, o culto ao dinheiro e a tendncia a acumular maiores lucros constituem o terreno propcio para que nas relaes entre os indivduos floresam o esprito de posse, o egosmo, a hipocrisia, o cinismo e o individualismo exacerbado. Cada um confia em suas prprias foras, desconfia dos demais, e busca seu prprio bem-estar, ainda que tenha de passar por cima do bem-estar dos outros. A sociedade se converte assim num campo de batalha no qual se trava uma guerra de todos contra todos.Tal a moral individualista e egosta que corresponde s relaes sociais burguesas. Apesar disto, em tempos j longnquos, quando era uma classe em ascenso e se esforava por afirmar o seu poder econmico e poltico em face da caduca e decadente aristocracia feudal, a burguesia tinha interesse em mostrar diante dela sua superioridade moral. E, por esta razo, aos vcios da aristocracia (desprezo do trabalho, ociosidade, libertinagem nos costumes, etc.) opunha suas virtudes caractersticas: laboriosidade, honradez, puritanismo, amor da p-tria e da liberdade, etc. Mas estas virtudes, que serviam a seus interesses de classe na sua fase ascensional, foram cedendo, com o tempo, a novos vcios: parasitismo social, dissimulao, cinismo, chauvinismo, etc.Nos pases mais desenvolvidos, a imagem do capitalismo no corresponde mais, em muitos aspectos, do capitalismo clssico apresentado pela Inglaterra na metade do sculo passado. Graas, sobretudo, ao arrebatador progresso cientfico e tecnolgico das ltimas dcadas, aumentou consideravelmente a produtividade do trabalho. Contudo, apesar das mudanas verificadas, o cerne do sistema se conserva: a explorao do homem pelo homem e a sua lei fundamental, a obteno da mais-valia. Mas, em alguns pases, a situao da classe operria no exa-tamente a mesma de outros tempos. Sob a presso de suas lutas reivindicativas e de seus resultados concretizados na legislao social vigente, s vezes, pode-se esboar um quadro da situao operria que no corresponde mais do sculo passado, com seus salrios baixssimos, dias de trabalho de doze a quatorze horas, falta total de direitos e de subvenes sociais, etc.Dos mtodos brutais de explorao do capitalismo clssico, no nosso sculo, passou-se aos mtodos cientficos e racionalizados, como os do trabalho em srie, no qual uma operao de trabalho se divide em mltiplas fases que reduzem o trabalho de cada indivduo, repetido monotonamente durante o dia, a um trabalho mecnico, impessoal e esgotante. A elevao das condies materiais da vida do operrio tem, como contrapeso, um fortalecimento terrvel de sua desumanizao ou alienao pelo fato de privar o trabalho de qualquer aspecto consciente e criador. Mas, desta forma de explorao, passou-se ultimamente a outras, baseadas numa pretensa humanizao ou moralizao do trabalho. Aos incentivos materiais se acrescenta agora . uma aparente solicitude para com o homem, inculcando no operrio a idia de que, como ser humano, faz parte da empresa e deve integrar-se nela. Impinge-se-lhe assim, como virtudes, o esquecimento da solidariedade com os seus companheiros de classe, o acoplamento de seus interesses pessoais com os interesses da empresa, a laboriosidade e a escrupulosidade a favor do interesse comum da mesma, etc. Mas, integrando-se desta maneira no mundo do poder, no qual a explorao, longe de desaparecer, no faz seno adotar formas mais astuciosas, o operrio d a sua contribuio pessoal para manter a sua alienao e a sua explorao. A moral que lhe inculcada como uma moral comum, livre de qualquer contedo particular, ajuda a justificar e a reforar os interesses do sistema regido pela lei da produo da mais-valia e , por isso, uma moral alheia a seus verdadeiros interesses humanos e de classe.Assim como a moral burguesa trata de justificar c regular as relaes entre os indivduos numa sociedade baseada na explorao do homem pelo homem, do mesmo modo se lana mo da moral para justificar e regular as relaes de opresso e de explorao no mbito de uma poltica colonial e neocolonialista. A explorao c a espoliao de povos inteiros por .parte de potncias coloniais ou imperialistas j apresenta uma longa histria. A vontade, porm, de cobrir essa poltica com um manto moral relativamente recente, Neste campo se realiza um processo semelhante ao acontecido historicamente nas relaes entre os indivduos. Do mesmo modo que o escravista, na Antiguidade, no julgava necessrio justificar moralmente a sua relao com o escravo, porque este, a seus olhos, no era pessoa mas coisa ou instrumento; e de modo anlogo tambm ao capitalista do perodo clssico, que no via a necessidade de justificar moralmente o tratamento brbaro e desapiedado que impunha ao operrio, porque para ee era somente um homem econmico e a explorao um fato econmico perfeitamente natural e racional; assim tambm, durante sculos, os conquistadores e colo-nizadores consideraram que o subjugar, saquear ou exterminar povos no exigia nenhuma justificao moral. Durante sculos, a espantosa violncia colonial (brbaros mtodos de explorao da populao autctone c o seu extermnio em massa) se processou sem que levantasse problemas morais para seus promotores ou executores.Mas, nos tempos modernos, e precisamente na medida em que os povos subjugados ou colonizados no se resignam a ser dominados recorre-se moral para justificar a opresso. Esta moral colonialista comea por apresentar como virtudes do colonizado o que condiz com os interesses do pas opressor: a resignao, o fatalismo, a humildade ou a passividade. Mas os opressores no somente costumam insistir nestas supostas virtu-des, como tambm numa pretensa atitude moral do colonizado (sua indolncia, criminalidade, hipocrisia, apego tradio, etc.), que serve para justificar a necessidade de lhe impor uma civilizao superior. Diante desta moral colonialista, que se relaciona com interesses sociais determinados, os povos subjugados foram afirmando, cada vez mais, a sua moral particular, aprendendo a distinguir entre as suas prprias virtudes e os seus prprios deveres. E s conseguem isso na medida em que, crescendo a conscincia de seus verdadeiros interesses, lutam por sua emancipao nacional c social. Nesta luta, a sua moral se afirma no mais com as virtudes que o opressor lhe apresentava como suas e que tinha interesse em fomentar (passividade, resignao, humildade, etc.) ou com os vcios que se lhe atribuam (criminalidade, indolncia, fingimento, etc.), mas com as virtudes peculiares as de uma moral que os opressores no podem aceitar: sua honra, a fidelidade aos seus, seu patriotismo, seu esprito de sacrifcio, etc.Toda a exposio anterior leva concluso de que a moral vivida realmente na sociedade muda historicamente de acordo com as reviravoltas fundamentais que se verificam no desenvolvimento social. Da as mudanas decisivas que ocorrem na moral com a passagem da sociedade escravista feudal e desta sociedade burguesa. Vemos tambm que numa mesma sociedade, baseada na explorao de uns homens pelos outros ou de uns pases por outros, a moral se diversifica de acordo com os interesses antagnicos fundamentais. A superao deste desvio social e, portanto, a abolio da explorao do homem pelo homem e da submisso econmica c poltica de alguns pases a outros, constitui a condio necessria para construir uma nova sociedade na qual vigore uma moral verdadeiramente humana, isto , universal, vlida para todos os seus membros, visto que tero desaparecido os interesses antagnicos que geravam a diversificao da moral, ou inclusive os antagonismos morais que assinalamos antes. Uma nova moral, verdadeiramente humana, implicar numa mudana de atitude diante do trabalho, num desenvolvimento do esprito coletivista, na eliminao do esprito de posse, do individualismo, do racismo e do chauvinismo; trar tambm uma mudana radical na atitude para com a mulher e a estabilizao das relaes familiares. Em suma, significar a realizao efetiva do princpio kantiano que convida a considerar sempre o homem como um fim e no como um meio. Uma moral desse tipo pode existir somente numa sociedade na qual, depois da supresso da explorao do homem, as relaes dos homens com os seus produtos e dos indivduos entre si se tornem transparentes, isto , percam o carter mistificado, alienaste, que tiveram at aqui. Estas condies necessrias se encontram, numa sociedade socialista, na qual se criam, por conseguinte, as possibilidades para a transformao radical que envolve a nova moral. Mas, ainda que a moral socialista rompa com todas as sociedades anteriores, baseadas na explorao do homem e, neste sentido, j represente uma organizao social superior, preciso enfrentar as dificuldades, deformaes e limitaes que freiam a criao de uma nova moral, como, pr exemplo: o produtivismo, o burocraticismo, as sobrevivncias do esprito de posse e do individualismo burgus, a apario de novas formas de alienao, etc. A nova moral no pode surgir a no ser que se verifique uma srie de condies necessrias, econmicas, sociais e polticas, mas a criao desta nova moral de um homem com novas qualidades morais uma tarefa imensa que, longe de completar-se, no far mais do que iniciar-se quando da criao dessas novas condies.4. - O Progresso Moral

A histria nos apresenta uma sucesso de morais que correspondem s diferentes sociedades que se sucedem no tempo. Mudam os princpios e as normas morais, a concepo daquilo que bom e daquilo que mau, bem como do obrigatrio e do no obrigatrio. Mas estas mudanas e substituies no terreno da moral podem ser postas numa relao de continuidade de tal maneira que a conquista de uma poca ou sociedade determinada prepare o caminho para um nvel superior? Ou seja, as mudanas e as substituies se verificam numa ordem ascensional, do inferior para o superior? evidente que se comparamos uma sociedade com outra anterior podemos objetivamente esta-belecer uma relao entre as suas morais respectivas e considerar que uma moral mais avanada, mais elevada ou mais rica do que a de outra sociedade. Assim, por exemplo, a sociedade es-cravista antiga mostra a sua superioridade moral com respeito s sociedades primitivas quando suprime o canibalismo, respeita a vda aos ancios, poupa a vida dos prisioneiros, estabelece relaes sexuais monogamicas, descobre o conceito de responsa-bilidade pessoal, etc. Mas, por sua vez, a sociedade escravista antiga conserva prticas morais que so abandonadas ou supe-rauas nas sociedades posteriores.Existe, pois, um progresso moral que no se verifica, como vemos, a margem uas mudanas radicais de carter social. Queremos dizer que o progresso morai no se pode separar da passagem de uma sociedade para outra, isto , do movimento his-torico pelo qual se ascende de uma formao econmico-social, que exauriu suas possibilidades de desenvolvimento, para outra superior. O que quer dizer, por sua vez, que o progresso moral no se pode conceber independentemente do progresso histrico-, social. Assim, por exemplo, a passagem da sociedade primitiva para a sociedade escravista torna possvel, por sua vez, a ascenso para uma moral superior. Isto posto, no se pretende dizer que o progresso moral se reduza ao progresso histrico ou que este por si prprio acarrete um progresso moral. Embora ambos estejam intimamente vinculados, convm distinguir os dois entre si e no ver de modo simplista um progresso moral em todo progresso histrico-social. Por isto, torna-se necessrio, em primeiro lugar, definir o que queremos dizer com progresso histrico-social.Falamos em progresso com respeito mudana e sucesso de formaes econmico-sociais, isto , sociedades consideradas como totalidades nas quais se articulam unitariamente estruturas diversas: econmica, social e espiritual. Ainda que, em cada povo ou nao, esta mudana e sucesso possuam suas peculiaridades, falamos de seu progresso histrico-social considerando a histria da humanidade em seu conjunto. Mas em que sentido afirmamos que h progresso ou que a histria humana avana segundo uma linha ascensional? Progride-se nas atividades humanas fundamentais e nas formas de relao ou organizao que o homem contrai nas suas atividades prticas e espirituais.Antes de tudo, o homem um ser prtico, criador, transformador da natureza. diferena do animal, conhece e conquista a sua prpria natureza e a conserva e enriquece transformando com seu trabalho o dado natural. O incremento da produo ou mais exatamcnte, o desenvolvimento das foras produtivas expressa em cada sociedade o nvel de domnio do homem sobre a natureza ou tambm o seu grau de liberdade com respeito necessidade natural. Logo, desta maneira, o nvel de desenvolvimento das foras produtivas pode considerar-se como ndice ou critrio do progresso humano.Mas o homem produz somente em sociedade, isto , contraindo determinadas relaes sociais; por conseguinte, no s um ser prtico, produtor, mas tambm um ser social. O tipo de organizao social mostra uma peculiar relao entre os grupos ou classes sociais, bem como entre o indivduo e a sociedade, e um maior ou menor grau de domnio do homem sobre a sua prpria natureza, isto , sobre as suas prprias relaes sociais e, portanto, um determinado grau de participao consciente na atividade prtica social, ou seja, na criao de sua vida social. Logo, desta maneira, o tipo de organizao" social e o grau correspondente de participao dos homens na sua praxis social podem considerar-se como ndice ou critrio de progresso humano ou de progresso na liberdade em face da necessidade social.O homem no produz apenas materialmente, mas tambm espiritualmente. Cincia, arte, direito, educao, etc, so tambm produtos ou criaes do homem. Na cultura espiritual como na cultura material, afirma-se como ser produtor, criador, inovador. A produo de bens culturais ndice e critrio do progresso humano, mas preciso sublinhar que, neste terreno, o conceito de progresso no pode ser aplicado de maneira igual aos diferentes setores da cultura. Em cada setor da cultura (a cincia, a arte, o direito, a educao, etc.), o progresso adquire uma caracterstica prpria, mas sempre com o denominador comum de um enriquecimento ou avano no sentido de um nvel superior de determinados aspectos na respectiva atividadecultural.Podemos falar, portanto, de progresso histrico no terreno da produo material, da organizao social e da cultura. No se trata de trs linhas de progresso independentes, mas de trsformas de progresso que se relacionam e se condicionam mutuamente, pois o sujeito do progresso nestas trs direes sempre o mesmo: o homem social.O progresso histrico resulta da atividade produtiva, social e espiritual dos homens. Nessa atividade, cada indivduo participa como ser consciente, procurando realizar os seus pro-jetos e intenes; contudo, at hoje, o progresso no foi o resultado de uma atividade planejada, consciente. A passagem da sociedade escravista para a sociedade feudal, isto , para um tipo de organizao social superior, no resultado de uma atividade comum intencional dos homens. (Os indivduos no se consultaram para produzir o capitalismo). Em suma, o progresso histrico fruto da atividade coletiva dos homens como seres conscientes, mas no de uma atividade comum consciente.O progresso histrico considerado em escala universal no igual para todos os povos e para todos os homens. Determinados povos progrediram mais do que outros, e numa mesma sociedade nem todos os indivduos ou grupos sociais participam dele da mesma maneira, ou recebem o benefcio de seus resultados em proporo igual. Assim, quando na sociedade feudal se preparam as novas relaes sociais que levam a uma organizao social superior (a sociedade burguesa), uma nova classe social a burguesia marcha no sentido do progresso histrico, ao passo que a nobreza feudal procura fre-lo. Por sua vez, a instaurao de uma nova ordem social com o triunfo da revoluo burguesa acarreta uma repartio muito desigual de seus resultados: para a burguesia, de um lado, e para os artesos e proletariado incipiente, do outro.Finalmente, o progresso histrico-social de determinados pases (por exemplo, os do Ocidente europeu) operou-se excluindo, ou retardando, o progresso de outros povos (o Ocidente, de fato, progrediu na base da explorao, da misria, da destruio de velhas culturas ou do analfabetismo de outros povos).Tais so as caractersticas do progresso histrico-social que devem ser levadas em considerao ao se relacionar com ele o progresso moral. Delas se deduzem as concluses seguintes:a) O progresso histrico-social cria as condies necessrias para o progresso moral.b) O progresso histrico-social afeta, por sua vez, de uma ou de outra maneira positiva ou negativa os homens de uma determinada sociedade sob o ponto de vista moral. (Exemplos: a abolio da escravido enriquece o mundo da moral, ao integrar nele o escravo quando reconhecido como pessoa . No caso, o progresso histrico influi positivamente num sentido moral. A formao do capitalismo e a conseqente acumulao primitiva do capital processo histrico progressista realiza-se atravs dos sofrimentos e dos crimes mais espantosos. De modo anlogo, a introduo da tcnica mecanizada fato histrico progressista acarreta a degradao moral do operrio.) Desta maneira, vemos que o progresso histrico-social pode ter consequncias positivas ou negativas do ponto de vista moral. Mas, pelo fato de que tenham estas consequncias, no se conclui que possamos julgar ou avaliar moralmente o progresso histrico. S posso julgar moralmente os atos realizados livre e conscientemente e, por conseguinte, aqueles cuja responsabilidade pode ser assumida por seus agentes. Ora, como o progresso histrico-social no o resultado de uma ao planejada dos homens, no posso responsabiliz-los pelo que no procuraram livre e conscientemente, ainda que se trate sempre de uma liberdade que no exclui como veremos a seguir certa determinao . Somente os indivduos ou os grupos sociais que realizam determinados atos de uma maneira consciente e livre isto , podendo optar entre vrias possibilidades podem ser julgados moralmente. Conseqentemente, no posso julgar moralmente o fato histrico progressista da acumulao originria do capital nos incios do capitalismo, apesar dos sofrimentos, humilhaes e degradaes morais que trouxe consigo, porque no se trata de um resultado visado livre e conscientemente. Tampouco posso julgar o capitalista individual, na medida em que age de acordo com uma necessidade histrica, imposta pelas determinaes do sistema, ainda que se possa julgar o seu procedimento na medida em que, pessoalmente, pode optar entre vrias possibilidades.Desta maneira, portanto, embora o progresso histrico acarrete atos positivos ou negativos do ponto de vista moral, no podemos transform-lo em objeto de uma aprovao ou de uma reprovao moral.Por isso, afirmamos que o progresso histrico, ainda que crie as condies para o progresso moral e traga consequncias positivas para este, no gera por si s um progresso moral, porque os homens no progridem sempre na direo moralmente boa, mas tambm atravs da direo m; isto , pela violncia, o crime ou a degradao moral.Assim, o fato de que o progresso histrico no deva ser julgado luz de categorias morais no significa que histrica e objetivamente no possa registrar-se um progresso moral, que, como o progresso histrico, no foi at agora o resultado de uma ao planejada, livre e consciente dos homens, mas que, no obstante, verifica-se independentemente do fato de que o tenham ou no procurado. Em que se baseia o contedo objeti-vo deste progresso moral, ou qual o ndice ou critrio que pode servir-nos para descobri-lo, na passagem dos homens, em consonncia com mudanas sociais profundas, de uma moral efe-tiva para outra?O progresso moral se mede, em primeiro lugar, pela ampliao da esfera moral na vida social. Esta ampliao se revela ao serem reguladas moralmente relaes entre os indivduos que antes se regiam por normas externas (como as do direito, do costume, etc.). Assim, por exemplo, a subtrao das relaes amorosas coao exterior, ou a normas impostas pelos costumes ou pelo direito, como acontecia na Idade Mdia, para fazer delas um assunto particular, ntimo, sujeito, portanto, regulao moral, ndice de progresso na esfera moral, A substituio dos estmulos materiais (maior recompensa econmica) pelos estmulos morais no estudo e no trabalho ndice, tambm, de uma ampliao da esfera moral e, por conseguinte, de um progresso na mesma.O progresso moral se determina, em segundo lugar, pela elevao do carter consciente e livre do comportamento dos indivduos ou dos grupos sociais e, por conseguinte, pelo crescimento da responsabilidade destes indivduos ou grupos no seu comportamento moral. Neste sentido, a comunidade primitiva se nos apresenta com uma fisionomia moral pobre, porque seus membros atuam sobretudo de acordo com as normas estabelecidas pelo costume e, por conseguinte, com um grau muito baixo de conscincia, liberdade e responsabilidade no que tange s suas decises. Uma sociedade tanto mais rica moralmente quanto mais possibilidades oferece a seus membros de assumirem a responsabilidade pessoal ou coletiva de seus atos; isto , quanto mais ampla for a margem proporcionada para aceitar consciente e livremente as normas que regulam as suas relaes com os demais. Neste sentido, o progresso moral inseparvel do desenvolvimento da livre personalidade, Na comunidade primitiva, a personalidade desaparece porque indivduo e coletividade se identificam; por isso, a vida moral no pode ser seno muito pobre. Na sociedade grega antiga, o coletivo no sufoca o pessoal; mas somente o homem livre por ser pessoa pode assumir a responsabilidade de seu comportamento pessoal. Pelo contrrio, nega-se a possibilidade de ter obrigaes morais e de assumir uma responsabilidade a um amplo setor da sociedade, o constitudo pelos escravos, visto que no so considerados como pessoas mas como coisas.ndice e critrio de progresso moral , em terceiro lugar, o grau de articulao e de coordenao dos interesses coletivos e pessoais. Nas sociedades primitivas domina uma moral coleti-vista, mas o coletivismo traz consigo, neste caso, a absoro total dos interesses pessoais pelos da comunidade, porque o indivduo no se afirma ainda como tal e a individualidade se dissolve na comunidade. Os interesses pessoais se afirmam somente nos tempos modernos; esta afirmao tem sentido positivo na Renascena com relao s comunidades fechadas e estratificadas da sociedade feudal, mas a afirmao da individualidade acaba por transformar-se numa forma exacerbada de individualismo na sociedade burguesa, dando origem dissociao entre os interesses do indivduo e os da comunidade. A elevao da moral a um nvel superior exige tanto a superao do coletivismo primitivo, no mbito do qual no podia desenvolver-se livremente a personalidade, como do individualismo egosta, no qual o indivduo se afirma somente s custas da realizao dos demais. Esta moral superior deve combinar os interesses de cada um com os interesses da comunidade e esta harmonizao deve ter por base um tipo de organizao social, na qual o livre desenvolvimento de cada indivduo suponha necessariamente o livre desenvolvimento da comunidade. O progresso moral se nos apresenta, mais uma vez, em estreita relao com o progresso histrico-social.O progresso moral, como movimento ascensional no terreno moral, manifesta-se tambm como um processo dialtico de negao e de conservao de elementos morais anteriores. Assim, por exemplo, a vingana de sangue, que constitui uma forma dejustia dos povos primitivos, cessa de ter valor moral nas sociedades posteriores; o egosmo caracterstico das relaes morais burguesas abandonado por uma moral coletivista socialista, Pelo contrrio, valores morais admitidos ao longo de sculos -como a solidariedade, a amizade, a lealdade, a honradez, etc. adquirem certa universalidade e deixam, portanto, de pertencer exclusivamente a uma moral particular, ainda que o seu contedo mude e se enriquea medida em que ultrapassam um limite histrico particular. De maneira anloga, h vcios morais Como a soberba, a vaidade, a hipocrisia, a perfdia, etc. que so rejeitados pelas vrias morais. De outro lado, antigas virtudes morais que correspondem a interesses da classe dominante em outros tempos perdem a sua fora moral, quando muda radicalmente a sociedade. Pelo contrrio, h valores morais que so reconhecidos somente depois de o homem ter percorrido um longo caminho no seu progresso social e moral. Assim acontece, por exemplo, com o trabalho humano c com a atitude do homem diante dele, que somente assumem um real contedo moral na nossa poca, superada a sua negao ou desprezo por parte das morais de outros tempos.Mas este aspecto do progresso moral, que consiste na negao radical de velhos valores, na conservao dialtica de alguns ou na incorporao de novos valores e virtudes morais, verifica-se to-somente sobre a base de um progresso histrico-social que condiciona esta negao, superao ou incorporao, fato que, mais uma vez, evidencia como a mudana c a sucesso de determinadas morais por outras, numa linha ascensional, tem suas razes na mudana e sucesso de determinadas formaes sociais por outras.O objetivo deste projeto , atravs da leitura atenta, incentivar o aluno a descobrir e resumir o Objeto da tica e, dessa forma, conseguir um melhor aprendizado.O primeiro captulo do livro de Adolfo Snchez Vsquez tem como intuito demonstrar e esclarecer qual o elemento de estudo da tica, como j diz em seu ttulo. Para alcanar tal meta, o autor decompe o captulo em cinco subdivises relacionadas tica: Problemas Morais e Problemas ticos; O Campo da tica; Definio de tica; tica e Filosof