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    PORTUGAL E A GEOPOLTICADA INTERCULTURALIDADE

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    A cera mole e o euromundo

    Entre 1415, data da conquista de Ceuta pelas tropas de D. Joo I de Avis, e24 de Outubro de 1945, data histrica da fundao da ONU e, por isso, ado projecto da paz depois da Segunda Guerra Mundial, processa-se a cons-truo, o apogeu, o declnio e o ponto final daquilo que pode chamar-se oImprio Euromundista. Usando o conceito de Toynbee, sem que ele tenhautilizado a expresso, era a Repblica Crist, na sua verso dos Csares, quechamava as legies s vrias Romas europeias, deixando instaladas as com-ponentes do globalismo, sem uma governana de substituio das estruturaspolticas esgotadas 1.

    No obstante as sucessivas guerras civis dos europeus, em que avultam asduas guerras mundiais que destruram o sistema, e que teriam como dina-mizador constante a luta de cada uma das soberanias europeias envolvidaspara ter um lugar no centro regulador do sistema, o fim do euromundo pol-tico no significou a extino da vigncia global do patrimnio jurdico, cul-tural, cientfico e tcnico, em que se traduz o legado de um poder exercidoao longo de tantos sculos.

    Pelo simples facto de a velocidade da mudana das estruturas ser muito supe-rior rapidez com que adquirida e racionalizada a percepo da mudana,a Carta da ONU, e os seus documentos complementares, ainda foram tribu-trios da exclusiva viso euromundista, porque a descolonizao no se tra-duzira, naquela data (1945), em instalar na Assembleia Geral os representan-tes das reas culturais que, pela primeira vez, falavam em liberdade comunidade internacional. No exerccio dessa soberania sem experincia,passaram ao exerccio da leitura crtica do legado euromundista.

    Tratava-se de um legado que os Europeus e a sua dissidncia americana, isto, que os ocidentais tinham utilizado comomodelo observante de uma acorepartida em vrias especficas linhas de expanso, com o objectivo de oci-dentalizar um Globo, cujas diferentes etnias e culturas eram vistas como acera mole de uma interveno hegemnica, sempre que necessrio armadaem guerra. Uma interveno que proclamou as suas prprias referncias delegitimidade originria, apoiada numa longa teoria de telogo-juristas,variando o sinal do xito procurado: os peninsulares gratificados pela evan-gelizao, os franceses pela difuso das luzes, os ingleses pelo rduo trabalho

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    de levar a civilizao aos brbaros que habitavam as terras situadas sob oscus distantes 2.

    O direito internacional, os direitos humanos, a sociedade civil, o estado dedireito, a cincia e a tcnica, a exploso grega, o saber romano, a conquistade Gutenberg, o homem no centro, o triunfo da democracia, a arte e os

    media, fazem parte do patrimnio que o imprio dos ocidentais legou aomundo em mudana, mas esta a demonstrar que os povos libertados no es-quecem a suposta cera mole.

    As identidades euromundistas e a lei da complexidade crescenteA expresso euromundista nos mapas polticos reproduzia um conjunto deunidades referenciadas pelas soberanias coloniais em exerccio, e no pelasidentidades culturais absorvidas pelas fronteiras polticas da submisso. OImprio das ndias tinha a identidade britnica, ponteada pelo Estado dandia portugus (Goa) e pelas diminutas possesses francesas; a frica erauma policromia projectada pela frente atlntica europeia; a China estavasubmissa aos tratados desiguais; a Amrica Latina tinha soberanias depen-

    dentes a partir do envolvimento pela geografia do subdesenvolvimento e dafome.

    Os povos que habitavam essa geografia poltica eram frequentemente consi-derados atrasados, selvagens, pagos, dispensveis, mudos, de acordo com ospadres do modelo poltico observante ocidental, que inspirava o desenvol-vimento de uma cincia poltica inquieta com as balanas do poder, e olhoucom alguma displicncia as incurses da Antropologia cultural, com algumadesconfiana as incurses das misses religiosas orientadas pela igual dig-

    nidade dos homens, com curiosidade as indagaes sobre a histria dasdesarticuladas entidades polticas nativas. Tudo, porm, desde a expansocolonial do sculo XIX, de facto privilegiando a poltica da posse de mat-rias-primas e domnio de mercados de produtos acabados. As culturas obri-gatrias, o trabalho forado, a discriminao racial, a afirmada inferioridadecultural, a recusa de acesso aos direitos polticos, o limitado acesso ao saber,foram atitudes que, embora com incidncia desigual nos territrios disper-sos pelas diferentes soberanias, foram originando um patrimnio de queixasque se revelaria transversal quando a descolonizao, ou negociada ou con-

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    quistada pela luta armada, apagou os mapas polticos dos colonizadores eneles foi multiplicando, em substituio, as novas expresses sociopolticase culturais.

    Os ocidentais, em recuo, puderam finalmente meditar sobre as vozes mal es-cutadas de Vitria, de Fr. Bartolomeu de Las Casas, de Molina, de Suarez,de Vieira, mas a revolta contra os ocidentais foi mais apoiada pelas ideolo-gias. Em primeiro lugar, apelando, na linha da memria do que mais feriraos colonizados, ao conflito tnico, ao racismo de sinal contrrio, ao combateao mundo dos brancos que tinham por longo tempo sido os senhores;depois, adoptando a semntica dos valores mobilizadores dos grandes imp-

    rios, agora em recuo, valores entre os quais se destacava o nacionalismo que,na origem europeia, proclamou a relao entre a Nao e o Estado, e, nestasua verso da revolta, foi um valor integrado num modelo observante do fu-turo procurado, mas sem uma realidade social e histrica subjacente; final-mente, o marxismo, nas diversas verses assumidas pelos Estados que se ape-lidaram de Repblicas Populares, autonomizou uma rea da geografia dafome, abrangente horizontal dos 3AA sia, frica, Amrica Latina , pro-curando mobilizar esse Sul do mundo, agrrio e pobre, vivendo uma econo-mia de subsistncia, e agindo contra a cidade planetria do Norte, consu-

    mista, afluente, imperialista.

    Este conceito de um Ocidente agressor animou a interveno de Nehru,Nkrumah, Nasser, Mossadegh, Chu-En-Lai, para os quais estes brancos,agressores e ricos, so o Ocidente, so a Europa 3.

    Esta percepo foi compatvel com a aceitao das fronteiras geogrficas decada uma das colnias que se tornou independente, independncia quemultiplicou automaticamente o nmero de soberanias formais no mundo

    em reorganizao sob os auspcios da ONU. E, por isso, a luta pela liberdadeda colnia foi compatvel com o recurso violncia, destinada a impedir quea realidade tnica e cultural interior contribusse para a dissoluo do mo-delo territorial associado, multiplicando as identidades polticas.

    Foram exemplos sangrentos a luta pela separao do Katanga (1960), que sa -crificou a vida de Tchomb e Lumumba, no antigo Congo-Belga (Zaire), atremenda guerra do Biafra (1967) e, de sinal contrrio, o verdadeiro impe-rialismo da Unio Indiana que, contra o direito internacional e a poltica da

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    ONU, extinguiu todos os Estados do Imprio ingls, invadiu Goa, e susten-tou uma guerra, que custou uns estimados quatrocentos mil mortos, paraevitar a separao dos muulmanos do Paquisto, colocando entre parnte-ses o pacifismo de Gandhi 4.

    No apenas a prtica da ONU, mas vrios textos internacionais, como o tra-tado resultante da Conferncia de Helsnquia (1973), ou os estatutos da Or -ganizao da Unidade Africana (1963), procuraram acautelar o fracciona-mento das unidades territoriais herdadas do colonialismo ocidental, com oprincpio da integridade das fronteiras. Mas no foi o princpio que se mos-trou eficaz, foi antes a atitude geral dos poderes polticos internos emergen-

    tes que deu consistncia orientao, pelos piores motivos. Todos essespoderes se orientaram, no pela democracia proclamada nos textos interna-cionais, mas sim pelo objectivo de expropriar o poder das soberanias colo-niais expulsas, poder que, no obstante ser exercido por democracias estabi-lizadas da frente atlntica europeia, era absoluto, indiviso, totalitrio, emtodas as colnias: as linhas de Sadam (Iraque) e Mugabe (Zimbabu) so desobrevivncia dessa atitude.

    por isso que o movimento da descolonizao originria enfrentou uma

    linha de autodeterminaes internas, que agora lutam contra a unidade her-dada, desenvolvendo a complexidade crescente da estrutura internacional,cujo primeiro patamar foi o da independncia dos territrios com as fron-teiras herdadas de colonizadores 5.

    Os conflitos baseados em afirmadas identidades tnico-culturais multiplica-ram-se por todo o Globo: na Europa, destacaram-se os casos da Irlanda doNorte, Chipre, Pas Basco, Kosovo; na sia, destacam-se Taiwan, Mindanao,Pattani, Burma/Myanmar, Aceh, Timor, Papua, Tibete; somam-se disputas

    territoriais entre Estados, em nome de invocados interesses das soberanias 6.

    Deste modo, o processo das identidades euromundistas, herdadas pelasnovas soberanias, teve esse primeiro patamar nas fronteiras definidas peloscolonizadores; uma poltica de autodeterminao orientada pelo objectivode capturar o poder ntegro, no democrtico, da potncia que retirava; pro-clamou um projecto nacionalista que significa conduzir a multiplicidadetnica-cultural para a unidade, tendo o modelo nacional ocidental como re-ferncia; defrontou-se frequentemente com a recusa interna de aceitar esse

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    conceito estratgico, muitas vezes com recurso insurreio armada. A leida complexidade crescente da ordem internacional, que relaciona a mar-cha para a governana da globalidade (princpio da unidade) com a simul-tnea multiplicao das clulas polticas autnomas na base, e com os po-deres atpicos transversais, quer usando a violncia (caso do terrorismo),quer os enquadramentos da sociedade civil transfronteiria (podereseconmicos, religiosos, culturais), mostra o movimento mas no apoia aprevisibilidade 7.

    As alternativas estratgicas

    A Carta da ONU anunciava uma nova ordem mundial em que a submissoao direito, que caracteriza as sociedades civis organizadas em Estados, tivessefinalmente rplica numa sociedade internacional tambm submissa ao di-reito, e na qual o poder militar no estivesse ao servio da liberdade sobera-na de fazer a guerra.

    De facto, a organizao anunciada fugia ela prpria ao preceito fundamen-tal, porque o direito de veto, reservado a cinco pases, deixa-lhes a liberdade

    que o princpio da paz anunciava extinguir. Por isso, os EUA no encontramno seu territrio nenhuma parcela que pretendesse a autodeterminao, eforam autorizados a integrar os Alasca e Havai; a Rssia tambm no alte-rou o seu conceito histrico de autodeterminao, que previa a adeso dequalquer Estado Unio, mas no previa o direito de sair dela.

    Por seu lado, a ONU nunca conseguiu evitar genocdios no Camboja ou noRuanda, massacres no Sudo e na Etipia, guerras civis de Angola, Mo-ambique e Guin-Bissau, nem impe o respeito pelos direitos humanos na

    China, no Vietname, na Arglia, na Sria, no Sudo, no Zimbabu 8.

    As chamadas grandes potncias, um ttulo que, durante meio sculo, foiapenas rigoroso para os EUA e para a URSS, desenvolveram, pelas margensdas fronteiras da NATO e do Pacto de Varsvia, uma luta que visou substi-tuir a presena soberana antiga pela hegemonia sobre as entidades locais,luta que utilizou a guerra por entreposta entidade local, e que esporadica-mente envolveu a interveno directa, como no Vietname, na Coreia, ou naChecoslovquia, e finalmente, na viragem do Milnio, no Iraque.

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    As mdias e pequenas potncias, nas quais se incluem pases com o formaldireito de veto que so a Frana e a Inglaterra, no evitaram o recurso guerra na busca do novo modelo, como aconteceu na Arglia, mas usamsobretudo a negociao com que pretendem, e conseguem, redefiniruma janela de oportunidade para as relaes com as antigas dependnciascoloniais.

    O trajecto portugus

    A dependncia externa

    O Imprio Euromundista desenvolveu-se, portanto, segundo duas linhas dereferncia, a linha dos interesses e a linha dos valores: na primeira linha,convergiram todas as potncias que se expandiram para territrios alheios;na segunda, diferenciaram-se nos valores de referncia legitimadores e, emconflito, deram sempre precedncia linha dos interesses. Quando Vascoda Gama chegou ndia, regista o Roteiro que um marinheiro das carave-las, interrogado de terra sobre o que vinham procurar, respondeu: Vimosem busca de cristos, e especiarias 9.

    A linha dos valores, que para a Espanha foi igualmente a evangelizao, noimpediu o genocdio das populaes nativas, que o desviacionismo ameri-cano, na sua marcha do Atlntico ao Pacfico, mais tarde, tambm praticariano continente americano 10. Como no impediu o transporte dos escravos,mais grave do que a prpria escravido, coisa que as pregaes no consegui-ram evitar. E tambm nunca impediu que a imposio do poder polticousasse menos o contrato, ainda que apoiado na prvia exibio da fora, erecorresse mais fora superior.

    Estas referncias parecem necessrias, embora apenas indicativas, para acen-tuar que o processo portugus foi sempre condicionado pela premncia dasua circunstncia externa da soberania, que, em todas as pocas, exigiu umapoio externo para alm das definies legais e constitucionais do Estado,mas parte integrante da sua real estrutura poltica. D. Afonso Henriques ne-cessitou do apoio da Santa S, da qual se constituiu vassalo; a AlianaInglesa foi um apoio permanente sustentado durante sculos; a adeso Europa, no fim do Imprio, em 1974, era inevitvel e insubstituvel 11.

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    frequentemente lembrada a concluso de Lord Acton, segundo o qual, deregra, foi o Estado que formou a Nao, no foi a Nao que originou o Es-tado. Durante toda a primeira dinastia, o Estado foi um modelo de cadeia decomando, assim como na segunda dinastia, lanando o Pas a longe, o regimefoi igualmente ummodelo de cadeia de comando. Um modelo que se repetiuna submisso filipina, e que, ao longo da dinastia de Bragana, tambm vigo-rou com frequncia. Esta herana do modelo, da vontade do rei que amar-rou a mo do marinheiro ao leme, deixou marca na maneira de os Portugue-ses lidarem com o poder poltico, ao mesmo tempo desejando que haja quem

    mande e tratando o poder poltico na terceira pessoa (eles), talvez encon-trando no boneco das Caldas, devido a Bordalo Pinheiro, a melhor expres-

    so desse desencanto histrico.

    Na circunstncia actual, a lonjura das sedes europeias do poder, para ondevo sendo transferidas as competncias polticas, a evoluo do modelo semparticipao dos eleitorados e dos parlamentos nacionais, os efeitos colate-rais das decises vindas do centro do modelo, tudo acentua aquela atitudede distanciamento, descaso, falta de confiana no poder poltico, facto quenos regimes democrticos tem voz na absteno eleitoral.

    A saudade do futuro

    O sonho da misso do Povo da ocidental praia lusitana sobreviveu paraalm dos desvios normais dos governos, resistindo e lutando contra a deca-dncia do Imprio que o projecto de Sagres consagrara, originando umalinha genealgica que sobreviveu para alm da revoluo de 1974, a qualcolocou um ponto final naquele conceito estratgico imperial do Estado.

    Pertence a Lus de Cames, e voltaremos a este ponto, a formulao e per-petuao dessa viso, ao publicar Os Lusadas na vspera do afundamentodo Imprio em Alccer Quibir. De ento em diante, como escreveu Rama-lho Ortigo, Os Lusadas so a pedra monumental sob que jaz a glria daptria, e nessa pedra que tero de ir afiar as suas espadas de combate todosos Portugueses que se assumem para resistir a esta invaso terrvel com quelutamos, e que se chama a decadncia 12. A esperana deste conceito, a fdos seus crentes, surpreendentemente posta na memria de um rei ven-cido, D. Sebastio, cujas instrues viriam a ser lembradas pela gerao de

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    Mouzinho fazei muita cristandade , cujo regresso salvador animaria oprojecto do V Imprio que vai do Padre Antnio Vieira a Agostinho daSilva.

    Talvez isso seja a fixao magoada num projecto de grandeza que falhara nolimite de uma interveno enlouquecida, o peso da nova situao de depen-dncia externa a piorar a maneira de viver, e, por outro lado, o apelo aomilagre, a alienao na espera de uma deciso vinda do alto, e mais con-fiana na orao do que na aco.

    Os Lusadas definem o ponto de referncia de todas as angstias, perguntas,

    perspectivas, em que se diferenciam as atitudes das geraes futuras: ante-cipa uma realidade europeia que foi a do Imprio Euromundista, mas naqual o Pas participar no como o lder suposto pelo poeta, mas como par-ceiro que na gesta africana do sculo XIX sofreria a segunda maior humilha-o da sua histria, que foi o Ultimatum (1890) ingls.

    Talvez possa adoptar-se este facto para sublinhar a relevncia de um senti-mento crescente de angstia perante o assumido movimento de superiori-dade estrangeira, com Mouzinho de Albuquerque a representar a luta por

    uma nova grandeza e a suicidar-se, com Antero de Quental a apontar para oeuropesmo, com hesitante adeso ao iberismo, e tambm a suicidar-se; ecom Bordalo Pinheiro a fixar no Z Povinho das Caldas a atitude popularde distncia em relao s elites governantes. De facto, tudo a vincar o traode pas de emigrantes, que nesta viragem de milnio regista cinco milhes deportugueses na dispora, uma distncia na qual vai sendo idealizada umaPtria distante terra dos antepassados, terra de Nossa Senhora, terra desantos padroeiros em que se distingue Santo Antnio, terra de heris comoo Infante D. Henrique, Nuno lvares Pereira, Vasco da Gama, Sacadura

    Cabral e Gago Coutinho, invocados e homenageados nas sedes das agre-miaes locais.

    Com triunfadores na dispora, mas tambm submetendo-se humildadedos trabalhos que as populaes naturais j no aceitam, como se passa hojena Europa das comunidades, como aconteceu no Brasil depois da indepen-dncia e, sobretudo, depois que a lei da Princesa Isabel colocou um pontofinal na escravatura e alterou o mundo do trabalho, at ao limite de colniasde emigrantes em situao de trabalho forado no prprio espao ibrico.

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    O lusotropicalismo

    As migraes obedeceram a dois modelos, em cada um dos quais se mani-festou diferentemente esta capacidade de multiplicar atitudes: as migraesde Estado que dispersaram povoamento por vrias latitudes, com o grupoemigrante ciente de que representava e exercia o poder; as migraes paraterritrios de soberania estrangeira; finalmente, a inverso dolorosa da posi-o na pirmide do poder nas colnias, causada pela retirada da soberaniaportuguesa, como aconteceu em 1974, fim do ciclo imperial.

    No primeiro caso, os factos so os que melhor correspondem interveno

    tardia de Gilberto Freyre, com a sua teoria do lusotropicalismo13

    .

    A crtica, sobretudo a que parte de uma perspectiva marxista ou da luta pelaindependncia, parece imaginar que Gilberto ignorara a escravatura, o trans-porte de escravos, as culturas obrigatrias, os castigos discricionrios. Aquiloque ele teorizou foram as emergncias reparadoras dos defeitos das virtudes,a emergncia de sociedades multitnicas e multiculturais no discriminat-rias, com, eventualmente, a definio poltica final chamada Brasil ou CaboVerde, ou o que foi o Estado da ndia (Goa).

    A interpretao consequencialista, nesta data muito em exerccio, para ava-liar as emergncias que resultaram da transferncia da Corte dos Braganaspara o Brasil, evidenciou a prtica da igual dignidade humana como refe-rncia valorativa, a troca de padres de comportamento, a igualdade dasetnias, o objectivo da assimilao para os padres religiosos (evangelizao) ecvicos. Tratava-se da reproduo do longo processo metropolitano, masainda no inteiramente consumado no incio das navegaes, e que partirado modelo do Rei das Trs Religies, a caminho de uma realidade nacional.

    Um processo tambm com evidentes provas de violncia do poder poltico,como foram a expulso dos Judeus e a Inquisio.

    Talvez a interpretao do princpio poltico da unidade nacional, o famoso

    conceito de um s pas do Minho a Timor, exprima a unidade da dispora fixada

    em terras de soberania o marinheiro amarrado ao leme pela vontade de D. Joo

    II e no as populaes naturais, objecto dos processos de assimilao, eda recusa da igualdade poltica at que uma sociedade civil homognea tivesse

    emergido.

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    Por seu lado, Orlando Ribeiro acentuava que em toda a parte onde os Por-tugueses se estabeleceram, cruzando-se com as mulheres da terra, criaram--se espontaneamente sociedades crioulas. So mestios que constituem amaioria da gente de Cabo Verde, que pontuam todas as reas da coloniza-o antiga do Brasil, como a Bahia e o Recife, como o Rio de Janeiro eMinas Gerais.

    O longo tempo que demorou a emergncia da sociedade civil brasileira, queprimeiro serviu de objecto de estudo a Gilberto, no consentia imaginar queo mesmo, estando em curso, se teria j consumado nos territrios de frica,onde a aco efectiva da soberania, entre a Conferncia de Berlim de 1885 e

    a retirada de 1974, teve escassamente mais de meio sculo, descontados de-signadamente os tempos das campanhas da ocupao, das interrupes de-correntes das crises polticas metropolitanas, ou da perturbao causadapelas Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Cabo Verde parece dever serreconhecido como o mais perfeito dos modelos implantados.

    Quando, em 1974, o modelo de povoamento em terras de soberania, com oprincpio da assimilao na ideologia e a defesa do exclusivo do poder pol-tico a manter barreiras que a lei de 6 de Setembro de 1962, anulando o esta-

    tuto do indigenato, chegou tarde para produzir efeitos relevantes, a minoriano poder (povoamento) sofreu a queda para minoria que perdera o poder afavor dos partidos nativos.

    Foi uma experincia destruidora, sem qualquer semelhana com as indepen-dncias do sculo XIX, em que se incluiu o Brasil, e nas quais as minorias nopoder continuaram com a independncia na sua posse, mantendo os seuspadres de vida pblica e privada.

    A retirada global de 1974, o retorno terra ptria, a reintegrao sem difi-culdades de relacionamento, a notvel contribuio para a reanimao dasociedade civil portuguesa, mostrou que a unidade do Minho a Timor eraessa, com acolhimento dos adquiridos padres de torna-viagem, a confirmaro trao da amorosidade que, ainda quando longe das consagraes religio-sas ou civis das unies, fez dos filhos um sacramento laico das famlias.

    Esta identidade de uma Nao Peregrina, por fora do conceito estratgicoestadual, tambm manteve a reserva de elementos estruturais quando a dis-

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    pora foi para terras alheias, as terras das migraes em busca de outros futu-ros mais promissores, no Brasil independente, nos Estados Unidos da Am-rica carentes de povoadores, e para a Europa, durante a guerra colonial, masmuito intensamente depois do fim do Imprio. O tecido cultural cristo foidominante, dando relevo aos valores femininos, no que toca transcendnciapelo culto de Nossa Senhora, e, pelo que toca vida civil, entregando as res-ponsabilidades s vivas de homens vivos que, em todos os tempos, pelaguerra, pela navegao, pelas emigraes, governaram as casas, educaram osfilhos, sustentaram a tica do civismo, da conteno perante a pobreza, e atperante os erros da cadeia de comando poltico. As exploses ocasionais deviolncia, nas guerras civis, nas guerras coloniais, nos conflitos de origem

    religiosa, foram intervalos catastrficos na longa demonstrada capacidade delidar com as diferenas tnicas, religiosas, culturais.

    O Povo no pretrio

    O heri de Os Lusadas de Lus de Cames o Povo Portugus, guiado emregime de cadeia de comando, e apenas falhando os desgnios quando um

    fraco Rei faz fraca a forte gente. Mesmo O Soldado Prtico, onde Diogo doCouto descreve o passivo da epopeia martima, nas elites dirigentes quesitua os desvios dos princpios, do esquecimento da tica do poder, do des-caso pela supremacia dos valores e do bem comum, em favor dos abusos edas corrupes.

    Depois do desastre de D. Sebastio, as reedies do poema de Cames, e asesperanas do regresso grandeza, alimentando a estranha utopia sebastia-nista da confiana no regresso do Rei vencido, e o sonho do V Imprio,linha de que o Padre Vieira se faria arauto e viria a ter uma formulao final

    com Agostinho da Silva, foram vises de um regresso ao antes do desastre,que podia ter sido evitado, deram apoio aos cavaleiros do imprio africanodo efmero Mouzinho, no atriburam ao povo as origens e causas dasnunca mais extintas saudades do futuro 14.

    Foi o liberalismo, com a constitucionalizao da soberania popular, com oiluminismo que traou no Brasil a via estreita de inspirao inglesa de umatranquila mudana, e cavou na metrpole a via francesa da exploso armada,que levou os iluminados ao desespero de no encontrarem no povo o ci-

    vismo modelado pelo europesmo da Primavera dos povos.

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    No faltam escritores e poetas, nos sculos XIX e XX, que chamam o Pas grandeza, desafiados pelo confronto entre um passado glorificado e um pre-sente desanimador, em face dos avanos civilizacionais da Europa. No seuexcelente ensaio de 2007, Jos Carlos Seabra Pereira vai trazendo memriacolectiva os anseios, angstias e votos, do nacionalismo de Garrett ao passem esperana de Antnio Nobre. Na exaltao de Afonso Lopes Vieira,Alberto de Oliveira, Joo de Barros, Antnio Sardinha, Corra de Oliveira,Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Miguel Torga, por todos passa omesmo apelo deste ltimo redescoberta de um caminho portugus paraa Ptria sem rumo, mas no so frequentes lamentos sobre a incapacidadedo povo 15.

    Pelo contrrio, entre os dirigentes polticos do constitucionalismo, no fal-tam discursos a colocar o Povo no pretrio do julgamento da histria. JooFranco, depois do regicdio, escrevia: Em Portugal, e no de hoje, parecemexistir dois pases: um que trabalha, e bem; outro que governa, e mal. Dequem a culpa? De todos, e principalmente dos governados.

    Nesta viragem do Milnio, reeditaram-se algumas das mais pessimistas medi-taes de responsveis desconsolados com o Povo que governaram, como

    Bernardino Machado, Manuel Arriaga, Hintze Ribeiro, Bento Carqueja, An-drade Corvo, Augusto Fuschini. Todos foram comungar nas concluses deEa de Queiroz, ao comparar o passado que morreu em Alccer Quibir como presente que viveu. Escreveu, e no so talvez as mais pessimistas das suaspalavras, ao recordar a partida anual das caravelas: Iam em demanda demundos, levando Deus dentro do peito, sob as constelaes Augustas, entreas tempestades, os rochedos, os climas e as correntes, de p nos tombadilhos,descobertos, rodeando um Cristo, cantando os salmos ao coro dos furaces,todos reluzentes de armaduras e de divisas de amor, com a alma cheia de alti-

    vezas de batalhadores e de douras de apstolos. Viria a contrapor, a essaleitura do passado, as crticas que foram dos vencidos da vida, desiludidossobre este pas, este portugalrio, sobre a incapaz classe poltica.

    Tambm Joo Franco, a braos com a avaliao do desastre do seu governo,parecia amenizar a conscincia com estas palavras (1924): Estranha psicolo-gia a deste povo, que, possuindo uma histria a topeto com a fbula, de taismaravilhas se compe, parece sofrer duma ingnita inaptido poltica, des-denhando e quase repugnando-lhe ter voz em captulo, nas horas decisivas

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    do seu destino 16. Na Repblica, o generoso Antnio Jos de Almeidadeixaria este desabafo: Continuamos influenciados pelos mesmos v-cios, dominados pela causa de todas as nossas desgraas, com a honradespedaada

    De tempos a tempos, o modelo da cadeia de comandovolta a instalar-se, semxito, como aconteceu com o Presidente-Rei Sidnio Paes, ou para durarlongamente, como foi o caso do governo de Oliveira Salazar, que se esgotouem 1974 com a Revoluo que derrubou o ltimo Presidente do Conselhoda Constituio de 1933, Marcello Caetano 17.

    Este ponto final correspondeu justamente a uma rotura da cadeia decomando, cujo vrtice deslizou do corpo de generais para os capites, osquais viabilizaram uma constituio democrtica do modelo da UnioEuropeia.

    Rapidamente, o regime evoluiu para opresidencialismo do Primeiro-Ministro(Cavaco Silva), com diminuio da autoridade da interveno parlamentar,o poder sofrendo uma variante de alienao, agora nos meios de comunica-o social, sem participao relevante do eleitorado e do Parlamento sub-

    misso s autoridades partidrias, o povo longe do processo decisivo das sedesdo poder da Unio Europeia, exprimindo, pelo absentismo eleitoral, a dis-tncia em relao ao poder institudo.

    De facto, perpetuando um Parlamento dos Murmrios, que ajuda a tecer ummundo virtual, pontuado de boatos, de suspeies, de receios, de fontes en-cobertas, de azedumes, de confiada autoridade nos que criticam a governan-a, e que logo a perdem se chamados ao poder.

    A crise da sociedade de confiana que hoje abala todas as comunidades oci-dentais, pela imprevisibilidade da evoluo, tem dois aspectos: um referente vida habitual e contratualizada dos cidados, outro referente relao dasociedade civil com o poder. A distncia tradicional est, nesta entrada nonovo milnio, excessivamente marcada pela falta de confiana na justia, nosservios de sade, nos servios da educao, na polcia, na fiscalidade, emsuma, na cadeia de comando que o conceito com que tradicionalmente opovo olha para os detentores do poder poltico, que trata na terceira pessoa eles.

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    A Sociedade e o Poder em mudana

    A necessidade histrica e permanente de o Estado Portugus ter um apoioexterno, que faz parte do sistema poltico sem referncia constitucional, tra-duziu-se, depois do fim da guerra colonial (1974) e pelo envolvimento irre-cusvel da globalizao e fim inerente do conceito estratgico nacional se-cular, na adeso Europa, uma adeso sem outra escolha.

    Esta adeso implicou acompanhar todo o processo de mudana do conceitoestratgico da Unio Europeia, hoje, a caminho de uma forma imprevisvelde novo poder poltico. A visvel tendncia do Estado Portugus para acen-tuar uma debilidade de Estado exguo, isto , sem capacidades para responders finalidades clssicas da soberania, coloca-o numa posio intermdia nahierarquia consagrada no Tratado de Lisboa (2008), e, inevitavelmente, atambm defrontar trs carncias da Unio: carncia de matrias-primas, ca-rncia de energias, carncia de mo-de-obra.

    Esta ltima situao de carncia europeia resulta da quebra de natalidade,da emigrao dos naturais, e da rejeio selectiva por esses naturais de tare-fas consideradas menos dignas; isto, ao mesmo tempo que os avanos da

    cincia e da tcnica exigemmais gente qualificada emenos gente, sem que aeconomia cresa em termos de garantir o Estado social, e sem que sejam es-tabelecidas garantias contra a deslocalizao das instituies econmicas quecirculam os estabelecimentos e as sedes pelas rotas das circunstncias maisfavorveis produo de lucros.

    Os pases que se ficam pelos lugares mais baixos das escalas de avaliao dodesenvolvimento humano sustentado tambm so mais abalados pelospontos negativos do tufo globalista.

    Portugal mantm uma vasta dispora em terra alheia a tradio de pas deemigrantes e de vivas de vivos , apontando-se para cinco milhes de por-tugueses a viverem fora das fronteiras, e, ao mesmo tempo, tem uma imigra-o considervel quer de africanos, sobretudo provenientes das antigas col-nias, quer de cidados das repblicas do antigo Leste sovitico.

    Tudo no evita uma fraca capacidade de impedir as deslocalizaes, de ga-rantir o Estado social, de corresponder com servios exorbitante carga

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    fiscal, ou de ter um conceito suficientemente claro que permita distinguir aracionalizao do abandono da interioridade.

    nesta situao de debilidade dos meios do Estado e do bem-estar das popu-laes (Estado exguo) que os desafios geopolticos, quer da segurana, querda interculturalidade, renovam o perfil e a intensidade.

    Em primeiro lugar, o conceito originrio de Jean Monnet, que orientouo processo europeu, teve como objectivo eliminar a tradio, e os seus efei-tos, de os Estados europeus nunca terem vizinhos, terem apenas inimigosntimos.

    Foi assim que os responsveis pelas democracias crists europeias, Schuman,Alcide de Gasperi e Konrad Adenauer, todos experientes da conflitualidadedas fronteiras, iniciaram a desmobilizao dos demnios interiores da Euro-pa que tinham conduzido a duas guerras mundiais na mesma gerao.

    Portugal tem na sua histria a sua componente especfica dessa relao, tra-duzida na advertncia de que de Espanha, nem bom vento, nem bom casa-

    mento, e sucessivos conflitos armados.

    O princpio europeu transforma as fronteiras geogrficas em apontamentosadministrativos, pelo que a secular displicncia espanhola em relao aPortugal, e a atitude defensiva portuguesa em relao Espanha, esto emmudana, com o crescimento paralelo de reas de trabalho integradas, com apresena de ambos os Estados em organizaes internacionais integradoras(ONU, NATO, Unio Europeia), com a larga presena de estudantes portu-gueses em Universidades espanholas, com o apoio de servios espanhis sdebilidades da interioridade portuguesa.

    A pertena Unio Europeia, que suscita esta mudana de relacionamento,vai impondo por igual as transferncias de competncias dos Estados, e,assim, amparando a linha de evoluo que reconhece a crise do Estado Sobe-rano, mas acautelando a crise das identidades nacionais, coisa diferente da vozdada aos regionalismos.

    A europeizao dos costumes um dos efeitos globais do avano integradodos Estados europeus, com o fundamentalismo laico do chamado Tratado

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    Constitucional, orientado por Giscard dEstaing, a revelar-se to preo-cupante como o fundamentalismo religioso de pocas passadas, e agora, denovo activado pelo choque das civilizaes 18.

    Esta questo do choque das civilizaes afecta a conjuntura portuguesa emvrios aspectos. Em primeiro lugar, a carncia europeia de mo-de-obra, con-jugada com a misria dos povos dageografia da fome, provocou um descon-trolo das migraes que a teologia de mercado parece ter imaginado de ratinhosque regressariam s origens, findo o trabalho e desaparecida a ocupao: porisso, a Europa no teve uma poltica de acolhimento, uma poltica de integra-o, nem poltica de assimilao pelo menos poltica. O resultado so as col-

    nias interiores, a violao da sociedade civil de confiana, as insurreies premoni-trias, o regresso dos mitos raciais a agravarem-se em mitos culturais; emresposta, as medidas securitrias das autoridades em crise de eficcia vo sen-do acompanhadas pelas medidas securitrias da sociedade civil com expressomais visvel nos condomnios fechados. Tudo a recordar os dispositivos das Or-denaes para as comunidades separadas socialmente pelas respectivas iden-tidades culturais e religiosas, e fisicamente separadas pelos bairros prprios, oque, do ponto de vista poltico, recorda a poca dos Reis das Trs Religies.

    A sociedade civil portuguesa revela todos estes efeitos, a crise dos valores evidente, a debilidade da economia acentua a pobreza e a conflitualidade, adeclarao de pertena s Igrejas institucionalizadas, com relevo para a IgrejaCatlica, diminui, o apelo transcendncia cresce sem resposta estruturada,o integrismo laico crescentemente dominante 19.

    Estes factos levam a anlise econmica a remeter o Pas para a categoria deperifrico, uma classificao que corrijo, em relao s debilidades gerais doaparelho estadual, com o conceito de Estado exguo, acentuadamente em

    risco de no poder responder s finalidades da soberaniafuncional e coope-rativa da poca.

    Todavia, a premncia dos factores exgenos, a fora avassaladora do globa-lismo, a solidariedade sistmica com a Unio Europeia, definiu a situaoestratgica de Portugal como a de um Estado de fronteira.

    Internamente, tem os problemas europeus do multiculturalismo, crescenteno ambiente de descaso que ficou referido, com os mesmos riscos, conflitos,

    perplexidades e mudanas culturais em progresso por todo o espao europeu.

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    neste plano que o terrorismo global no o exclui nem das ameaas nem dasobrigaes de resposta que se vo estruturando.

    Este terrorismo global, com referncia histrica no 11 de Maro, no excluinenhuma parcela do mundo ocidental, no esquece os antigos territrios,designadamente ibricos, de onde o poder invasor muulmano foi expulso,e nenhum pas pode considerar-se excludo da ameaa.

    A direco muulmana, com visibilidade centrada em Oussama Ben Laden,est organizada em rede com clulas autnomas, adopta a matana de ino-centes para quebrar a relao de confiana da sociedade civil, e desta com o

    Estado, no enuncia os resultados que tornariam possvel a paz e introduziuno conceito estratgico valores religiosos que, por muito que sejam versesdesviadas da doutrina, mobilizam o crculo de desesperados, estes apoiadosnum crculo maior de apoiantes, e todos promovendo a sua inspiraocontra o crculo maior dos que preferem os preceitos da paz.

    Por estas razes, Portugal est envolvido nos riscos e no pode ficar alheio spolticas de segurana internacional, salvo, optando pela situao passiva deser destinatrio das decises dos agressores e das decises dos ocidentais

    mobilizados 20.

    So inquietantes as diferenas e at cises causadas pelo unilateralismo daadministrao republicana do presidente George Bush, mas isso no dimi-nui a referida situao de pas de fronteira de Portugal: est na fronteira daarticulao da Europa com a segurana do Atlntico Norte, onde cresce otema da autonomia do pilar da segurana e defesa europeia; est na fronteirado desafio da segurana do Mediterrneo; est na fronteira da articulao desegurana do Atlntico Norte, formalizada na NATO em mudana de con-

    ceito estratgico, com a segurana do Atlntico Sul a exigir definio. Quero territrio metropolitano, quer as regies autnomas dos Aores e Madeira,incluindo Cabo Verde, e as soberanias de lngua oficial portuguesa da costaatlntica da frica, e muito salientemente o Brasil, esto implicados na cir-cunstncia do risco e nas necessidades de resposta.

    A debilidade do Estado pode impedir uma participao activa suficiente,mas no tem qualquer visvel possibilidade de repetir a poltica da neutrali-dade colaborante, percurso ensaiado sem xito por D. Joo VI, adoptada

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    com resultado pelo governo de Oliveira Salazar, mas um modelo sem rplicana experincia comum dos Estados, e totalmente impossvel num mundoglobalizado.

    Foi por isso oportuna a poltica da presidncia portuguesa da Unio Euro-peia em 2007, ao desenvolver as cimeiras, designadamente a Euro-Africana,em busca de uma definio de fronteiras amigas, caminho para definir opoder militar europeu como umafora tranquila, sem qualquer objectivoofensivo, vigilante da segurana que o pressuposto da paz entre os Estados,entre os grandes espaos polticos e estratgicos, entre as culturas que, pelaprimeira vez na histria da Humanidade, falam com voz prpria e livre navida internacional.

    Interioridade: entre a racionalizao e a desistncia

    No ser de um ponto de vista da economia do desenvolvimento, que entrens tem analistas reputados e confiveis, que poderei dar alguma contribui-o para o debate. Tendo em conta as perspectivas que dominam a rea dasrelaes polticas, internas e internacionais, partirei, antes, de um pressu-

    posto que se traduz em considerar que a relao de pertena entre a populaoe o territrio uma varivel sem cuja considerao no se ter uma imagemrelativamente segura da questo.

    Partindo do global para o local, no parece recusvel que o vendaval da glo-balizao semeia efeitos colaterais que afectam todas as regies e comunida-des do mundo, as quais no participam nos processos, ignoram as decises,e no encontram na experincia disponvel qualquer inspirao para umaresposta defensiva.

    Talvez a considerao mais iluminante desta conjuntura sem precedentestenha sido feita pelo Mahatma Gandhi nestes termos: No quero que aminha casa seja cercada de muros por todos os lados, nem que as minhas ja-nelas sejam tapadas. Quero que as culturas de todas as terras sejam sopradaspara dentro da minha casa, o mais livremente possvel. Mas recuso-me a serdesapossado da minha por qualquer outra.

    Este texto coloca no centro do problema da interioridade, entendida como

    quebra da relao de interdependncia entre grupos humanos, independen-

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    temente de tal quebra ter como caracterstica as lonjuras geogrficas ou a na-tureza de colnia interior, no seio de vastos aglomerados urbanos, a relaode pertena entre a populao e o territrio que ficou referida.

    No que toca s colnias interiores, que se multiplicam por todo o territrioeuropeu em consequncia de migraes desordenadas pela organizadssimateologia de mercado, os problemas econmicos tornam-se mais complexospelos confrontos culturais, incluindo as diferenas religiosas, que tambm jafectam os nossos grandes centros urbanos. No dessas interioridades quenos ocupamos neste texto, mas apropriado que fiquem mencionadas comoprevisvel factor dinamizador da conjuntura de mdio prazo, que poder terde as incluir em todas as agendas. Exemplos recentes, como os do Kosovo edos conflitos em Frana, tornam evidente que a relao de pertena entrepopulao e territrio sofreu alteraes de rotura, de abandono, de transfe-rncia, de violao dos dogmas polticos, de imprevisibilidade.

    No que respeita, por exemplo, ao nosso Reino Maravilhoso, de Trs-os--Montes, talvez possa abrir pistas para comparar a evoluo do acento tnicoda temtica desde, por exemplo, a visita pastoral de Frei Bartolomeu dosMrtires, no sculo XVI, que deixou nas memrias o testemunho das carn-cias que se perpetuaram; relembrar o I Congresso de Trs-os-Montes e AltoDouro (1920), em que a posio defensiva dos interesses provinciais assentana viso dopassado com futuro; ler a agenda do II Congresso (1941), em quea problemtica se adensa com a identificao dos problemas da moderniza-o; anotar que no III Congresso (2002) o apelo ao civismo (cidadania) dostransmontanos e alto-durienses a directiva de que depende a formulao deuma procurada estratgia de desenvolvimento sustentado. Acrescentaremos,desde j, que o ltimo referido conceito ganhar em aproximar-se do con-ceito que orienta o PNUD Plano das Naes Unidas para o Desenvolvi-

    mento , que exige desenvolvimento humano sustentado, porque tal qualifi-cao parece essencial nesta data.

    Posto isto, e anotado que todos os congressos so caracterizados pela von-tade de encontrar um rumo para a modernidade, o que se traduz na mobiliza-o do civismo das populaes para implantarem um adoptado modeloobservante de sociedade moderna, sugerimos a necessidade de avaliar quemo-delo observante consegue ser, neste caso, o procurado dinamizador. Nosendo necessrio para este ponto recordar as propostas de regionalizao, de

    descentrao de poderes, de aproximao dos rgos decisrios das popula-

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    es, julgamos que existe um conflito entre propostas de modelo: o modeloque os centros de investigao desenvolvem e cuja efectivao depende daadopo pelos poderes polticos; os modelos que as foras polticas procla-mam com a afirmada deciso de execuo inerente tomada do poder; e, fi-nalmente, omodelo de sociedade virtual que os meios de comunicao mun-dializados implantam, e, de facto, ultrapassam, em adeso, todos os outros: o triunfo da imagem das sociedades de consumo, afluentes, unidimensio-nais, supostamente existentes algures, sem interioridades desafiantes, em lu-gares ignorados pela experincia dos visados, modelos que fortemente dina-mizam a quebra da vontade de ficar, a quebra da relao de pertena daspopulaes com os territrios de origem e com a realidade longnqua da

    imagem recebida, relao j antes, eventual e progressivamente, enfraque-cida pela distncia, essa vivida e sofrida, entre as promessas dos governos e agovernana desempenhada, pelos efeitos colaterais da economia global demercado, pela quebra da natalidade causada pela desproporo entre osrecursos de vida vivida e as promessas da imagem recebida de longe. O queest em causa que ningum escolhe o povo e o territrio onde lhe acon-tece nascer, mas decidir ficar um acto de amor no necessariamente inde-pendente da relao entre o sonho e os factos.

    Ignorar que, primeiro, o desfasamento entre a vida vivida e as promessas daimagem, depois, a quebra de relao entre a dispora que continua e a ori-gem, finalmente, a integrao definitiva no destino, afectam decisivamente opressuposto bsico do desenvolvimento, que a relao de pertena entre apopulao e o territrio, que exige e assegura a viabilidade das boas polticas,traduz-se em ignorar a importncia decisiva da afectividade para o xito dasboas polticas. As boas polticas que lutam por essa qualificao, aindaquando bem delineadas, contra os factores, sobretudo exgenos, destruidoresdas circunstncias tradicionais dos povos, incluindo as mudanas climticas, a

    desflorestao, as doenas ambientais, as mutaes das concepes familiares,das tradies, da confiana tnica e cultural, at das novas religiosidades.

    A questo cultural torna-se problemtica em vista de tantos factores quedeterminam a mudana ou que, antes disso, desactualizam e tornam insufi-cientes ou inviveis os modelos de comportamento seculares.

    O primeiro artigo da Declarao Universal sobre Diversidade Cultural da

    UNESCO (2001), afirma o seguinte: A diversidade cultural to necess-

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    ria para a humanidade como a biodiversidade para a natureza. Neste sen-tido, a herana comum da humanidade e deve ser reconhecida e afirmadapara o benefcio das geraes presentes e futuras. Mas tambm reconhe-cido, geralmente, que o medo de perder a identidade cultural, e at nacio-nal, inspira a resistncia ao desenvolvimento, faz da tradio um passadosem futuro, pelo que a busca da linha da razoabilidade cada vez mais exi-gente de bom governo.

    Os economistas inclinam-se no sentido de que as imigraes so parte do be-nefcio para o desenvolvimento dos modelos do destino, superiores at liberdade de comrcio, e apontam exemplos como as empresas indianas de

    Sillicon Valley nos EUA, das enfermeiras africanas a trabalhar na Europa,at das jovens domsticas filipinas que emigram para a Arbia Saudita.

    A nova questo , porm, a do empobrecimento de capacidades, de vonta-des, de juventude, que atinge as sociedades de origem, agravada pelo desas-tre que acompanha a deslocao dos emigrantes sem qualificao para luga-res onde no est a realidade virtual que os despertou para a aventura,aventura que tem gritantes exemplos de desastre humano, mesmo para por-tugueses em territrio europeu.

    Regies como a de Trs-os-Montes e Alto Douro, que deu um contributo va-lioso formao do Pas, regio que foi sempre do Reino, pode e deve recla-mar esse crdito histrico, mas tem ainda de questionar se o facto de apre-sentar um dos ndices mais baixos de desenvolvimento do Pas, leva a avaliaro territrio como um simples recurso econmico, ou se tambm exige a con-siderao de factores que tm que ver com a soberania.

    Muitas das propostas enunciadas ao longo dos tempos, quer de reorganiza-

    o do espao, quer de redefinio dos instrumentos pblicos de interven-o e gesto, que visam adensar as proximidades relacionais de espao, asacessibilidades, mobilidades, ajudas tcnicas, todas visando eliminar umperfil arquipelgico do territrio nacional, esto expressamente ou de factorelacionadas com um conceito de unidade nacional, reforada por um pro-curado tecido conjuntivo.

    Mas o primeiro e mais forte elo desse tecido conjuntivo est, parece-nos,na relao de pertena entre a populao e o territrio, um lao de afecto

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    que se estende ao todo nacional pelo fortalecimento das relaes, dissol-vendo as distncias no apenas geogrficas mas, sobretudo, culturais e deaspiraes.

    Quando sugiro que enfrentamos aqui uma questo de soberania, no pararecordar o soberanismo que no passado tornou arquipelgico o modeloeuropeu e mundial de governana. antes para lembrar que o tempo destemilnio em que entramos de soberanias funcionais ou cooperativas, em queas transferncias de competncias para rgos supranacionais, de vrias esp-cies, um imperativo a que o processo europeu vai obedecendo.

    Mas a luta contra a interioridade, entendida no sentido de debilitao dasregies, enfrenta a relao de pertena das gentes com o territrio, por doisfactores antes pouco relevantes: em primeiro lugar, o percurso europeu temsido caracterizado por umapoltica furtiva, isto , sem participao nem daspessoas nem dos Parlamentos nacionais, o que implica com frequncia queos efeitos das decises vindas do centro do sistema europeu em formao seprojectam com a natureza de efeitos colaterais na vida das populaes queno lhes conhecem a origem, e sofrem condicionamentos que afectam assuas circunstncias de vida presente, e projectos de futuro: a pesca e a agri-

    cultura, so sectores onde esse fenmeno evidente; isto implica um distan-ciamento das populaes em relao ao governo, que nessas dimenses lhesparece irrelevante, alastrando, tambm por isso, a absteno do eleitorado eo ilhamento das populaes: a educao para o novo exerccio do civismo uma pregao da UNESCO, mas no tem sido uma aula de muita assistn-cia interessada.

    Entre os efeitos colaterais deste globalismo crescente da teologia de mercado,e cuja mo invisvel fala pela linguagem proftica das estatsticas, emerge

    uma positiva reaco da sociedade civil que, pelas regies da interioridadegeogrfica, vai abrangendo e at consolidando comunidades transfronteiriasde trabalho, como visvel entre a Galiza e o Norte, como temos sinais nasrelaes do Reino Maravilhoso com Leo, ou no lema do Municpio deCastelo Branco ao proclamar a raia sem fronteira, ou na literatura doAyuntamiento de Badajoz sobre o Alentejo do Alqueva. Tudo corolrios datransformao europeia dasfronteiras geogrficas em apontamentos adminis-trativos, que a iniciativa das sociedades civis das reas debilitadas tende amobilizar.

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    Mas este movimento obriga a meditar sobre os deveres da soberania poss-vel, quando cresce a dificuldade de caracterizar as polticas pblicas referen-tes s interioridades, pela dvida sobre se tudo racionalizao ou desistncia.

    evidente o movimento de concentrao urbana, que j no pode obedecer sementeira de povoados que obedecia geira, isto , distncia que se podiapercorrer em cada dia de trabalho, com a lentido do carro de bois e doburro de carga. Mas extinguir escolas, postos de sade, servios de urgncia,com lgica que frequentemente parece de pequenas e mdias empresas, noapenas esquece que os homens no so nmeros, como esquece a relao depertena dos homens com a terra, e impulsiona a imigrao e a desertifica-o, porque reduz o territrio a um passado sem futuro.

    Um dos aspectos em que se manifesta a hesitao, entre racionalizao e de-sistncia, coberta pelo aparente abuso semntico, diz respeito ao EnsinoSuperior. A multiplicao de Politcnicos e Universidades pelo Interior cor-respondeu a uma poltica de agresso das interioridades adormecidas, en-quanto que o Litoral foi objecto de uma criao de instituies de resposta densidade demogrfica.

    Uma primeira dificuldade resultou do tecido cultural, que atribua ao ttuloacadmico universitrio uma dignidade superior ao ttulo acadmico poli-tcnico, quando ambos os tipos de instituio foram definidos com identi-dades diferenciadas, mas com igual dignidade: as primeiras, mais direccio-nadas para a empregabilidade; as segundas, para o emprego; as primeiras,para o saber; as segundas, para o saber fazer.

    Um efeito negativo da valorao conservadora do tecido cultural esteve nomovimento acentuado no sentido de universitar a rede politcnica.

    Admitindo que, com algumas contadas excepes, esse movimento foidetido, o facto que a agresso das regies adormecidas, aumentando as ca-pacidades cientificas e tcnicas da juventude, se deu um novo perfil s cida-des que lhes serviram de sede, no teve apoio no crescimento da economia,de modo que as imigraes aumentaram de qualidade, mas a reteno dostalentos no correspondeu inteno.

    certo que, em muitos centros, se verificaram os efeitos da modernizao

    tecnolgica, mas esta no foi acompanhada da demonstrao da afirmada

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    destruio criativa de que falaram os economistas. Foi mais visvel o facto deo progresso tecnolgico exigir maisgente qualificada , mas menos gente envol-vida, com efeitos negativos no mercado de trabalho. A circunstncia destaevoluo ter coincidido com a prolongada desateno dos sucessivos gover-nos para a necessidade de fornecer aos estudantes um banco de dados queorientasse a livre escolha informada doprojecto de vida, e para a urgncia deregular a rede nacional composta da rede pblica, rede privada, ambas comverses universitrias e politcnicas, provocou um desequilbrio entre aquantidade, e, por vezes, a qualidade, das formaes certificadas e as necessi-dades do mercado e do desenvolvimento humano sustentado, o que tudoagravou a situao actual de excesso de diplomados sem ocupao, da carn-

    cia de vocaes dirigidas a fortalecer a relao de pertena entre a populaoe o territrio, da busca de futuro em destinos diferentes, do Estado a deba-ter-se com a evoluo para Estado exguo, isto , para uma situao de relaodeficitria entre os recursos disponveis e os objectivos que lhe incumbem.

    Algumas confusas intervenes nas reas do ensino, da justia, da segurana,da sade, exigem clarificao que distinga entre a racionalizao e a desis-tncia, em face do peso da interioridade.

    No tem esse efeito clarificador recorrer, com invocada humildade, plani-ficao de entidades estrangeiras, como a OCDE, a ENQA, a UEA, todasda famlia do Banco Mundial, do FMI, da Organizao Mundial do Comr-cio, para as quais os critrios de gesto e de retribuio ao investimento soimperativos, quando o valor histrico e cultural dos territrios, a sua relaode pertena com a identidade dos povos e o humanismo solidrio a respeitode todos os habitantes no cabem nos modelos sem contextualizao queutilizam. A teologia do mercado no inclui a meditao sobre a natureza dasoberania, agora soberania funcional ou de servio, limitada pelo princpio

    da subsidiariedade, que orienta a transferncia de competncias para sedessupranacionais. Mas no subsidiria e transfervel a responsabilidade doEstado-Nacional pela preservao e fortalecimento do tecido nacional con-juntivo, que deve eliminar os modelos arquipelgicos e fortalecer as proxi-midades do teor de vida.

    No so critrios de gesto de pequenas e mdias empresas que esto emcausa: so despesas de soberania no dispensveis. No de teologia de mer-cado que se trata: da relao de pertena entre populao e territrio.

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    O Estado tem seguramente de medir a relao entre capacidades e objecti-vos: para isso, melhor no confundir racionalizao com desistncia.

    A maritimidade de Portugal 21

    Nos meus tempos de estudante, a maritimidade de Portugal estava sobre-tudo representada, no imaginrio popular, pelos moliceiros da Ria de Avei-ro, pelas redes de armao de atum e pela alegria dos pescadores do Algarve,pela caa herica das baleias no mar dos Aores, pelas ostras do Sado e pelosgolfinhos do Tejo, e pela partida da frota da pesca do bacalhau, benzida por

    D. Manuel Trindade Salgueiro, que morreria no cargo de Arcebispo devora.

    O Imprio continuava a dar reputao e misso Marinha de Guerra, cujoscadetes eram sempre aclamados quando desfilavam nas paradas da Avenidada Liberdade.

    Num livro publicado pela Gradiva, em 1987, para comemorar o Ano Euro-peu do Ambiente, intitulado O Homem e o Mar, Jos Manuel Fernandes,

    que escreveu o texto apoiado nas excelentes fotografias de Maurcio Abreu,documentou o estado da maritimidade, do Norte at ao que chamouO Outro Reino, isto , o Algarve, chamava a ateno para os efeitos colate-rais dos excessos inerentes ao globalismo e aos avanos das capacidades cien-tficas e tcnicas que destruram a antiga relao humilde com a natureza, des-mentindo o optimismo da proclamada destruio criativa de economistasque no preveniram as mudanas irreversveis e inquietantes do Planeta.

    A imagem que nos deixou Miguel Torga, de um Algarve que, para ele, era

    sempre um dia de frias na ptria, mudou de realidade, mas no de espe-cificidade, entregue crescentemente ao turismo, mas sem perder a atracomartima que lhe reconheceu Mariano Feio.

    Nos anos decorridos desde essas avaliaes e juzos, desapareceu o Impriocolonial, no apenas o portugus mas sim o Imprio Euromundista de queaquele fazia parte. A evoluo poltica da Unio Europeia acentuou a rede-finio das competncias, que vo sendo transferidas para os seus rgos degesto, ou submetidas gesto partilhada, ou atingidas pela debilitao das

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    capacidades efectivas do Estado. A pergunta que as circunstncias tornaramimperativa a de saber de que modo a maritimidade continua a ser parte, eque parte, da identidade nacional. Daqui, a necessidade de regressar raizdo valor dessa maritimidade na identidade portuguesa, cuja primeira solenedefinio est, creio, em Os Lusadas.

    Procuro desenvolver, neste breve ensaio, algumas premissas da maneira deestar no mundo que o Manifesto de Os Lusadas ensaiou propor como pro-jecto europeu e portugus. O sentido da indagao implica uma espcie deatrevimento, que se traduz em considerar a proposta camoniana como mo-delo observante, para ajudar a compreender os desafios que ao modelo

    observado da realidade global dos nossos dias dirige a mencionada proposta.

    Ao dizer isto, reassumo o essencial de um antigo ensaio sobre o manifestopoltico inscrito no poema, que serviu de orao proferida no acto de rece-bimento do grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Amazonas,na fascinante Manaus, em 18 de Junho de 1972.

    A questo ento abordada foi a de estar ali um Projecto baseado numa per-cepo da Europa como unidade, do legado cristo como identificador do

    seu variado conjunto de povos e soberanias, da expanso como ideia motorada imposio da hegemonia ao mundo a descobrir, da avaliao de todas asculturas encontradas como uma cera mole que receberia a imposio das na-es crists, das leis melhores que regeriam a interdependncia global criadapelo propsito, ao mesmo tempo colonial e evanglico, com Portugal assu-mindo um desgnio e exercendo uma liderana que o define como cabeada Europa toda.

    Olhando dimenso do Reino e dos seus recursos, compreende-se a sus-

    peita potica de Natlia Correia de que Lus de Cames contribua, assim,para inflamar o esprito do jovem D. Sebastio, deste modo fortalecido nopropsito que conduziu ao desastre catastrfico de Alccer Quibir, levandoa logstica do Imprio ao ponto de rotura.

    Tentando resumir espaos essenciais do poema em que assenta a definiodo referido Manifesto Poltico, lembremos que comea por apoiar a alterna-tiva vencedora do dilema avaliado por D. Joo I e pelos Infantes, segundorelata Zurara na Crnica da Tomada de Ceuta.

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    A alternativa era entre a continentalidade, que apontava para Granadacomo meta inicial do projecto do Estado em movimento que se discutia, e amaritimidade, que teria na tomada de Ceuta o primeiro passo.

    A questo da balana de poderes peninsulares foi decisiva, o conceito dezonas de influncia apareceu para orientar um modelo de expanso sobe-rana sem conflito de vizinhana, a ponderao da logstica das capacidadesteve lugar, uma ideologia orientadora do voluntarismo poltico foi assumida,a moral de responsabilidade estava presente.

    Na interpretao camoniana, entre a concepo ocenica e a concepo con-

    tinental, entre a maritimidade e a continentalidade, foi a primeira que tevevencimento.

    Por isso, no canta os que verberam o primeiro que, no mundo,/nas ondasvela ps um seco lenho (Canto IV, CII), canta sim os que por mares nuncade antes navegados/passaram ainda alm da Taprobana (Canto I, I). No setrata de uma aventura imaginada, trata-se de um Projecto Estratgico Nacio-nal, de um povo concreto, numa conjuntura internacional lida e assumida.

    talvez oportuno avaliar, hoje, que presena ainda tem a opo ocenica, amaritimidade do poema, na circunstncia portuguesa.

    Mas no apenas portuguesa, porque o poeta tambm articula esse elementodo conceito estratgico nacional com a identidade europeia qual se encon-tra ligada a especificidade portuguesa.

    Tem a maior actualidade o facto de equacionar a relao entre o pluralismohistrico, antropolgico e geogrfico dos seus povos Rutenos, Moscos e Li-

    vnios, Polnios, Saxones, Bomios e Pannios, Traces, Macednios,Dlmatas, Romanos e Gauleses, Espanhis e Portugueses, todos da soberbaEuropa (Canto III, VI) e todos unidos pelo Credo: a lei daquele que doCu Terra, enfim, desceu,/para subir os mortais da Terra ao Cu (CantoI, LXV).

    O conceito moderno do Estado em movimento vai sendo documentadopelos feitos que se traduzem em desbaratar os Turcos belacssimos e duros,os Reis da ndia, livres e seguros, todos ao Rei potente subjugados,

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    no apenas pelo triunfo das boas armas que seriam louvadas por Maquiavel,mas porque sero dadas na terra leis melhores (Canto II, XLVI). Noalongarei mais o ensaio de juntar as componentes principais do modeloobservante para o conceito estratgico nacional que o poeta assume, eque define compatvel com a unidade europeia, porque noutro lugar talperspectiva se encontra, e tentarei contribuir para reconhecer o que est vivoe o que est ultrapassado na histria do presente em que tenta apoiar-se aprospectiva.

    Em primeiro lugar, a questo da alternativa entre a maritimidade e a conti-nentalidade, que alguns lem como tendo uma soluo invertida pela des-

    colonizao global a que procedeu a ONU.

    Parece-me no ser difcil demonstrar a importncia da maritimidade na es-trutura da identidade portuguesa, documentada ao longo da histria nacio-nal, comprovada pelos efeitos na mundializao das interdependncias, lem-brada nos smbolos da nacionalidade, inscrita em Os Lusadas que definemo talvez primeiro Manifesto Poltico euromundista, e consagrada no HinoNacional.

    At o que em certos aspectos parece um passivo dessa varivel estrutural, eque se traduz no despovoamento da interioridade, e acumulao das gentes,recursos e actividades, na orla martima, est existencialmente relacionadocom a deciso que os Infantes inculcaram a D. Joo I, avaliando o muro deCastela e insistindo em que a expanso era em direco ao mar, mesmodando ateno devida aos receios do europesta que foi o Velho doRestelo.

    O tema agora, desaparecida a estrutura imperial que teve raiz naquela reu-

    nio de verdadeiro Conselho de Estado, avaliar se o Imprio foi razoimprescindvel para que a maritimidade se fortalecesse como elemento doconceito estratgico nacional, pelo que, esgotado o modelo, tambm a voca-o se deveria considerar extinta.

    Talvez baste recordar, com brevidade, que essa no foi a concluso denenhum dos pases da frente martima europeia, que todos mandaramregressar as legies s metrpoles, mas nenhum deixou de continuar a mos-trar a bandeira, agora com motivaes e interesses diferentes.

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    Digamos que o fim da estrutura euromundista, em acelerada diluio depoisde 1939, fez surgir a urgncia e dificuldade de reorganizar a ordem mundial,posta em regime de ameaa total, durante o perodo da guerra fria e, agora,depois do colapso da Ordem dos Pactos Militares, pela queda do Muro em1989, a responder mais a um modelo de anarquia madura, do que a qual-quer projecto definido e consistente.

    No obstante as aceleradas mudanas da estrutura internacional, a histriadocumenta que algumas variveis duras resistem e se reforam, e a mariti-midade, em vez de enfraquecer, cresce como interesse comum da Humani-dade, como elemento estruturante dos grandes espaos intermedirios entre

    o Estado e a globalizao, como trave mestra da estabilidade mundial.

    J por meados do sculo XX, C. John Colombos (1967), depois de analisaros vrios Pactos em que se dividia a precria ordem mundial de ento, escre-via: evidente que o estabelecimento da tal futura sociedade internacional,quando efectivada, tem de basear-se numa poderosa organizao na qual aRoyal Navy, em colaborao com a United States Navy e marinhas dasoutras Comunidades e Estados aliados, inevitvel desempenhar uma parteinquestionvel e predominante na manuteno da paz internacional, e segu-

    rana e liberdade dos mares e desenvolvimento das comunicaes interna-cionais e comrcio, o que essencial para o bem-estar e avano de todas asNaes.

    O evidente que nenhum pas da frente martima atlntica, antigas cabeasde imprio a exigir uma marinha, decidiu adoptar um modelo nacional dife-rente para equacionar o seu envolvimento na defesa dos interesses especfi-cos de cada um e na cooperao com os aliados para o interesse comum.

    Digamos, para simplificar, que a comum fronteira martima dos pases daNATO o Atlntico Norte e que, por isso, a desterritorializao da defesa,que resultou da mudana de conceito estratgico, tambm abrange as fron-teiras martimas. Dentro delas esto as guas portuguesas, os territrios dadescontinuidade territorial, a partilha dos interesses e dos riscos, a mariti-midade a desafiar a capacidade de a assumir no processo de mudana global.

    Uma resposta desmesurada, e frequente, a que, dentro do modelo europeuque a evoluo vai criando, qualifica Portugal, como dissemos, de perifrico.

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    Suponho que a exigncia estrutural da maritimidade contraria absolutamen-te o conceito de raiz econmica. Portugal , repito, e antes de mais, nesteprocesso, um pas de fronteira: fronteira na articulao da segurana euro-peia com expresso na NATO, com o Atlntico a servir de referncia estru-tural da aliana; fronteira na exigente poltica de articulao com a frica,tema principal da presidncia portuguesa da Unio Europeia, tendo emvista a paz estruturada do Mediterrneo e o projecto de solidariedade euro--africana que inspira essa poltica; fronteira na necessria organizao dasegurana do Atlntico Sul, cujas margens esto ocupadas por novas sobera-nias aglomeradas na CPLP, fazendo desse Atlntico um Oceano Moreno, noqual a interveno do Brasil desejada, esperada e indispensvel.

    A capacidade de responder a este peso e desafio da maritimidade no s-culo XXI, que mantm o essencial da formulao camoniana, ser o critriode medida da distncia entre o Estado capaz de exercer uma soberania fun-cional e cooperativa dos novos tempos e do Estado a derivar para exguo semreformulao de um conceito estratgico nacional altura dos novos tempos.

    O primeiro risco est na privao da liberdade de interveno no mar terri-torial, na plataforma continental, na zona martima exclusiva, onde recursos

    fundamentais tendem para serem submetidos regra da interveno efec-tiva. O articulado do Tratado de Lisboa, em que aparece reformulado otexto recusado da Conveno, presididida por Giscard dEstaing, causa in-quietaes a tal respeito. Isto , agudiza o desafio de o Estado portugus res-ponder com xito maritimidade da sua inalienvel circunstncia.

    A lngua portuguesa

    Depois do fim do Imprio, frequentemente foi citado o conceito de Fer -nando Pessoa, segundo o qual a nossa Ptria a lngua portuguesa.

    A discusso sobre a oportunidade e validade do Acordo Ortogrfico, apro-vado em 2008, tem posto em evidncia que ningum dono da lngua, peloque no haver nenhum acordo que impea evolues desencontradas. Oconceito que tem circulado em algumas das intervenes, e que parece ajus-tado natureza das coisas, o que sustenta que a lngua no apenas nossa,tambm nossa.

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    por isso que acordos, declaraes, tratados, so certamente adjuvantes deuma poltica que mantenha a identidade essencial, mas nenhum ter foravinculativa suficiente para evitar que as divergncias surjam pelas to dife-rentes latitudes em que a lngua portuguesa foi instrumento da soberania,da evangelizao, do comrcio. Existem locais onde os factos tornaram evi-dente que a lngua no resiste falta de utilidade para os povos que estive-rem abrangidos por qualquer daquelas actividades, e por isso o portugussofre dessa eroso no longnquo Oriente do primeiro imprio, tem marcaspequenas em Macau, luta com o passado apagador da lngua pela ocupaode Timor pelo invasor e tambm com os interesses da Austrlia pela expan-so da lngua inglesa, vai enfraquecendo em Goa.

    O critrio da utilidade para os povos talvez, por isso, no seja dispensvel nodiscurso dos procedimentos a adoptar para que o essencial seja uma preo-cupao e empenho constante dos governos que tm a lngua portuguesacomo lngua oficial, cada um sabendo que no sua, apenas tambm sua.

    Muito recentemente, a ONU deu um sinal importante do interesse, comligao ao nmero de pases que, tendo assento no plenrio da AssembleiaGeral, falam portugus. No ms de Maro, segundo foi anunciado, o stio

    Web KnowYourRights2008.orgseria tornado mais acessvel a pessoas domundo inteiro, e para isso utilizando oito lnguas. Tais lnguas so: ingls,francs, italiano, espanhol, alemo, portugus, holands e grego. Esta deci-so destina-se a apoiar mais de uma dezena de projectos, para os quais sepede e espera a interveno dos parceiros da organizao, governos, parla-mentos, ONG e entidades particulares que aderiram em nome e proveito dasociedade civil transnacional em crescimento.

    O interesse comum muito mais dinamizador de iniciativas e prticas do

    que a obrigatoriedade assumida por tratados cuja debilidade directiva logoevidenciada pelo mtodo da entrada em vigor. Talvez a maleabilidade dasDeclaraes, que esto a ganhar relevo crescente nas relaes internacionais,seja mais indicada para servir de apoio directivo a uma poltica persistentede identificao e defesa do interesse comum do que a natureza imperativados tratados. O ensino e a investigao, no espao europeu em definio po-ltica acelerada, esto apoiados em Declaraes que presidem ao desenvolvi-mento de redes cada vez mais slidas, e no em tratados. Foi esta considera-o que inspirou a criao do Instituto Internacional da Lngua Portuguesa,

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    em grande parte devido percepo do presidente Jos Sarney, atento sintervenes e discusses dessa matria.

    Tinha presente que a responsabilidade pela lngua incumbia AcademiaBrasileira de Letras, tal como em Portugal incumbe Academia das Cin-cias. Mas no faltaram observaes de experientes das relaes internacio-nais, e certamente nem todos com a mesma vivncia das academias, no sen-tido de que os novos Estados de lngua oficial portuguesa, que tambmdeveram ao embaixador brasileiro Aparecido de Oliveira a criao da CPLP,no tinham nem a tradio, nem as vocaes e recursos que os levassem aadoptar tal modelo.

    O Instituto Internacional da Lngua Portuguesa foi criado como centro deencontro entre iguais, para, identificando os interesses comuns, convergiremnas polticas destinadas a servir esses interesses, salvaguardando o instru-mento insubstituvel que a lngua. No parece ter acontecido que a inspi-rao do Instituto Internacional da Lngua Portuguesa tenha sido revisitada,mas tambm no parece que o critrio que orientou a sua criao deva serignorado 22.

    A integrao dos povos e a CPLP

    A crise do Estado soberano, que no coincide necessariamente com umacrise do Estado nacional, mas que abre caminho e espao formao de so-ciedades civis transfronteirias e transnacionais, est a favorecer uma espciede integrao dos povos, visvel nas regies pobres do Sul do mundo, embusca de uma governana equitativa da ordem mundial. Em atitude de res-posta ao G8, que agrupa os responsveis pelas sociedades afluentes do

    Norte, tornou-se rapidamente presente na opinio pblica a interveno doFrum Social Mundial com certido de interlocutor lavrada no Brasil.

    A crescente visibilidade acompanha a crescente integrao dos povos, um fe-nmeno que envolve uma variedade de movimentos sociais de todo o conti-nente americano. O ltimo nmero da Res Diplomatica (RD) argentinadedica-se sobretudo a esta temtica, destacando-se um estudo de GonzaloBerrn, da Universidade de S. Paulo, numa data (2008) em que a diploma-cia, concebida como um instrumento de relao entre Estados-Nao, tam -

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    bm revela a necessidade de repensar estruturas e mtodos para responder smudanas, e multiplicao em nmero e espcie dos agentes da vida inter-nacional. Os Estados so desafiados internamente pelo regionalismo e exter-namente pelas unidades supra-estaduais, pblicas e at privadas, e aindapelo facto desanimador dos Estados falidos.

    A evidncia de que o modelo do aparelho diplomtico exige reformulaono vence facilmente a resistncia de uma variedade de atitudes que sobre-vivem e, por isso, tambm no facilitam encontrar um novo modelo de arti-culao dos povos com o poder poltico. O que contribui para que a criati-vidade na regulao e integrao dos povos, por vezes, ultrapasse a linha da

    convivncia pacfica.

    Mas a notcia esperanosa dos textos publicados que h factores inerentes relao, entre campo social e governos, que alteram a linear atitude ideol-gica dos anos noventa, que esto em expanso e formam parte da constru-o histrica de um corpus de valores sobre como fazer poltica e que pol-tica pblica fazer.

    De regra, esses movimentos consideram os EUA como os dinamizadores do

    chamado comrcio livre e responsvel pelos efeitos colaterais que naAmrica Latina combatem, mas que tambm encontram rplicas noutras la-titudes, inquietas com o livre acesso aos mercados locais para bens e servi-os, reclamando garantias para os investimentos, sem dar garantias para ano deslocalizao. Acordos como o NAFTA de 1994, o CAFTA de 2005//2006, o TLCAndino, so nesse estudo afirmados to suspeitos para essesmovimentos como os acordos de associao com a Unio Europeia, oumesmo com a Organizao Mundial do Comrcio. A ALCA rea de LivreComrcio das Amricas dito alvo cimeiro da contestao.

    A lio talvez que a crise do Estado soberano tende a fazer esquecer ou ate-nuar toda a crtica contra o poder poltico, que era considerado de classe einjusto, porque a incerteza, o desaparecimento da vida habitual, a eroso daestabilidade que em todo o caso existia, aparecem como uma perda nocompensada.

    Tendo conseguido reunir-se em Belo Horizonte, no Brasil, tais movimentoslanaram a semente do que hoje a maior coligao de movimentos sociais

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    do Planeta. Vista a reunio de Seatle que fez histria, a primeira Cimeirados Povos no Chile (1998), e, para resumir, a ecloso do Frum Social Mun-dial (2000) concluem que atraram todas as esquerdas sociais participantesnuma viso comum da realidade do continente.

    Finalmente, com todos os excessos polmicos que animam o discurso, o con-ceito de que existe outra Amrica possvel firma-se de maneira crescente.Existem, porm, movimentos que se identificam mais limitadamente com aproblemtica especfica de pases. Talvez seja oportuno observar e julgar setambm na Europa esto a ganhar significado movimentos cvicos, pouconoticiados pela comunicao social, distraidamente olhados pelos Estados

    em crise de capacidades, mas que vo assinalando a distncia entre a socie-dade civil e o poder poltico, como que em busca de uma pr-constituioem que assente uma definio de futuro. E sobretudo acompanhar os movi-mentos animados pela sociedade civil portuguesa, margem dos partidos,mas inquietos com a presena desses desafios entre ns, e tambm crescen-temente conscientes de que existe outra sociedade possvel. E se a CPLPpode responder aos projectos.

    Em memria de Coudenhove-Kalergi

    Na data de aprovao do Tratado de Lisboa pelo Parlamento portugus, esustentada a perspectiva de que recolher as adeses necessrias para entrarem vigor, pelo menos justo, e seguramente oportuno, recordar um dosmais influentes europestas dos anos vinte do sculo passado, cujo pensa-mento influenciou grande parte dos responsveis polticos pelo processoeuropeu em curso.

    Trata-se de Richard de Coudenhove-Kalergi, cuja presena na defesa de umprojecto de unidade europeia se verifica no incio da experincia que Fran-cesco Nitti chamou a paz de Clemenceau com os mtodos de Wilson, oqual teve expresso na Sociedade das Naes, e fracassou com um pontofinal apocalptico na Segunda Guerra Mundial. Estava-se em 1922, em vs-peras de se concretizar a marcha de Mussolini sobre Roma (28 de Outubro)e no muito longe da proclamao da fundao da URSS (30 de Dezembro),quando, em 21 de Julho, Kalergi publicou o seu pequeno grande do-cumento intituladoA Questo Europeia.

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    A premissa maior do seu pensamento viria a ser claramente expressa noManifesto de 1924, nestes termos: Ser possvel que, na pequena quase ilhaeuropeia, vinte e cinco Estados vivam lado a lado na anarquia internacional,sem que um tal estado de coisas conduza mais terrvel catstrofe poltica,econmica e cultural?

    No foi possvel, o euromundo poltico foi destrudo pela verdadeira guerracivil de 1939-1945. Todavia, o pensamento do iniciador do Movimento Pan--Europa, que foi lanado em 1923, e da prpria Unio fundada em 1926,sobreviria na memria e experincia da grande parte dos que viriam a ser res-ponsveis pela instituio das Comunidades Europeias depois da paz.Aquela paz que foi descrita como uma alegria coberta de lgrimas, mas queguardava o pensamento da unidade no pluralismo, cuja filiao em Kalergifora reconhecida pelo tambm europesta Edouard Herriot.

    No perodo, no muito longo, em que se processou a chegada dos tempossombrios da Segunda Guerra Mundial, no Congresso Pan-Europa (1926),que deu origem Unio Pan-Europeia, estiveram douard Bns, AristidesBriand, que seria eleito Presidente de Honra, Konrad Adenauer, Herriot,Winston Curchill, e, entre muitos outros, Jules Romains, Paul Valry,

    Ortega, Unamuno, Madariaga, Bernard Shaw. No II Congresso, reunido emBerlim (1930), foi lido o famoso Memorandum de Briand; no III Congresso(Basileia 1932), destacaram-se Maurice Schuman e Fabre-Luce; e, final-mente, no IV Congresso (Viena 1936), foi presidente o infeliz KurtSchuschnigg. Quando a guerra deflagrou, Coudenhove-Kalergi ensinava naNew York University, dirigiu um Seminrio sobreA Europa Federal depois da

    guerra, animou a criao de um Comit Americano para uma Europa Unida eLivre, sob a presidncia de Fulbright e W. Bullit.

    Em 1943, quando conseguiu realizar o V Congresso Pan-Europeu em NovaIorque, foi ali tornada pblica a Mensagem de Churchill apoiando o movi-mento, e, em 1947, a Unio Pan-Europeia organizou o 1. CongressoParlamentar Europeu, que foi o primeiro passo para a criao do Conselhoda Europa, o qual hoje, no domnio dos direitos do homem, a instituioeuropeia de excelncia.

    Em 1971, Morinosuke Kajima, Jacques de Launay, Vittorio Pons e ArnoldZurcher, publicaram um estudo de sntese intitulado Coudenhove-Kalergi:

    le pionnier de LEurope Unie.

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    A marcha europeia processou-se de acordo com a imprevisibilidade que a faltade estudos sobre a governabilidade do alargamento e de definio das fron-teiras amigas acentuou. Mas o pensamento de Kalergi, ainda hoje esprito ani-mador da Union Paneuropenne Internationale, uma das componentes dopassado em que se apoiaram todas as correntes e projectos relevantes, um dosimportantes inspiradores da Europa comunitria, um dos visionrios do plu-ralismo na diversidade. Um dos que acreditaram que era possvel parar adecadncia do euromundo, partindo da vontade comum de eliminar osdemnios interiores responsveis pelas guerras civis chamadas mundiais,crente de que o futuro no repete necessariamente os modelos do passado.

    Desafio do conceito estratgico europeu 23

    A ratificao do Tratado de Lisboa, quer a instncia seja o Parlamento, querseja o eleitorado, no caso de se limitar ao texto normativo, complexo e dedifcil acesso para o cidado comum, dificilmente ser presidida pela discus-so e definio da misso de que ficar incumbida a criatura. No incio, oobjectivo era claro e de alto significado, porque animado pelo objectivo dapaz perptua entre os Estados de uma entidade que a histria revelara como

    excepcional na pilotagem poltica de um percurso em direco a uma espciede mega terrestre, nem sempre pressentido, que originou a globalizao.

    Uma globalizao que, em relao Europa, parece mais a definio de umponto final na excepcionalidade, do que uma plataforma de arranque para aliderana de novos horizontes. Durante o purgatrio que foi o meio sculode guerra fria, em que a Ordem dos Pactos Militares submeteu a generali-dade dos Estados do mundo a uma espcie de protectorado de mltiplasfaces, a Europa aprendeu que no era j o centro de uma periferia onde

    desenvolveu o seu exerccio colonizador, e que a vulnerabilidade era agora,sobretudo depois da clarificao que acompanhou a queda do muro deBerlim em 1989, o seu primeiro desafio: carente de matrias-primas, carentede energias renovveis, encontrou-se tambm carente de gente, assim comode um poder poltico suficiente para garantir, com autonomia de deciso, asegurana sem a qual definha a sociedade de confiana.

    Embora sem ter conseguido a completa paz interna que, inspirada pelo idealkantiano da paz perptua, foi o valor orientador dos primeiros responsveis

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    pela nova Europa, liderados por Jean Monnet, inaugurou uma poca emque o dilogo assumiu uma importncia e uma natureza estruturante semprecedente histrico: a Organizao do Tratado do Atlntico Norte (NATO)onde no h direito de veto legal, o Conselho da Europa dos direitos dohomem, a OSCE Organizao de Segurana e Cooperao Europeia ,tudo pluralmente articulado com a ONU e as suas mltiplas organizaesespecializadas, estruturaram um tecido de reflexo, de apelo racionalidade,de meditao sobre os valores, de uma complexidade sem equivalente naexperincia dos sculos anteriores. E, todavia, hoje evidente a falta de umagovernana abrangente deste fenmeno da globalizao, falta que potenciaos efeitos desestruturantes em relao s antigas bases da ordem ultrapas-

    sada, incluindo reivindicaes independentistas como no Pas Basco, naCatalunha, na Esccia, invocando o direito autodeterminao e os valoresda democracia, dvidas sobre o alargamento aos no-membros como a No-ruega, a Sua, a Islndia, ou sobre a reorganizao da desconstruo daJugoslvia, e sobre as recolhas selectivas da decomposio do bloco sovitico.

    Estas incertezas sobre a definio do espao, no qual a questo da relaocentro-periferia se mantm com dimenso agora regional, parece irrecusvelque tero de procurar resposta a partir pelo menos destas evidncias: que a

    Europa perdeu definitivamente a excepcionalidade que manteve durantesculos de hegemonia poltica; e que, para alm das mencionadas carnciaseconmicas de matrias-primas, energia, populao, tem no plano estrat-gico limitao de espao fsico, de recursos para uma funo sem dependn-cia de segurana e defesa, com duas variveis demonstradamente presentesna sua histria do presente.

    Tais variveis so a dependncia dos EUA, demonstrada em duas guerrascivis internas a que chamamos mundiais pelos efeitos, uma dependncia que

    se alargou ao longo perodo da ameaa sovitica a leste, e ainda o dbito dapassada hegemonia que se traduz na frequente exigncia de reparao queos antigos colonizados julgam poder exigir, fazendo da Europa um conti-

    nente da memria.

    A primeira interrogao suscitada por este panorama diz respeito questode saber se o projecto da unidade europeia encontrou finalmente um slidoesprito fundador, para alm da incerteza das fronteiras. Isto porque, na faltadessa trave mestra, no ser ultrapassada a interveno dos protagonismos

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    soberanistas, em regime de apartheid, que averbaram o desastre das duasguerras mundiais.

    Depois, recordando a debilidade para dominar os demnios interiores queexigiram a presena das tropas americanas para restabelecer a paz, em segui-da, a agenda econmica de Marshall para a reconstruo, finalmente, a inter-veno americana para erguer o escudo defensivo contra a mar sovitica,perguntar se a relao atlntica vai basear-se na necessidade de uma atitudeprotectora dos EUA, se possvel uma igualdade de pilares dentro de umaunidade ocidental programada, se, pelo contrrio, a hiptese orientadora vaiser a de uma concorrncia pela hegemonia na rea econmica, e de inde-

    pendncias estratgicas nos domnios da defesa e da segurana.

    Seja qual for a opo dominante, ser em regime de rotura com um passadoirrepetvel que todas e qualquer das tendncias se desenvolvero.

    Os procedimentos posteriores queda do Muro em 1989, na fronteira lestedas democracias ocidentais, e o desastre que foi o 11 de Setembro, nas fron-teiras ocidentais, desafiaram a consistncia da unidade poltica e militar doespao da NATO, com os EUA a derivar rapidamente para o unilateralismo,

    com os europeus a discordarem sobre opes que costumam romper asincertezas na prpria aco. Se a histria e os valores participados no in-clinarem para a consolidao da unidade atlntica e ocidental, designa-damente posta em evidncia pela orientao estratgica do terrorismoglobal, a tendncia para um europesmo abrangente da autonomia da suaespecfica defesa e segurana ter de ser confrontada com os recursos dispo-nveis para lograr que o PIB europeu contribua com talvez o dobro do quefoi estimado quando a europeizao da defesa, foi uma proposta americanareferente aos encargos na NATO, e qual os europeus no conseguiram dar

    resposta positiva.

    Esta situao econmico-financeira talvez ajude a compreender, porque anecessidade faz lei, que no so os europeus por um lado e os americanospelo outro, mas sim os ocidentais como um todo, o objecto doflowbeck doantigo mundo colonizado e agora geralmente pobre, o alvo da lei da reflexi-vidade que arma as reaces dos fracos com apoio na cincia e na tcnicaque ajudou dominao anterior, e finalmente despertar a clera apocalp-tica com que o terrorismo global massacra inocentes com o objectivo de des-

  • 8/3/2019 Adriano Moreira

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    VII PORTUGAL E A GEOPOLTICA DA INTERCULTURALIDADE

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    truir a confiana na vida habitual das sociedades civis, e a confiana docorpo de cidados no Estado incapaz de os proteger.

    Talvez seja por isso restritivo, e dbil, o conceito que pergunta pela misso daEuropa como um desgnio separv