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ISSN n 1676-7748

REVISTA MAGIS CADERNOS DE F E CULTURA

Nmero 49 Fevereiro de 2006

ESPIRITUALIDADE E AFETO

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Conselho Editorial Andr Marcelo Machado Soares Danilo Marcondes Filho Eliana Yunes Jos Carlos Barcellos Luiz Cavalieri Basilio Maria Clara Lucchetti Bingemer Maria Lilia Campello Pereira Pe. Paul Schweitzer, sj EQUIPE DE PRODUO Produo Executiva Alvaro de Pinheiro Gouva Projeto Grfico Carla M. Cipolla Felipe R. Chalfun Reviso Joice Bittencourt Diagramao Flvia DaMatta Assessoria Grfica Editora PUC-Rio

EXPEDIO E ASSINATURAS Joice Bittencourt Telefone: 21 3874-8093 E-mail: [email protected] CENTRO LOYOLA DE F E CULTURA Estrada da Gvea, n 1- Gvea 22451-260 Rio de Janeiro RJ Telefone: 21 3874-8093 Fax: 21 3874-8095 Email: [email protected] Site: www.puc-rio.br/centroloyola

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Sumrio

Editorial

Prefcio A imortalidade necessria lvaro de Pinheiro Gouva

Afeto e espiritualidade nas cartas de Santa Teresa de vila Lucia Pedrosa de Pdua

Afeto e Espiritualidade - viver e conviver no mundo contemporneo Teresa Creusa de Ges Monteiro Negreiros

O Desejo de Deus e o Murmrio do Corao Olga Regina Frugoli Sodr

Religio e Cura: um encontro possvel Katia Maria Cabral Medeiros

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Editorial A Magis resolveu nesse nmero prestar uma homenagem ao grande filsofo e jesuta Pe. Henrique de Lima Vaz, SJ. A idia nasceu de uma conversa entre a atual diretora do Centro Loyola a professora Clia Novaes, e o professor Alvaro de Pinheiro Gouva, ambos professores do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Durante um cafezinho amigo no pequeno refeitrio do departamento, entre um assunto e outro, o professor Alvaro comentava com a professora Clia: Sempre assim na vida humana: quando voltamos para trs diante da morte de um amigo, ento o que se vive parece ganhar um significado especial. Deparei-me l na porta da capela da PUC com um anncio de missa pela alma do Pe. Vaz. Minha emoo foi grande uma vez que at aquele momento no sabia de sua morte. H anos no nos vamos embora o tempo no tivesse apagado o carinho, a admirao e a gratido que tenho por esse homem notvel. Ao final da missa, o Pe. lvaro Barreiros perguntou-me se gostaria de escrever algo sobre o nosso querido Pe. Vaz. Aceitei, afinal havia convivido por mais de quatro anos com ele na rua Bambina. Na poca no me foi possvel escrever. Agora um sentimento banhado em sensaes nostlgicas de minha poca em que cursava filosofia e convivia com o Pe. Vaz tem voltado a minha mente e sinto que perdi uma grande oportunidade de dizer da importncia desse homem em minha formao e de muitos dos meus colegas da poca. Se o objetivo inconsciente foi sensibilizar a professora Clia, ele foi bem-sucedido. Clia Novaes sugeriu a revista Magis como um possvel espao para homenagear esse grande pensador mineiro. Os temas Afeto e Espiritualidade movimentam nossas reflexes a partir do desejo de homenagear o Pe. Vaz. No prefcio intitulado A imortalidade necessria, Alvaro de Gouva expe as razes de sua admirao pelo Pe. Vaz. Para o autor, a unidade do ser no to somente um presente da natureza, tambm uma conquista que se realiza no tempo e 4

envolve nossos pais e amigos. Para completar sem decepes a moldagem de nosso destino necessitamos do Outro em nosso processo de individuao. O homem no pode escapar s realidades da vida e necessita da influncia sbia de homens como o Pe. Vaz, tanto no domnio intelectual quanto no domnio das amizades e do afeto. Inteligncia e afeto andam de mos dadas na construo do homem novo e cristo. O encontro com Lucia Pedrosa nos colocou em contato com a espiritualidade de Santa Tereza De vila. As cartas de Tereza motivaram-na a entrar em contato com as razes do agir espiritual e afetuoso de Santa Tereza. Segundo a autora, pelas cartas, veremos o testemunho de uma relao viva entre espiritualidade crist e afeto, na vida cotidiana. Atravs delas, admiramos como a espiritualidade ativa a pessoa humana por dentro, ao mesmo tempo em que a coloca em movimento, em direo aos demais e s necessidades da realidade concreta. O artigo Afeto e Espiritualidade - viver e conviver no mundo contemporneo de Teresa Creusa Negreiros nos leva a refletir sobre tecnologia, convivncia, vida espiritual e lazer. Segundo a autora, o fenmeno da globalizao e dos grandes avanos tecnolgicos exige mais do que nunca do homem contemporneo um esforo e uma atitude firme para no se esquecer de si mesmo. Uma atitude crtica deve traduzir-se em indagaes substanciais sobre o destino das famlias, sobre as razes da nossa religiosidade, sobre a administrao do nosso afeto em grupos de trabalho e lazer. Quando Schopenhauer sintetiza na palavra vontade toda a essncia do Mundo, ele est falando de uma fora irracional e ativa cujo dinamismo sentimos na raiz do nosso ser. Freud falar mais tarde de pulso e juntamente com Jung trabalharo atravs do conceito de libido sobre a origem e os destinos desse impulso primordial inscrito na psique humana. Grosso modo, para Freud a libido teria uma conotao estritamente sexual enquanto que 5

para Jung, alm da conotao sexual, o termo libido seria instinto de vida, envolvendo o homem como um todo. Na verdade, Pulso e Desejo so conceitos considerados comumente por psiclogos como unidos por um vnculo causal e, de certa forma, guardam um parentesco com o conceito de vontade de Schopenhauer. No texto O Desejo de Deus e o Murmrio do Corao, Olga Sodr sem esquecer suas prprias experincias traa uma reflexo sobre essa fonte profunda inspiradora do homem e, passando pela mitologia e diferentes autores, argumenta que os nossos desejos primordiais podem amadurecer e transformar num desejo adulto de Deus, capaz de direcionar e elevar a pessoa a um outro estado de conscincia. A guisa de concluso, o texto Religio e Cura: um encontro possvel de Ktia Medeiros analisa atravs de uma pesquisa, o discurso do processo de cura vivido dentro de uma determinada profisso de f religiosa. A psicloga busca na teoria analtica de C. G. Jung conceitos que possibilite estabelecer um ponto de contato entre a linguagem terica em psicologia e o encantamento mstico presente na cura pela experincia religiosa. A nossa realidade cotidiana e as pesquisas continuam trazendo tona o limite da cincia em torno das metodologias aplicadas no processo analtico. Percebe-se ainda hoje, que esse limite da cincia tem aberto espao para que a dimenso religiosa retorne com toda a fora e como lugar de reflexo e de cura. Para o religioso que tem f, evidente e verdadeira a afirmao: s Jesus cura. J, para muitos psiclogos, respaldados por metodologias de base analtica, ningum cura ningum. Na verdade, o grau de complexidade da questo da cura sempre intrigou tanto os religiosos como os profissionais do mundo da psicologia. Historicamente, a descoberta do inconsciente e o surgimento das psicanlises se deram em meio a confrontaes entre o mundo religioso e o mundo profano das cincias. Hoje, a questo da cura da esquizofrenia e da neurose continua a desafiar as teorias psicolgicas. 6

De to frustrante, o problema da esquizofrenia e mesmo o da neurose, tem levado muitos profissionais a se perguntarem sobre a questo da cura em psicologia. Num esforo para encontrar um discurso mais estimulante para prxis, considera-se que a frase ningum cura ningum poderia ser substituda por uma outra com mais esperana e que, na melhor das hipteses, levaria o analista a pensar a cura como um processo mtuo, ou seja, aquilo que um cura no outro. Certamente que o processo analtico ganharia fora se considerssemos que ambos, tanto o analista como o analisando, esto envolvidos num mesmo processo de cura e destinados a construrem juntos, num jogo de linguagem, de sonhos e de encantamentos, uma melhor maneira de lidar com a psicose e mesmo a neurose.

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Prefcio

A Imortalidade necessria Alvaro de Pinheiro Gouva1

Sabe o gnio companheiro, que dirige o astro natal deus da natureza humana e mortal que, nunca s cabea, exibe um semblante mutvel, ao mesmo tempo claro e escuro. Horcio 2

A imortalidade necessria. Creio que a origem dessa certeza remonta meus treze anos quando perdia meu pai. Antes, a morte se mostrava bizarra minha mente de menino. Recordo que na infncia gostava de ir aos enterros para observar o rosto do morto. Minha cidade era pequena e demorava muito para que algum morresse. Minha me se mostrava curiosa quando me via deixar o campo de futebol, colocar meu terninho branco e sair correndo at a casa do morto. No ia ao enterro, queria v-lo ainda na intimidade do lar. E, desde logo, estabelecia com ele um dilogo. Hoje percebo que era motivado por angstias metafsicas e interrogaes da infncia. Surgiam, ento, em minha mente perguntas sobre o cu e o inferno e, sobretudo, sobre o universo e a alma. O que ocorre quando morremos? Que so os infernos? Em que momento a alma se solta do corpo? O morto no me dava medo. Ao contrrio, acreditava que ao alar o vo onrico da morte, entrava em companhia dos anjos, voava para aonde quisesse e saberia tudo sobre o universo e o homem. Da uma certa curiosidade e mesmo prazer - queria ver a alma se solDoutor em Psicologia Clnica, D.E.A. em Filosofia da Existncia pelo Centro Gaston Bachelard de Pesquisa sobre o Imaginrio e a Realidade Dijon Frana, Professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio 2 Scit Genius natale comes qui temperat astrum, Naturae deus humanae, mortalis in unum, quodque caput, vultu mutabilis, albus et ater. Horcio II, 2, 187-189.1

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tar do corpo, descer aos infernos e sair voando para o cu, como no credo rezado diariamente com meus irmos e minha me. O problema da transmigrao das almas sem que soubesse aos poucos se colocava em minha mente. Creio que ainda de uma forma romntica e mtica. Na minha imaginao estabelecia uma espcie de relao entre a ressurreio e o sonho. Ah, a ressurreio! A alma que, de aspirar o infinito voa! Como nos sonhos poderia voar como os anjos. Olhar o mundo de todos os ngulos; minha ambio de menino. Sem dvida, a idia de poder olhar o mundo topograficamente me fascinava. Para onde vamos quando morremos? Porque vivo? O que a vida? O que a morte? Porque passam os dias? Essas questes atropelavam a minha existncia. No entendia porque choravam. No sentia a menor tristeza e o barulho do choro atrapalhava as minhas indagaes. Porque choram o morto? O que de misterioso estaria ele sentindo, vivendo e pensando na hora da morte? Qual o desejo, as sensaes, os sentimentos? E a realidade? Para aonde iam os sonhos? Nesse momento, minhas emoes tinham algo de numinoso e ao mesmo tempo de perplexidade. Como seria viver sem o corpo? Teria ele descido aos infernos como fizera Jesus? Seguiria sendo ele mesmo depois de morto? Eram questes recorrentes. Alguma coisa me dizia que ao nos libertar do corpo, entravamos nos domnios do sem limite do ser, apropriando-nos do tempo e do espao. Depois, poderia garantir que algo se escondia naquele rosto silencioso. O fato de poder sair da vida e transladar de um lado para o outro era mais que magia. Toda essas dvidas seriam discutidas mais tarde com meu pai e minha me. Assim, aprendia ser a morte um golpe da vida em benefcio da liberdade da alma; embora sentisse ainda um certo alivio em poder viver no meu corpo. Havia dvidas que guardava s para mim. Dessas, a mais assombrosa versava sobre o silncio. A palavra oral embora tenha algo de alado efmera e muitas vezes se perde no 9

vazio. Contudo, sentia que eu s existia porque falava. Meu cogito de menino era: falo logo existo. Da a minha certeza indubitvel: o morto necessita do vivo para existir uma vez que no fala. Acreditava que a minha visita o deixaria menos s. Aos poucos fui percebendo que ao morrer nos tornamos um grande solitrio. Fiquei amigo do silncio e comecei minhas pesquisas. Adorava abandonar-me no silncio. O silncio deu-me os olhos da interioridade. Com esse olhar nascia uma sensao maravilhosa de liberdade. Nessa poca com assombro descobria o livro. Deus havia me dado um sucedneo para palavra oral. Conhecia pouco da mudez criativa dos livros. Logo notei o silencio do meu pai e a sua atitude quase que religiosa diante de sua biblioteca. Era curioso, sentia fora no seu silencio. Aprendia a gostar do silencio e dos livros. Os Lusadas era um dos prediletos do meu pai e do qual se orgulhava ter a primeira edio. Santo Toms e Chateaubriand eram lidos em francs e ocupavam um lugar de destaque no livreiro. Ainda hoje me emociono quando leio Lectures choisies de Chateaubriand, uma publicao de 1895 da editora francesa Garnier Frres com anotaes de Ren Nollet e a assinatura de meu av, datada de 2 de dezembro de 1895. Depois veio a morte do meu pai e as coisas mudaram. Teve incio uma luta interna para ajustar a dissonncia sentida entre o prazer do menino diante do enigma de uma morte metafrica e romntica e a dor real vivida pela perda do pai amado. Estava estudando fora e no cheguei a tempo para v-lo. Eu que gostava tanto de ver a cara do morto, pela distncia fora impedido de ver meu pai. Alegrei-me por um momento, mas me assustava pensar que no haveria mais segredos entre meu pai e eu e que seu racionalismo poderia t-lo levado para o inferno. As perguntas sobre a existncia do cu e do inferno se fizeram mais concretas e necessrias. Aqui me recordo que s o fascnio pelas zonas pantanosas do inferno superava a idia de cu e de santidade to propagadas pelo proco local. No sabia se o racio10

nalismo do meu pai daria conta de uma esttica demonaca. O meu consolo era pensar que Jesus ao terceiro dia teria descido aos infernos na nsia de poder converter os espritos infernais. Comecei a acreditar que numa dessas descidas ele salvaria o meu pai. Decrescia parcialmente a dvida sobre a sua salvao. Ah, o mistrio da salvao e a infinidade de interrogaes! Do horror e do seio maternal do mistrio vislumbrei uma sada. S de virtudes salvaria meu pai, suas prprias virtudes: a inteligncia abstrata e bondade, pelo senso de justia e por sua arte a msica. Ironia, instintivamente surge do mistrio que me apavorava uma espcie de dilogo entre f e cincia. O grande acontecimento foi compreender que a salvao no implicaria to somente em possuir a emoo religiosa. Foi, assim, na nsia de salvar meu pai do inferno, que elegia a inteligncia, o exerccio da esttica e da tica como atributos necessrios salvao. Ao contrrio de meu pai, minha me acreditava em Deus sem o menor esforo da razo, embora fosse uma mulher muito inteligente. Em sua f incondicional resolvera o problema de maneira diferente e mais simples: trinta dias de missas pela alma de meu pai. Se no me falha a memria seriam as chamadas missas gregorianas. Essas missas salvaram meu pai. Minha me me garantiu. Na verdade, a morte do meu pai complicara toda a minha existncia e a da minha famlia. A minha weltanschauung explodira. A vida se tornara um inferno de dificuldades financeiras e espirituais. Percebia que no se tratava de simples coincidncia essas dificuldades caminharem sempre juntas como gmeas. A angustia e o assombro diante da vida parecia no ter fim. O desaparecimento real do meu pai tornaria a morte um enigma no s para mim, mas para todos de minha sala. Meus colegas diabolicamente insistiam em me perguntar sobre ele. A idia de no ter mais pai me envergonhava, sentia-me mutilado, desgraadamente me inferiorizava junto aos meus colegas. 11

Ao pressentirem a minha vergonha e angustia diante da ausncia, insistiam sempre na pergunta: voc tem pai? Era humilhante ter que anunciar todos os dias a sua morte. Estava preste a abandonar o colgio quando me ocorreu uma resposta simples, mas que calaria toda a classe: tenho pai sim, afirmei. Os colegas estupefatos com minha firmeza insistiam: mas ele no morreu? E minha resposta os calou para sempre: morreu como os pais de vocs morrero um dia; ou vocs pensam que eles so eternos? Ainda os verei serem enterrados. Nunca mais insistiram. Percebi, ento, que precisava investir na inteligncia para alcanar a liberdade e resolver meus problemas do cotidiano. Assim a questo da morte se colocava de um modo novo em minha vida, dessa vez de maneira bem mais inventiva e criativa. Havia recebido a biblioteca como herana. Entre os muitos livros, encontrei uma preciosidade: Les Confessions de Saint Augustin, uma traduo francesa DArnauld DAndilly, de 1921. Meu av o havia adquirido quando aluno do Caraa. Assim comeava a pensar e meditar lendo as Confisses de Santo Agostinho. O livro vinha marcado com letras de meu av e algumas do meu pai. Ao ler um trecho marcado me indagava: teria sido feita pelo meu av ou pelo meu pai? E o prazer inundava minha alma. Tinha ento uma nova certeza, a de que meu av e meu pai estavam se fazendo presente em minha vida atravs daquele livro. Era como se cada pgina me falasse dos defeitos e das virtudes de toda uma gerao. Assim nascia meu amor pelos livros antigos e por livros com marcaes dos antigos donos. Tenho sentido a presena desse livro em toda a minha vida. Atravs dos seus ensinamentos tenho podido compreender a perda de amigos queridos como, recentemente, a do Pe. Herique Cludio de Lima Vaz, SJ. A morte do Pe. Vaz despertou-me lembranas e trouxe de volta fantasmas adormecidos. Tudo, se nele penso, toma em mim uma expresso de afeto, idia, transcendncia e 12

vontade de ser. Descubro que pensar nele um pensar com-sentido. Pensar, pensar o ser, pensar a totalidade do real, pensar a tica e a esttica, compreender a razo da f, da poltica e da justia, do comportamento humano e da sabedoria que determina o nosso agir no mundo. Suas aulas ofereciam ao filsofo iniciante um mergulho na sabedoria dos pr-socrticos sem perder de vista as preocupaes do pensamento de hoje. Nos introduzia na Histria da Filosofia com um esprito crtico e valorizando a nossa prpria interpretao. Pe. Vaz desempenhou, com sua inteligncia e amizade, um papel determinante na minha profisso de psicanalista e professor. A presena dele transparece nas minhas aulas de psicologia e na minha maneira de exercer a clnica. Tudo em mim est cheio de seu esprito, sua inteligncia e sua maneira natural de compreender o psquico e o religioso. De fato, no consigo restringir-me obviedade da morte corporal do meu querido amigo. Li em Borges, que Tcito em Vida de Agripa, dizia que certas almas merecem a imortalidade. Como ele, acredito tambm que as grandes almas no morrem com o corpo. Terezinha de Jesus pedira para continuar no mundo como instrumento de salvao. Depois, seria horrvel supor que o Pe. Vaz tivesse inexoravelmente desaparecido. Segundo So Toms: Intellectus naturaliter desirat esse semper. Instantes teria havido, em que estados fluidos de devaneio o teria deslocado de sua mente corporal, ajudando-o a combinar simultaneamente razo e emoo, realidade e transcendncia. Creio na imortalidade do Pe. Vaz pela memria afetuosa que deixou em nossos coraes. Depois, temos as suas obras. Todos sabemos que a leitura era uma das formas de felicidade encontrada por ele. Uma perfeita insero na leitura lhe abriu as portas para ver o outro mundo. Um testemunho singular que unia meditao, orao e leitura. Vendo-o ler tive conscincia de que somos ns que damos vida ao livro. Memria e livro unidos pela emoo do manuseio das pginas. Seu gesto de abrir um livro criava um fato esttico, ga13

rantindo a passagem da iluso para a realidade. Trago ainda em minhas lembranas o Pe. Vaz sentado em seu quarto e a manusear um livro sobre a mesa. Era belo v-lo em sua intimidade de filsofo. Uma sorte. Saia de l com a certeza de ser o livro o guardio da memria dos futuros homens. Lembro ter lido em Fernando Pessoa que imaginao e razo so irms e nascem da emoo. Tenho gravado na memria a emoo de todos os nossos encontros: como aluno, como orientador de estudos, como superior de nossa casa de filosofia, como colega jesuta e, sobretudo, como amigo e muitas vezes confessor. Em sua admirvel e discreta maneira de agir degustvamos pequenos momentos de satisfao e compreenso mtua. No me esqueo quando numa tarde, quando todos reclamavam do meu pequeno atraso para a missa na casa da Rua Vicente de Souza no Rio e o Pe. Vaz retrucou dizendo: deixem-no vontade ele estava pensando... Assim, aprendamos a amar o mundo amando as pessoas em seu jeito de ser. Nunca duvidei de sua amizade e admirao por mim. Isso me fazia sentir melhor. s vezes me via tmido diante dele como se ele pudesse captar toda a minha ignorncia quando diante do brilhantismo de suas idias e da sua mxima estruturao filosfica. Gostava de v-lo falar nas aulas e nos cursos que dava sobre Hegel. Embora me escapasse muito dos contedos tericos de suas argumentaes, sentia minha mente se organizar diante de sua esttica argumentativa. Pensava comigo: esse homem um gnio e meu amigo. E sorria de prazer sozinho. Eu no sei se o meu pai teria sido comigo na idade adulta como fora o Pe. Vaz, mas gostava de perceber nele o amor pela leitura, a justeza de carter e a mineirice do meu pai. Era um prazer estar com ele. Com uma inteligncia e memria privilegiada ele sabia percorrer as zonas pantanosas de nossa existncia e num mpeto vital de sabedoria nos dizia a palavra certa. Cada um 14

dos seus gestos era marcado pelo afeto seguro de quem compreendia o sculo, o mundo e os anjos. Uma inteligncia brilhante e afetuosa agregava todos aqueles que o procuravam para conversar. Dvidas de todos os gneros se dissipavam com alguns minutos de conversa. Ningum soube como ele conjugar inteligncia e afeto. Isso me levou a concluir que s pelo afeto a inteligncia se torna naturalmente eterna. Percebia que o que sustentava sua inteligncia e sabedoria era o afeto e no o contrrio. Esse afeto que o tornaria imortal em nossos coraes e hoje nos faz voar. Seja como for, apesar da saudade, o Pe. Vaz seguir imortal em nossos coraes, em nossas atitudes, em nossa vida e mesmo em nossa morte corporal. Creio que ele se salvou pela inteligncia na f, pela tica e pelo exerccio da arte imaginativa que lhe ensinou combinar to bem emoo e razo. Alheio por natureza esperana de ver o seu rosto, s me resta imagin-lo em sua ltima tarde de vida rezando com o poeta:

Senhor, que s o cu e a terra, que s a vida e a morte! O sol s tu, e a lua s tu e o vento s tu! Tu s os nossos corpos e as nossas almas E o nosso amor s tu tambm. Onde nada est tu habitas E onde tudo est (o teu templo) - eis o teu corpo. D-me alma para te servir e alma para te amar. D-me vista para te ver sempre no cu e na terra, Ouvidos para te ouvir no vento e no mar, E mos para trabalhar em teu nome. Torna-me puro como a gua e alto como o cu. 15

Que no haja lama nas estradas dos meus pensamentos Nem folhas mortas nas lagoas dos meus propsitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmos E servir-te como a um pai. (...) Minha vida seja digna da tua presena: Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti Como um filho que volta ao lar. Torna-me grande como o Sol, Para que eu te possa adorar em mim; E torna-me puro como a lua, Para que eu te possa rezar em mim; E torna-me claro como o dia Para que eu te possa ver sempre em mim E rezar-te e adorar-te. Senhor, protege-me e ampara-me. D-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim. 3

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PESSOA, F., Obra Potica e em Prosa. Volume I. Porto, Lello & Irmo-Editores, 1986, p. 117.

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Afeto e espiritualidade nas cartas de Santa Teresa de vila Lucia Pedrosa de Pdua4

Este trabalho contemplar uma faceta menos conhecida de Santa Teresa de vila: ser escritora de cartas. Pelas cartas, veremos o testemunho de uma relao viva entre espiritualidade crist e afeto, na vida cotidiana. Atravs delas, admiramos como a espiritualidade ativa a pessoa humana por dentro, ao mesmo tempo em que a coloca em movimento, em direo aos demais e s necessidades da realidade concreta. A espiritualidade transforma o corao de pedra em corao de carne (Ez 36, 26). Enfim, torna a pessoa mais humana. Pelas cartas sabemos com que afeto foi gestado, no fluir cotidiano da vida de Teresa, um movimento eclesial novo, por ela liderado5. Sabemos sobre avanos e retrocessos deste movimento; sobre a relao de Teresa com as carmelitas e os carmelitas; sobre as mudanas, as novas intuies, as necessidades urgentes da reforma carmelitana. Conhecemos o pensamento da fundadora com relao sua obra, suas consultas a telogos e letrados amigos, sua relao com os colaboradores e familiares. Quanto ficou registrado no amplo epistolrio desta mulher admirvel do sculo XVI.

Por que as cartas de Santa Teresa foram desvalorizadas? Trpega foi a sorte do conjunto das cartas teresianas. Sabemos que esse foi dispersado por vrios motivos: pela prpria deciso de Teresa em fazer destruir suas cartas dianteDoutora em Teologia pela PUC-Rio de Janeiro-RJ, Prof. de Teologia e Cultura Religiosa na PUC-Rio e Coord. do ATAENDI - Centro de Espiritualidade Teresiana, no Rio de Janeiro.5

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A saber, a reforma da ordem religiosa carmelitana e a fundao da Ordem dos Carmelitas Descalos.

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de situaes crticas, pela deciso de seus destinatrios (ver abaixo o caso de So Joo da Cruz), por problemas do sistema postal poca, pelo compreensvel descuido com relao a cartas recebidas. Mas h tambm outras razes. O rico epistolrio teresiano foi desprezado ao longo da histria, ou valorizado mais como relquia que por seu valor interno. A maioria do material ficou disperso ou desapareceu. Foram poucos os que cuidaram deste material, por perceber o seu valor (exemplo de cuidado foi sua amiga, a carmelita Maria de So Jos). Mais valia a materialidade da carta, da letra, da assinatura de Teresa de Jesus que o seu contedo e sua intencionalidade.6 Este desprezo bem retrata o tipo de espiritualidade barroca, de robusta sobrevida at meados do sculo passado. Para esta espiritualidade, valor mesmo tiveram as obras doutrinais de Santa Teresa, as obras maiores. Afinal, pensou-se, nestas se encontram as grandes metforas da vida espiritual, e a experincia extraordinria da grande santa catlica. A literatura palpitante das cartas que priorizam temas como o concreto da vida, as circunstncias do novo movimento eclesial, o cotidiano pessoal, as relaes familiares etc desvalorizada, considerada episdica e demasiadamente terrena.

6 Para um estudo das cartas teresianas, ver RODRIGUEZ MARTNEZ, L., EGIDO, T. Epistolario. In: BARRIENTOS, Alberto (dir.). Introduccin a la lectura de Santa Teresa. Madrid: Editorial de Espiritualidad, 1978, p. 427-472. Tal estudo foi ampliado para introduzir o Epistolario de Santa Teresa na edio do Editorial de Espiritualidad, Madrid, 2 ed., 1984, p. 7-60. Tambm: ALVAREZ, T. Cartas. In: ALVAREZ, T. (dir.). Diccionario de Santa Teresa. Burgos: Monte Carmelo, 2000, p. 309-319. Em lngua portuguesa, pode ser consultada a introduo s cartas da edio brasileira das Obras Completas de Teresa de Jesus, coordenada por Frei Patrcio Sciadini, ed. Loyola, 1995. Utilizaremos essa edio nas notas do presente trabalho.

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As relaes cotidianas retratam a qualidade afetiva da espiritualidade Por trs da desvalorizao do contedo das cartas h uma orientao teolgica e espiritual clara: os conflitos e alegrias da vida cotidiana, as decises prticas, as redes de relaes possuem, nesta viso, pouca ou nenhuma densidade espiritual. Que pena! Pois a vida cotidiana um bom retrato da espiritualidade vivenciada. a espiritualidade em ato. Se essa endurece as pessoas, se rouba-lhes a alegria de viver e a flexibilidade diante da vida, se cria dependncias e reduz a liberdade, se isola as pessoas de seus semelhantes, se lhes tira a naturalidade e as torna raras e estranhas... que dizer dessa espiritualidade? Que no humana nem humanizadora, enfim, que no bem-vinda. As cartas de Santa Teresa revelam, ao contrrio, uma espiritualidade amiga da humanidade. Elas so um veio privilegiado por onde escorre o afeto de Teresa. Afetividade que, como um rio, brilha luz do dia.

A dimenso afetiva presente nas demais obras de Santa Teresa certo que a dimenso afetiva da espiritualidade teresiana est presente e muito! nas obras doutrinais e biogrficas. Nelas, um fino e admirvel equilbrio entre razo e afeto se faz presente. Teresa no se julga uma pessoa sensvel: ...no sou nada sensvel. Pelo contrrio, tenho o corao to duro que s vezes at me d aflio.7 No entanto, sabemos que sua vida foi marcada por grande sensibilidade afetiva. Foi uma histria de amizade e amor, amadurecida ao longo de tantos anos pela orao, pelo auto-conhecimento, pelas relaes com os demais, pelo trabalho eclesial.

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Castelo Interior, Sextas Moradas 6, 8.

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Como nos esquecer da sua definio da orao como trato de amizade com quem sabemos que nos ama 8, descrita no Livro da Vida? Como nos esquecer de sua nfase no cultivo de uma atitude desapegada em relao s pessoas e aos bens materiais, para evitar relaes imaturas, que mais dominam que libertam, e animar a uma vida vivida em liberdade interior e liberdade nas relaes, presente em Caminho de Perfeio e no Castelo Interior9? Como ignorar sua experincia de Deus apaixonada, abrasada em amor, que abre o leitor contemporneo s grandes experincias e doutrinas cristolgicas e trinitrias?

Escrever cartas: uma atividade incansvel de Santa Teresa A Teresa mstica, exttica diante de Deus e ao lado do anjo foi imortalizada na escultura barroca de Bernini. Mas a Teresa escritora de cartas em que fala de viagens, de compras de casas, de sade, de pleitos familiares, de intrigas, de amizade, de peixes e marmelos menos conhecida do pblico brasileiro. Trata-se da mesma Santa Teresa, em sua complexidade humana. Sem a experincia do mistrio de Deus, Teresa no teria sido to humana. Foram conservadas cerca de 450 cartas. A edio brasileira, que aqui utilizamos, editou 446 delas. Somam uma quantidade pequena, mesmo que para ns, leitores informatizados do sculo XXI, parea muitssimo! Grandes teresianistas do sculo XX, a partir dos indcios encontrados nas prprias cartas, projetaram o tamanho do epistolrio teresiano: teria sido de mais de 5.000 cartas, segundo o Pe. Silvrio de Santa Teresa; mais de 15.000,

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Livro da Vida 8,5. Cf. Caminho de Perfeio, especialmente os captulos 8 e 9 e Castelo Interior, especialmente as Segundas Moradas.

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segundo o Pe. Efrn de la Madre de Dios e O. Steggink. Ainda outros estudos afirmam que pode ter chegado a 25.000!10 O que temos , ento, uma amostra pequena de um volume quase inabarcvel de acontecimentos e questes tratados ao longo dos ltimos 14 anos da vida de Teresa (entre 1568 e 1582).

Confirmao de uma espiritualidade humanista e humanizadora As cartas fazem entrever o respeito e delicadeza de Teresa para com todos, demonstrados no tratamento, na qualidade do papel e das tintas, na forma de escrever, independentemente da situao social ou de classe do destinatrio. Esta Doutora da Igreja relia as cartas recebidas, respondia sempre, fazia o destinatrio sentir-se importante. A mesma sensao de proximidade e simpatia, testemunhada pelos que a conheceram pessoalmente, respira em sua correspondncia. H uma grande diversidade de destinatrios, indicando os amplos horizontes de sua ao, relaes e influncia na maturidade da vida. Familiares, personagens civis e eclesisticos (do Rei a modestos servidores dos mosteiros), homens e mulheres da ordem por ela fundada, telogos e amigos letrados, colaboradores e colaboradoras distribudos pela Espanha e tambm fora dela11. Teresa, com sua abertura aos demais, soube estender pontes, com o dinamismo de quem sabia despertar o melhor do outro e unir esforos para uma causa comum, apesar de oposies de dentro e de fora do mbito eclesial. Interessou-se pela pessoa, tanto espiritual quanto fisicamente: o tema da sade um dos mais presentes nas cartas. Pediu ajuda, reali-

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Estas projees encontram-se no j citado estudo de L. Rodriguez Martnez e T. Egido, pgina 432. Cf. ALVAREZ, T. op.cit., p. 314-315.

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zou consultas, criou e reconheceu amizades, compartilhou dificuldades e sonhos. Demonstrou gratido sempre. Prodigalizou alegria e bom humor, mesmo nas situaes desconfortveis ou abertamente conflituosas.

O irmo e dois companheiros de caminhada Nas cartas que chegaram at ns, encontramos alguns destinatrios privilegiados: o irmo, Loureno de Cepeda; Maria de So Jos, amiga carmelita e priora do convento de Sevilha; Graciano, o amigo carmelita em quem Teresa vislumbrou a pessoa-chave para sua Reforma. Nestas cartas est especialmente presente a dimenso afetuosa de Teresa. As cartas a Loureno mostram a intimidade, a preocupao com o irmo e amigo, com sua sade; o dilogo constante sobre assuntos diversos, desde a orao at o envio de marmelos para fazer conservas e marmeladas; o interesse pelos sobrinhos preciso olhar bem estes meninos (cta. 108), de sua infncia maturidade, passando seguinte gerao. Tambm o irmo envolvido pelo dinamismo da ao eclesial de Teresa, como benfeitor e como facilitador de elementos do dia-a-dia, como providenciar um novo selo para as cartas da irm (cta. 171). Pe. Graciano foi o privilegiado em afetos. Teresa no economizou cuidados e mimos para com ele. Esteve sempre atenta sua sade e aos seus movimentos, preocupada com a perseguio que ele muitas vezes sofreu. A troca entre eles intensa, que coisa entender-se uma alma com outra: nunca falta o que dizer, nem d cansao (cta. 153), mas Teresa no o isentou de repreenses. A ele Angela, pseudnimo algumas vezes utilizado por defesa, escreveu o maior nmero de cartas no epistolrio que hoje temos constam 100 delas. Nem sempre o jovem carmelita correspondeu aos zelos de Teresa. Teria sido por 22

descuido? Por excesso de trabalho? Por vaidade? Por defesa? A reivindicao de Teresa por mais ateno est presente em vrias cartas, bem como sua alegria ao receber notcias suas. Maria de So Jos foi uma das pessoas mais identificadas com Teresa, que gostava de receber suas cartas: No pode dizer que no lhe escrevo com freqncia. Faa o mesmo, que me alegro muito com suas cartas (cta. 106); sempre me serviro de alegria as suas cartas (cta. 115). Reproduzimos a seguir trechos de uma nica carta (n 130), para que o prprio leitor/a possa aquilatar a amizade entre ambas e a variedade de interesses comuns: Esteja com vossa reverncia, filha minha, o Esprito Santo. J respondi a suas cartas, que chegaram muito bem pelo correio; e muito me alegrei com elas, conquanto me sinta penalizada com sua doena. Por caridade escreva-me depressa dando notcias de sua sade... Meu irmo contou, em carta recebida hoje, que lhe havia escrito, mandando procurao para receber a o tero que a ele devido. Est bom e j efetuou a compra. (...) O atum que mandaram de Malagn na semana passada veio cru; estava timo e muito bem nos soube. (...) D. Guiomar casou-se hoje. Muito se alegra por saber que vossa reverncia vai bem, assim como tambm D. Lusa. (...) O mais depressa possvel procure pagar a casa com o que trouxe a novia e com tudo o mais que puder juntar, para no terem de pagar tantos juros, pois fica muito pesado, e, ainda que no queiram...

So Joo da Cruz: as cartas desaparecidas mantm o mistrio desta relao Nenhuma carta dirigida a So Joo da Cruz chegou at ns. Sabemos que ele mesmo, diante da perseguio sofrida, desapareceu com os documentos que no desejava que

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parassem nas mos dos perseguidores. E, em outra ocasio, queimou-as, por desapego, consciente de sua renncia.12 Perdeu-se assim a comunicao viva entre aqueles que cultivaram em suas vidas uma relao marcada pela confiana e afinidade, pela liberdade e pela intimidade espiritual. So Joo da Cruz, poeta e mstico, confessor e confidente, companheiro de Santa Teresa na primeira hora da fundao do ramo descalo masculino, preservou um segredo de fino afeto, que podemos apenas intuir pela reconstruo biogrfica de ambos.

Teresa, mestra da vivncia afetiva Teresa soube estabelecer relaes profundas e enriquecedoras com as pessoas, e seu epistolrio revela um leque variado de pessoas merecedoras de seu afeto. Ao mesmo tempo, soube priorizar assuntos tratados, aprofundar a amizade com alguns interlocutores afetivamente mais prximos, resguardar sua intimidade. Suas cartas demonstram profundidade emocional. Teresa vulnervel ao amor. O afeto est relacionado verdade e transparncia no dilogo. Teresa prefere encarar os conflitos com verdade e confiana no amor recproco. Escreve cartas como a carta terrvel a Ana de Jesus, priora em Granada (cta. 430), desaprovando os seus procedimentos nos princpios da fundao da nova comunidade Tudo foi errado desde o princpio e se essa fundao h de ir como agora (...) muito melhor seria no existir. Outro exemplo a carta escrita ao Pe. Ambrosio Mariano (cta. 101), em Madri, em que reclama sua comunicao e o repreende em sua forma desorganizada de trabalhar: Oh! valha-me Deus! Que gnio esse seu, prprio para exercitar os outros! Eu lhe digo; muita deve ser minha virtude, para lhe estar escrevendo como12

Cf. RODRIGUEZ e EGIDO, op. cit., p. 430.

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fao (...), no me escreve nem me manda lembranas (...). Quando considero em que negcios emaranhados me deixou vossa reverncia, e como est to descuidado de tudo, no sei o que pensar, a no ser: maldito o homem [que confia em outro homem] (Jr 17,5). O afeto est relacionado com a liberdade. As relaes devem refor-la e no inibila. S a liberdade permite manter a integridade pessoal e discernir os rumos da prpria vida. Mas esta liberdade construda atravs de relaes de liberdade com os demais. Quem conhece a vida de Teresa sabe, por ela mesma, como esta construo processual e no isenta de ambigidades. As relaes tambm oferecem a liberdade da comunicao sincera, da demonstrao de afeto, da entrega ao amor do outro. Como vimos, o interlocutor privilegiado do afeto de Santa Teresa foi Pe. Graciano, pessoa de suma importncia na sua atividade de Fundadora. Para exemplificar esta liberdade de expresso, transcrevemos parte da carta em que ela reclama, em terceira pessoa, do descuido e falta de notcias a que ele a relega: Diga Vossa Paternidade por favor, a esse cavalheiro, que, embora de sua natureza seja descuidado, no se mostre assim com ela, porque o amor, onde existe, no pode dormir tanto. O amor no pode dormir e deve ser comunicado. Para Teresa a comunicao o grande alimento do amor (incluindo o amor a Deus, da sua nfase na orao), da amizade, e das relaes familiares. O afeto est relacionado ao projeto de vida. Teresa viveu intensa e apaixonadamente sua aventura espiritual. Trabalhou com todo o corao. Assumiu as dificuldades com realismo e foi fiel s suas opes. Amou o servio de Deus como algo prprio, mesclado ao seu prprio sangue. J era tempo de tomar como prprios os interesses divinos13, havia uma vez escutado dentro de si mesma. Palavras que selaram uma relao inseparvel entre ela e Cristo, que ela chama de matrimnio espiritual. Viveu o amor de Deus no trabalho e13

Castelo Interior, Stimas Moradas 2,1.

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no servio, nas grandes realizaes e no pequeno cotidiano. Demonstrou-o tanto no sonho no realizado de fundar em Madri, quanto no acompanhamento de sua sobrinha Teresita ou de seus sobrinhos em suas aventuras amorosas.

Concluindo A espiritualidade crist se verdadeira, humaniza a pessoa. Como conseqncia, deve purificar e amadurecer o afeto, mas tambm agu-lo. Torna a pessoa atraente, por ser mais capaz de amar e ser amada. Teresa de vila testemunha, em suas cartas, como todo o seu ser passou pela experincia de Deus. Ficou com uma humanidade mais purificada e transparente. Com nova sensibilidade com relao s pessoas, ao corpo, aos sentimentos, ao saber, alegria, vida, luz, amizade e ao amor. Com nova sensibilidade com relao ao mundo do mistrio: a orao, Deus, Cristo, pecado, e graa, anjos e demnios, comunidade, Igreja e grandes males da Igreja. Tornou-se mais capaz de resolver ou mediar os conflitos sem destruir as pessoas e nem a si mesma. Foi ativada por dentro em dinamismo libertador, sempre desejosa de comunicao, de ser profeta do que viveu e experimentou. Esta orientao nos traz conselhos para a vivncia da espiritualidade hoje. Um deles que a expresso madura do afeto no cotidiano critrio de verdade e profundidade espiritual. Embora sempre em processo, podemos acreditar em uma utopia afetiva, que nos realiza como seres humanos. O Reino instaurado por Jesus Cristo nos promete este porto feliz, por meios que levamos em jarros de barro (2Cor 4,7). Ao contrrio, a recusa intimidade e amizade, a incapacidade de estabelecer dilogos esclarecedores ou mesmo conflitivos, a ausncia de liberdade interior e a inexistncia de um caminho que d sentido e comprometa a vida indicam a necessidade de reorientao do caminho espiritual. A espiritualidade redu26

zida projeo do prprio eu sempre mesquinho e limitado ou reduzida ao auto comprazimento pode gerar frutos pouco atraentes, ambientes destruidores, sociedades egostas, relaes de aprisionamento. O afeto sufocado ou privatizado. A experincia de Deus como amor, revelado na Humanidade de Cristo, deve chegar ao ntimo da pessoa, deve comprometer honestamente o prprio afeto com o afeto dos demais. Pois, no dizer de Teresa, amor gera amor.

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Afeto e Espiritualidade - viver e conviver no mundo contemporneo Teresa Creusa de Ges Monteiro Negreiros1

A tica s aparece no homem quando ele percebe que, o que maior bem faz para o seu ser, um outro ser humano. O homem se torna tico pela paixo. Espinoza.

Exploso do Efetivo e Imploso do Afetivo

Nos ltimos anos ocorreram avanos tecnolgicos incrveis, uma exploso da informatizao, com muitas transformaes decorrentes, capazes de suscitar desafios, incertezas e inseguranas. Com a globalizao das tecnologias, a velocidade de circulao do capital aumentou e muita coisa mudou rapidamente. A chamada globalizao, porm, no vem significando integrao. Ao contrrio, especialmente porque as inovaes desta era das informaes passaram a servir ao sistema atual, que aponta para um mundo ameaador de poucos eleitos e muitos excludos. O progresso tcnico-cientfico no accessvel a todos. Coloca-se, hoje em dia, em dvida at a noo de nao. Ser que ela permanece frente s grandes organizaes internacionais? E o que se dir de outras instncias como a famlia, os grupos de trabalho, religiosos, de lazer? Como viver e conviver neste cenrio de mudanas de valores? Um dos focos de ateno de psiclogos, filsofos e cientistas sociais atualmente o fato de que as relaes familiares, de trabalho e interpessoais em geral vem sendo profundamente afetadas pela exploso tecnolgica-informacional que interligou o globo mas no1

Doutora em Psicologia Clnica, Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.

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uniu os seres humanos. O grande impacto que teve sobre nossas vidas tal exploso provavelmente teria outra evoluo, se seu uso fosse distinto do atual. Teramos uma rede que processaria e transmitira informaes velozes e eficazes, o que permitiria facilidades para a vida em geral. O problema que esta exploso coincide com a imploso de valores indispensveis evoluo da humanidade. Porm, na lgica do capital no se oferece um lugar para argumentos psicolgicos ou morais. O equilbrio monetrio suficiente. Tratar de equilbrio psquico ou social considerado, no mnimo, irrelevante... Um princpio bsico em Psicologia que, desde os primeiros instantes de vida, no apenas o leite materno alimenta o beb. Cuidados e carinhos associados s provises fsicas oferecem sensaes iniciais de conforto e segurana. E, embora fadados a sermos seres da falta, na vigncia de uma precoce relao sadia (me-beb), e/ou de relaes posteriores capazes de funcionar como supressores de falhas iniciais (famlia, escola, instituies religiosas e demais), conseguimos construir meios internos para preencher nossas carncias de forma criativa. Ou seja, atravs da prpria falta buscamos a sobrevivncia fsica e um sentido espiritual evolutivo para nossas vidas. Para tal seria necessrio um meio social capaz de dar suporte e de oferecer modelos de identificao. Na perspectiva psicanaltica freudiana, identificao foi designada como a mais remota expresso de um lao emocional com outra pessoa (Freud, 1921, p.133). E no processo de constituio e de diferenciao da personalidade, que se inicia na relao me-beb e se estende por toda a vida, cada membro significativo da esfera familiar e social pode representar um elemento identificatrio importante. Mas o que temos? Lembrando Lasch (1990), a cultura organizada em torno do consumo, do utilitarismo e do individualismo recria nos indivduos sentimentos infantis de desproteo e desamparo, crescentemente. Como bebs famintos, frgeis, dependentes e 29

vidos, os indivduos Vivem uma incessante busca de preenchimento neste mundo do descartvel, onde as relaes afetivas tambm so adotadas e substitudas rapidamente. A identificao passa por uma imagem idealizada difundida pela mdia: modelos perfeitos em esttica, mas vazios em tica. Ento, vo se formando seres aparentemente livres e alegres, mas, efetivamente acorrentados s suas compulses de preencher a falta com livros de auto-ajuda, plsticas, ginsticas, excessos alimentares e sexuais, trabalho ou diverses ininterruptas, abuso de lcool e drogas ilcitas e lcitas: medicamentos para emagrecer, para dormir, para se motivar, para tornar-se sempre potente, enfim, busca-se ser em carter permanente jovem, saudvel e feliz. Trata-se da substituio de valores. Desloca-se o afetivo -o interior, o necessrio, o duradouro em prol do efetivo - o exterior, o til, o urgente. Conforme apreciamos em outro texto (Negreiros, 2002), constitumos, ao longo dos ltimos anos, uma sociedade de entretenimento, do espetculo, onde a televiso impera como fora hipnotizante e ambgua. Ao mesmo tempo em que insere propagandas, criando desejos irrealizveis, fornece informaes relevantes sobre ocorrncias diversas, oferece espao s artes, cincias, educao. A manipulao de mentes torna-se quase uma segunda natureza: indivduos mais passivos e conformistas, sobrecarregados de informaes e propagandas claras ou veladas. As energias do espectador so consumidas em dramas que no lhe so familiares ou prximos e estes passam a um segundo plano. Em substituio realidade, vive-se o espetculo que cria e derruba mitos e heris e perde-se a motivao para se incumbir de projetos de suas prprias vidas. Assim, essas pessoas caem com facilidade na megalomania e na depresso, seu complemento. Ou seja, identificando-se com esses heris sempre renovados-atletas, cantores, atores, modelos, alm de anti-heris, como o bandido ou poltico que deu certo - busca-se idealizaes fora 30

do patamar de realidade e frustrando-se, constantemente, deprime-se com facilidade. Nesse contexto, no surpreende a notcia que, segundo a O.M.S., a depresso em 2020 se constituir na principal causa de morte em todo o mundo, superando a mortalidade cardiovascular. E, sobretudo, a sociedade do espetculo cria uma cnica aceitao da realidade tudo fica ao mesmo tempo prximo e distante, torna-se uma mera rotina sem importncia, inevitvel. Endossam-se justificativas para a violncia, elabora-se uma esttica para o horror, banaliza-se o mal, esvazia-se o sofrimento. O espetculo encanta, apazigua, anestesia. Nele no cabem a reflexo e o afeto. A fora bruta tambm crescente e reforada em nossa cultura - constante violncia das selvas urbanas, aumento do crime organizado, aceitao e xito de lderes belicosos sejam chefes de quadrilha de bandidos ou chefes de poderosas naes. Por outro lado, a tecnologia faz com que a inteligncia se torne presente, mesmo no reino da fora bruta armas tornam-se mais sofisticadas e potentes. E a destruio de milhares de pessoas torna-se uma estatstica trivial. No reino da luta civilizada, da competio e da especulao financeira, observamse transformaes rpidas e dramticas. crescente a procura de empregos e decrescente a oferta de empregadores. Amplia-se, cada vez mais, distncia entre os que podem consumir e os marginalizados. Profisses e saberes ficam ameaados como obsoletos e a merc de foras intransponveis e indefinidas. Teme-se, sobretudo, transformar-se num excedente do mercado globalizado. Da a competio acelerar-se e tornar-se um valor vital - competir ou submergir. Ento, a meta passa a ser vencer o oponente, como se a vida fosse um jogo blico permanente. Odiar em lugar de amar, para se proteger e se projetar faz parte da aprendizagem social. Na ciranda do vale tudo para no cair na vala comum, tambm a desonestidade (desde que bem conduzida e que atinja seus objetivos) incorporada com

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natural. A corrupo aumenta e torna-se banal e sistemtica. No importa o outro, o importante lucrar. O materialismo impera. Este processo passa, alm da manuteno da imagem (eu sou bom, eficiente), pelo conformismo (nada h para se fazer) , pelo descompromisso com o outro (salve-se quem puder), e pela iseno de culpa (nada fiz e no tenho a ver com isso). A seleo de sujeitos perfeitos para que possam produzir mais do que o normal, a fim de garantir a competio entre empresas e o lucro, incita-os a manter uma imagem de sucesso e triunfo em todos os seus empreendimentos casamento, trabalho, famlia, relacionamentos sociais. No h lugar para abalos, doena, exausto, sofrimento ou desnimo. Para ser aceito, o sujeito se sujeita ao modelo vencedor, oculta sua fragilidade. Tenta, a todo custo, vender a mercadoria de sua imagem, seja de entusiasta, criativo, excepcional, lutador, conquistador, herico, etc... Sob a premissa de que os fins justificam os meios e desejoso de coincidir com as demandas do mercado, alimenta a autopropaganda - que a alma do negcio - a qualquer preo e, assim, engendra artifcios mantendo-se no sistema que pode expurg-lo a qualquer momento. Entra num jogo de vaidade e, muitas vezes, chega a se confundir com a prpria imagem, ainda que persista, em seu ntimo, dvidas de ser uma farsa que poder ser desmascarada, repentinamente, deixando-o exposto temvel condio do rei est nu. Quanto ao conformismo, de acordo com Foucault (1993), o poder hoje em dia se exerce como uma conduo de condutas, como uma servido voluntria. Ou como Zeldin (1994) explicou, o sujeito sente-se bem em ser sujeitado, extrai prazer na disciplina, no exmio exerccio de suas funes, mais do que no enfrentamento direto com adversrios e adversidades, em prol de sua liberdade. Temeroso e agarrando-se s oportunidades, considera tudo vlido em nome da segurana e da possibilidade de ascenso (ou pelo menos do no declnio) social. , por excelncia, um colaborador, como nos fala Arendt (1990). Ou 32

seja, dependente em relao ao comando, proteo conferida pelo status quo e tem pouco compromisso na conivncia com o mal-estar conferido a outrem, pois delega a responsabilidade das conseqncias nefastas foras superiores. Mantm um comportamento hipcrita e bajulador, por ao ou por omisso, pois sente que uma oposio aos superiores poder trazer efeitos devastadores. Se Aceita, ou pelo menos, acatam-se, em demasia, solues simplistas, para no contrariar algo j institudo. Desenvolve-se, assim, uma adaptao acrtica aos esteretipos sociais, mecanismos simplificados e maniquestas de ver o lado bom e mau das coisas, sem examinar ou discutir. Usam-se subterfgios e ardis de que os fins justificam os meios, numa espcie de vale tudo, dentro da uma razovel certeza de impunidade. A insensibilidade visvel diante das injustias, da misria, das demisses ou quaisquer prejuzos e perdas de colegas e companheiros. A amizade um conceito distante. Os sujeitos afastam-se dos frgeis como uma espcie de medida de proteo frente a uma possvel contaminao de seus modos de pensar, sentir e agir fracassados. Alguns fazem parte de grupos filantrpicos ou religiosos, mas no mobilizados pela culpa e sim, geralmente, pela boa imagem que garantem para si prprios. A comoo inexiste - no se mobiliza com. Tambm no h lugar para a indignao - no h dignidade em jogo, pois o indivduo no se sente responsvel nem culpado; quando muito se percebe como uma pea de uma engrenagem poderosa e invencvel. um executivo, sabe executar no importa o que, de onde veio ordem, nem tampouco quais as suas finalidades. Enfim, no se sensibiliza pela adversidade do outro a menos que esta ameace a sua prpria estabilidade mantida precariamente e a todo custo. A aliana hipcrita com o poder-saber faz esse sujeito executor usar eufemismos baseados num pretenso discurso cientfico para naturalizar a violncia das novas guerras das empresas: enxugar quadros, remanejar recursos (o outro, subordinado ou colega 33

chamado de recurso), retirar as gorduras, eliminar os vcios retrgrados e a esclerose, em prol de uma soluo eficaz e efetiva, ligada a competio e ao lucro e no ao afeto, ao respeito e a solidariedade. Quando se utiliza o discurso de valorizao do homem no trabalho, trata-se em geral de uma retrica para uma adeso cada vez maior dos empregados. Alm do mais, conhecedor de que as exigncias sobre si prprio vo alm da competncia tcnica do desempenho, o sujeito simula um clima de bom relacionamento entre seus subordinados, e, sem culpa, banaliza ou elimina qualquer vestgio de sentimentos de tristeza ou de desnimo em seu ambiente de trabalho. Esta automatizao se estende, tambm, para o meio familiar, onde impera a ordem do quadro tpico da famlia feliz ningum insatisfeito, infeliz ou doente. A partir do exposto, indagamos: Como vivemos, com quem convivemos? Numa sociedade hipcrita e hedonista, do consumo, do espetculo, do capital. Na selva urbana, onde o que vale a sensao enganosa de poder e de prazer. Incertos, aflitos, ameaados, inseguros num mar de dvidas, em busca de prazeres efmeros e nos distanciando das reais fontes de bem-estar...Pois se examinarmos com mais acuidade, questionaremos: At que ponto o consumo supre a falta e o espetculo substitui a realidade? O bem tem lugar neste mal-estar da civilizao atual? H espao para o afeto e a espiritualidade neste cenrio individualista e materialista?

Sobre o afeto Afeto um conceito que inclui muitas definies explicativas sobre seu significado. De uma forma geral podemos dizer que o termo afeto diz respeito linguagem emotiva. Nas diferentes abordagens psicolgicas, o afetivo e afetividade so referidos s ligaes de ordem emocional que unem o ser humano ao seu meio ambiente. Os afetos representam 34

sentimentos conexos e de grande intensidade articulados com representaes cognitivas e que impulsionam as aes. Significam, pois, uma forte disposio sentimental de algum para com algum ou algo, uma inclinao que influencia o curso dos pensamentos e das aes. Neste texto estamos utilizando o conceito relacionado a sentimentos vinculados a outrem. Na poca atual os indivduos esto ligados para alm de crenas e fronteiras, mas, paradoxalmente, desligados de seus prximos. Os referenciais j no so locais nem particulares como no passado: a famlia, a comunidade, a cidade, a ptria... Vive-se o paradoxo do distante estar prximo e do prximo ser mantido distncia. O desafeto e a anestesia social significam mecanismos defensivos de fuga a dor - se o sentido da vida apenas sobreviver, se somos regidos pelo princpio do prazer, conviver torna-se suprfluo. No formamos arquiplagos, somos ilhas, mesmo cercadas de angstias (estado de inquietude pelo absurdo desta vivncia), por todos os lados. A fuga a dor, porm, no privilgio desta poca ps-moderna que atravessamos, onde as certezas se evaporam, os paradigmas se deslocam circunstancialmente e as redes de relaes e seus significados se diluem e se substituem, continuamente. Ou seja, deste cenrio de fragmentao e impessoalidade, onde s existe a continuidade da descontinuidade. Como nos informa Zeldin (1996), desde os mais remotos tempos, os seres humanos so escapistas. Sempre tentaram escapar s intempries e cataclismos da natureza, a predadores, a inimigos, a pobreza, a dor, a misria, a finitude. Com efeito, as fugas, cujo valor de sobrevivncia inegvel, pois no processo de evoluo perigo e perda constituem ameaas apresentam nuances diversas ao longo da histria da humanidade. A peculiaridade da era atual a anestesia dos sentimentos, o exlio do afeto, ou, melhor, a dissociao entre a esfera racional e a afetiva. 35

Desenvolvemos uma cultura da eliminao da dor: anestesia-se o dente, fazem-se cirurgias e partos indolores. O corpo suposto para a sensao de gozo j no suporta a dor. A vida intelectual est apartada da afetiva e exerce sobre esta uma clara primazia. Ocorre que o afeto no se elimina por ato de deciso ou negao. As tristezas, perdas ou sofrimentos no podem ser banidos da condio humana. Se desistirmos dos afetos para viver um prazer imediato (sensao), estamos abrindo caminho para a depresso, para a qual, felizmente, h medicamento e tratamento. Este ltimo baseado em escuta atenta, empatia, compreenso, presena. Em outras palavras, restituindo-se ao paciente o prximo distanciado os pais, o cnjuge, o irmo, o filho, o amigo. Em suma, devolvendo-lhe sua luz, o afeto, em prol de seu bem-estar. Bem-estar no est propriamente ligado sensao indolor ou de gozo contnuo, como se pode supor, nem a permanente ausncia de problemas, mas sim aquisio de condies para resolv-los e a aceitao das impossibilidades. Difere da mera adrenalina do prazer. Inclui a dor inevitvel - e a paz - possvel. No se consegue bem estar distanciando-se dos sentimentos, mas atravs de atitudes que envolvem responsabilidade, compromisso, respeito, compaixo e tomada de decises norteadas por imperativos de valorizao humana. Nesse sentido est muito mais prximo ao conceito de felicidade, tal como a origem da palavra indica: felicitas, ou seja, f lcita, uma crena vlida no progresso da humanidade, na vocao no suicida e no homicida do ser humano, na dignidade, na justia, na solidariedade, no altrusmo e no amor. O amor - atrao profunda por algum ou alguma coisa - vem sendo canalizado para o sentido exclusivo de impulso sexual. Busca-se meramente uma satisfao carnal. O envolvimento fsico rpido e distanciado da admirao e do encantamento. Estes, como a amizade e o companheirismo, so repudiados como antiquados e obsoletos. Vive-se, em 36

nvel exacerbado, a relao narciso-eco, ou seja, ambos apaixonados pelo mesmo, o que traz logo um desencanto com o outro e uma troca constante de parceiros, numa busca insacivel de prazeres. Perde-se a intimidade, o aconchego da dimenso integrada afetivosexual, tanto na promiscuidade quanto na relao virtual. Nos namoros pela Internet, to freqentes atualmente, pode-se representar qualquer personagem, amando-se em cada um deles e no ao outro... Neste amor pela menina dos prprios olhos e com o olhar fixado em seu corpo, a compulso por ginsticas, esportes e inmeros recursos de embelezamento, mescla-se rejeio de alimentos para se manter um corpo magro, atraente e jovem. No outro extremo tambm se verifica a entrega s orgias alimentares para suprir carncias afetivas. Clnicas se especializam em dietas e na cura dos males que as calorias excessivas provocam e so procuradas num movimento de vai ( comida) e vem (ao regime). E, especialmente o abuso de cigarro, lcool e demais txicos, vem sendo cada vez mais prematuro e intenso, em nosso contexto. Como sabem os que lidam com a dependncia qumica, na busca desenfreada do prazer, chega-se dor, num ciclo vicioso desesperado entorpecente para entorpecer os sentimentos de no ser querido e no mais querer, excetuando-se o objeto mgico que o aliviar, aprisionando-o progressivamente. Na verdade, o amor motivao (o que move) e no compulso chama que queima, mas no aquece. Ele renova foras, energias e esperanas e, principalmente, d significado e felicidade vida. Para alm da atrao fsica, desdobra-se em vrias nuances afetivas: na simpatia, empatia, compaixo expresses de pathos (paixo) com um sentido positivo de virtude, de altrusmo e no de numa conotao negativa de patologia. Segundo estudos contemporneos de Selligman (2004), quando estamos felizes gostamos mais dos

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outros, manifestamos mais empatia e generosidade, sendo o egosmo mais caracterstico da tristeza do que do bem estar. Para ele, bens materiais ou inteligncia no interferem na felicidade, seja para mais ou menos. No entanto, sentimentos positivos, como o amor (incluindo bondade, generosidade), bem como a espiritualidade/transcendncia seriam bases de uma vida autenticamente feliz. Tambm investigaes neurocientficas recentes, tais como a de Goleman (1995),contidas em seu famoso livro Inteligncia Emocional, demonstram que a dinmica primria do ser humano o sentimento e no a razo, sendo que este psicologicamente indispensvel ao equilbrio. Ento, deduz-se que para se bem viver e conviver, e no apenas sobreviver, precisamos da integrao de logos (conhecimento, sabedoria); pathos (paixo, emoo) e ethos (tica, espiritualidade).

Espiritualidade na atualidade Neste sculo XXI, quando, conforme o exposto no incio deste texto, tudo aparentemente convergia para a morte do afeto e o enterro das crenas religiosas, eis que estas explodem com intensidade, em mltiplas expresses. O que sucede com o paradoxal sujeito ps-moderno, que mistura atesmo com religio, conjuga f com razo, procura avidamente um guia espiritual, um guru, afirmando sua independncia emocional e intelectual? Para Zeldin (1996) as religies tm significado, ao longo da histria da humanidade, uma fuga da sordidez da vida real, uma retirada do corpo dolorido para o refgio seguro da alma (p. 204). Elias (2001) argumenta que a religiosidade aumenta na proporo do desamparo e desproteo em que se encontra um sujeito ou um grupo social. Considerando estes autores, podemos dizer que atravessamos uma fase de transio. A era moderna caracterizou-se pelo domnio do racional, da aquisio das verdades atravs de achados cientfi38

cos que promoveram significativos avanos, garantindo o afastamento de agentes nocivos e perigos da natureza e muitos meios de se prolongar vida, com mais conforto e qualidade. Porm, no momento atual era ps moderna as certezas declinaram, e vem se verificando um desencanto diante da desumanizao do mundo, do descuido com a natureza, do aumento da violncia em todas as suas formas. Com o predomnio da razo sobre a emoo, com a anestesia dos afetos, desembocou-se num vazio de sentido em que as novas formas de mal-estar contemporneo desdobraram-se. A espiritualidade pode representar, assim, uma resposta aos impasses diante deste cenrio. Chegamos ao pice e j se vislumbra a decadncia do imprio do materialismo, do hedonismo. Aps as crticas da psicanlise freudiana, a psicologia atravessou cerca de meio sculo de dubiedade em relao religio. Esta ora era vista como um elemento de represso da sexualidade, indutor de culpa e de intolerncia, ora nela se reconheciam diretrizes milenares de como lidar com os afetos. Ou seja: anterior ao advento da cincia, os ensinamentos religiosos destacaram a importncia de se vivenciar o luto e se organizaram ritos e preces para confortar os fiis em suas dores. Ademais, a religio vem ajudando a minimizar a ansiedade diante da morte e pregando a prtica das virtudes, como antdoto para os pecados, abrindo caminhos para o homem a viver de acordo com suas opes e no escravo de seus desejos. Prtica esta atualmente confirmada por pesquisas cientficas como preditora de vitalidade e longevidade, decorrentes do estilo de vida sbrio e parcimonioso e ao manejo dos afetos, especialmente em relao aos impulsos agressivos. Por outro lado, mesmo descobertas psicanalticas - somos governados por ditames inconscientes, movidos por paixes e no por um raciocnio pleno e lgico, acrescentaram um reforo conhecida exclamao de Cristo: Pai, perdoai-os, eles no sabem o que fazem. Alm de lanar um novo olhar para a velha tradio bblica dos pecados relacionados 39

s paixes humanas, especialmente amor e dio. Assim, se examinarmos bem, no foi somente nos ltimos anos que se abriu um campo de dilogo entre as religies e as cincias. O ressurgimento do fenmeno religioso neste incio de milnio, ainda assim, no deixa de ser surpreendente. Nota-se, no entanto, de acordo com a reflexo de Pessini (2004), um certo declnio das crenas religiosas tradicionais, um primado do ecletismo e uma preocupao crescente de busca pelo significado da vida. Procura-se uma nova religiosidade denominada de espiritualidade. Sem a pretenso de apresentar uma explicao mais elucidativa deste termo, ou uma demonstrao concisa de suas caractersticas, compreendemos espiritualidade como uma designao genrica de formas diversas de reconhecimento do esprito. Este, por sua vez, desdobrvel em vrias concepes, a saber: alma, nimo, essncia, princpio imaterial, substncia incorprea, fora invisvel, sentido transcendente, valor moral, dentre outras.Sendo que, na perspectiva religiosa, esprito significa princpio da vida, alma individual que pode existir junto com a matria ou independente dela, sendo-lhe, no entanto, superior. (Negreiros, 2003) Segundo Breitbart (2003), a espiritualidade uma construo formada por f e sentido. Enquanto f est freqentemente associada religio, o sentido um conceito que pode se vlido tanto para os que seguem alguma crena, como para os que no possuem referncia religiosa, caracterizando algo especfico de cada um, intransfervel, conforme discutimos em outro texto (Negreiros, 2005). A espiritualidade cada vez mais est se deslocando dos rituais, dogmas e doutrinas para o sujeito, com sua capacidade de escolha, passando pela experincia afetiva. Vale o que se experimenta, isto , o Sagrado, o Poder Superior considerado na medida em que atravessa a experincia pessoal. Formam-se comunidades emocionais, a exemplo dos grupos de ajuda-mtua (alcolicos annimos, inspirador de inmeros agrupamentos annimos 40

similares). Trata-se de uma religiosidade sem ortodoxia, composta de retalhos de diversas origens: tradies orientais (budismo, hinduismo), cristianismo, esoterismo, ecologia e at mesmo psicologia (transpessoal, logoterapia, existencial), entre outros. Tanto que telogos como cientistas se interessam por espiritualidade, com idntica inquietude sobre os mistrios da vida e da morte. Boff (2001, 2002, 2003), com vasta obra sobre o tema, tem assinalando que uma das transformaes culturais mais importantes no sculo XXI ser volta da dimenso espiritual, tornando os homens mais solidrios e coresponsveis pelo seu destino comum. Mdicos, recentemente pesquisam sobre a relao sade e f, estudam a respeito do poder da crena e da religio na preveno e cura, a exemplo dos cardiologistas Puppin (2002), Benson (2003) e Savioli (2004,a; 2004, b). Chama a ateno este interesse (estar entre esses) dos que se especializam no rgo corao, o qual, no imaginrio popular, seria a sede das emoes... Tambm na rea da psicologia, nos ltimos anos j se vem acumulando estudos diversos, baseados principalmente nas clssicas obras de Carl Jung (1984, 1987), atravs de seus conceitos de psique, self, inconsciente coletivo e arqutipos e Vitor Frankl, que destacou a dimenso espiritual e o sentido da vida como foras motrizes da experincia humana (Frankl, 1989, 1999). Para ambos - mdicos e psiclogos - o ser humano deseja uma integrao ao final de suas vidas, buscando durante todo o percurso um significado transcendente e essencial para a sade fsica e mental.

A redescoberta do outro e do Outro Numa troca de correspondncia entre dois grandes cientistas do sculo XIX Einstein e Freud - o primeiro perguntou ao segundo, como profundo conhecedor do psiquismo, se havia alguma soluo para deter a agresso e o conseqente extermnio da raa humana, 41

atravs das guerras. Freud (1932), apesar do conhecido tom pessimista dos ltimos anos de sua obra, respondeu afirmativamente. Seria possvel ter esperanas, posto que o ser humano era capaz de educar-se, conseguindo, atravs de atividades construtivas para si e para os outros, sublimar impulsos agressivos. E, embora os conflitos de interesses entre os homens, como em todo o reino animal, fossem ainda solucionados pelo recurso da fora, dois fatores trabalhariam contra a guerra: o temor das conseqncias e a evoluo cultural da civilizao. De qualquer modo, no temos o amanh, apenas o presente. Se considerarmos viver o presente como uma ddiva de Deus, um exerccio de inteligncia e de boa vontade, nele podemos construir um futuro onde haja lugar para o amor e a solidariedade humana - tarefa de todos. Em primeiro lugar, nesta tarefa, vem a idia de trabalho e aprendizagem. H que se trabalhar muito pelo bem-estar nosso, dos que nos so caros e daqueles que ainda nos so indiferentes. Convm lembrar que bem-estar no uma estao de trem em que se desembarca. uma permanente construo. Compreende um trabalho conjunto, mais poltico, mais comprometido, em que se consiga planejar, construir e desfrutar o espao da reproduo e da produo de uma vida que valha a pena. Do contrrio, de que serviro as conquistas cientficas que possibilitaro uma ampliao to considervel da expectativa desta vida? Viver mais para que? Para assistir passiva e impotentemente a uma inflao da instabilidade, da insegurana, da desigualdade social, das alienaes to devastadoras destes ltimos anos? Se criarmos, em nossas vidas, uma rea de conforto e nela nos instalamos, a reao ao novo, seja nas concepes ou nas aes do cotidiano, ser muito sofrida. O verdadeiro aprendizado ocorre sempre numa rea de desconforto, para depois reconfortar. No se trata de modelao, treino, conformismo, domesticao. No vem de fora para dentro, como uma 42

imposio. Em geral se inicia por inquietaes e questionamentos como esses: Se no sculo XXI atingimos a transformao do mundo numa aldeia global, atravs dos novos meios de comunicao, nos conseguiremos, seres humanos, mais unidos, uma evoluo tica da civilizao? Redescobriremos o outro e o grande Outro nestes descaminhos de egosmo e alienao? Ou o desprezo, a indiferena e a apatia nos conduziro ao caos? O que fazer com este legado de incrveis avanos tcnicos e cientficos e, ao mesmo tempo, temores, incertezas e desencantos? Se vivermos e denunciamos um mundo hipcrita e vencido pelo medo, resta-nos alguma fora para combat-lo? Como transformar este poder que, em nosso idioma tem as mesmas letras da palavra podre, para um poder-fazer-sentir tico? possvel se indignar, ter compaixo e comoo para alm dos consultrios psicolgicos ou dos confessionrios religiosos onde se purgam resqucios de culpa social? Concordamos com Costa (2004) que alerta para o fato de que...Criticar pontos de estrangulamento da cultura no pedir que ideais cedios ressuscitem, nem apontar com o dedo para utopias salvadoras (p.21), mas acreditamos, como ele, que tambm seja possvel fazer novas observaes onde existem contradies, mudando premissas de raciocnio, enfoques de registro e perspectivas de sentido. Por que aceitar tudo o que est institudo, por mais humilhante e degradante que seja? Por que no tentar as mudanas possveis, trazendo no corao e na mente o esprito diligente da dignidade? Por que no comear por mim, ao invs de tentar mudar o mundo e depois lastimar que sou impotente e nada mais farei? Afinal, somos todos agentes, alm de pacientes; produtores, alm de produtos da sociedade em que vivemos. Como profissional da sade mental tenho argumentos para supor que a grande maioria dos seres humanos no possui vocao suicida nem individual, nem coletivamente. Ou, como nos orienta a psicanlise, eros e thanatos so pulses de vida e morte em oposio 43

constante, vencendo a primeira enquanto a existncia perdura. Como desenvolvemos em outro artigo (Negreiros,2002,b), chamaria, por isso, nossa sociedade contempornea: materialista, individualista, violenta, tecnicista, conformista, alienada, de sociedade da agonia, termo que, em grego tem a conotao de luta pela vida. Isto porque parece representar a agonia de um mundo que est morrendo para que outro nasa sem uma economia injusta, uma violncia descontrolada, um individualismo estril. Neste mundo agnico e incerto quanto possibilidade de dar a luz a um novo e melhor, h a dor de um parto difcil. Esse parto permitir, o nascimento de um mundo novo que seja realmente admirvel em sua complexidade cientfica e tecnolgica e em sua simplicidade de sentimentos solidrios e afetivos. Na prtica, ser preciso pensar seriamente na possibilidade de ser feliz, sem confundir sensaes prazerosas com bem-estar, nem esperar que se construa, magicamente, uma vida boa para si. Agir para tal, levando em considerao a sensibilidade humanitria, o sentido de justia e a responsabilidade. Esta atitude se constituiria na dimenso horizontal da espiritualidade, segundo Moberg&Brusek (1978), a qual se processa nas experincias cotidianas, enquanto a dimenso vertical da espiritualidade visaria Deus. Tal como se prega nas religies, dar ao outro o que gostaramos de receber, desde que no sejamos algozes de ns mesmos, em nossas compulses autodestrutivas. Alis, fazer um exame crtico dirio de nossas falhas e omisses no significa autoflagelo pela culpa. To somente quer dizer parar para meditar sobre nossas aes e tentar deter algumas delas. Por exemplo, nossos impulsos destrutivos movidos pela raiva. Sabemos que as emoes so inevitveis e, de certo modo, incontrolveis, mas sua expresso, no. Da, se agirmos impulsivamente pela raiva, temos o revide, a agresso. Se guardarmos esta emoo, podemos ficar mortificados pelo ressentimento. Se redirecionarmos esta para ns mesmos, 44

estamos diante de uma atitude autodestrutiva. Ento, as nicas possibilidades saudveis estariam no perdo, na aceitao do que no podemos mudar (o comportamento do outro), na sublimao do impulso agressivo para atividades mais construtivas (meditao, esporte, trabalho criativo) e, especialmente, no desenvolvimento da tolerncia (Negreiros , 2002,c.). Realizar pequenas mudanas a cada dia pode ser muito mais eficaz do que semanas e meses inertes, seguidos de tentativas frenticas e vs para realizar transformaes radicais de uma hora para outra. Um pouco de cada vez, mas sempre seguindo adiante, podemos remover os instrumentos de destruio que, de uma maneira mais clara ou velada, com maior ou menor intensidade, estamos utilizando. No sem esforo, mas com boa vontade, podemos afastar nosso egosmo, redescobrindo o valor do outro e a relevncia que ele exerce em nossas vidas. Lembramos, tambm, que focos de resistncias a mudanas individuais e coletivas aparecero. Gomes de Mattos (2001) nos alerta sobre eles quando afirma que espiritualidade a essncia das empresas, as quais precisam enxergar alm do pragmatismo e do lucro. Para este autor, a empresa precisa considerar valores subjetivos, a realizao das pessoas como seres integrais, espirituais. Caso contrrio, no sair da cultura da infelicidade, mesmo que promova um marketing de recreao e de cuidados, atravs de clubes, ambulatrios mdico-odontolgicos, jogos, festinhas de confraternizao, etc. Antes de tudo, preciso ressuscitar o amor social e altrustico. Aquele que une o outro a si prprio na condio de seu semelhante na dor e na alegria. Aquele que promove o cuidado - desvelo, solicitude, diligncia, zelo (Boff, 1999). No basta denunciar e lamentar a nossa sociedade, como se dela no fizssemos parte atitude que parece nos colocar acima do bem e do mal. A desconstruo e a reconstruo sero um trabalho de garimpo e

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de persistncia, nas frestas do possvel. Para Arendt (1988) este sentimento amoroso que chama de compaixo unifica os homens em torno de um projeto social. Enfim, sem o amor-compaixo como valor principal, a velocidade da comunicao e a sofisticao do conhecimento, s serviro para que se anunciem, de forma glamourosa, a dizimao de pessoas, grupos, naes; ou novas drogas lcitas ou ilcitas para se atingir rapidamente o prazer, suprir a ansiedade e a fome crescentes. Retomando Boff (1999, p.151): Os sbios de todos os tempos sempre pregaram: sem o cultivo desse espao espiritual, o ser humano se sentir infeliz e doente e se descobrir um errante sedento em busca de uma fonte que no se encontra em lugar nenhum; mas se acolher o esprito e Aquele que o habita, se encher de luz, de serenidade e de uma imarcescvel felicidade. Para concluir, como nos lembra Freud (1933), nada ser descoberto pelos cientistas que o artista j no tenha intudo... Por isso deixo o recado do poeta Carlos Drummond de Andrade. Esses versos retratam o que aqui pretendi registrar, a fim de tentar dar um rumo arrumar - minhas inquietaes como protagonista - agente e paciente - das incrveis transformaes dos tempos em que vivemos.

O homem, as viagens O homem, bicho da terra to pequeno chateia-se na Terra, lugar de muita misria e pouca diverso faz um foguete, uma cpsula, um mdulo toca para Lua desce cauteloso na Lua civiliza a Lua coloniza a Lua

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humaniza a Lua Lua humanizada: to igual a Terra, O homem chateia-se na Lua Vamos para Marte ordena a suas mquinas Elas obedecem, o homem desce em Marte Pisa em Marte Experimenta Coloniza Civiliza Marte com engenho e arte. Marte humanizado, que lugar quadrado Vamos a outra parte? Claro, diz o engenho, Sofisticado e dcil. Vamos a Vnus? O homem pe o p em Vnus V o visto isto? Idem Idem Idem O homem funde a cuca se no for a Jpiter Proclamar justia junto com injustia Repetir a fossa Repetir o inquieto Repetitrio Outros planetas restam para outras colnias O espao todo vira Terra a- terra O homem chega ao sol ou d uma volta

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S para te ver? No v que ele inventa Roupa insidervel de viver no Sol. Pe o p: Mas que chato o Sol, falso touro espanhol domado. Restam outros sistemas fora do solar a colonizar Ao acabarem todos S resta ao homem (estar equipado ?) a dificlima dangerosssima viagem de si a si mesmo: por o p no cho do seu corao experimentar colonizar civilizar humanizar o homem descobrindo em suas prprias inexploradas entranhas a perene, insuspeita alegria de conviver. (Drumond de Andrade).

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O Desejo de Deus e o Murmrio do Corao Olga Regina Frugoli Sodr2

Impulso, desejo e chamado de Deus Ao longo da histria e de diferentes formas, vem o ser humano buscando algo que o transcende, e fazendo referncia a uma ordem espiritual ou divina. Algumas pessoas experimentam, desde a infncia, um impulso para Deus. Esse impulso pode se transformar num desejo3 do divino, do qual falam alguns mitos4. No judasmo e posteriormente no cristianismo, esse desejo se exprime como um desejo de Deus. Este diz respeito ao desejo ardente do Sumo Bem e ao gozo espiritual, ao arrebatamento, enlevo e encanto experimentado nessa relao. Ainda criana, senti de forma muito forte este impulso, que se revelou mais tarde como um intenso desejo de Deus. Quando estava no primeiro ano escolar, num colgio particular no religioso, foi me oferecida possibilidade de fazer a primeira comunho. No era obrigatrio: era como um chamado, ao qual nem todas as crianas responderam. Foi um dos momentos no qual senti claramente esse impulso para Deus. Vejo-me ainda pequena, querendo muito aquela experincia e insistindo para poder realiz-la. No sei porque queria tanto, mas me lembro perfeitamente que o desejo era intenso e me levou, embora uma criana dcil e introvertida, a ir contra a orientao da minha famlia. Meus pais me explicaram que eu j fora batizada, e

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Doutora em filosofia (Sorbonne - Frana) e Psicologia (PUC-Rio).

O desejo implica uma adeso ao impulso atravs do querer. Ele se distingue da simples inclinao e da necessidade, nos quais se observa apenas uma tendncia ou uma tenso interna em busca de realizao ou de satisfao. O desejo aproxima-se mais da idia de aspirao ou de voto, quando estes assumem a conotao de um desejo ntimo e ardente. Ultrapassa, no entanto, o nvel do querer voluntrio, na medida em que se enraza em impulsos muitas vezes inconscientes, que escapam vontade da prpria pessoa, a uma deciso ou escolha refletida e deliberada. O carter ardente do desejo e sua relao com o gozo e a atrao revelam a sua conotao ertica. Pode assumir a forma da cobia e da concupiscncia. Esta, porm, corresponde ao desejo intenso de bens e gozos materiais. Existe, no entanto, o desejo at mais intenso e ardente do Bem Supremo e dos gozos espirituais. 4 Entre eles o de Eros e o de caro.

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que a comunho no era necessria. Procuraram em vo me dissuadir. Continuei insistindo de um modo que no era habitual em mim. Minha me ficou surpresa com o meu empenho, achou at graa dele e acabou concordando. A ecloso desse impulso germinou atravs do ensino religioso, mas brotou do meu corao de uma forma intensa que nada tinha a ver com o meio escolar ou familiar. Esse impulso gerou uma intensa experincia espiritual infantil, revelando em mim a tendncia humana para a busca do divino. Em outras ocasies da vida, este impulso voltaria a se manifestar e me levaria a uma busca espiritual por diferentes caminhos, cada vez mais independentemente do contexto intelectual no qual fui formada e ao qual continuei integrada. Anos mais tarde, ao estudar a filosofia e a espiritualidade indiana (Sodr, 1985 e 1989)5, interessei-me por uma teoria do impulso primordial da conscincia para o divino6. Essa teoria se refere a um desejo livre e criativo. Nele no h ainda o apego a um objeto, mas apenas um impulso de vida, de criao e de amor, que nasce do mago do ser. Os mestres dessa corrente filosfica e espiritual distinguem esse desejo daqueles suscitados pelos diferentes objetos que nos cercam. Situam esse desejo na raiz do impulso e em relao ao divino, pois nesse nvel chegam a um estado de repouso no ser, de grande liberdade, satisfao e criatividade. Em geral, a reflexo sobre o desejo relacionada pela filosofia e pela psicologia da ioga ao desejo de objetos (raga) e fantasia do mundo (Maya) 7. No se aprofunda, neste caso, a relao do desejo com o divino.

SODR, O. (1985) La Nature humaine et Lnergie Consciente, Paris - Sorbonne, tese de doutorado em filosofia ; SODR, O. (1989) CIDVILASA, o Jogo da Energia Divina Teoria e Experincia do Eu: O Ator a Fantasia e seus Personagens, Rio de Janeiro, PUC - Rio, tese de mestrado em psicologia clnica. 6 Trata-se de uma teoria apresentada nos textos clssicos da corrente filosfica e mstica que ficou conhecida como o Xivaismo da Caxemira, e se desenvolveu nesta regio do norte da ndia entre os sculos IX e XII, e cuja tradio oral remonta ao sculo V a.C. 7 No nvel humano, o a conscincia obscurecida pelo poder da fantasia (Maya), que a base de construo do eu imaginrio (ahamkara) e da identificao com as diferentes significaes, pensamentos, emoes, impulsos e sentimentos. o poder da fantasia (Maya) que produz as diferentes formas imaginrias que nos enredam, criando a experincia ilusria do mundo atravs do funcionamento do psiquismo e da linguagem.

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Atravs da concepo da fantasia (Maya), critica-se a dimenso ilusria do desejo de objetos, na medida em que este escraviza o impulso humano e leva as pessoas a uma busca incessante e infrutfera de satisfao atravs da aquisio de objetos. O desejo tornase, ento, uma fonte de sofrimento e aprisionamento do ser humano, que no tem um contato com a fonte divina de onde brota o impulso da vida. por esta razo que a ioga procura libertar o impulso dos apegos, e ensina a ultrapassar o desejo dos objetos (raga). A liberao espiritual , ento, associada eliminao dos desejos. Reconhece-se, no entanto, a importncia fundamental do desejo de liberao (mummuktaswa), que corresponde a um desejo de aceder ao divino e a um estado de conscincia no qual o ser humano torna-se livre e recobra toda sua fora e capacidade de criao. Alerta-se, portanto, para o perigo do poder imaginrio de Maya em funo de sua capacidade de encobrir, enganar e aprisionar a mente. A busca humana de satisfao atravs dos objetos pe, no entanto, em evidncia que o desejo almeja a um estado de felicidade, e que este no pode ser satisfeito por nenhum objeto. Estes fornecem uma satisfao passageira, o que provoca uma corrida incessante atrs de novos objetos. Quando se aprofunda o conhecimento da dinmica do desejo, pode-se, entretanto, perceber um outro tipo de satisfao, fora e criatividade nos momentos em que o impulso livre, no est condicionado e est em contato com sua fonte divina. Torna-se, portanto, fundamental no apenas liberar o impulso e mostrar a importncia do desejo. fundamental tambm descobrir a sua fonte atravs de um processo de desenvolvimento espiritual, que descrito como uma ascenso. Esta freqentemente associada aos smbolos da montanha, da aspiral ou da escada. Foi nesse caminho que fui aprendendo a lidar com meus impulsos e descobrindo a importncia, o sentido e a grandeza do desejo humano.

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Meu retorno vida espiritual, aps muitos anos de afastamento e recobrimento do impulso espiritual pelo materialismo, ocorreu por ocasio de minha primeira visita Terra Santa. Vivia, ento, na Frana e trabalhava na UNESCO e num Laboratrio de Psicologia Social. Fui como turista, pois desejava ter a experincia de um kibutz. Ao entardecer, tomei um pequeno caminho que levaria nosso grupo para a regio da Galilia, no sudoeste de Nazar, onde este estava instalado. Ao entrar no caminho, respirei o ar da noite que chegava e senti o cheiro da terra. Uma idia estonteante tomou conta de mim: os ps de Deus haviam pisado naquela terra! Senti-me tomada por uma profunda e estranha emoo. Precisei me segurar para no ceder ao impulso de saltar para beijar aquele cho. No me recordo o nome do kibutz, mas me lembro da agradvel convivncia da vida comunitria, da alegria e fartura das saladas frescas que preparvamos nas grandes mesas do refeitrio coletivo. Gostava de trabalhar no campo, colhendo algodo ou girassis. Nos intervalos, costumvamos sentar num gramado verde, perto da plantao para descansar, e meus olhos repousavam numa montanha, que dominava serenamente o planalto da Galilia. A montanha atraa meu olhar, e seu nome ficou registrado na minha memria: Tabor. Nada sabia, contudo, naquela poca, sobre os acontecimentos bblicos nela ocorridos. Certa noite, tive um sonho que muito me impressionou. Nele, via-me sentada no gramado, contemplando o monte Tabor, quando ouvi um som que parecia sair do azul do cu. Quando o som se tornou mais ntido, identifiquei-o como a voz de Deus me chamando do alto da montanha. Ao comear a escalada, meus ps tocaram a terra. De longe, esta parecia calcria, mas em contato com ela percebi que dela brotava uma luz intensa que fazia com que os pedregulhos se transformassem em diamantes. A terra era iluminada por uma luz radiosa que jorrava de dentro dela. A montanha transfigurou-se e uma profunda nostalgia se apoderou do meu corao diante da beleza e da fora daquela rocha luminosa. Ouvi, ento, a voz 54

de Deus, que me dizia: No precisa ficar triste, esta terra tambm sua.Voc pode peg-la. Enchi dois baldes com terra e pedras brilhantes. Carregando um em cada mo, continuei a subida imersa na luminosidade da montanha.