Afinacao Da Arte de Chutar Tampinhas

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    Joo Antnio

    Afinao da arte de chutar tampinhas

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    Afinao da arte de chutar tampinhas

    Hoje meio barrigudo.Mas j fui moleque muito bom centromdio. Pelo menos Biluca assegurava

    que eu era. E nunca peguei cerca nos quatro anos de U.M.P.A. queria dizer:

    Unio dos Moos de Presidente Altino. A voz de Biluca m andava, porque eratcnico e dono das cam isas. Se era tcnico de verdade, no sei. Sei que ascamisas eram suas, e sem elas no havia j ogo. Mas a famlia se mudou, o ginsiochegou e a presuno de bom centromdio foi-se embora.

    Na Mooca, agora, eu via os moleques do Caiovs F.C. Papai vivia m eapertando na escola. Era o nico jeito, porque no estudaria de outro. Eu via osmoleques e no podia jogar.

    boca da noite os grilos e os sapos j cantavam nas poas do campo da

    U.M.P.A. Depois da j anta, cada um vinha do seu lado e a gente se juntava nasede. Ento, folgados, fumvam os vontade e contvam os coisas. Havia certo arde homem na gente enquanto fumvam os. Srios nas calas curtas, o dedo

    batendo no cigarro, a cinza caindo no cho. Contvamos coisas, vantagens. Pois . Eu bem podia ter quebrado aquele cara. Eu que no quis.No que Biluca tivesse dio do cara, no tinha raiva de ningum, longe de ter

    raiva. que falava de um jogo que perdramos.Ali pelas oito horas a vontade j crescia. Os mais velhos iam aj eitando as

    coisas, Biluca no seu cavaquinho, eu repicava na frigideira. Havia um surdo queum sujeito da Fora Pblica tocava (ele tambm era bom no pandeiro). As vozesse chegavam, se uniam e a gente batucava com vontade.

    Naquelas noites da U.M.P.A., na pequena sede que era s um quartinho,alugado com dificuldades, a mensalidade pingada de cada um Naquelas noitesme surgia uma tristeza leve, uma ternura, um no sei qu, como talvez dissesse

    oel Eu estava ali, em grupo, mas por dentro estava era sozinho, me isolava detudo. Era um sentimento novo que me pegava, me embalava. Eu nunca disse aningum, que no me parecia coisa mscula, dura, de homem. No os costumes

    que a turma queria. Mas eu moleque gostava, era como se uma pessoa muito boaestivesse comigo, me acarinhando. As letras dos grandes sambas falavam dedores que eu apenas imaginava, mas deixava-me embalar, sentia.

    Aos ps da santa cruzVoc se ajoelhou,

    E em nome de JesusUm grande amor voc jurou

    E depois, s depois, Noel nas noites de vrzea. Pareceu-me engraado que

    uma msica tivesse dono, fosse feita por uma pessoa. Necessrio tambm que eudiga a primeira atrao pelo sambista me nasceu dum fato obscuro. Para

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    Porque, segundo ele, os garotos tinham irrefrevel aptido para lutas. Deacordo com o homem, eram gnios em tudo o que faziam.

    Para mim, o comandante era bom. Eu no tinha queixa. Favores, dispensas, ohomem me dava um fio de liberdade. Porm, um defeito sem rem dio. Eununca rasguei o verbo. Seno, cafua. O mal maior do capito era no reconhecera verdadeira vocao dos garotos plantar batatas Na horta do pai, ou onde

    bem entendessem. Para j iu-j tsu, garanto que no haviam nascido.

    H a lgum tempo venho afinando certa m ania. Nos comeos chutava tudo o queachava. A vontade era chutar. Um pedao de papel, uma ponta de cigarro, outro

    pedao de papel. Qualquer mancha na calada m e fazia vir trabalhando oarremesso com os ps. Depois no eram mais papis, rolhas, caixas de fsforos.

    o sei quando comeou em mim o gosto sutil. Somente sei que comeou. E vou

    tratando de trabalh-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza queprocuro tirar dos porm enores mais corriqueiros da m inha arte se afinando.Chutar tampinhas que encontro no caminho. s ver tampinha. Posso

    diferenciar ao longe que tampinha aquela ou aquela outra. Qual a m arca (seestiver de cortia para baixo) e qual a fora que devo empregar no chute. Douuma gingada, e quase j controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo,os ps crescendo para a tampinha, no quero chute vagabundo. Errei muitos,ainda erro. plenamente aceitvel a ideia de que para acertar, necessrio

    pequenas erradas. Mas muito desagradvel, o entusiasmo desaparecer antes do

    chute. Sem graa.Meu irmo, tipo srio, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso. Meio

    burgus, metido a sensato. Noivo Voc um largado. Onde se viu essa, agora! que eu, s vezes, interrompo conversas na calada para os meus chutes.S um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um

    chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhasso desiguais. Para algumas que vm nas garrafas de gua mineral, reservo

    carinho. Cuidado particular, jeito. doce chut-las bem baixo, para subirem edemorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do p, atingindo de chapa.Sobem. No demoram muito, que ainda no sou um grande chutador. Mascapricho, porque elas merecem.

    Minhas tampinhas Umas belezas.Descobri com encanto que meus sapatos de borracha se prestam melhor para

    apurar minha tarefa. Doce e difcil tarefa de chutar tampinhas. Realmente. Atam pinha parece nem sentir. Vai at o outro lado da rua com alguma facilidade.Est claro que na razo direta da propulso dos chutes. A borracha apenas toca ocimento, a tampinha desliza, vai embora. Necessrio equilibrar a fora dos ps.

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    Mas quem se entrega a criar vive descobrindo. Descobri o muito gostosoplac-plac dos meus sapatos de saltos de couro, nas tardes e nas madrugadasque varo, zanzando, devagar. Esta minha cidade a que minha vila pertence,guarda homens e mulheres que, pressa, correm para viver, pra baixo e pracima, semanas bravas. Sbados tarde e domingos inteirinhos cidade sedespovoa. Todos correm para os lados, para os longes da cidade. So horas,

    ento, do meu plac-plac. Fica outra a m inha cidade! No posso falar dos meussapatos de saltos de couro Nas minhas andanas que sei! S eles constatam,em solido, que somente h crianas, h pssaros e h rvores pelas tardes desbados e domingos, nesta minha cidade.

    Agora me lembro minhas favoritas vm acima do gargalo das garrafas degua mineral marca Prata. Em verm elho e branco. A cortia coberta por umaespcie de papel imperm evel e branco e brilhante. O que m ais as valoriza acortia forrada. Harmoniosas e originais. Muito jeitosas.

    Para elas diligencio firmeza, apuro. s vezes, encontrando-as porcircunstncia na rua, eu as guardo no bolso do palet, para aproveit-las maistarde. Porque s os sapatos de borracha so dignos de minhas favoritas. E mesmocalando-os, fico estudando os chutes. Necessrio valoriz-las como merecem, irtrabalhando os pontaps com cautela, at que a borracha se aproxime de leve eatinja a tampinha e a faa subir, voar, pequenas distncias atravessando na noite.S o barulho da borracha no chute e depois o barulho da tampinha aterrisando. Eum depois do outro, os dois se procuram, os dois se encontram, se juntam os dois,se prendem, se integram, amorosamente. preciso sentir a beleza de uma

    tam pinha na noite, estirada na calada. Sem o qu, impossvel entender meutrabalho.

    s tampinhas comuns no ligo. Ordinrias, aparecem toa, toa. Vadias dacalada. No as abandono, porm. Sirvo-me delas para experimentos, estadorude dos meus chutes em potencial. Porque desenvolvo variaes, aprendodescobrindo chutes, chaleiras, usando o calcanhar, os lados dos ps. Com odireito, com o esquerdo, meio de lado Tentativas.

    Consigo, por exemplo, emboc-las nos bueiros da rua. Se impossvel

    trabalhar na calada, passo para o asfalto e f ico a chutar. Muito bom pelamadrugada, quando os carros so poucos e a luz dos postes se atira sobre astampinhas no asfalto.

    Muito injusto esquecer-me de que as de cerveja preta so interessantes.Igualmente. No posso desprez-las. Elas com seus smbolos no meio. Umacabea de bovino ou muar. Tambm me dedico com simpatia s de cervej a

    preta. Provavelmente porque me lembram seres, almoos improvisados,trechos duros da vida.

    Havia no quartel uma caixa delas. Reservadas para sargentos do dia. Cada umtinha direito a uma. Na geladeira do aprovisionamento sempre havia. Difcil

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    cavar cervej a preta. O comandante me encarregou de tomar conta doaprovisionamento, aj udando o sargento Cunha. Pagar o mantimento ao pessoaldo rancho. Boa vida. Meu lugar bem que era outro, l na secretaria.Datilografando, esquentando a cabea com nmeros e preos na mquina decalcular. Mas eu ensinava jiu-jtsu aos filhos do comandante, era peixe Ascervej as pretas eram inacessveis. Todos queriam. Os homens viviam de olho

    naquilo. Se sumir, desconta-se na folha de pagam ento.Na minha folha de pagam ento, claro. Ordem de no sei quem .Eu no era to trouxa nem to caxias. Guiava, saa com o cam inho,

    apareciam viraes. Voc no praa? Se vira.Eu me defendia de acordo. Pois um dia, o sargento Cunha esqueceu-se de

    uma caixa no relatrio. Ficavam cpias do relatrio dentro do armrio. Espi-las.

    Era a primeira coisa que eu fazia no comeo de cada ms. s vezes, sobravaalguma coisa que faltava no relatrio Eu me ria. O sargento no santo.E quem santo?Disputa brava, ento. Porque o homem percebia as minhas olhadelas no

    relatrio. Um tapeando o outro, se escondendo. Faca de dois gumes. Fulano, voc no viu uma lata de marmelada? No senhor. Este ms no veio marmelada. Ah

    Agora, com as cervej as pretas foi sopa. Os sacos de cebolas, que fui buscar subsistncia, eram ralos e muito fceis de costurar-se. Um a canja. Fiz o contrrioem dois deles, escondi doze garrafas. Pequeninas, sumidas entre cebolas, quem

    poderia dar pela coisa? Espumavam pretas, gostosas. Ia bebericando uma hoj e,outra amanh. E dando sumio nas vazias.

    Voc no praa? Se vira.

    Eu me defendia.Memria triste um dia m e pilharam jogando vinte e um no picadeiro, onde

    se guardavam caminhes e outras viaturas. Trs homens do rancho e eu noquente do jogo. Cafua. Perfeitamente naquele dia houve uma inflamao numdente do comandante

    Cambada de folgados!Cadeia. No perdoou ningum.

    Arranjei umas escritas noite, para defender uns cobres extras. O em prego d

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    pouco. Perto de casa, um escritrio de contabilidade. Meu irmo: , j era hora de tomar j uzo.Meu irmo s pensa em seriedade.C no bairro minha fama andava pssima. Aluado, farrista, uma poro de

    coisas que sou e que no sou. Depois que arrumei ocupao noite, h senhorasmes de famlia que j m e cumprimentam. s vezes, aparecem nos rostos

    sorrisos de confiana. Acham, sem dvida, que estou melhorando. Bom rapaz. Bom rapaz.Como se isto estivesse m e interessandoFao sero, fico at tarde. Nmeros, carimbos, coisas chatas. Dez, onze horas.

    De quando em vez levo cervej a preta e levo Huxley . (Li duas vezes oContrapontoe leio sempre.) No parei na vrzea da U.M.P.A, nas lies dedistribuio de passes e centros que Biluca me dava.

    Deixando o escritrio. A m adrugada costuma enegrecer tudo. Casas e

    homens. S as minhas tampinhas reluzem na calada. Contrapontodebaixo deum brao. Garrafa vazia de cerveja preta no outro. Assobiando, mos nos bolsos.

    Mame costuma dizer que eu no sou dos mais feios. Bem veio morar cno bairro uma professorinha solteira, muito chata. Rapazes lhe do em cima porcausa de um dote, ou de coisa parecida. No sei. A vida dos outros nunca meinteressou. Nem a dela, embora viva me provocando. Quer casamento, comcerteza. Olho para a mulher, para os modos, para o anel Quer casamento. Euno.

    Dias desses, no lotao. A tal estava a meu lado querendo prosa. Tentava,uma olhadela, nos cantos os olhos se mexendo. Um enorme anel de grau nodedo. Ostentao boba, moa como qualquer outra. Igualzinha s outras, semdiferena. E eu me casar com um troo daquele? Parece-me que procuravaconversa, por causa dum Huxley que viu repousando nos meus joelhos. Eu,Huxley e tampinhas somos coincidncias. Que se encontraram e que se do

    bem . Perguntou o que eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras,delicada, talvez no querendo ofender o silncio em que eu me fechava. Quaserespondi

    Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel comalguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu j eito mesmo, chutar tam pinhas da rua. No conheo chutador mais fino.

    Mas no sei. A voz mulata no disco me fala de coisas sutis e corriqueiras. Devez em quando um amor que morre sem recado, sem bilhete. Cime, queixa.Sutis e corriqueiras. Ou a cadncia dos versos que exaltam um cu cinzento, umaluva, um carro de praa Se ouo um samba de Noel Muito difcil dizer, porexemplo, o que mais bonito o feitio de orao ou as minhas tampinhas.

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    Cosac Naify, 2013

    Este conto integra o livro Contos reunidos, coletnea de contos de Joo Antnio.

    Coordenao editorialMilton OhataevisoMaria Fernanda Alvares e Thiago Lins

    daptao e coordenao digitalAntonio Herm ida

    1 edio eletrnica, 2013

    esta edio, respeitou-se o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

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