Afinal de contas, quem é estranho?

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nem todos acham tatuagens e modificações corporais algo bonito. então vamos até a reunião deles pensar sobre o assunto.

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afinal de contas, quem é estranho?

nem todos acham tatuagens e modificações corporais algo bonito. então vamos até a reunião deles pensar

sobre o assunto

por guilherme mendes

fotos de júlia abrantes

me recusei a acreditar que a ana tinha a minha idade. me recusei - e ainda recuso - pois, aos 19 anos e outros tantos meses, não consigo entender como uma contemporânea minha conseguia fazer aquilo. estava fascinado ao mesmo tempo que lutava pra acreditar que ela não detinha algum super-poder. pouco depois de ter entrado no madame satã e visto aquela galera se trombando num ambiente escuro ao som de música industrial, eu a vi pela primeira vez: estática, deitada numa maca, vestindo nada menos que um top rendado e uma saia florida. A face estava vendada por uma faixa. ela parecia a própria justiça, exceto por duas coisinhas: uma era a que ela não tinha nada a ver com aquela estátua da justiça em brasilia. a outra eram os quatro ganchos, perfurados na sua pele, que a ergueriam em instantes. todos apreensivos. os ganchos que furam a perna e a coxa sangram um pouco. os que furam a barriga em dois pontos estão levemente inchados. dos que veem a cena, poucos viram a cara quando o carrasco - na verdade um funcionário do estúdio de tatuagem que promovia a festa - começou a puxar a corda, que passava pelo teto da estrutura, descia numa espécie de cabide e passava em algo como uma cama-de-gato com barbantes para erguê-la conforme as regras da mecânica. ela, magra, com uns 60% do corpo tatuado e com um altíssimo salto. após alcançar uns 15 centímetros de voo, a maca foi retirada, e então ela estava a 1,50 metro do chão, girando ao sabor dos quatro ganchos de metal que deixavam sua pele esticada como um chiclete. a cabeça e a perna eram sustentadas por panos e barbantes pois, sendo uma suspensão lateral, elas fariam força para que em instantes a pele dela se rasgasse. quando ela está prestes a descer, a venda é retirada. os olhos dela estão vítreos, mas serenos. a dor que abate alguns homens ao meu lado, quase enojados com a cena, não parece se repetir na tez de ana. ela não esboça movimentos - mesmo com ganchos há mais de duas horas e suspensa há pelo menos quinze minutos. demorou, mas eu notei, finalmente, que ela estava em transe. o que estava tocando não a incomodava. não a incomodava se estivesse chovendo forte ou não (e estava), ou o papa vindo ou alguma outra coisa. para minha total inveja, aquela mineira de betim com uma pequena âncora tatuada ao lado do olho esquerdo estava desligada. ou ligada demais no presente. * a frrrkcon é uma festa que uniu, sob o mesmo teto, algumas das maiores personalidades do ramo da tatuagem e das modificações corporais. a fotógrafa da oxo tinha um piercing. sua amiga duas tatuagens e um amigo próximo parou nos 6 milímetros do alargador. eu, com quatro tatuagens, me juntei no quarteto que parecia estar deslocado no espaço-tempo, "normal" demais para a ocasiao. Ali, a nossa frente, kuroi tem os globos oculares tatuados de preto. ana tinha uma âncora de silicone por debaixo da pele da mão. marilyn, de curitiba, mais de 30 tatatuagens e um alargador de 8 milímetros abaixo do lábio. mas, afinal de contas, que raios é "normal"? a discussão só aumentou – e ganhou contornos até extremistas - quando a folha de são paulo, em sua revista dominical, destacou algumas páginas para falar sobre alguns tatuadores e suas "marcas", porém o tratamento foi tão alheio que gerou críticas tanto da sociedade quanto dos próprios entrevistados. luciano iritsu, um dos mais respeitados na categoria e reconhecido até

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mesmo internacionalmente, foi entrevistado. e não gostou do que viu. quando eu encontrei com ele, dias depois, no seu estúdio em pinheiros, preferiu não comentar o caso. mariana queiroz, tatuadora paulistana que estava na capa, bem abaixo do logo do jornal, foi a que mais sofreu críticas. mas mariana, sentada num dos bancos da balada, se divertindo, literalmente não dava a mínima pra isso. "a cobertura do repórter foi escrota demais", disse ali entre os estouros do flash, "mas eu não me importo com isso mesmo". o assédio aumentou, isso ela garante. afinal, provavelmente não era fácil andar pelas ruas com os olhos tatuados em escarlate e com um "devil's reject" tatuado na testa e um implante de soco-inglês no punho antes de ser capa do principal jornal do país. imagine agora. mesmo assim as opiniões são unânimes: ela é bela pelas fotos. e mais bela pessoalmente. e notoriamente feliz com seu corpo mais do que 95% das mulheres, que negociariam qualquer coisa por um peito maior, um pneu a menos. a tatuagem, que alguns descreveram durante a semana como um distúrbio, um sinal de desunião entre famílias, nada mais é do que a forma para se expressar que a mariana, a ana e até eu - apenas quatro vezes - escolhi. pessoas podem se expressar pelo teatro, pela fé desmedida, com uma tela e aquarela na mão ou então produzindo desenhos no próprio corpo. apenas a última é uma aberração inominável aos olhos da sociedade. * horas mais cedo, tive uma treta com um pastor evangélico. indo de trem para o centro da cidade, tive de aguentar, por tortuosos minutos, um senhor de terno, gravata e um livro preto - sempre o mesmo polêmico livro preto na mão - que insistia em dizer que mulheres não podiam usar calça e homens não podiam usar saia, e que batismo válido era apenas o da (não vamos citar o nome da igreja). ao me ver sentado, minha tatuagem no antebraço e as duas da perna, reforçou que "o filho de deus não tem marcas na sua pele, e que tatuagens são o sinal do capeta". um clima simpático etre nós durou alguns segundos. não adianta mais ser bom com as pessoas. caridades são inúteis. cuidar dos parentes mais velhos? ajudar a tiazinha a atravessar a rua? doar sua fortuna? esquece. a tatuagem tirou todas as minhas chances de ir pro céu, e só resta aquela caverna vermelha onde um ser vermelhinho do rabo pegando fogo força as pessoas assistem em looping o programa do joão kleber. a mim, restou ficar quieto. pior do que argumentar contra o extremismo do pastor é ter de assimilar, com duras penas, que ele representa uma parcela ainda alta da população. a indignação pelos rabiscos provém de gerações anteriores, de vós e vôs que nunca tiveram um contato real com esse mundo - a tatuagem, os piercings e até mesmo a suspensão existe há, pelo menos, cinco milênios em outras regiões. as tatuagens conhecidas como “maori” existem na polinésia francesa há tempos imemoriais . o primeiro estúdio no brasil, no entanto, nasceu apenas em 1959, em santos, comandado por um dinamarquês. como o estúdio ficava próximo ao porto, e tatuagem era coisa pra macho, o cenário já estava pronto: coisa de marinheiro, vagabundo, desocupado. então não é de se surpreender que tanta gente tenha receio, ou entenda, ainda, que qualquer tatuagem é coisa de presidiário ou desocupado. não é de surpreender que tantas pessoas que gostem do procedimento, ou do tétrico soar da maquininha, tenham que se esconder debaixo de roupas sociais, ou responder constrangido que "ah, não tenho tatuagens não, e quero ajudar a empresa como puder". a ojeriza da vovó e do vovô passa pro papai e pra mamãe. e, para nós da geração indigo florescente, ainda é difícil quebrar tais barreiras. * de volta ao madame, depois que a "justiça" desceu e tirou seus ganchos, sobraram apenas uns simpáticos esparadrapos na pele, que parecia não ter inchado. fiquei ainda mais incrédulo quando ela me disse que não sentiu nada, que estava tranquila. que não sentiu dor. que ficou quase duas

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horas com os ganchos desafiando a elasticidade da sua pele e aida sim estava num estado de felicidade incrível - o sorriso na cara era inegável. para fazer a tal suspensão, me informou um dos organizadores, era necessário apenas vontade e boa saúde corporal (e financeira, já que o procedimento ali custava R$300,00). se não fosse fim de mês- e amigos que me tentassem desencorajar - eu provavelmente me sentiria seguro em me deixar ali, suspenso por cabos e ganchos, como uma fantasiosa e gigante peça de carne num açougue fictício. mais do que o ato de erguer uma alma de maneira não muito ortodoxa, a body suspension expõe a aura e a alma escondida dentro do corpo, numa mistura de performance e transcendência que torna o espetáculo ainda mais belo e impressionante. pelo menos assim me explicou o iritsu. luciano iritsu, 34 - que há 15 anos trabalha na área - é um cidadão como qualquer um: dono de um cpf e de preocupações mundanas como qualquer cidadão. no estúdio que leva seu nome, numa charmosa casa em pinheiros, ele tentou explicar para mim, um rapaz com um cérebro de macaco que nunca conseguiu meditar direito, o que é esvaziar sua mente a partir de uma suspensão - que ele pratica desde 2009. "Eu praticava, no começo, só pela suspensão em si", afirma, "mas depois eu e a equipe começamos a incorporporar elementos e hoje é uma modificação mais mental e psicológica do que mental". quando citei a expressão serena na tez de cada um daqueles que estavam suspensos, ele concordou. "a suspension é bem parecida com a meditação. você esvazia a mente." ah tá. agora faz sentido. tudo o que era mundando, então, pareceu ser empacotado e jogado janela afora quando ele entrou no palco, 3h44 da manhã e sentou-se numa cadeira de madeira velha. o joy division que tocava parou (graças a deus). há ganchos na parte da frente de suas coxas, nos braços e na parte superior das costas. ao lado, um senhor toca uma bateria composta por tambores e gongos. a partir da sinergia entre os dois - os tambores que trabalham o reiki e o ritmo da performance e vice-versa, ambos se levantam e, no ato que mais impressionou a todos , luciano entrega-se a seu ajudante, que segura seus ganchos. e iristu se solta, se joga em direção ao chão, num rápido teste. há uns gritos de "ahhhhh" enquanto as suas costas agora mostram um rio vermelho. após ser amarrado e içado com rapidez, começa a performance, que mais se assemelha a um ritual: em nenhum momento ele parece estar acordado, ou no controle de seu corpo. seus olhos estão fechados, a face está incorruptível. ele não grita, não geme, não encara aos olhos incrédulos meu e dos fotógrafos prostados ali em frente. não é a intenção dele. "mesmo que seja com público, é apenas pra mim". ele apenas parece não estar ali. o tambor bate cada vez mais e mais e mais alto. mais e mais e mais rápido. os seis fios que o suspendem são cortados dramaticamente pelo seu assistente até sobrarem apenas os dois das costas. ele parece estar com a pele no limite. aos olhos comuns, a pele vai se soltar. eu senti as minha própria pele se rasgando em feridas, ouvi um "wrap" psicológico, algo como um fecho de zíper, nas costas, coxas, uma coisa medonha. fechar os olhos não ia adiantar muita coisa. quando abro os olhos, iritsu está com os pés na cara de alguém próximo a mim: ele voa se debatendo, como que em constante agonia, os furos das costas agora já esticadíssimos, e ele quase que como tentando provocar sua própria queda dali de cima. não era uma cena para qualquer estômago. mas ele desce, se desata dos nós e, tremendo pelos litros de adrenalina nas veias, rasga a camisa do seu ajudante. dali se revelam dois ganchos que também o suspenderão pelas costas. enquanto este - thiago, um professor da rede pública de ensino - se suspende de maneira elástica e quase circense, iritsu observa no canto, como o monge que acorda do nirvana. *

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ok. tudo muito bonito. emocionante até. o ato de se suspender é como parte de um ritual que pode provar, ao mesmo tempo, força, vontade, auto-controle. então porque o medo, a rejeição a algo assim é tão alta? afinal de contas, se colocarmos ao pé da letra, manter sua fé a todo custo pode te dar esses mesmos valores. e, ao contrário da religião, o ato de se tatuar ou de modificar o corpo não envolve a interferência ou a manipulação da opinião de outras pessoas. cada um toma a sua decisão e tatua o que quer, baseado em emoções e vontades próprias que, depois, pouco ou nada afetraão a vida de terceiros. sei que é um assunto polêmico e que talvez a classe dos tatuadores não concorde com o teor de tal raciocínio, mas grande parte das privações e opiniões contra a "arte na pele" têm base nas crenças. tal como o pastor xarope que irrompeu no vagão, religiões mais fundamentais não permitem piercings, tatugens ou qualquer coisa que modifique seu produto divino, como se isso automaticamente rompesse seu selo de garantia celestial. são opiniões como estas que culminam em comentários nas páginas da folha, chamando gente como mariana de doente, capeta ou questionando, até, se "ela tem pai ou mãe?? ou nasceu de uma chocadeira?????" enquanto eu espero ela terminar de explicar pra uma cliente, por celular, como fazer uma

compressa, eu vou jogando todas estas teses no chão: a fala é calma, os movimentos até fluidos,

relaxados. alguém como o capeta não seria alguém tranquila como ela, sentada na cadeira da

recepção, um desenho que ela rabiscava tomando parte do notebook. carioca de petrópolis com

um sotaque que não parece carioca, teve a primeira tatuagem aos 14 anos, e começou a trabalhar

com piercings com 16 anos. hoje, com 21, o implante de soco-inglês (colocado em meados de

2012) e os olhos avermelhados (desde o final do ano passado) já não representam mais

problemas, nem mesmo com a família. "minha mãe não gosta. não faria", diz, "mas nunca foram

contra contanto que conseguisse se sustentar". hoje ela chuta que 60% do corpo é coberto por

leões de quatro olhos, frases, caveiras piratas e revólveres. e, mesmo com o turbilhão que tem sido

as últimas semanas desde a publicação com suas fotos na folha, la não parou pra ler os

comentários dos leitores ("doente", "capeta" e "será que tem pai e mãe", apenas algumas),

alegando "não ter paciência". quando alguém da folha ligou perguntando o que tinha achado, disse

que "perdeu uma grande chance de ficar quieta".

com isso o raciocínio é claro: que até hoje não se conhecem casos de pessoas que tenham removidos suas tatuagens ou renegado a seus gostos simplesmente por desaprovação alheia. que, no final das contas, todo o preconceito e opiniões contrárias às modificações corporais se mostraram infundadas, ou mesmo irreais. coisa do capeta? duvido. doente?vagabundos? como, sendo trabalhadores, tendo vidas sociais e sendo felizes como eu e você? não sou eu ou você quem pagam as contas do estúdio, o quase-maço que mariana fuma todo dia. os ganchos de luciano ou os piercings novos de quem quer que seja. eles que vivam suas vidas. e os incomodados que vivam as suas. e vida que segue.