Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

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Cláudia Sofia Santiago Ribeiro Vaz Afinal, quem sou? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar Tese conducente à obtenção do grau de Mestre em Antropologia Cultural Orientador: Professor Doutor Carlos Diogo Moreira Universidade Técnica de Lisboa Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Lisboa, 2001

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Tese conducente à obtenção do grau de Mestre em Antropologia Cultural

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Cláudia Sofia Santiago Ribeiro Vaz

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A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Tese conducente à obtenção do grau de Mestre em

Antropologia Cultural

Orientador: Professor Doutor Carlos Diogo Moreira

Universidade Técnica de Lisboa Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas

Lisboa, 2001

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ÍNDICE

Prólogo

PREFÁCIO ......................................................................................................... 9

1. Tema e Contextualização do Estudo ........................................................ 14

1.1 Tema ................................................................................................... 14

1.2 Objecto de estudo ............................................................................... 18

1.3 Problema e hipótese de pesquisa ....................................................... 25

2. A “Raça” e a Identidade: Construções Sociais da Realidade .................. 27

2.1 O conceito de “Raça” .......................................................................... 27

2.2 O conceito de “Identidade” .................................................................. 31

3. Métodos e Técnicas .................................................................................. 43

3.1 Pesquisa Bibliográfica ......................................................................... 43

3.2 Pesquisa Etnográfica .......................................................................... 45

3.2.1 Fase Exploratória .......................................................................... 47

3.2.2 A Recolha dos Dados ................................................................... 56

3.3 Tratamento Estatístico dos Dados ...................................................... 62

4. Organização do Trabalho ......................................................................... 64

Parte I. Cabo Verde: Uma terra, muitos homens, um destino .......................... 65

Capítulo 1. Cabo Verde: Terra amada, terra madrasta ................................. 66

Capítulo 2. Hora di Bai .................................................................................. 76

Capítulo 3. Os cabo-verdianos em Portugal ................................................. 87

PARTE II. Os Alunos e a Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios ..... 100

Capítulo 4. Caracterização dos alunos ....................................................... 102

Capítulo 5. Uma escola Intercultural? ......................................................... 110

PARTE III. Percepções do “Eu” num Espaço Escolar .................................... 117

Capítulo 6. Origem e Nacionalidade ........................................................... 120

Capítulo 7. "Raça" ...................................................................................... 123

Capítulo 8. Redes de amizade .................................................................... 139

Conclusão: Afinal, quem sou eu? ................................................................... 141

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 144

ANEXOS (outro volume)

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ÍNDICE de FIGURAS, QUADROS e GRÁFICOS

Figuras

Figura 1. Primordialismo ou Instrumentalismo? .......................................................... 40

Figura 2. Identidade cultural cabo-verdiana ................................................................ 68

Figura 3. Percurso migratório ...................................................................................... 77

Figura 4. Modelo de “atracção-repulsão” .................................................................... 78

Figura 5. “Cabo Verde” imaginado (nunca visitado) por um aluno de origem cabo-

verdiana. ........................................................................................................... 122

Figura 6. Autoretrato das alunas T. e D. .................................................................. 124

Figura 7. Árvore genealógica e auto-retrato. ............................................................. 125

Figura 8 Desenho da autoria de D., 10 anos de idade, origem santomense. ............ 129

Figura 9. Desenho da autoria de D., 10 anos de idade, origem cabo-verdiana ......... 130

Figura 10. Desenho da autoria de T. ......................................................................... 131

Figura 11. Desenho da autoria de P., 9 anos de idade, origem cabo-verdiana. ........ 133

Figura 12. Desenho da autoria de S., 8 anos de idade, origem cabo-verdiana ......... 134

Figura 13. Desenhos da autoria de P., 9 anos de idade, origem cabo-verdiana e de L.,

10 anos de idade, angolana (de origem santomense). ...................................... 137

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Quadros

Quadro 1. A imigração entre 1991 e o final de 1998 ................................................... 17

Quadro 2. Categorias apresentadas aos alunos sob a forma lúdica ........................... 57

Quadro 3. Principais movimentos migratórios cabo-verdianos ................................... 84

Quadro 4. Estimativa do número de cabo-verdianos residentes no estrangeiro .......... 85

Quadro 5. Distribuição regional dos cabo-verdianos que residem em Portugal, pelas

NUTS 2 ............................................................................................................... 88

Quadro 6. Os 20 maiores bairros de cabo-verdianos nos distritos de Lisboa e de

Setúbal ................................................................................................................ 90

Quadro 7. População do Bairro de Santa Marta de Corroios por País de origem ........ 92

Quadro 8. Distribuição etária da população portuguesa e da população cabo-verdiana

a residirem Portugal. ........................................................................................... 93

Quadro 9. Situação profissional dos cabo-verdianos com mais de 14 anos ................ 95

Quadro 10. Habilitações escolares da Comunidade Cabo-verdiana residente em

Portugal por grupos etários (%) .......................................................................... 96

Quadro 11. Repartição da população cabo-verdiana por estado civil e sexo .............. 97

Quadro 12. Famílias clássicas, segundo a sua dimensão e pessoas nas famílias ...... 97

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Gráficos

Gráfico 1. Pirâmide etária da população portuguesa e da população cabo- verdiana a

residir em Portugal. ............................................................................................. 94

Gráfico 2. Distribuição dos alunos por sexo e idade ................................................. 104

Gráfico 3. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5

de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97. .................................... 106

Gráfico 4. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5

de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos seus

pais ................................................................................................................... 106

Gráfico 5. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5

de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das suas

mães ................................................................................................................. 107

Gráfico 6. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano

da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a

nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos .................................................... 107

Gráfico 7. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5

de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97. .................................... 108

Gráfico 8. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de

Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos seus

pais. .................................................................................................................. 108

Gráfico 9. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de

Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das suas

mães. ................................................................................................................ 109

Gráfico 10. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º

ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a

nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos .................................................... 109

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Aos meus filhos Diogo e Duarte

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Afinal, quem sou eu?

7

Prólogo

Este trabalho não é de ontem. É um trabalho de hoje, não obstante já ter sido

realizado há algum (pouco) tempo.

Trata de forma original aquilo que somos, não propriamente «o mais fundo de

nós mesmos» (como se no «fundo» de cada pessoa apenas houvesse uma

pertença, uma «verdade profunda», «uma essência»), mas das nossas

trajectórias individuais, das nossas preferências, sensibilidades pessoais,

afinidades, enfim, da nossa vida.

A identidade de qualquer pessoa está constituída por uma infinidade de

elementos que evidentemente não se limitam aos que figuram nos registos

oficiais, ao “documento de identidade”. Elementos constitutivos que se

combinam de forma particular (aí reside a riqueza de cada um, aquilo que faz

que todo o ser humano seja singularmente insubstituível) e incessante: “os

homens são mais filhos do seu tempo do que de seus pais”, dizia Marc Bloch.

A verdade, porém, é que é tremendamente habitual pedir aos nossos

contemporâneos que «afirmem a sua identidade», que resgatem do «fundo» de

si mesmos essa suposta pertença fundamental.

Percebe-se, assim, que os que querem assumir uma identidade mais ampla se

sintam, com frequência, marginalizados.

Esse «exame de identidade» faz-se desde cedo. Logo na primeira infância,

voluntariamente ou não, os próximos modelam-no, conformam-no, inculcam

crenças de família, ritos, atitudes, convenções, língua materna e, claro,

aspirações, temores, preconceitos, rancores junto com sentimentos de

pertença e de não pertença. E logo de seguida, na escola e na rua, produzem

feridas no amor próprio, feridas que estão presentes em cada fase da vida na

atitude para com as pertenças e respectiva hierarquia.

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Afinal, quem sou eu?

8

Os jovens do nosso País, com diferentes raízes étnicas e culturais que tornam

mais criativo o tecido cultural nacional, em vez de viverem plenamente essa

experiência enriquecedora e funda e de se sentirem estimulados a afirmar toda

a sua diversidade, vivem, pelo contrário, na perplexidade do «afinal quem sou

eu?».

Por todos os motivos – pela situação actual do País, da Europa, do mundo –

este é um livro que interessa ler.

As eventuais falhas de juventude (e há-as sempre pois cada dia que passa

somos sempre menos jovens e não faríamos nada já exactamente da mesma

maneira que fizemos, como a autora aliás reconhece) são largamente

ultrapassadas pela pertinência e actualidade do tema. Não podemos também

esquecer que além do prazer que esta investigação seguramente deu à sua

autora, o objectivo principal era a obtenção de um grau universitário (o de

Mestre), o qual é fundamentalmente um research degree. E neste sentido, ao

interesse da problemática estudada, vem somar-se a competência e qualidade

no manuseio da utensilagem da metodologia científica, a qual ficou já no tempo

das provas públicas, totalmente demonstrada.

Carlos Diogo Moreira

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Afinal, quem sou eu?

9

Prefácio

Este livro trata a questão da identidade das crianças de origem cabo-verdiana

em espaço escolar. Ainda que os dados empíricos tenham sido recolhidos

durante o Ano Lectivo de 1996/97, a temática abordada em Afinal quem sou

eu?, assim como as conclusões a que cheguei, mantém-se actuais.

Há muito que deixou de fazer sentido pensar a sociedade portuguesa para os

portugueses de origem: a confluência de gentes e culturas tem favorecido o

surgir de novas formas de “ser português” e de viver em Portugal.

A escola, enquanto instituição privilegiada de transmissão de conhecimentos,

tem a responsabilidade de integrar e valorizar a diferença nos seus curricula.

Só assim “Narciso pode deixar de achar feio tudo o que não é espelho”1.

Os instrumentos que utilizei para recolher a informação pretendida são um

exemplo de como é possível trabalhar a diversidade na diversidade com

crianças em espaço de aula.

É importante ter presente que estes instrumentos foram pensados para aquela

situação. É assim que deve olhar para eles.

Outro aspecto interessante deste livro é o de conter algumas páginas relativas

ao percurso percorrido. Ainda que não existam fórmulas mágicas, ainda que

não apresente nenhuma tipologia de “Como fazer”, tenho o cuidado de expor e

assumir as alegrias e os sucessos mas também os receios, as dificuldades, os

obstáculos e as estratégias utilizados.

A verdade é que sempre existiu uma certa mística em torno do trabalho de

campo, também designado de método etnográfico (método privilegiado neste

trabalho). O antropólogo não se apresenta simplesmente: “Sou o vosso

1 Referência a Caetano Veloso em Sampa

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Afinal, quem sou eu?

10

antropólogo… quando é que posso observá-los, entrevistá-los, entrar em

vossas casas e sentar-me às vossas mesas?”. O trabalho de campo não é

nada que se aprenda a fazer sem fazer. É por isso que a troca de experiências

é tão importante.

Para finalizar e como diria Bordieu, este trabalho, à semelhança de qualquer

outro, deve ser visto como uma tomada de decisões no campo das

possibilidades. Certamente que hoje a minha abordagem e o meu desempenho

seriam outros… o que nem é estranho nem invalida o que foi feito.

Cláudia Vaz

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Afinal, quem sou eu?

11

Agradecimentos

Este trabalho é fruto da interacção de “dois olhares”: a construção que os

outros fazem de uma realidade que é a sua e a minha interpretação dessa

mesma realidade.

O meu propósito foi o de averiguar de que forma é que as crianças com

ascendência cabo-verdiana percepcionam o seu “eu” face ao “nós” e o “nós”

face aos “outros”, face ao seu negativo.

Mas se o real do adulto não é o real dos adultos, mais dificilmente o real da

criança corresponderá ao real do adulto. Era imperioso transpor também esta

fronteira geracional.

É por esta razão que optei por técnicas que me possibilitassem uma efectiva

aproximação ao mundo infantil. Qual é a criança que não gosta de ouvir e

contar histórias, desenhar ou jogar?

Aquilo que escrevo, ainda que possa ser entendido como ficção, não é produto

da minha imaginação. É antes uma interpretação de variadíssimos “textos”, que

mais não são que o fruto de múltiplos itinerários de vida.

Este trabalho, embora escrito na primeira pessoa do singular, é o resultado de

uma convergência de vidas, de opiniões e de conversas. Do germinar da ideia

à presente fase, muitas alegrias e dissabores foram confessados e

compartilhados, muitas palavras professadas, muitas reflexões induzidas.

Tenho agora a oportunidade de, publicamente, agradecer a todos aqueles que,

de alguma forma, participaram nesta encruzilhada.

Um agradecimento muito especial aos meus pais (em especial à minha mãe,

por ser como é), aos meus irmãos (sobretudo à “sempre prestável” Mónica), ao

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Afinal, quem sou eu?

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meu marido (pelo apoio e compreensão incondicionais), à minha avó Beatriz

(apesar da sua avançada idade ajudou-me numa altura em que tudo parecia

ser muito complicado, quando o meu filho nasceu) e à minha sogra (uma

grande amiga, que em muito facilitou o meu papel de mãe e de dona de casa).

Não julgue o leitor que eu poderia ou deveria ter-me escusado a estes

agradecimentos. Tenho a perfeita consciência de que sem estas pessoas, sem

a minha família, não o teria conseguido. Foi uma grande conjugação de

esforços e, também por isso, estar-lhes-ei sempre grata.

Agradeço igualmente à Câmara Municipal do Seixal que, na figura da Drª Maria

João e do então Vereador da Cultura (Exmo Sr. Alfredo Monteiro), sempre me

apoiou.

A todos os professores, pessoal auxiliar e, muito especialmente, às “minhas

crianças” da Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios.

Aos meus amigos de Cabo Verde, sobretudo ao José2 e à sua família (que

estão sempre no meu coração).

Um agradecimento muito especial à Drª Elsa Peralta pelas intermináveis

conversas, leituras atentas e observações preciosas.

À Drª Helena Rodrigues e à Profª Ana Maria Amaro por me terem ouvido e

apoiado em momentos menos simpáticos.

À Profª (e amiga) Celeste Quintino pela sua disponibilidade e, sobretudo, pela

sua sinceridade.

Ao Prof. Pereira Neto por me ter dispensado de algumas aulas para que eu

finalizasse a dissertação.

2 Por forma a salvaguardar o anonimato dos meus informadores e do meu objecto de estudo,

apresento-os equanto personagens etnográficas.

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Afinal, quem sou eu?

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Ao Prof. Carlos Diogo Moreira, meu Mestre e orientador, pelo seu espírito

crítico.

A todos, muito obrigada.

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Afinal, quem sou eu?

14

INTRODUÇÃO

1. Tema e Contextualização do Estudo

1.1 Tema

O tema desta dissertação é a identidade das crianças cabo-verdianas que

frequentaram o 3º e o 4º Ano da Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios

no ano lectivo de 96/97.

A eleição do tema propriamente dito, deve-se a razões de várias ordens: i)

actualidade e urgência dos fenómenos vinculados ao contacto de culturas; ii)

possibilidade de acesso às fontes; iii) elevada representatividade da minoria

cabo-verdiana no espaço português; iv) curiosidade científica.

Relativamente a este último aspecto, razões de curiosidade científica, não

posso deixar de fazer uma breve referência à influência que exerceu sobre mim

a seguinte declaração de Bogardus:

"Pensava que era americano. Tinha ideais americanos, lutaria pela América,

venerava Washington e Lincoln. Depois, no liceu, descobri que me chamavam

"Jap", tratavam-me mal e punham-me de lado. Afirmei que não conhecia o

Japão, não sabia falar a língua nem conhecia heróis ou a história do Japão.

Contudo, diziam-me constantemente que eu não era americano e não podia

votar. Sinto-me profundamente triste. Não sou japonês e não me é permitido

ser americano. Pode dizer-me, ao fim de contas, aquilo que sou?" (Bogdan et

al. 1994:28).

Em muito poucas linhas, o autor consegue transmitir toda a problemática

inerente à identidade da descendência dos migrantes. Afinal de contas, com

quem é que se identificam? Com o país de origem de seus pais e avós? Com

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Afinal, quem sou eu?

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o país que os acolheu? Com ambos os espaços e culturas? Com uma nova

cultura, uma cultura inventada? Sentir-se-ão «filhos de nenhures»? Afinal de

contas, quem são estas pessoas?

A minha abordagem assenta no pressuposto de que a identidade e a cultura

são alvo de contínuas negociações e manipulações. À luz do modelo

construcionista veremos que estas crianças de origem e/ou nacionalidade

cabo-verdianas inventam e reinventam a sua identidade.

É sobretudo a partir do Século XVIII, com o impulso do Iluminismo, que o

estudo do Outro, passa a constituir uma prática corrente. O selvagem, aquele

que não tem nem rei nem roque, é agora integrado numa tipologia evolutiva

das sociedades. Olhando para o homem primitivo, o civilizado vê-se como num

espelho. "É sempre o outro que, pelas diferenças que lhe reconheço, me

permite construir uma imagem de mim próprio. É ele a testemunha

indispensável, invariavelmente convidada, dos meus actos, do meu papel, do

meu estatuto e da minha existência. No momento que desaparece do meu

horizonte é também a minha própria imagem que se desvanece, como se ele a

transportasse na sua fuga” (Gomes da Silva, 1989:55).

A este respeito, Sokefeld (1999) afirma que a imagem do europeu tem

constituído o ponto de partida para a caracterização do Outro, geralmente

descrito enquanto o seu oposto, ou seja, desintegrado, dependente, incapaz de

se colocar à parte dos outros (sociocentrismo), incapaz de distinguir o indivíduo

do seu papel ou status e inapto a perseguir os seus próprios objectivos

(independentes do grupo ou comunidade).

Neste âmbito, a imagem do Outro não é mais que a inversão da nossa própria

imagem. “O tratamento do outro não é senão uma maneira indirecta ou

negativa de pensar o mesmo, o idêntico” (Augé, 1999:23).

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Afinal, quem sou eu?

16

Sendo a heterogeneidade de gentes e culturas uma das principais

características do tecido social europeu nesta transição do milénio, não é de

admirar a tenacidade da reflexão sobre a diferença e semelhança.

Vejamos o que se passou após a Segunda Guerra Mundial. A Europa tinha

urgência de mão-de-obra estrangeira que auxiliasse a sua reconstrução, pelo

que a década de 50 assistiu a um acentuado movimento migratório.

Tradicionalmente os países do sul europeu caracterizavam-se por serem

países emissores de trabalhadores, enquanto que os principais estados

industrializados do centro e norte do continente constituíam os principais

países receptores (Rocha-Trindade, 1995).

Portugal, desde a referida década, tem vindo a participar neste movimento de

migração para os países europeus. Muito típico deste período foi o fluxo

migratório dos portugueses para França que atingiu níveis anuais nunca dantes

alcançados (em 1962 seriam cerca de 50 mil; em 1968, apenas quatro anos

volvidos, já seriam cerca de 300 mil e, em 1972, já se encontravam em França

cerca de 700 mil portugueses)3.

Na década seguinte, sobretudo como consequência da Guerra em África, o

nosso país tem urgência de mão-de-obra. É então que os cabo-verdianos

começam a afluir a Portugal. De país de emigrantes, passamos a fazer parte

do bloco de países receptores de mão-de-obra.

Como se pode observar pela leitura do gráfico nº1 (página seguinte), Portugal

tem, de facto, participado neste movimento de confluência de pluralidades.

Repare que segundo os dados do SEF, a percentagem de africanos

legalizados em Portugal é bastante superior ao dos outros migrantes

(efectivamente, 44% dos migrantes legalizados em Portugal são originários dos

PALOP).

3 Sobre a questão da imigração portuguesa em França na década de 60, ver Barata (1974).

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Afinal, quem sou eu?

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Para além das razões já apontadas para esta convergência de “vidas tão

distintas”, convém ainda referir o regresso de emigrantes, o retorno de

residentes das ex-colónias, a adesão de Portugal à União Europeia

(nomeadamente com a abolição de fronteiras), a instabilidade no Brasil e a

queda do bloco soviético4.

Gráfico 1 A população migrante em Portugal

Fonte: SEF, Divisão de Planeamento, Dez. 1998

É importante referir que os estudos em meio urbano beneficiam da

consciencialização generalizada de que os bairros e as suas gentes são parte

integrante de um sistema amplo e complexo. É nesta acepção que Pujadas

sustenta que “nem a complexidade dos processos culturais estudados nem a

complexidade epistemológica da Antropologia permitem uma prática

antropológica baseada exclusivamente em reconstruções miniaturistas de

universos isolados” 5(Pujadas, 1996:251).

4 Relativamente a estes dois últimos motivos, é um facto que o número de migrantes brasileiros

e dos Países de Leste em Portugal tem vindo a aumentar consideravelmente.

5 Foram os trabalhos levados a cabo por autores como Wilson, Mitchell, Epstein, Powdermaker,

Mangin, Harries-Jones, entre outros investigadores da Universidade de Manchester, que

Europeus (CEE/EU)

Europeus (outros)

Africanos (PALOP)

Africanos (outros)

América (EUA e

Canadá)América Latina

(Hispânica)América Latina (Brasil)

Ásia

Oceânia

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Afinal, quem sou eu?

18

Esta forma de entender a sociedade de informação em que vivemos,

simultaneamente flexível e difusa (Castells, 1996) tem propiciado a emergência

de unidades de análise distintas, nomeadamente as classes sociais (média e

alta), os novos actores sociais (elites económicas, refugiados, mão de obra

procedente dos países tecnologicamente menos desenvolvidos, turistas, etc), a

identidade com as suas constantes redefinições e a organização social em

torno da noção de redes6.

Assim, a questão da identidade, entendida enquanto uma estratégia de

sobrevivência num meio social mutável e dinâmico, constitui um aspecto

central da análise antropológica.

1.2 Objecto de estudo

Como já foi mencionado, este trabalho incide sobre a identidade das crianças

cabo-verdianas que frequentaram a Escola Básica nº5 de Santa Marta de

Corroios no Ano Lectivo de 1996/97.

A escolha de uma escola, enquanto espaço de investigação, deve-se a uma

razão muito concreta: a escola, sendo um espaço pluri-rácico e pluri-étnico,

reflecte a nossa realidade social, na medida em que ela própria se define

enquanto um espaço de confluência de culturas. "A escola é o microcosmos da

sociedade, reflecte por isso os movimentos e características da sociedade"

(Pinto, 1993:12).

Todas as sociedades desenvolvem um conjunto de códigos de comunicação

específicos, construídos a partir de experiências históricas concretas. Na

medida em que estes esquemas culturais básicos não se perpetuam por si

possibilitaram uma nova abordagem do Outro, promovendo o desenvolvimento de uma nova área da antropologia designada por Antropologia Urbana. 6 Sobre a Antropologia em espaço urbano (dos trabalhos pioneiros à actualidade), veja Pujadas

(1996).

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Afinal, quem sou eu?

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mesmos, a continuidade de um sistema social depende da sua capacidade de

transmitir todo um conjunto de valores, hábitos e normas de uma determinada

geração à seguinte.

Ruth Benedict, Margaret Mead e Kardiner são alguns dos antropólogos da

Escola da Cultura e Personalidade que se propuseram verificar a influência das

diferentes técnicas de enculturação na configuração da personalidade das

crianças em sociedades distintas.

“Na verdade, foi o trabalho desta pesquisadora (Mead) e de seus discípulos

que trouxe a criança para dentro dos limites da reflexão antropológica,

conjugada com os estudos psicológicos sobre personalidade, tão efervescentes

e comuns nessa época. Não foi por mero acaso que, para além da produção

científica marcadamente antropológica, Mead escreveu artigos para o

Handbook of Child Psychology (1931) e para o Manual of Child Psychology

(1954). (...) Consegue, entre outras coisas, e com base em extensa etnografia,

demonstrar que conhecer profundamente o período da infância numa

sociedade é fundamental para se conhecer a etapa seguinte – a adolescência

– e o funcionamento geral da sociedade” (Nunes, 1999:39).

É sabido que uma das funções da família é a enculturação. No entanto, face à

complexificação das sociedades industrializadas, esta função básica tem sido

atribuída a instituições especializadas que assumem a tarefa de ministrar os

conhecimentos socialmente significativos.

Sociólogos como Durkheim, Parsons (1959) e Dreeben (1968) interessaram-se

pela relação entre a escola e a sociedade, considerando positiva a coincidência

de objectivos entre ambas.

É de salientar que até à década de 70 a maioria dos trabalhos realizados nesta

área centram o seu interesse nos resultados dos processos de reprodução

social. Só a partir dos trabalhos de Young é que os investigadores passam dos

modelos macro para os modelos micro (“etnografia de aula”). Hoje, em virtude

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Afinal, quem sou eu?

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da convivência de singularidades, o tema dos conflitos interétnicos tem

suplantado o tema clássico da cultura7.

De facto, até aos anos 50, altura em que se assiste à democratização do

ensino, a escola foi concebida como um espaço no qual os alunos poderiam

revelar as suas capacidades. Era-lhes então exigido que assimilassem as

mesmas regras e valores, ou seja, o nível de exigência era o mesmo para

todos os alunos, independentemente da sua origem sociocultural. Não foi por

acaso que nesta época proliferaram variadíssimos estudos concernentes à

inteligência e à sua relação com o sucesso escolar8.

No entanto, os testes de inteligência criados traduziam a cultura ocidental das

classes sociais média e alta. Consequentemente, todas aquelas crianças que

não fossem brancas e que pertencessem a classes desfavorecidas, facilmente

seriam consideradas intelectualmente inferiores e destituídas de quaisquer

capacidades intelectuais.

A constatação das desigualdades no êxito escolar não vem comprometer o

projecto de uma escola igualitária: o darwinismo social explica cientificamente a

razão das diferenças que não são mais que o reflexo da assimetria de dons e

talentos entre crianças e entre grupos sociais.

“A escola surge assim, desde o seu início, como lugar de eleição para o debate

ancestral sobre a natureza da desigualdade entre os homens: a educação é

determinante nas desigualdades sociais e a escola pode combatê-las; os

homens não nascem iguais e a educação não pode fazer superar essas

desigualdades” (Valentim, 1997:26).

Nos anos 60, a vasta produção de trabalhos científicos, designadamente na

área da antropologia, da sociologia, da psicologia e da biologia, vem acentuar a

necessidade de estabelecer fronteiras entre natureza e cultura, ou seja, entre

7 Sobre a Antropologia da Educação, veja-se Juliano, 1996.

8Sobre a evolução da Escola e das políticas educativas veja-se Valentim (1997)

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Afinal, quem sou eu?

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hereditariedade e meio. A Escola, enquanto instituição responsável pela

transmissão de conhecimentos, não pode ficar alheia a estes novos saberes.

Os trabalhos sobre as “reservas de talentos”, jovens de origem social modesta

que, apesar de demonstrarem grandes capacidades intelectuais, não

prosseguiam os seus estudos, integram um outro corpo de pesquisas levado a

cabo nesta época da “grande aposta” no capital humano (partia-se do

pressuposto de que os países que melhor explorassem essa reserva de

talentos teriam maiores probabilidades de sucesso económico).

Nesta época, vão então ser realizados grandes estudos com o objectivo de

quantificar as taxas de insucesso escolar e conhecer as razões que lhe podiam

estar subjacentes. Estas análises, sobretudo as que tiveram lugar nos Estados

Unidos da América e na Grã-Bretanha, foram incisivas no incremento das

políticas educativas.

O Relatório de Coleman, realizado em 1965 no seguimento de um pedido feito

pelo Congresso Americano, é uma referência obrigatória na história da

educação escolar.

As principais conclusões deste estudo, o qual compreendeu mais de 600 000

alunos frequentando mais de 4000 escolas de 11 regiões, dos 1º, 3º, 6º, 9º e

12º anos de escolaridade, são as seguintes: a escolaridade tende a manter ou

mesmo a acentuar as assimetrias entre diferentes grupos sociais e verifica-se

uma maior variância intra-escola do que interescolas («a escola não faz a

diferença»).

As principais críticas tecidas a propósito deste estudo e de outros similares

(nomeadamente, o Relatório de Plowden, 1967), são, por um lado, o ter

observado a escola como uma mera “caixa negra” de entradas e saídas e, por

outro, o ter-se baseado na análise de um único indicador de sucesso (o

domínio da língua).

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Afinal, quem sou eu?

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É neste contexto que se vão desenvolver as teorias sobre a privação cultural,

as quais explicam as desigualdades no sucesso escolar com base na influência

do meio sociocultural no qual a criança é enculturada.

Debatendo-se contra as ideias vigentes na época de que o Q.I é um atributo

herdado e imutável (mas não refutando a hipótese de que a desigualdade está

associada à classe social), Bernstein destaca, precisamente, a importância das

capacidades linguísticas: crianças de origens sociais diversas desenvolvem

códigos e discursos diferentes no começo da sua vida, que vão afectar as suas

experiências escolares posteriores.

Este autor afirma que entre a escola e a comunidade a que pertencem alguns

alunos pode existir uma descontinuidade cultural, baseada em dois sistemas de

comunicação em tudo diferentes: o da família / comunidade e o da escola e

então procede à distinção entre código restrito e código elaborado. Um código

restrito é um tipo de discurso inerente a uma comunidade de classe baixa,

sendo a forma de comunicar mais apropriada para a discussão de ideias

práticas do que de ideias abstractas (como o código elaborado).

“Um código restrito aparece sempre que a forma de relação social se baseia

em identificações e numa larga gama de expectativas intimamente partilhadas,

em pressupostos comuns. Ele emerge, pois, numa cultura ou sub-cultura que

privilegia o nós sobre o eu. (...) O uso de um código restrito cria a solidariedade

social em detrimento da elaboração verbal da experiência individual e essa

integração social aponta para a solidariedade mecânica” (Domingos, 1985:65).

Deste modelo decorre, quase que automaticamente, uma lógica de intervenção

educativa: se as diferenças no sucesso escolar se devem a desigualdades no

acesso à cultura e ao código linguístico próprio da escola, e não a uma

característica geneticamente herdada, então é possível elaborar estratégias

educativas que compensem ou mesmo anulem essas discrepâncias

socioculturais.

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Afinal, quem sou eu?

23

É este o raciocínio que está na base do desenvolvimento de políticas de

educação compensatória. No entanto, o “dar mais do mesmo” às crianças com

lacunas socioculturais acabou por revelar-se infrutífero: os alunos que

apresentavam dificuldades e que, por isso, eram submetidos a um maior

número de horas de aulas, não apresentavam, na maioria dos casos, melhorias

significativas.

Estes resultados devem-se essencialmente ao facto de que, a partir do

momento em que os alunos que são objecto destas “terapias” têm uma auto-

imagem negativa, as horas a mais de ensino dificilmente poderão reverter este

sentimento e, consequentemente, esta situação.

A educação compensatória é apontada por Verne (1987) como uma espécie de

momento zero da educação intercultural. Assim, num primeiro momento e face

à resistência dos grupos minoritários em adoptar a língua do país receptor, foi

implementada uma educação bilingue. Um segundo momento seria já

caracterizado pelo reconhecimento da especificidade dessas culturas visando a

sua preservação (a este momento corresponde a designação de multicultural).

Finalmente, numa terceira fase, valoriza-se a diferença. Estamos, então, na

presença de uma política educativa intercultural.

Comum a todas estas fases é a consciencialização da coexistência de diversas

tradições culturais num mesmo território. A divergência manifesta-se na forma

de olhar essa diferença, traduzindo-se em políticas educativas díspares.

Se num primeiro momento a pluralidade auferiu visibilidade, num segundo

momento havia que demonstrar o respeito por essa diversidade e a vontade de

construir uma sociedade mais comunicativa. No entanto, este discurso

concebido para superar o «etnocentrismo da tribo branca» funcionou, em nome

de um «fundamentalismo cultural», para legitimar práticas segregadoras

(Juliano, 1996:283). A inserção dos “filhos da diáspora” no sistema educativo,

assim como a valorização das suas especificidades, não passa pela simples

transmissão da cultura de origem.

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Afinal, quem sou eu?

24

A política educativa intercultural surge, então, associada ao sonho de uma

escola em perfeita consonância com o hibridismo característico das sociedades

actuais.

De acordo com Camillieri (1993) são duas as condições necessárias para que

se verifique o interculturalismo: i) não se proceder a uma hierarquização de

culturas e costumes, mas atribuir-lhes uma mesma legitimidade; ii) aceitação

do mínimo de representações e valores comuns que permitam a emergência

de um grupo.

Por forma a clarificar esta segunda condição, o autor acima citado apresenta o

seguinte caso passado numa sala de aula:

"Um professor apercebeu-se de que uma aluna inuit tinha por hábito copiar os

trabalhos dos seus colegas. No entanto, resolveu não intervir, julgando que a

atitude da aluna estava conforme à cultura do seu grupo: a prática do

comunitarismo" (Camillieri, 1993:37).

Levanta-se, então, a seguinte questão: "E se houvesse um verdadeiro conflito

de valores importantes, como proceder?"

À pergunta: "Deve a escola, enquanto instituição social de um grupo

maioritário, atender e fomentar os traços culturais próprios dos membros de

grupos minoritários?", Sierra (1992:30-31) responde que a escola, ainda que

promova a cultura da maioria, não deveria impedir a devida consideração das

outras culturas minoritárias no curriculum que veícula.

A escola deveria atender cuidadosamente às diferenças culturais dos seus

alunos, não só por razões axiológicas ou sociais, mas porque, não o fazendo,

estará seguramente a pôr em causa o êxito educativo de muitas crianças de

grupos minoritários: "Sentados nos mesmos bancos, na mesma aula, diante do

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Afinal, quem sou eu?

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mesmo quadro e do mesmo professor, os alunos, todavia não estão num plano

de igualdade" (Valérien, 1990).

1.3 Problema e hipótese de pesquisa

O meu problema de pesquisa foi, então, formulado do seguinte modo: de que

forma é que as crianças com ascendência cabo-verdiana se percepcionam?,

ou melhor, qual é efectivamente a importância que estas crianças atribuem às

variáveis “raça” e etnia na formação da sua identidade ?

A hipótese central deste trabalho é a de que a “raça” e a etnia são variáveis

primaciais na percepção da identidade das crianças cabo-verdianas que

frequentam a Escola nº5 de Santa Marta de Corroios. A confluência de

singularidades nesse espaço vem acentuar as diferenças. A sua identidade

resulta deste jogo contínuo de negociações entre o "eu" e o "nós" e entre o

"nós" e o "outro".

Neste trabalho são dois os “olhares” privilegiados: o das crianças e o meu, uma

antropóloga “condenada a vaguear para sempre entre duas modalidades de

percepção do mundo” (Gomes da Silva, 1994:50).

A interpretação que faço dessa realidade é, então, uma construção derivada da

percepção do outro, o que não significa que aquilo que descrevo seja o outro. É

neste sentido que Geertz afirma que “as descrições da cultura dos berberes,

judeus e franceses devem ser compreendidas em termos das construções que

nós imaginamos que os berberes, judeus e franceses fazem da realidade, a

fórmula que usam para definirem o seu mundo. Agora essas descrições, só por

si, não são os berberes, os judeus ou os franceses. (...) são construções

antropológicas” (Geertz,1993:15).

Mas, antes de mais, há que proceder à reflexão dos conceitos-chave deste

trabalho, nomeadamente, “raça” e identidade étnica.

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2. A “Raça” e a Identidade: Construções Sociais da Realidade

2.1 O conceito de “Raça”

Antes de mais, importa referir que, neste trabalho, o conceito de “raça” é

meramente utilizado enquanto uma variável sociológica (à semelhança de

outras variáveis como idade, sexo e género).

“Apesar das inconsistências que se poderão apontar às análises que se

fundamentam no conceito de raça e das falácias que derivam do seu estatuto

analítico, os dados empíricos parecem revelar que a raça é uma variável

sociológica pertinente” (Quintino, 1999:55).

Também Valentim afirma que, “(...) apesar de o conceito de raça ser

desprovido de sentido em termos biológicos quando aplicado à espécie

humana, o seu papel, quer nos processos identitários, quer nos processos de

discriminação e exclusão, pode justificar a sua utilização, como tem vindo a ser

defendido, particularmente por autores anglo-saxónicos. (...) é claramente uma

construção social, um facto sociológico, uma representação social (...)”

(Valentim, 1997:91).

Blakemore et al. (1996) chamam a atenção para a circunstância de, muitas

vezes, se utilizarem indiscriminadamente os conceitos de “raça” e “etnicidade”.

No entanto, estes dois termos não dizem respeito ao mesmo fenómeno: o

primeiro baseia-se na percepção da diferença física, sendo apenas um

reducionismo biológico, ao passo que o segundo traduz a percepção de um

elemento cultural e identitário.

Também Cornell et al. (1997), entendem o conceito de “raça” enquanto uma

construção social: quer a designação daquilo que constitui uma “raça”, quer a

forma como reconhecemos as diferenças “raciais”, são determinadas

culturalmente, ou seja, ao atribuirmos um sentido a uma série de

características físicas, estamos a criar as “raças”.

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Ainda no século XIX, a noção de “raça” reflectia a percepção da diferença

biológica, cultural e intelectual do Outro. Com base neste conceito, as

populações eram catalogadas em diferentes “raças” ou “stocks”

(nomeadamente, Caucasóide, Mongolóide e Negróide) e, de acordo com essa

catalogação, eram consideradas intelectual e culturalmente superiores /

inferiores. Verifica-se, então, uma tendência para hierarquizar a sociedade

humana com base no fenótipo.

Nessa época, a maioria dos povos não europeus eram considerados

«bárbaros» e «primitiva». "As diferenças entre os humanos pareciam tão

extremas que a humanidade (e modernidade) dalguns grupos de seres vivos

mal era crível. A sua diversidade causava tanto espanto e provocava tanto

abanar de cabeças incrédulas como a presença de montanhas com os cumes

cobertos de neve no equador africano. O espectro total da aparência e do

comportamento humanos era como um enorme continente em que apenas uma

das costas parecia familiar à maior parte dos europeus" (Shipman, 1996:18).

Influenciados pela obra "A Origem das Espécies" de Darwin (publicada em

1859), os cientistas do século XIX acreditavam que, da mesma forma que era

possível seleccionar determinadas características em animais e plantas por

forma a produzir espécimes superiores, também entre os seres humanos seria

praticável proceder à criação de uma casta de homens e mulheres dotados.

Neste âmbito, surgem inúmeros trabalhos científicos publicados com o

objectivo de reforçar esta ideia da transmissibilidade genética da inteligência,

tais como “O Génio Hereditário”, de Galton (1869), "A Família Jukes", da

autoria de Dugdale (1877) e "A Família Kallikak: Estudo sobre a

Hereditariedade da Imbecilidade", de Goddard.

Preocupados com o facto de a taxa de natalidade entre as classes mais baixas

ser mais elevada que entre as classes superiores, os intelectuais do final do

século XIX e princípios do século XX temiam estar a presenciar um «suicídio

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Afinal, quem sou eu?

29

racial». É neste clima que floresce e se desenvolve a política eugénica que

conduziria, em última análise, ao aperfeiçoamento da humanidade.

De facto, "(...) esta palavra (raça) foi durante muito tempo erroneamente

utilizada para explicar inúmeros aspectos da vida social, tendo sido

especialmente aplicada a colectividades nacionais, religiosas, geográficas ou

culturais. Assim, foram classificadas como sendo raças alguns povos, como os

Ingleses, Franceses e Portugueses, classificação essa que também chegou a

ser aplicada a grupos religiosos como os Muçulmanos e os Judeus (...)" (Neto,

1963:5).

Hoje, o conceito de raça não é entendido enquanto sinónimo de identidade

étnica ou nacional9. Ainda segundo o autor acima citado, "duma maneira geral,

pode dizer-se que ficou reconhecido que não se pode estabelecer uma

classificação sobre caracteres puramente físicos e fisiológicos; que não pode

provar-se que os grupos humanos diferem uns dos outros por traços

psicologicamente inatos (...)" (Neto, 1963:8) e, como já foi referido, é evidente

que este conceito se limita a traduzir a percepção de diferenças biológicas sem

qualquer implicação de outra natureza.

É, pois, neste sentido que, ao longo do trabalho, faço menção a crianças

brancas e a crianças negras, ou seja, crianças que apresentam uma

baixa/elevada concentração de melanina, respectivamente.

Apesar das óbvias dificuldades inerentes à utilização deste conceito,

interessava-me saber de que forma estas crianças percepcionam a sua cor da

pele, ou seja, se elas se vêem enquanto brancas/negras e qual a importância

desta variável para a sua identidade. É por esta razão que não hesitei em

classificá-las desta forma.

9 É importante referir que os conceitos de identidade étnica e nacionalismo, embora relacionados, não

traduzem a mesma realidade (ainda que em grego o termo ethnos signifique nação). São sobretudo as questões da soberania e da auto-determinação que os distinguem (ver Cornell et al. 1997).

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30

Para além destas duas categorias (branco/negro), utilizo ainda uma terceira, a

de mestiço. A este respeito, é importante tecer algumas considerações. À

priori, a minha ideia foi a de, através da mera observação visual, classificar

individualmente as crianças enquanto brancas ou negras. No entanto, durante

uma sessão de trabalho e antes de aplicar os respectivos testes, apercebi-me

de que três das “minhas” oitenta crianças não se consideravam nem brancas

nem negras, mas sim mestiças. Atendendo a que privilegio a abordagem emic,

optei por ter em atenção também esta variável.

A este propósito, Les Back (1996) chama a atenção para a complexidade da

categorização social. Um dos temas emergentes em algumas das entrevistas

que realizou a mais de 200 jovens de diversas origens e com idades

compreendidas entre os 11 e os 25 anos e tendo em conta o ponto de vista do

observador, é o de que a negritude não é exclusivamente definida em termos

fenotípicos, mas sim em termos de sentimento de pertença a um dado grupo.

Alguns dos jovens por si entrevistados afirmam que, apesar de a sua pele ser

branca, não se percepcionam enquanto brancos mas sim enquanto negros: a

sua maneira de andar, de falar, de vestir, a música que ouvem, são

características da cultura negra.

O reconhecimento de um grupo com base no fenótipo é um dos critérios que

permite o reconhecimento de uma minoria10. Os outros critérios que definem

uma minoria são: critério da territorialidade ou língua e religião; critério

económico e político e critério cultural (ver Quintino, 1999).

Um outro conceito-chave deste trabalho de investigação é o conceito

antropológico de identidade.

10

Neste trabalho, quando me refiro aos cabo-verdianos enquanto uma minoria, não o faço com base na mera constatação da sua inferioridade numérica, mas sim, com base "no resultado de uma relação de poder que se estabelece entre a sociedade receptora (dominante) e comunidade imigrante (dominada)" (Saint-Maurice, 1997:2), ou seja, numa posição de desvantagem económica, política, cultural, social, educacional, etc, deste grupo face à restante população

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31

2.2 O conceito de “Identidade”

A ideia de identidade é intrínseca à própria natureza humana: não há nenhum

momento em que não pensemos em nós em termos de semelhanças e

diferenças em relação aos outros. A própria percepção que temos do nosso ser

é espelhada pela percepção que os outros têm de nós.

O «Bilhete de Identidade» é um cartão que permite a identificação de um

indivíduo com base numa série de índices, nomeadamente o nome completo, a

data e lugar de nascimento, a assinatura, a fotografia, certos traços físicos

(como a altura) e a impressão digital.

No entanto, a identidade de uma pessoa não se limita a estes elementos que

figuram nos registos oficiais. "Existe, claro, para a maior parte das pessoas, a

tradição religiosa; a uma nacionalidade, por vezes a duas; a um grupo étnico

ou linguístico; a uma família mais ou menos alargada; a uma profissão; a uma

instituição; a um determinado meio social... Mas a lista é bem mais extensa,

virtualmente ilimitada; pode sentir-se uma pertença mais ou menos forte a uma

província, a uma aldeia, a um bairro, a um clã, a uma equipa desportiva ou

profissional, a um grupo de amigos, a uma empresa, a um partido, a uma

associação, a uma comunidade de pessoas que partilham as mesmas paixões,

as mesmas preferências sexuais, as mesmas diminuições físicas, ou que se

acham confrontadas com os mesmos problemas" (Maalouf, 1999:18-19).

De uma forma genérica, dizemos que um indivíduo se identifica com outro

indivíduo ou grupo a partir do momento em que percepciona nesse indivíduo ou

grupo a(s) mesma(s) característica(s) que vê em si e que não observa nos

outros. “Enunciar a minha identidade em termos relacionais é admitir que

recolho de outrem uma parte fundamental de mim mesmo: apenas existo na

medida em que arrebato a outrem o fundamento da minha existência” (Gomes

da Silva, 1994:97).

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Forsythe (1989), num trabalho sobre a identidade dos alemães, refere que

estes atribuem aos estrangeiros certas características opostas às que atribuem

a si próprios. Assim, o ser alemão é associado à estabilidade e permanência,

enquanto que os estrangeiros à efemeridade. Fisicamente, o alemão é, por

definição, branco, loiro e de olhos azuis; o estrangeiro é escuro e, quanto mais

escuro for, mais estrangeiro parece aos olhos dos alemães. Os alemães são,

por definição, cristãos; os estrangeiros, como é o caso dos turcos, são

muçulmanos. O ser alemão está associado à confiança; os estrangeiros estão

associados àquilo que não é familiar. Os alemães vêem-se como ordeiros,

enquanto os estrangeiros são tidos como desorganizados, como tendo falta de

vontade em aprender os bons costumes ocidentais.

A antinomia é, de facto, uma das características do conceito de identidade:

identificamo-nos com aqueles que têm as mesmas características que nós, por

oposição àqueles que partilham características distintas (reais ou imaginárias),

por oposição aos outros.

Esta identificação com um grupo implica, por um lado, que haja semelhanças

entre os membros do grupo e, por outro, que o grupo se defina em função de

um referente. Assim, “um grupo, para sê-lo, é necessário que os seus membros

tenham consciência do nós, por demarcação ao eles, ao exterior" (Saint-

Maurice, 1997:7).

A identidade é, igualmente, um processo múltiplo, não exclusivo, na medida em

que podemos identificar-nos simultaneamente com vários grupos (com base

em diversos elementos).

Inclusive, há indivíduos que poderão identificar-se com mais de um grupo tendo

como referência uma mesma categoria. Por exemplo, um imigrante poderá

identificar-se, simultaneamente, com o país de origem e com o país de

acolhimento.

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Maalouf (1999), ao desenvolver esta questão das identidades compósitas,

começa por apresentar um caso paradigmático: o seu.

"Desde que deixei o Líbano, em 1976, para me instalar em França,

perguntaram-me inúmeras vezes, com as melhores das intenções do mundo,

se me sinto «mais francês» ou «mais libanês». Respondo invariavelmente:

«Um e outro!» Não por um qualquer desejo de equilíbrio ou equidade, mas

porque, se respondesse de outro modo, estaria a mentir. Aquilo que faz que eu

seja eu e não outrem, é o facto de me encontrar na ombreira de dois países, de

duas ou três línguas, de várias tradições culturais. É isso precisamente o que

define a minha identidade. Tornar-me-ia mais autêntico se amputasse uma

parte de mim mesmo?

Aos que me fazem a pergunta, explico pois, pacientemente, que nasci no

Líbano, aí vivi até aos 27 anos, que o árabe é a minha língua materna, que foi

na tradução árabe que descobri Dumas, Dickens e As Viagens de Gulliver, e

que foi na minha aldeia das montanhas, a aldeia dos meus antepassados, que

conheci as primeiras alegrias de menino e ouvi certas histórias em que me iria

inspirar, mais tarde, para os meus romances. Como poderia esquecê-lo? como

poderia alguma vez desligar-me dessa realidade? Mas, por outro lado, vivo há

vinte anos em França, bebo a sua água e o seu vinho, as minhas mãos

acariciam todos os dias as suas velhas pedras e escrevo os meus livros em

francês. Nunca poderia senti-la como uma terra estrangeira" (Maalouf, 1999:9-

10).

Outra característica deste conceito é o ser flexível, ou seja, a nossa identidade

é moldada pela situação e pelo contexto em que nos encontramos. Sokefeld

(1999) afirma que a imagem pessoal desenvolvida e manifestada em

determinadas situações não pode permanecer sempre a mesma. A identidade

tem de se adaptar às diversas redes em que o indivíduo participa.

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Desde já importa referir que identidade e etnicidade não são conceitos

congéneres. Como vimos, a identidade é um fenómeno inerente ao ser humano

e, a partir do momento em que o homem é um ser cultural, a identidade é um

atributo de todas as sociedades humanas. O mesmo não se passa com a

etnicidade.

Só a partir do momento em que, por um qualquer motivo (geralmente de ordem

política ou económica), os grupos étnicos passam a utilizar estrategicamente

alguns dos seus elementos identitários, é que o fenómeno da etnicidade

emerge.

Pode afirmar-se que a etnicidade decorre de uma tomada de consciência de

que a ostentação de determinados emblemas étnicos (centrados na cultura, na

religião, na história, na língua, no território, etc) pode ser vantajosa para o

grupo em questão (Anthias, 1992; Carita et al., 1993; Machado, 1994; Nagel,

1994; Moreira, 1996; Jenkins,1997; Cornell et al., 1998; Bun et al., s/d;

Almeida, 2000).

O conceito de identidade étnica também não deve ser confundido com o

conceito de cultura. O sentimento de pertença a um grupo étnico específico

não se resume ao sentimento de partilha de uma mesma cultura.

Como Bakalian demonstra no trabalho que realizou sobre os descendentes dos

imigrantes arménios a residirem nos Estados Unidos (Cornell et al., 1998 e

Nagel, 1994), ainda que as práticas culturais características do país de origem

estejam a perder visibilidade, o sentimento identitário não o está, ou seja, uma

coisa é o ser arménio, outra é o sentir-se arménio.

Também Nagel (1994) conclui que identidade étnica e cultura não são

sinónimos. Por forma a ilustrar esta ideia, a autora emprega a imagem do

carrinho de compras. Assim, podemos pensar na construção das fronteiras

étnicas como determinantes da forma do carro (tamanho, número de rodas,

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Afinal, quem sou eu?

35

materiais utilizados, etc), enquanto que a cultura do grupo é composta pelas

coisas que colocamos no carro - arte, música, vestuário, religião, normas,

crenças, símbolos, mitos e costumes.

À semelhança da identidade, também a cultura dos grupos é caracterizada pela

mutabilidade e dinamismo. A cultura não se resume a um legado histórico,

transmitido de geração em geração. Ainda segundo a autora acima citada, a

cultura não é um carro de compras que vem até nós já cheio de bens. Pelo

contrário, nós construímos a cultura ao escolhermos e apanharmos os vários

itens das prateleiras do passado e do presente.

A identidade étnica permite responder à pergunta "Quem somos nós?", ao

passo que a cultura permite responder à questão "O que somos nós?". É com a

construção da cultura que os grupos étnicos enchem o carrinho de compras

(reinventando o passado e inventando o presente).

Cornell et al.(1998) afirmam, ironicamente, que se a principal característica de

um grupo étnico é a partilha de características culturais e sociais, então os

advogados, as famílias dos militares, os estudantes universitários, os cidadãos

suiços, os prisioneiros e muitos outros grupos, como a minoria chinesa na

Malásia ou os curdos do Iraque podem ser considerados grupos étnicos.

Para Blakemore et al. (1996), o sentimento de partilha de uma identidade

étnica comum é composto por um se não por todos os seguintes elementos.: i)

pertença real, simbólica ou mesmo circunstancial a uma mesma nação e a um

mesmo território; ii) partilha de uma mesma língua; iii) partilha de uma mesma

religião; iv) consciência de uma cultura distinta.

Um conceito intrínseco ao de identidade étnica é o de fronteira étnica, o qual

determina quem pertence e não pertence ao grupo.

Ainda segundo os autores acima citados, a identidade étnica não é imposta,

uma vez que, de uma maneira geral, as pessoas têm alguma ideia sobre quem

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Afinal, quem sou eu?

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são ou em que medida pertencem a uma comunidade11. Assim sendo, a

identidade étnica é entendida enquanto um recurso, uma estratégia de

sobrevivência. Tapper (1989), chega mesmo a dizer que é essencialmente

negociável e sujeita a manipulações estratégicas. Também Les Back (1996)

entende a etnicidade enquanto objecto de negociação por parte dos actores

intervenientes.

Sollors (1989) declara que as fórmulas da "originalidade" e "autenticidade" no

discurso étnico não passam de uma herança do romantismo europeu. Este

autor define a etnicidade como uma estratégia partilhada para além de

determinadas fronteiras físicas.

Nagel (1994) e Bun et al. (s.d) afirmam que os grupos étnicos emergiram tão

fortemente porque a etnicidade trouxe vantagens estratégicas aos seus

membros. Neste sentido, a etnicidade surge enquanto produto de uma escolha

racional: é o indivíduo quem decide quando e como expressar a sua etnicidade

(certamente só o fará quando o uso emblemático da linguagem, vestuário,

cultura e/ou costumes característicos do seu grupo jogam a seu favor).

Jasinskaja-Lahti et al. (1999) sustentam que, geralmente, o indivíduo passa por

experiências significativas (que podem incluir discriminação e preconceito por

parte do grupo maioritário) que o levam a tomar consciência da sua etnicidade.

Para Saylor et al. (1999), o grau de consciência de pertença a um grupo étnico

está directamente relacionado com a passagem do indivíduo por várias fases,

nomeadamente:

i) "Fase do pré-encontro": os indivíduos não examinam a sua identidade étnica

e deduzem as suas atitudes sem questionar a família e comunidade.

11

A pertença a uma comunidade pode ser real ou imaginária. Anderson refere-se aos grupos étnicos enquanto "comunidades imaginadas" uma vez que todos os que se percepcionam ou são percepcionados como pertencendo a esse grupo experienciam um sentimento de partilha comum. No entanto, nem todos os membros podem interagir de modo a formarem uma comunidade real (Anthias, 1992).

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Afinal, quem sou eu?

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ii) "Fase do encontro com racismo e sociedade": como referiram Jasinskaja-

Lahti et al. (1999), é do contacto com o outro que o indivíduo vai percepcionar a

sua semelhança e a sua diferença.

iii) "Fase de imersão-emersão": o indivíduo, consciente da sua diferença, tende

a unir-se ao semelhante. Desta forma, sente necessidade em participar na

cultura do grupo étnico e em explorar o significado de pertença a esse grupo.

iv) "Fase de interiorização/compromisso": os indivíduos exploram e

estabelecem um compromisso com as suas identidades étnicas (pelo que

demonstram uma maior auto-estima, um maior domínio e um maior número de

interacções sociais que aqueles que não assumem esse compromisso).

É neste sentido que Fischer (1991) sustenta que o etnicismo não é algo que

passe espontaneamente de geração em geração; algo que possa ser

aprendido e ensinado. A etnicidade é reinventada e reinterpretada em cada

geração, por cada indivíduo. É dinamismo puro; algo que não pode ser

reprimido nem reconduzido.

Ainda a este propósito, Moreira (1996:9) defende que, "antes vistos como

sobrevivências ou retenções culturais, os grupos étnicos são entendidos como

formas de vida social capazes de se renovarem e de se transformarem".

A nova geração não assimila, através do processo de enculturação, todos

aqueles valores que lhe são transmitidos pela geração anterior. As suas

necessidades, desejos e sonhos, não são os mesmos de seus pais, pelo que o

seu sentimento de pertença étnica também não será o mesmo.

Blackmore et al. (1996), compartilham da opinião de que, de uma geração

para outra, se verificam sempre algumas continuidades, como por exemplo, o

sentimento de desvantagem racial ou a comunhão de determinados atributos,

como a linguagem, a alimentação, ou mesmo a religião. Mas também existem

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Afinal, quem sou eu?

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sempre consideráveis diferenças se não mesmo descontinuidades entre as

diferentes gerações.

A propósito deste conflito geracional, Ghail apresenta o seguinte testemunho

de uma jovem negra, de nome Hameeda: "Eles (pais) querem que retenhas os

seus valores como se fossem os teus próprios valores (...), mas eles sabem

que tu não vais viver a mesma vida que eles e sabem que não te podem

obrigar a isso (...)"(Ghail, 1995:178).

Skármeta também não fica insensível a esta questão e, a certa altura, na sua

obra12, diz-nos que "(...) se as suas vidas (pais) estavam suspensas até ao

momento em que se reencontrassem com a pátria libertada, as dos seus filhos

tinham outra urgência: aprendiam o idioma anfitrião na escola, apaixonava-os a

rua, as suas jovens almas entravam em contacto com as de pessoas da sua

mesma idade e compartilhavam com ênfase adolescente os ídolos do cinema e

da canção, a televisão, os locais de dança e os bares, os cafés universitários,

(...) os livros e as piadas" (Skármeta,1996:13).

É importante reforçar a ideia de que não basta ser percepcionado pelos outros

como pertencendo a um determinado grupo étnico. É preciso que nós nos

percepcionemos enquanto tal, que nós nos identifiquemos, ou seja, que

encontremos semelhanças com esse grupo e que essas semelhanças nos

distingam dos demais.

O conceito de identidade tem sido apresentado enquanto uma construção

social, ou seja, enquanto um modelo que coloca a ênfase no carácter dinâmico

e flexível dos vários elementos que compõem a etnicidade. Estes elementos

(fronteiras étnicas, cultura e identidades) são negociados, produzidos e

definidos através da interacção social inter e intra comunidades étnicas13.

12

Este livro trata a história de um rapaz chileno de 14 anos, que, por vários motivos, foi compelido a partir para a Alemanha com a sua família, em busca de uma vida melhor. 13

Sobre este tema veja Nagel (1994)

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Afinal, quem sou eu?

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Ao afirmar que a identidade é uma construção social, não estou, de forma

alguma, a menosprezar o papel da história e a importância do passado na

formação deste elemento.

A identidade de um indivíduo ou de um grupo é o resultado das interacções

sociais que se estabelecem hoje e que se estabeleceram ontem, por outras

palavras, é o produto das vivências do presente e das experiências do

passado.

Mas, como explicar este fenómeno da preservação da cultura e identidade dos

grupos étnicos? Surgem, então, dois polos de análise: o paradigma

primordialista e o paradigma circunstancialista ou instrumental.

O primordialismo baseia-se na ideia de que a etnicidade é fixa, cumulativa e

estável, resistindo a todas as tentativas de penetração cultural, diluição ou

absorção por parte da cultura dominante. A etnicidade surge como o resultado

de uma herança inviolável transmitida de geração em geração.

De acordo com esta visão, "o homem é visto como um leopardo que não pode

alterar as suas manchas étnicas" (McKay, 1982:398).

Para os instrumentalistas, a etnicidade é efémera, variável, circunstancial e

manipulável.

Os membros dos grupos étnicos não estão unidos apenas por partilharem uma

mesma cultura. Os grupos étnicos são, sobretudo, grupos de interesses: o ser

humano é entendido enquanto um agente activo que apresenta e ostenta os

seus emblemas étnicos de forma selectiva e estratégica, ou seja, os indivíduos

ostentam a sua identidade étnica de acordo com as vantagens que daí possam

advir.

Estes dois pontos de vista, diametralmente opostos, suscitam uma série de

questões: Se a etnicidade é primordial, como explicar o surgimento de novas

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identidades entre a descendência dos migrantes? Se a etnicidade é

circunstancial, como justificar a preservação e continuidade de determinadas

práticas culturais entre as gerações mais novas? Como poderíamos

compreender a identidade dos filhos dos migrantes cabo-verdianos se, por um

lado, lhes negássemos a capacidade (e necessidade) de reconstrução e

reinvenção identitária e, por outro, ignorássemos a ligação que mantêm com

uma terra que nunca viram e com uma cultura originária de um outro espaço?

Na verdade, não existe ninguém que possa tornar-se apenas uma coisa ou

outra. Por exemplo, quando um cabo-verdiano vem viver para Portugal, nem se

tornará absolutamente português nem permanecerá completamente cabo-

verdiano, intocado pela experiência de viver noutro espaço (ver Cohn-Bendit,

1992).

É por esta razão que, à semelhança de autores como Nagel (1994), Anthias

(1992), Lepstein (1978) e Cornell et al. (1998), adiro ao modelo que concilia

estes dois pontos de vista, o qual pode ser graficamente resumido da seguinte

forma:

Figura 1. Primordialismo Instrumentalismo

País de origem País receptor História História Cultura Cultura Língua Língua Território Território Religião Religião

Os migrantes, sobretudo os seus descendentes, ao percepcionarem o “outro”, vão consciencializar-se da diferença. A sua identidade, construída e reconstruída, resulta de uma acção consciente e não-consciente assim como da percepção do “outro” sobre o “nós”.

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A dimensão social é inerente à noção de identidade étnica, uma vez que

resulta da díade “nós / outros”.

Em relação à questão da identidade social e à imagem de autores como

Hurtado et al. (1994) e Verkuyten (1992), baseei-me na teoria da Identidade

Social de Tajfel, a qual constitui uma base teórica de grande interesse para as

questões relativas à formação da identidade, persistência e mudança (na

medida em que enfatiza a causalidade da categorização social e da

comparação social). É por esta razão que é considerada um instrumento

valioso para a compreensão da mudança da identidade social dos imigrantes

como resultado de viverem num novo País.

Tajfel defende que são três os processos psico-sociais que estão na base da

formação da identidade social; são eles:

i) Categorização social: nacionalidade, língua, raça, etnicidade ou qualquer

outra característica social ou psicológica que tenha significado em contextos

sociais particulares, podem estar na base da categorização social e, portanto,

na base da criação da identidade social;

ii) Comparação social: é natural que, assim que se identifiquem com um grupo,

tendam a compará-lo com outro ou outros grupos ("o sentimento do eu

necessita, antes de mais, da presença do outro para desenvolver-se: O outro é

o companheiro permanente do eu na vida psíquica", Sedano, 1997:106);

iii) Aspectos cognitivos e emotivos: tentativa de alcançar um sentido positivo de

distinção (Hurtado et al., 1994).

Relativamente à categorização social, a primeira questão a ser colocada não é

"Quem são os colegas de que mais gostas?", mas sim, "Quem sou eu?", na

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medida em que aquilo que realmente interessa é o modo como nos

percepcionamos e definimos e não aquilo que sentimos em relação aos outros.

Este modelo de identificação enfatiza o papel da categorização social enquanto

processo cognitivo (ver Verkuyten,1992).

O autor acima citado chama a atenção para o facto de que, tradicionalmente, a

identidade étnica dos adolescentes era medida com o recurso a técnicas de

"escolha forçada", nomeadamente com o recurso a bonecos, desenhos ou a

questionários com respostas condicionadas.

Um estudo clássico é o "Doll Test", desenvolvido por Clark e Clark nos anos 30

e 40. Basicamente, o que se pretendia era analisar a identificação racial e a

preferência racial de crianças brancas e negras, com idades compreendidas

entre os 3 e os 6 anos.

Para tal, procedeu-se da seguinte forma: os investigadores apresentaram

quatro bonecos ao objecto de estudo, idênticos em todos os aspectos excepto

no que concerne às variáveis sexo, cor da pele e cabelo. Dos dois bonecos, um

possuía pele castanha e cabelo preto, o outro pele branca e cabelo loiro. As

mesmas características podiam ser encontradas nas duas bonecas. Às

crianças foi-lhes sugerido que escolhessem um dos quatro bonecos e o

entregassem ao pesquisador, mediante as seguintes questões: Dá-me o

boneco com o qual (1) gostasses de brincar e que: (2) é bonito e simpático, (3)

tem mau aspecto, (4) tem uma cor bonita, (5) se assemelha a uma criança de

cor, (6) se assemelha a uma criança negra, (7) mais se parece contigo.

Com esta última questão, os autores pretendiam medir a identificação racial

das crianças; com as quatro primeiras procuravam obter dados relativos à sua

preferência racial e com as restantes perguntas (5, 6 e 7) sobre a consciência

racial.

Clark e Clark concluíram que, apesar de todas as crianças brancas se

identificarem com a sua própria raça e preferirem os da sua raça, muitas

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crianças negras não se percepcionavam enquanto negras e, muitas vezes,

mostraram preferência pela cor branca (sobre o tema veja Gopaul-McNicol,

1995 e Chin, 1999).

Contudo, a real validade destes testes tem sido discutida, uma vez que esta

abordagem não contempla o facto de a identidade étnica não ter de ser um

aspecto psicológico saliente em situações sociais particulares, podendo ser

irreal o assumir que a etnicidade é um critério relevante na auto-definição.

Apesar de a etnicidade não ter de ser um aspecto psicológico de primacial

importância em todas as situações, teremos a oportunidade de verificar que,

para estas crianças de origem cabo-verdiana, a pertença étnica constitui um

evidente elemento identitário.

3. Métodos e Técnicas

3.1 Pesquisa Bibliográfica

A pesquisa bibliográfica é uma etapa importante de toda a produção científica.

Para este trabalho considerei indispensável proceder a uma recolha

bibliográfica e documental em duas áreas geográficas distintas: Portugal e

Cabo Verde (por forma a apreender o "nosso olhar" sobre o outro e o "olhar do

outro" sobre ele próprio).

Em terreno português, comecei por consultar obras de carácter geral sobre os

cabo-verdianos, disponíveis em Instituições como Biblioteca do Museu

Nacional de Etnologia, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Informação e

Documentação Amilcar Cabral (CIDAC) e Biblioteca Nacional.

Nas Bibliotecas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da

Universidade Aberta e do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da

Empresa (ISCTE), consultei obras de carácter geral (relativas sobretudo à

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metodologia e aos cabo-verdianos) e obras de carácter específico (que tratam

as temáticas da identidade, migrações, etnicidade, "filhos da diáspora" e

relações interétnicas).

Consultei ainda o Recenseamento Geral da População de 1991 disponível no

Instituto Nacional de Estatística.

Na medida em que o meu objecto de estudo é constituído por crianças, senti

necessidade de me dirigir a instituições como o Centro de Documentação do

Secretariado Coordenador de Programas de Educação Multicultural, a OIKOS,

o Departamento Cultural da Câmara do Seixal e o Departamento Cultural da

Câmara Municipal da Amadora com os seguintes objectivos: i) recolher

material pedagógico que facilitasse o meu relacionamento com os "nativos" e

que permitisse a recolha dos dados desejados e ii) tomar conhecimento de

alguns dos trabalhos que estão a ser realizados junto da população cabo-

verdiana.

Os meus primeiros contactos físicos com a população cabo-verdiana tiveram

lugar na Associação Cabo-verdiana de Lisboa e na Associação do Alto dos

Moinhos. Nestas instituições tive igualmente oportunidade de proceder à

consulta e aquisição de algumas obras (sobre Cabo Verde e sobre os cabo-

verdianos).

Em Cabo Verde, "meu lugar recôndito do planeta", dirigi-me à Rádio

Educativa14 e ao Instituto Pedagógico onde consultei livros e revistas relativos à

identidade, cultura e educação cabo-verdianas. No Instituto Pedagógico tive

ainda acesso a material audio-visual sobre experiências-piloto que estão a ser

14

A Rádio Educativa surgiu em 1980 com o objectivo de dar a conhecer o Sistema Educativo em Cabo Verde e, em 1984, passou a dar primazia ao ensino à distância via rádio (procurando desta forma chegar ao mundo rural). Em 1988, apesar do seu sucesso estrondoso, verificou-se o abandono do ensino à distância, passando a privilegiar-se a recolha de opiniões relativas à reforma curricular. Já em 1966, e com o apoio de um subsídio para os PALOP, voltou-se para o ensino à distância, via rádio e televisão. Têm tido igualmente a seu cargo a divulgação e a redacção do "Boletim Educação".

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realizadas com alguns alunos do 1º e 3º Ano (no seguimento da reforma

curricular).

Tive ainda a oportunidade de contactar a Embaixada de Portugal em Cabo

Verde, a Câmara Municipal da Praia e o Estabelecimento para o Ensino

Superior.

Esta fase da investigação proporcionou-me um conhecimento dos principais

temas abordados por outros investigadores que se interessam pelo estudo dos

cabo-verdianos (em Portugal e no país de origem), assim como uma maior

familiaridade com o tema.

Não pude deixar de ficar impressionada com o volume de publicações

referentes a esta temática. No entanto, não me deixei dominar pela falácia de

que já se escreveu tudo sobre determinado assunto. Certamente que não

sendo um assunto inovador, não é, de forma alguma, um assunto esgotado

(assim como não existe nenhum tema sobre o qual ainda não se tenha dito

algo, também não existe um tema sobre o qual já se tenha dito tudo).

É importante referir que, por uma questão de gestão de recursos, optei por não

proceder ao recenseamento de todas as obras relativas aos cabo-verdianos,

limitando-me sobretudo à temática da educação.

3.2 Pesquisa Etnográfica

À semelhança de Barley, podemos interrogar-nos: "Porque quereremos nós

realizar trabalho de campo?" (Barley, 1983:7). A este propósito, Jenkins afirma

que o antropólogo reclama a sua autoridade relativa ao conhecimento do

objecto de estudo na medida em que afirma: Eu sei porque eu estive lá

(Jenkins, 1997:4).

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Ainda segundo o mesmo autor, o trabalho de campo é um rito de passagem

profissional, um ritual de iniciação. Sem essa "experiência de alguma forma

traumática a nível pessoal" (Jenkins, 1997:5), o antropólogo não será

reconhecido pelos outros antropólogos enquanto um membro do grupo.

Este é um trabalho de carácter qualitativo, na medida em que considero que a

observação participante ou etnografia, "como é hoje cada vez mais designada"

(Moreira, 1994:93), é a técnica mais adequada, sendo a única a permitir que o

investigador observe o que as pessoas realmente fazem (Gans, 1999).

Eder et al. (1999) referem algumas das vantagens do método etnográfico,

nomeadamente o seu carácter flexível e auto-correctivo: contrariamente à

pesquisa experimental ou quasi-experimental, na pesquisa etnográfica as

questões iniciais podem ser reformuladas e reestruturadas. Esta característica

não implica, de forma alguma, a inexistência de um esquema analítico inicial. O

que se procura é estabelecer um equilíbrio entre a estrutura orientada pelo

problema e hipótese de pesquisa e a flexibilidade, em vista a compreender o

ponto de vista do nativo.

A natureza flexível deste método possibilitou-me a concretização dos objectivos

iniciais. O contacto directo e contínuo com o objecto de estudo permitiu-me

reestruturar conceitos prévios e desenvolver novas ideias sobre os fenómenos

com os quais me ia deparando.

"O objectivo último (da pesquisa etnográfica) é conhecer uma cultura como se

realmente se tivesse nascido nela. Mas, na medida em que conhecer é

compreender, só se conhece um grupo humano e a sua cultura adoptando os

seus próprios pontos de vista" (Moreira, 1994:108).

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3.2.1 Fase Exploratória

O sucesso de uma investigação não se resume ao acesso às fontes

documentais. É igualmente importante que o pesquisador negoceie o acesso

às instituições directamente relacionadas.

Estando interessada em realizar o trabalho de campo numa escola do ensino

básico no Concelho do Seixal (facilidade no acesso físico e representatividade

do concelho), comecei por marcar uma entrevista com o Vereador da Cultura,

Educação e Desporto da Câmara Municipal do Seixal, com o objectivo de

apresentar o projecto de pesquisa e de, assim, suscitar o interesse da

autarquia e consequente apoio.

Felizmente as minhas perspectivas concretizaram-se: o projecto suscitou a

atenção do Vereador o qual delegou num dos responsáveis pela área

educativa a tarefa de me auxiliar e acompanhar em tudo o que fosse

necessário.

Assim, depois de alguns encontros, chegámos à conclusão de que a escola

ideal para a realização do trabalho seria a Escola Básica nº5 de Santa Marta

de Corroios, na medida em que reúne uma série de condições importantes, tais

como: i) presença significativa de crianças de origem africana (sobretudo cabo-

verdiana); ii) professores receptivos; iii) inexistência de um projecto similar a

funcionar; iv) Bairro de Santa Marta de Corroios sujeito ao Plano Especial de

Realojamento - PER (o que certamente provocará alterações no modo de viver

dos seus habitantes).

Era agora necessário dirigir-me ao espaço de estudo seleccionado e despertar

o interesse dos professores para o projecto.

Também neste momento foi importante o apoio da Câmara Municipal do Seixal,

na medida em que um dos funcionários teve a amabilidade de me conduzir à

Escola de Santa Marta, apresentando-me oficialmente enquanto investigadora

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Afinal, quem sou eu?

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a desenvolver um trabalho com interesse quer para a Instituição em causa quer

para a própria Autarquia.

O resultado foi o melhor possível: os professores prontificaram-se a apoiar esta

iniciativa. Ficou então estipulado que eu iria trabalhar com todos os alunos do

3º e 4º Anos15. Para isso os professores dispensariam cerca de 1H30m (uma

vez por semana) das suas aulas para esse fim.

Ultrapassados estes dois obstáculos (Câmara e Escola), havia ainda que

conseguir autorização da Direcção Regional de Educação de Lisboa (DREL).

Foi então enviada uma carta a apresentar a minha intenção acompanhada de

uma cópia do meu projecto de investigação e de um documento comprovativo

do interesse da Instituição Escolar pelo desenvolvimento do projecto.

Negociado o acesso às instituições, estava na altura de "fazer as malas" e

partir para o terreno.

Antes de dar início à fase de recolha de dados, considerei importante dedicar

algum tempo à exploração do terreno e do objecto de estudo, por forma a

facilitar a minha adaptação a uma realidade que me era totalmente

desconhecida.

Assim, entre Março e Junho de 1996, visitei regularmente a Escola em

questão. Neste período imperaram as conversas informais (com alunos,

auxiliares e professores) e a observação participante.

Lidar com crianças com idades compreendidas entre os 7 e os 14 anos de

idade não é tarefa fácil. De início, tudo me era estranho: a linguagem que

utilizam, as brincadeiras, as estratégias de obtenção daquilo que pretendem, a

percepção dos espaços, etc.

15

Foram estes os alunos seleccionados na medida em que já sabem ler e escrever, assim como expressar as suas ideias e opiniões (o que dificilmente sucede com alunos mais novos).

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Afinal, quem sou eu?

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Sabendo que “as crianças possuem quadros analíticos e padrões específicos

com os quais interpretam e caracterizam os adultos e que se consideram

diferentes destes em muitos aspectos, construindo um mundo para si à parte

destes, (...) parece pouco razoável que o investigador ambicione que as

crianças o vejam como igual” (Saramago, 1999:24).

Assim, nesta fase exploratória, adoptei uma postura corsariana (Corsaro,

1997), ou seja, limitei-me a entrar em zonas de brincadeiras e a esperar que as

crianças reagissem à minha presença.

Esta minha “intromissão” inicial converteu-se em motivo de alegria e satisfação

pelo facto de um adulto querer partilhar da sua realidade.

À semelhança do sucedido com Corsaro (1997), as crianças passaram a ver-

me como “uma criança grande”, como uma "companheira de brincadeira". Se,

por um lado, esta situação contribuiu para que ganhasse a confiança das

crianças, por outro, distanciou-me do papel de professor e do natural respeito

que por ele têm: em certas ocasiões, só na presença do respectivo professor é

que as crianças executavam as tarefas que lhes haviam sido propostas.

Eder et al. (1999) referem que este tipo de situações são vulgares, uma vez

que os etnógrafos que têm por objecto de estudo crianças e jovens, tendem a

evitar valer-se dos papéis de autoridade inerentes à sua condição de adultos.

Inclusive, esta prática acaba por se tornar vantajosa, uma vez que: i) reduz o

desequilíbrio de poder que se verifica entre adultos e crianças (as crianças

tendem a confiar nestes adultos) e ii) permite uma recolha de dados mais

autênticos.

Assim, o que parecia constituir um aspecto negativo acabou por tornar-se uma

vantagem. E a verdade é que as crianças acabaram por realizar trabalhos

extremamente interessantes e ricos em conteúdo como teremos oportunidade

de o constatar.

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Afinal, quem sou eu?

50

Apesar deste estudo se centrar no espaço Escola nº5 de Santa Marta de

Corroios, acabei por sentir necessidade de conhecer um outro espaço: o Bairro

que dá o nome à escola, onde reside a maioria das crianças cabo-verdianas

que frequentam a escola. Só assim poderia comparar o comportamento das

crianças no espaço público e no espaço privado.

A abordagem ao bairro foi outra das dificuldades com que me defrontei. Qual a

melhor forma de entrar num bairro degradado, onde todos os indivíduos são

observados com desconfiança, sobretudo os estranhos? Esta é uma das

questões para a qual não existe uma solução óbvia nem fácil.

Inicialmente optei por me deslocar ao local na companhia de entrevistadores

que se encontravam a realizar inquéritos para a Santa Casa da Misericórdia.

No entanto, este primeiro contacto revelou-se infrutífero, na medida em que

proporcionou um conhecimento da área mas não das pessoas e do seu modo

de viver e sentir as coisas.

Conversando com uma funcionária da escola, esta ofereceu-se para me

introduzir no bairro, uma vez que, sendo cabo-verdiana, tem família e amigos a

residirem nesse espaço.

Desta forma, tive a oportunidade de conversar e conhecer várias pessoas do

bairro e, sobretudo, de observar as "minhas" crianças no seu quotidiano.

Conhecida a escola e o bairro, considerei ainda pertinente deslocar-me a Cabo

Verde, na tentativa de alcançar um melhor entendimento de uma cultura que

não é a minha e de poder então afirmar: "eu sei porque eu estive lá".

Aliás, este método de pesquisa, designado por método comparativo, "(...) tem

sido considerado um instrumento essencial de análise nas ciências sociais. É

através do estudo do significado das semelhanças e diferenças entre os

fenómenos que sobretudo se tem progredido" (Barata, 1990:184).

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Por forma a minimizar o síndroma de "um antropólogo em Marte" (Sacks,

1996), foi, então, levada a cabo uma série de medidas necessárias a uma

estadia em terreno exótico.

Uma das preocupações da prática antropológica prende-se com o uso do

idioma local (inclusive, este é um dos elementos a ser considerado na equação

pessoal do investigador). A língua é o veículo que possibilita a passagem de

conhecimentos de geração em geração e o entendimento entre os vários

membros da sociedade.

Não sendo a comunicação entre portugueses e cabo-verdianos difícil de

estabelecer, não pude, no entanto, deixar de considerar as vantagens inerentes

à aprendizagem do crioulo cabo-verdiano: maior facilidade na comunicação e,

consequentemente, menor margem de erro na tradução de termos mais

específicos e de difícil compreensão.

Na medida em que os cursos de crioulo já iam em fase adiantada

(nomeadamente na Associação Regresso das Caravelas, a funcionar na

Universidade Católica de Lisboa), não me restou outra alternativa que a de

encontrar alguém disposto a auxiliar-me neste processo.

Mas onde poderia encontrar essa pessoa? Desloquei-me à Associação Cabo-

verdiana em Lisboa, onde acabei por conhecer um badiû16, de nome José, que

veio a revelar-se, para além de um informador qualificado, um importante elo

de ligação com as gentes da cidade da Praia (se tivesse origem cabo-verdiana,

certamente que atribuiria este encontro ocasional à força do Destino).

A aprendizagem do crioulo não foi tarefa fácil, mas aprendi algumas frases e

vocábulos básicos o suficiente para o estabelecimento de uma conversa

informal.

16

Termo pelo qual os cabo-verdianos de Santiago são conhecidos. Já os cabo-verdianos das ilhas de Barlavento (sobretudo de S. Vicente), são chamados de sampajudo.

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Nesta fase considerei também pertinente contactar com a Embaixada de Cabo

Verde em Portugal, visando os seguintes objectivos: a) dar a conhecer a

investigação que estava a ser levada a cabo e b) obter nomes de informadores

qualificados em Cabo Verde. Este contacto veio a revelar-se bastante frutuoso.

Parti então para Cabo Verde onde permaneci por um período de apenas três

semanas (por questões de custos), repartido da seguinte forma: duas semanas

na Cidade da Praia (a maioria dos cabo-verdianos residentes em Portugal são

badiûs), quatro dias no Mindelo (S. Vicente) e dois no Paúl (Santo Antão)17.

Numa escala que compreenda um intervalo que vai do mais simples ao mais

complexo, posso afirmar que, em Cabo Verde, a tarefa mais simples consistiu

na deslocação às várias Instituições que poderiam fornecer informações e

dados preciosos para o prosseguimento do trabalho. A tarefa mais complexa,

ainda que a mais interessante, consistiu na entrada na comunidade.

No entanto, não posso deixar de afirmar (por muito que me sinta tentada a

fazê-lo) que a minha abordagem foi em muito facilitada em consequência dos

contactos previamente estabelecidos com José, o qual, ainda em Portugal, me

deu o endereço da sua família que se encontra a residir na cidade da Praia,

mais especificamente no Bairro da Achadinha.

No primeiro dia em que contactei a família de José, fiquei a conhecer esse

mesmo Bairro (na verdadeira acepção da palavra): a D. Joana, mãe de José,

apresentou-me, orgulhosamente, a todos os amigos e conhecidos de seu filho.

A partir desse momento, passei a sentir-me parte da família (ver Anexo 1:8-11).

Apesar de sentir que estava a "tornar-me nativa" (sabendo no entanto que

nunca poderia vir realmente a sê-lo), permaneci sempre, ou procurei

permanecer, de "olhar distanciado", por forma a não comprometer a qualidade

17

Não pude deixar de observar a rivalidade entre habitantes das diversas ilhas. Na Ilha do Sal, já havia sido alertada para esta situação por um motorista de táxi conhecido por James, o qual, ao referir-se ao badiû fê-lo de forma depreciativa, afirmando que é parecido ao nigeriano. Quando querem ofender alguém, apelidam-na de badiû (ver Anexo 1: 3).

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dos dados obtidos. "O ideal do etnólogo consiste em estar bastante distanciado

para compreender o sistema como sistema e bastante participante para vivê-lo

como indivíduo" (Augé, 1999:38).

A propósito da objectividade nas ciências sociais, Gans (1999) refere que a

partir do momento em que um investigador não tem a capacidade de se

distanciar do seu objecto de estudo, ou de permitir que este mantenha a

mesma distância, as regras da fidedignidade e validade dos dados qualitativos

são postas em causa (reduzindo a confiança que outros cientistas e leitores

terão na obra).

Na verdade, a pesquisa etnográfica supõe uma relação estreita entre

observador e observados. Para que o investigador conheça o seu objecto de

estudo, é necessário que o compreenda, ou seja, que tenha a capacidade de

se colocar no lugar do Outro.

É por esta razão que, sempre que me encontrava em contacto com os cabo-

verdianos, procurei agir com naturalidade e participar nas suas actividades.

Inclusive, cheguei a assistir a uma missa que se realizou num Domingo (22 de

Setembro de 1996), na Capela da Achadinha (ver Anexo 1:18-19).

Nesse mesmo dia a família de José levou-me a conhecer uma pequena

povoação, Água di Gato. Durante o percurso parámos várias vezes para que os

homens saíssem do carro e visitassem alguns amigos. Entretanto, como não

podia deixar de ser, bebiam pelo menos um copo de grogue18. Foi nesta

viagem que aprendi e compreendi uma palavra em crioulo que caracteriza

muito bem o kauberdiano: essa palavra é fadjado19. Foi também nesse dia que

me foi permitido invadir a esfera masculina e provar um pouco de grogue (as

outras mulheres estavam todas num outro espaço) (ver Anexo 1:21-24).

18

Bebida típica de Cabo Verde, consistindo em aguardente de cana-de-açúcar. 19

Uma pessoa fadjada é aquela que oferece tudo aquilo que possui aos seus amigos, sem exigir nada

em troca - assenta no princípio da reciprocidade.

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Afinal, quem sou eu?

54

Ao recordar esta experiência, não posso deixar de concordar com Eder et al.

(1999) quando afirmam que um dos privilégios mais importantes do etnógrafo

é, precisamente, o de ter a oportunidade de observar o dia-a-dia do objecto de

estudo. Esta prerrogativa deve ser encarada como um "presente valioso", uma

vez que os etnógrafos não têm o direito de participar nestas actividades (têm

sim a possibilidade de poder fazer parte delas).

No entanto, deparei-me com outras situações em que não sabía como

comportar-me. Ainda em Portugal fui alertada para não comer gelados de água

e, sobretudo, para ter especial cuidado com a água corrente. Mas, num dos

dias em que fui ao Bairro da Achadinha, o pai de José fez questão de comprar

um desses gelados (de calabaceira) para que não me fosse embora sem

provar uma especialidade de Cabo Verde. Como é que se sentiriam se

recusasse a sua oferta? Optei por aceitá-la, ainda que com alguma relutância

(se adoecesse, qual seria o meu destino?) (ver Anexo 1:12).

Na obra "As Três Sereias", Wallace, através da personagem Maud Hayden

(antropóloga), trata muito bem esta questão. Assim,

"À questão colocada por Claire - (...) Como nunca participei numa coisa destas,

como devo comportar-me?, Maud responde: - De facto, suponho que existem

alguns pontos de referência que uma pessoa inexperiente neste campo deve

ter sempre bem presentes. Não te deves mostrar melindrada, superior ou

condescendente. Tens de te adaptar ao ambiente e à nova situação social.

Tens de dar a impressão de que tudo te agrada (...) Sempre que possível, se

fores convidada para participar numa festa, numa tarefa, num acto recreativo,

tenta imitá-los. É tudo questão de grau" (Wallace, 1988:64).

É neste sentido que Moreira afirma que o antropólogo, ao realizar um trabalho

de investigação, "sofre um processo de socialização em que pessoalmente se

vê envolvido" (Moreira, 1993:15). É importante que este profissional tenha a

capacidade de se adaptar a um ambiente que não é o seu, caso contrário,

dificilmente conseguirá desenvolver a sua pesquisa. De facto, em que medida

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Afinal, quem sou eu?

55

uma pessoa desadaptada consegue obter a confiança dos outros? Todos

conhecemos o ditado: Em Roma sê romano.

Um outro factor que condicionou o sucesso da investigação prende-se com

variáveis sociológicas, nomeadamente a idade (faixa etária dos 20), o sexo

(feminino), a raça (branca) e a nacionalidade (portuguesa).

A certa altura, constatei que, na minha presença, a D. Joana tinha o cuidado de

cumprimentar todos os vizinhos pelos quais ia passando. Em tom de gracejo,

cheguei a afirmar que parecia o Presidente da Câmara da Praia, ao que me

respondeu:

"Se eu não proceder assim, vão dizer que estou armada em fina, porque tenho

uma amiga portuguesa." (ver Anexo 1:13-14)

Ainda em Cabo Verde (e sobretudo na Praia), optei pelo registo malinowskiano,

ou seja, recorri ao famoso diário de campo. Na medida em que o meu objectivo

era o de compreender uma cultura diferente não me limitando ao saber

livresco, considerei que seria importante registar tudo aquilo que me parecesse

pertinente: percursos de vida, opiniões, sentimentos, informações, etc. Para tal,

assim que chegava ao quarto da pousada onde me encontrava alojada,

dedicava algum do meu tempo a esta actividade (há muito que aprendi que não

devemos confiar totalmente na nossa memória por muito boa que ela seja, ou

que aparente ser).

Para além do registo escrito dos dados, a "raison d`être do observador no

terreno" (Moreira, 1994:129), também procedi ao registo visual, sobretudo

através da fotografia. Esta tarefa foi levada a cabo por um amigo que chegou à

Cidade da Praia uma semana mais tarde e cuja estadia teve uma duração de

duas semanas.

É ainda importante referir que esta viagem não se resume a um somatório de

pequenos sucessos. Infelizmente, alguns objectivos não consegui inteiramente

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Afinal, quem sou eu?

56

alcançar, nomeadamente o contacto com escolas do ensino básico

(professores e alunos). Cheguei mesmo a levar algum material escolar para

distribuir por essas crianças (cadernos, lápis, lapiseiras, canetas, apara-lápis,

papel de lustro, plasticina, balões, etc). Porém o que sucedeu é que,

contrariamente às informações que me haviam sido dadas pela Embaixada de

Cabo Verde em Portugal, o Ano Lectivo naquele país não tem início na mesma

altura que em Portugal, mas sim mais tarde.

Pretendia aplicar, nas escolas, alguns testes, sobretudo o TST (sobre o qual

falarei mais adiante) e trazer desenhos feitos por essas crianças (para poder

compará-los com o material conseguido em Portugal), mas a verdade é que

não me foi possível. Contudo, o importante é que tal facto não me

desencorajou, e acabei por concretizar todos os outros objectivos a que de

início me propus.

3.2.2 A Recolha dos Dados

De regresso a Portugal, iniciei o trabalho na Escola de Santa Marta de

Corroios.

Procurando averiguar como é que as crianças de nacionalidade e/ou origem

cabo-verdiana se definem e até que ponto é que a percepção que têm de si é

influenciada pelo exterior, ou seja, pela relação que estabelecem com os seus

colegas, utilizei várias técnicas, entre as quais destaco um teste baseado no

modelo do conhecido TST.

O "Twenty Statements Test" tem por objectivo que os sujeitos se identifiquem

espontaneamente. No entanto, por uma questão de concentração de

informação e à semelhança de autores como Verkuyten (1992) e Hurtado et al.

(1994), optei por seleccionar previamente uma série de categorias (observadas

na fase exploratória).

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Afinal, quem sou eu?

57

Este teste foi aplicado a todas as crianças sob a forma lúdica. Assim, no início

da aula forneci a cada aluno um conjunto de 13 cartões. Em todos os cartões

era visível uma determinada categoria (veja o quadro nº1). Depois de todos os

alunos terem observado com atenção os cartões que se encontravam em sua

posse, foi-lhes pedido que seleccionassem quatro, em ordem decrescente, por

forma a responderem à questão: "Quem Sou Eu?".

Quadro 1. Categorias apresentadas aos alunos sob a forma lúdica (das 13 categorias tiveram de seleccionar apenas 4).

Género Rapaz /Rapariga (1)

Idade Criança (2)

Nacionalidade Cabo-verdiano(a) (3)

Angolano(a) (4)

Santomenese (5)

Português(a) (6)

"Raça" Branca (7)

Negra (8)

Preta (9)

Mestiça (10)

Estatuto sócio-

económico

Rico(a) (11)

Nem pobre nem rico(a) (12)

Pobre (13)

É importante referir que das cinco variáveis seleccionadas (nomeadamente

género, idade, nacionalidade, “raça” e estatuto sócio-económico), o meu

interesse simplesmente recaiu, desde o início, sobre a nacionalidade (que

corresponde às categorias cabo-verdiana, santomenese, portuguesa e

angolana) e a “raça” (relativa às categorias branca, negra, preta e mestiça). No

entanto, considerei que, face às características do meu universo de estudo e à

índole desta temática, não deveria ser tão explícita. Daí, o ter previamente

estabelecido que as categorias a seleccionar pelos alunos seriam treze e não

oito.

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Afinal, quem sou eu?

58

Não obstante e depois de ter verificado que estas duas categorias são

importantes para transcrever a forma como estas crianças se percepcionam,

irei, na Parte III desta dissertação, desenvolver apenas a questão da

nacionalidade / origem e da “raça”.

Os alunos desenvolveram outros trabalhos (sempre de forma lúdica), os quais,

para além de servirem de apoio ao teste mencionado, visaram suscitar o

debate sobre a tríade "eu"/ "nós" / o "outro" e promover o respeito e tolerância

pela diferença. No fundo, procurei proporcionar-lhes um ambiente intercultural.

Para estes trabalhos baseei-me em métodos projectivos20 utilizados sobretudo

pela Psicologia.

"Psicologicamente, projecção é um processo pelo qual um indivíduo (1) atribui

certos pensamentos, atitudes, emoções ou características a objectos do

ambiente que o rodeia; (2) atribui as próprias necessidades a outros indivíduos

do seu meio; ou (3) extrai inferências incorrectas duma experiência. A

projecção não é reconhecida como sendo de origem pessoal, o que tem como

resultado que o conteúdo do processo é vivido como uma percepção do

exterior e de origem externa" (Freeman, 1962:668).

Este método destina-se a suscitar respostas que revelarão a «estrutura da

personalidade», os sentimentos, valores, motivos, modos característicos de

ajustamento e «complexos do indivíduo». Desta forma, o indivíduo acaba por

revelar dimensões que de outra forma (principalmente, através de

questionários) não se manifestariam. É importante referir que as respostas

obtidas não podem ser classificadas de correctas ou incorrectas, uma vez que

não passam de interpretações e criações do sujeito (ver Freeman, 1962).

20

É importante referir que, à semelhança do TST, não utilizei estes testes na sua forma original. As adaptações que lhes introduzi, permitir-me-iam obter melhores resultados.

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Afinal, quem sou eu?

59

De entre os diversos testes projectivos, utilizei a narração e conclusão de

histórias, o desenho e pintura e o jogo.

Narração e conclusão de histórias

"Meninos de todas as cores", "O patinho feio", "Fada branca, fada negra" e "Os

bons amigos" são algumas das histórias com que trabalhei, tendo sido

seleccionadas de acordo com os objectivos do meu trabalho (ver Anexo

3:37)21.

Depois de as ler ou de sugerir aos alunos que as lessem (tarefa que

executaram sempre com agrado), passávamos à sua interpretação (mediante a

realização de fichas concebidas para o efeito) e, por vezes, à sua reprodução

por escrito (de forma individual).

À semelhança do que disse em relação às categorias seleccionadas para o

TST (pág. 54) a elaboração e utilização deste material foram orientadas no

sentido de apreender a importância da nacionalidade / origem (etnia) e da

“raça” na identidade destas crianças. No entanto e apesar de ter considerado

igualmente impróprio que as questões que integram as fichas de leitura

coincidissem apenas com estes temas, a análise que faço dos dados

recolhidos por esta via incide, somente, em uma ou duas questões (por

exemplo, no texto “Meninos de todas as cores”, a única pergunta que

realmente me interessava era, por razões óbvias, a 8: “Com qual dos meninos

te identificas e porquê?).

Noutras ocasiões, pedi-lhes que inventassem histórias ou situações relativas a

determinados personagens (reais ou não).

21

A maioria das histórias com que trabalhei retirei-as de uma maleta pedagógica adquirida na OIKOS.

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Afinal, quem sou eu?

60

Desenho e pintura

Na grande maioria das sessões de trabalho, senão em todas, foi pedido aos

alunos que fizessem um desenho. Razões não faltavam: ilustração de uma

história, desenvolvimento de um tema (livre ou não), etc.

Para além do prazer que a maioria das crianças sente em executar esta tarefa,

o principal critério que me levou a privilegiar esta técnica prende-se com o

pressuposto de que "cada desenho é o reflexo da personalidade que o criou"

(Di Leo, 1991:33), pelo que esta seria uma das formas do meu objecto de

estudo reflectir um olhar sobre si próprio.

A primeira actividade que propus aos alunos foi a realização do seu auto-

retrato (ver Anexo 4.1:65). Para isso teriam de escrever um breve texto sobre si

e teriam de desenhar a sua imagem numa folha de papel. Mesmo depois de

lhes ter explicado que um auto-retrato deve possibilitar a identificação imediata

do indivíduo, os resultados não deixaram de ser curiosos (verificando-se o

mesmo com o desenho que fizeram da sua família, subordinado ao tema "A

minha árvore genealógica”, como veremos mais adiante).

No seguimento deste, um outro trabalho merece especial atenção. Após a

leitura do texto "Fada branca, fada negra", cuja heroína da história é a Josefina,

a única fada negra a viver no país das fadas brancas, pedi-lhes que

procedessem à sua interpretação e ilustração. Observei então que muitos

alunos retrataram a Josefina à semelhança de todas as outras fadas, ou seja,

retrataram-na como sendo uma fada branca (ver Anexo 4.3:100).

Com base no texto "Meninos de todas as cores", propus-lhes uma actividade

especial: um trabalho em grupo.

Não foi uma tarefa fácil, uma vez que nem os alunos nem a própria sala de

aula estavam preparados para a sua execução. Mas, finda a tarefa, os

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Afinal, quem sou eu?

61

trabalhos conseguidos compensam todas as dificuldades (inclusive, alguns

desentendimentos pessoais).

Jogo

Como já tive oportunidade de referir, estas actividades foram apresentadas às

crianças de uma forma lúdica. "O jogo revela-se fecundo como técnica

projectiva no estudo de aspectos menos evidentes da personalidade. Porque

inestruturado, dá oportunidade de actuação à fantasia e à imaginação e lugar à

originalidade de expressão. (...) A actividade lúdica (...) proporciona um escape

para o afrouxamento de tensões emotivas e para o comportamento manifesto

ou simbólico de expressão de necessidades, desejos, anseios de experiência e

de atitudes, sem receio de censura ou punição" (Freeman, 1962:745).

Durante o meu trabalho no terreno, tive a oportunidade de conceber e de pôr

em prática um jogo que denominei de "Nós e os Outros" 22. Este jogo é

constituído por um mapa mundi e por várias peças que representam crianças

de todo o mundo: de várias "raças", com peças de vestuário distintas,

brinquedos distintos e com histórias de vida diferentes (reflectindo a

diversidade cultural do mundo dos nossos dias). Teve a duração de cinco

sessões, correspondendo cada uma a um continente, sobre o qual eram

contadas histórias que dessem a conhecer essa realidade. No fim de cada

sessão, os alunos tinham de fazer um desenho e uma composição sobre o que

haviam aprendido na aula.

Para a obtenção da informação necessária, recorri ainda a uma outra técnica:

conversas sobre diversos temas, tais como "O racismo", "A amizade", "Direitos

da criança", "A vida no futuro" e "O respeito pelos outros".

A partir destes temas, foi-lhes pedido que fizessem um desenho, inventassem

uma história ou completassem uma ficha.

22

Este jogo é inspirado num outro, da autoria da OIKOS, denominado “O nosso mundo”.

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Afinal, quem sou eu?

62

3.3 Tratamento Estatístico dos Dados

Os dados que obtive no bairro, à semelhança dos recolhidos em Cabo Verde,

prestam-se apenas a uma análise qualitativa. O mesmo não se verifica em

relação aos dados conseguidos no espaço escolar; para os analisar utilizei

métodos qualitativos e métodos quantitativos (estatisticamente manipuláveis).

O instrumento utilizado na análise quantitativa dos dados foi o SPSS (Statistical

Package for Social Sciences).

A aplicação do TST e de outros testes permitiu a obtenção de uma série de

variáveis que descrevem a identidade das crianças. Todas estas variáveis são

formadas por várias categorias, pelo que são variáveis categorizáveis ou

covariáveis. Devido à própria natureza da hipótese de pesquisa e do universo,

as categorias utilizadas, definidas de acordo com o critério em causa, são

qualitativas.

Note-se que a idade que usualmente não é considerada uma variável

categorizada devido ao grande "leque" de valores que pode assumir, neste

caso é, já que as crianças têm obviamente idades que oscilam numa pequena

escala de valores. No Anexo 5 é apresentada uma lista das variáveis incluídas

no estudo e as respectivas categorias de resposta.

Para a análise de variáveis categorizadas são necessários métodos estatísticos

que diferem dos usuais, já que se estudam pequenas escalas de valores. Um

aspecto interessante é o de determinar se as variáveis são independentes

entre si, ou seja, se os indivíduos que respondem de uma determinada forma a

uma pergunta têm mais tendência para responder de um determinado modo a

uma outra questão. Para tal constroem-se tabelas de contigência que são

tabelas que organizam as respostas pelas categorias de duas ou mais

variáveis e, a partir destas, aplicam-se testes de independência entre as

variáveis.

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Afinal, quem sou eu?

63

O teste do qui-quadrado (teste Q) é o teste mais utilizado para testar a

independência de duas variáveis, desde que em todas as células da tabela a

frequência esperada seja 1 em pelo menos 80% das células. No caso de a

amostra ser pequena, utiliza-se o teste exacto de fisher (teste E). Ambos os

testes têm como hipótese a independência das variáveis e a regra dos testes

consiste em rejeitar essa hipótese se o nível de significância p for 0,05 (5%).

Se assim for, diz-se que as variáveis são dependentes, que estão associadas.

É ainda importante referir que, para além dos testes de associação entre

variáveis, procedeu-se igualmente a uma análise descritiva dos dados, onde,

para cada variável, se obteve a distribuição absoluta (número de respostas

para cada categoria) e a distribuição relativa (percentagem de respostas de

cada categoria em relação ao total de repostas obtidas), que nos dão uma ideia

da dispersão das respostas. Note-se que algumas categorias denotadas por:

"não fez o exercício" ou "não sabe", são consideradas "desconhecido"

("missing values"), não sendo por isso consideradas na distribuição relativa.

Para a descrição dos dados foram utilizadas as medidas de localização: média,

mediana e moda. Com o valor da mediana sabemos que metade dos alunos

responderam abaixo ou igual a esse valor (ou seja, divide a amostra ao meio).

A moda representa a resposta mais vezes obtida. No caso das covariáveis, a

mediana e a moda são medidas mais correctas que a média. Por exemplo, no

caso da variável amigos (Anexo 5) cujos valores de resposta possíveis são 1, 2

e 3, a média é 2,373, ou seja, um valor não inteiro que não corresponde a

nenhuma das respostas, enquanto que a mediana é 3, ou seja, metade dos

alunos tiveram respostas menores ou igual a 3 (houve poucas respostas 1 e 2).

A moda dos amigos é 3, pelo que essa corresponde à maioria das respostas

obtidas.

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Afinal, quem sou eu?

64

4. Organização do Trabalho

O trabalho está organizado em três partes. Na primeira, sob o título “Cabo

Verde: Uma terra, muitos homens, um destino”, procuro dar a conhecer a

maneira de ser e de estar do “cabo-verdiano de Cabo Verde” (capítulo 1), os

motivos da partida (capítulo 2) e as principais características deste grupo em

Portugal, nomeadamente, quantos são, quem são, onde residem e o que fazem

(capítulo 3).

A caracterização do objecto de estudo (capítulo 4), assim como do trabalho que

está a ser desenvolvido na Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios

(capítulo 5), dão forma à segunda parte.

Finalmente, na terceira parte, “Percepções do eu em espaço escolar”, são

analisados os trabalhos realizados pelos alunos. O objectivo principal é o de

verificar a importância das categorias “etnia” (capítulo 6) e “raça” (capítulo 7) na

identidade dos alunos. O último capítulo, intimamente relacionado com os dois

anteriores, trata a questão das redes de amizade (até que ponto a escolha dos

amigos está condicionada pela sua etnia e/ou pela sua “raça”?).

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Afinal, quem sou eu?

65

PARTE I

CABO VERDE:

UMA TERRA, MUITOS HOMENS, UM DESTINO

Parte I. Cabo Verde: Uma terra, muitos homens, um destino

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Afinal, quem sou eu?

66

Capítulo 1. Cabo Verde: Terra amada, terra madrasta

Cabo Verde é um território insular de origem vulcânica. Com uma área de 4033

Km2, é constituído por dois grupos de ilhas e alguns ilhéus: o grupo de

Barlavento inclui as ilhas de Santo Antão, S. Vicente, Santa Luzia (desabitada),

S. Nicolau, Sal e Boavista e o de Sotavento é composto pelas ilhas de

Santiago, Maio, Fogo e Brava.

Uma fraca e irregular precipitação anual, estiagens cíclicas, solos pobres e

estéreis23, lestadas24 frequentes e chuvas torrenciais (ainda que raras) são

alguns dos elementos naturais que têm marcado o destino dos filhos de Cabo

Verde.

Desde 1460, aquando da sua descoberta por navegadores portugueses ou ao

serviço do rei de Portugal25, que o país tem sido assolado por períodos de

seca, de fome e de epidemias.

O cabo-verdiano, desde o início condenado ao fracasso, continua,

desesperadamente, a lutar contra o seu destino: o de uma vida dura, difícil e de

miséria. Veiga não hiperboliza quando afirma que "o ilhéu existe, pois, porque

resiste" (Veiga, 1995:19).

23

O progressivo aumento da população e do gado impulsionou, por um lado, o corte desregrado de árvores e arbustos (para a construção de casas, confecção de mobiliário e lenha) e, por outro, em períodos de carência de pastos, as cabras, com o seu apetite voraz, podiam ser avistadas a destruir o que ainda restava de cobertura vegetal. Ainda hoje, é vê-las a comer trapos, jornais, cartão, pontas de cigarros, papel, etc. Estes dois factores, a progressiva destruição da vegetação e o uso indevido dos pastos pela sobrecarga de animais, em especial da cabra, têm facilitado o processo de erosão do solo (Carreira, 1977:36). 24

Ar seco do Nordeste, carregado de poeira e muito prejudicial para as culturas. 25

É possível que outros povos, nomeadamente povos da costa africana (Jalofos, Sereres e Lebús), já tivessem tomado contacto com o arquipélago. No entanto, é inegável que "Quando o descobridor chegou à primeira ilha / nem homens nus / nem mulheres nuas / espreitando / inocentes e medrosos / detrás da vegetação" (do poema "Prelúdio", de Jorge Barbosa). Sobre este tema veja Carreira, 1977; Filho, 1983.

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Afinal, quem sou eu?

67

O Homem crioulo nasce do contacto entre europeus e escravos africanos

trazidos da costa da Guiné (Banhuns, Brâmes, Cassangas, Jabundos, Arriatas,

Balantas e tantos outros). É por este motivo que se torna difícil, se não

impossível, tratar a questão do povo cabo-verdiano sem aludir ao fenómeno da

crioulização. Esta zentz26 é o resultado da interacção de pessoas e culturas

diferentes.

"nossa ´stória é primeiro de seca de seca desde o princípio mas antes vínhamos de longe nus e escravos agora da terra para onde nos traziam as ilhas áridas vazias que construíamos"

É neste contexto que Saint-Maurice esclarece que estamos perante “uma

sociedade essencialmente crioula (...) em que o elemento "mestiço" explicita

uma cultura-síntese emergente do cruzamento afro-europeu que era ao mesmo

tempo um caldeamento de etnias, de culturas e, por último, mas não menos

importante, de grupos sociais (...) "(Saint-Maurice, 1997:38).

Refira-se que, na ocupação do território, também participaram mestiços já

nascidos no arquipélago e escravos libertos.

Ainda que a cultura cabo-verdiana esteja em constante reinvenção e

construção, não se limitando ao somatório de duas culturas tão díspares

quanto a europeia e a africana, é incontestável que o cabo-verdiano não é

somente Cabo Verde: ele é Europa e é África.

Podem assim ser identificados alguns elementos culturais que têm persistido e

resistido a esta simbiose (Saint-Maurice, 1997).

26

Tradução: Gente.

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Afinal, quem sou eu?

68

Apesar das especificidades inerentes a cada ilha, é, pois, possível falar de uma

identidade cultural cabo-verdiana (esquematicamente apresentada no gráfico

seguinte).

Figura 2. Identidade cultural cabo-verdiana

CULTURA CABO-VERDIANA

CULTURA AFRICANA CULTURA EUROPEIA

Tabanca27; Funco28; Batuque29; Modo de construir Cola-sanjon30; cidades e vilas; Pilão31; Formas de vestir; Práticas mágico- Instrumentos Feiticistas; musicais; Etc. Monogamia de direito; etc.

Fonte: Saint-Maurice (1997:40)

São vários os autores que têm reflectido sobre este tema tão pertinente.

Segundo Gonçalves, "os factores dominantes na modelação da alma cabo-

verdiana são: a insularidade, a paisagem, a estiagem, os tipos de actividades -

todos eles conformando o cabo-verdiano como um lugar comum de feições

contraditórias: um homem profundamente marcado e, todavia, sonhando

infindavelmente com as paragens por onde Deus passou e fez multiplicar

27

Sistema de ajuda mútua 28

Residência dos pobres e desfavorecidos (em oposição ao sobrado, à residência dos grandes morgados e detentores do poder económico 29

Tantã ritmado ao jeito africano 30

Dança tradicional do S. João ou Santo Antão 31

Espécie de almofariz. “Rudimentarmente consiste num tronco cilíndrico escavado num dos topos, de modo a servir de recipiente onde se lançam os cereais. (...)encontram-se vários modelos e tamanhos (...), feitos em madeira dura ou pedra, consoante os locais e fins a que se destinam” (Filho, 1997:215). O pau de pilão ´´e o complemento do pilão.

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Afinal, quem sou eu?

69

abundância; esperando e redimindo-se das próprias esperanças; alegre por

natureza e triste por imposição dos acontecimentos; activo e fatalista" (Filho,

1983:30).

Veiga considera que a sociedade crioula “está assente sobre um triângulo em

que na base se encontra o milho, num dos lados o mar, no outro a música e

como mediatriz o crioulo” (Veiga, 1995:31).

Um dos elementos mais importantes da identidade cultural cabo-verdiana é,

sem dúvida alguma, o crioulo de Cabo Verde. Segundo Barbosa, “designam-

se por crioulas ou mais simplesmente crioulos, as línguas que resultaram da

mútua interferência entre dois ou mais idiomas, um deles europeu e o outro ou

outros não europeus, nomeadamente africanos ou asiáticos” (Barbosa,

1969:113).

O crioulo cabo-verdiano nasce precisamente da necessidade de entendimento

entre os vários intervenientes no processo de povoamento do território (não só

entre portugueses e africanos mas também entre os africanos de diferentes

etnias).

Mariano (1991), ao referir-se às bases da crioulidade, menciona o ruralismo

que, no fundo, traduz o ciclo do milho, a mestiçagem e a insularidade.

Também Saint-Maurice (1997) incide sobre esta problemática. Para a autora, a

identidade cultural cabo-verdiana estrutura-se a partir de um eixo básico – o

processo de miscigenação. No entanto, chama a atenção para a pertinência de

dois outros elementos que são a insularidade e as condições naturais

adversas.

Todos estes autores citam o mar como um dos factores que mais contribui na

formação da identidade cabo-verdiana. De facto, nenhum cabo-verdiano é

indiferente à imensidão do mar que cerca a sua ilha; se, por um lado, são

invadidos por um sentimento de evasão, expresso pelo desejo de partida rumo

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Afinal, quem sou eu?

70

a uma vida condigna, por outro, sentem-se tristes com a possibilidade de terem

de deixar a sua família, os seus amigos e a terra onde nasceram.

Jorge Barbosa expressa esta dualidade de sentimentos no seguinte poema:

“Navio aonde vais deitado sobre o mar? Aonde vais levado pelo vento? Que rumo é o teu navio do mar largo? Aquele país talvez onde a vida é uma grande promessa é um grande deslumbramento! Leva-me contigo navio. Mas torna-me a trazer!”

No entanto, são muitos os que partem e poucos os que voltam.

Apesar das agruras da vida, a morabeza32 e a hospitalidade, também fazem

parte da maneira de ser do cabo-verdiano que considera a partilha, assente no

princípio da reciprocidade, uma obrigação.

A crença em Deus é outro atributo do ilhéu; só assim se compreende que,

apesar das adversidades, continuem a acreditar que melhores dias virão: a

chuva há-de cair, o milho há-de crescer, a sua mesa será farta, os seus filhos

crescerão fortes....

É de realçar que a ideia que os cabo-verdianos têm de Deus tende a ser uma

ideia negativa: afinal de contas é Ele o responsável pelo seu triste fado.

32

Amorabilidade, afectividade.

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Afinal, quem sou eu?

71

Vamos agora analisar a alimentação do cabo-verdiano pois o tipo de

alimentação de um grupo certamente que contribui para um maior

conhecimento desse mesmo grupo. O estudo das suas carências e

excedentes, seus gostos e receitas, ou aspectos ligados ao simbólico,

constituem características singulares da respectiva cultura (Filho, 1997).

O milho, o cuscus33, a cachupa34, o fonguinho35, a camoca36, a batata doce, o

rolão37, a carne de porco, a cabra e frutas diversas (papaias, bananas, mangas

e goiabas) constituem a base de alimentação do cabo-verdiano.

Em Cabo Verde, “comer milho é sinónimo de comer” (Filho, 1997). A

importância deste cereal, assim como da cabra (animal de “ao pé da porta”), é

tão grande que Oliveira et al. chegam mesmo a afirmar que “sem o milho e sem

a cabra não teria sido possível o povoamento das ilhas. O milho e a cabra

deram-se as mãos, permitindo a eclosão e evolução de uma cultura dentro do

mundo de influência portuguesa. (...)Tanto o milho como a cabra se

notabilizaram pela sua ubiquidade, resistência e capacidade de adaptação aos

mais desvairados climas e terrenos. Em todos os paralelos e em todas as

latitudes conseguem sobreviver, o que não acontece com outros cereais e

outras espécies leiteiras” (Filho, 1997:228).

Não deixa de ser curioso estabelecer um paralelo entre os “filhos de Cabo

Verde” e estes dois elementos: à semelhança do milho e da cabra, também o

cabo-verdiano tem aprendido a resistir e a sobreviver num meio que lhe é

hostil, conforme se pode ler no poema “Flagelados do Vento Leste” , de Ovídio

Martins (CIDAC, 1996),

33

Espécie de pão de farinha de milho 34

Prato constituído por milho cochido (sem farelo), feijão, mandioca, batata vulgar e doce, hortaliças, chouriço, carnes variadas, abóbora e inhame. Muitas vezes, as classes mais pobres vêem-se reduzidas a milho, feijão, água e sal (“cachupa de água e sal”) 35

Preparado a partir de uma massa feita com farinha de milho e bananas maduras. 36

Quando moído, o “milho ihado” (pipoca), transforma-se em camoca, farinha utilizada para pudim e para misturar no leite ou no café. 37

Peixe.

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Afinal, quem sou eu?

72

(...) Somos os flagelados do Vento Leste O mar transmitiu-nos a sua perseverança Aprendemos com o vento a bailar na desgraça As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos (...) Teimosamente continuamos de pé num desafio aos homens e aos deuses (...)

A forma como a família38 cabo-verdiana está estruturada é mais um dos muitos

exemplos ilustrativos da adaptação deste povo ao meio envolvente.

Segundo Furtado (1995), são duas as características da família cabo-verdiana:

i) Ainda que no essencial seja uma família de tipo nuclear39, muitas vezes o

que se verifica é que, sob um mesmo tecto, residem várias gerações, ou seja,

muitas vezes estamos perante famílias extensas ou alargadas. Isto significa

que as decisões e respectivas consequências no seio familiar são assumidas

muitas vezes pelos avós, pelos tios e até pelos padrinhos dos filhos.

ii) Forte incidência de mulheres chefes de famílias, portanto com

responsabilidades familiares. Trata-se, na maioria das vezes, de mães

solteiras, esposas de emigrantes e viúvas (mais de 1/3 destas mulheres têm

menos de 40 anos).

38

Para os cabo-verdianos, os laços biológicos, os laços de sangue, são os mais fortes e importantes. Por exemplo, “o primo pode ser considerado mais da família que a própria companheira, porque o “primo é de sangue, mulher muda” (França, 1992:62). Um aluno de Antropologia do ISCSP, com nacionalidade e naturalidade cabo-verdiana, numa conversa informal, confessou-me que a grande maioria dos seus amigos cabo-verdianos considera a mãe importante pelo facto de os ter dado à luz, ou seja, valorizam o papel biológico desempenhado pela sua mãe relativamente ao papel social. 39

A família nuclear compreende o casal e os seus filhos.

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Afinal, quem sou eu?

73

Estes dois aspectos estão directamente relacionados com o fenómeno

migratório: a constante necessidade de deslocação para outras ilhas ou para

outros países em “busca de um sonho” .

Rios (1989) faz referência a outras duas características da família cabo-

verdiana: a existência de uma «certa poligamia40» não declarada mas

socialmente aceite e o djuntamon41, ou seja, os laços de solidariedade que se

desenvolvem entre os vários membros da família e entre estes e os vizinhos e

amigos (nomeadamente no trabalho do campo).

Num jantar com um amigo cabo-verdiano, nascido na Brava mas a trabalhar na

Praia, foi-me confidenciado que longe de ser uma prática invulgar, a poligamia

ocorre com alguma frequência. Na sua ilha, por exemplo, tem duas primas a

viver maritalmente com o mesmo homem, sem que a situação seja motivo de

embaraço (é sabido que o homem dorme com as suas mulheres em dias

alternados).

Relativamente à atitude do cabo-verdiano no que respeita ao casamento,

também França conclui que “(...) o homem frequentemente mantém relações

conjugais simultaneamente com várias mulheres e (...) esta situação pode

variar de ilha para ilha e de acordo com a prosperidade do homem. Este

acasala-se ainda jovem e pode ter filhos de várias mulheres, que são

considerados “legítimos” e perfilhados com todos os direitos” (França,

1992:62).

No entanto, esta “tendência” de o homem cabo-verdiano ter, na mesma altura,

mais de uma mulher nem sempre é encarada pelas “patroas” de forma branda.

40

Quando o casamento envolve um homem e uma mulher estamos perante um caso de monogamia, quando envolve mais de um homem e de uma mulher, estamos perante uma situação de poligamia. Segundo Barata, "a poligamia pode surgir sob três formas: a) a forma em que um homem casa com duas ou mais mulheres e que se designa por poligenia; b) a forma em que uma mulher casa com dois ou mais homens e que se designa por poliandria; c) e o casamento de grupo em que duas ou mais mulheres mantêm uma união com dois ou mais homens" (Barata, 1975:20). 41

Expressão que significa "juntar as mãos".

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Afinal, quem sou eu?

74

Durante a minha curta permanência na cidade da Praia, tive a oportunidade de

presenciar duas “guerras” entre mulheres. O motivo era o mesmo de sempre: a

infidelidade masculina.

Numa das ocasiões encontrava-me eu no Plateau quando, a certa altura, me

deparei com um aglomerado de pessoas junto ao mercado. Parei para ver o

que se estava a passar. O quadro era o seguinte: duas peixeiras, aos gritos

uma com a outra e de faca na mão, rodeadas por uma pequena multidão de

gente que se limitava a rir e a comentar o sucedido. Ao perguntar a um senhor

que ali se encontrava o que é que estava a suceder, respondeu-me com um

grande sorriso: “É guerra! Uma delas descobriu que a outra anda com o seu

homem e estão a acertar contas”. Pelo que pude aperceber-me, situações

destas são comuns em Cabo Verde.

Em todo o caso convém notar que é com grande saudosismo que me recordo

da maneira de ser e estar do “cabo-verdiano de Cabo Verde”. É impossível

ficar indiferente à gentileza e ao carinho com que tratam todo aquele a quem

chamam de “amigo”, e eu tive esse privilégio. Foi uma dádiva que me

concederam, uma das maiores que já tive... Por mais que o tempo passe,

continuo a acreditar que tudo o que lhes dei foi insignificante comparado com

tudo aquilo que me proporcionaram.

O seguinte poema de Manuel Lopes42, sem qualquer exagero, deixa

transparecer o modo de ser e estar do cabo-verdiano.

Estrangeiro Meu café está fervendo no bule – o bule é feito de folha de latão. Quando passares pela minha porta entra e vem tomar do meu café. Sente-lhe o cheiro, estrangeiro, foi colhido no chão, caído de maduro e seu nome é café de rato. Deita-lhe mel de cana do meu regadio come camoca de milho torrado, ou milho aliado, que hás-de gostar come queijo alvo da minha cabra luzidia, sempre amarrada à porta

42

Um dos fundadores do Movimento Claridade, que teve início em 1936.

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Afinal, quem sou eu?

75

come do meu cuscus quente, mais grosseiro e mais gostoso do que o teu queque fino – pilado de madrugada, naquele bater de pilão que já conheces e que é a voz do meu quintal o cuscus é feito do milho de minha merada semeado com amor e colhido com amor – terás a manteiga da minha vaca fumarás do tabaco colhido na minha horta diante do terreiro comerás papaias e bananas e mangas e goiabas. Olha a mangueira sempre verde (verde mangueira à beira do caminho fresca sombra, maduros cachos para a sede e a fome de quem passa). Chuva caiu no ano passado – Deus seja louvado – no tambanque tenho milho para cachupa para fonguinho, para camoca e para rolão tenho batata doce a assar na cinza do fogareiro tenho toucinho e carne de porco que matei porque o ano foi de boas águas Graças a Nossenhor Jesus chuva caiu no ano passado. Vem estrangeiro! Quando deixares a minha choupana e chegares à curva do caminho pára um instante e olha para trás 2. quero a alegria estampada no teu rosto, estrangeiro, para que o meu contentamento seja completo. Quero ver a alegria no teu rosto porque a tua é a minha assegurada. Vira depois a cara e segue a tua jornada. “Sejam connosco a paz e o pão...” É essa a minha única oração...

É surpreendente como, apesar de tantas e tantas contrariedades (seca, fome,

isolamento, pobreza do solo, entre outros), o cabo-verdiano continua a

acreditar que, “depois da tempestade vem sempre a bonança”. É este

pensamento que lhe dá afinco para continuar a lutar por dias melhores. Só

assim se compreende que continue a afirmar que existem alternativas à

existência que Deus lhe reservou.

É por esta razão que sempre sonhou, sonha e há-de sonhar com outras terras.

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Afinal, quem sou eu?

76

Capítulo 2. Hora di Bai43

“O cabo-verdiano é o eterno emigrante que busca em terra estranha aquilo que a sua lhe nega sistematicamente.” (Carreira, 1977:39)

O termo migração pode ser definido como a passagem de um indivíduo ou

grupo de um espaço geográfico para outro, com mudança de residência. Esta

jornada não se caracteriza, pelo menos no imaginário do(s) interveniente(s),

pela perenidade (a ideia de retorno está sempre, ou quase sempre, presente).

Do instante em que a ideia da partida começa a germinar na mente do

indivíduo até à fase em que este se decide, efectivamente, a chamar também

de sua uma outra terra, há um longo itinerário a percorrer.

Primeiramente, há que decidir se a partida é, de facto, a melhor opção face à

situação presente e face às perspectivas futuras. Depois de ponderar os prós e

contras e de concluir que a evasão é a solução mais digna, há que tomar as

medidas necessárias, por forma a materializar essa intenção (desde a

obtenção da documentação, à escolha do meio de transporte).

Após a viagem, este visionário vai certamente procurar reunir as condições

propiciatórias a uma vida condigna, que passam, por exemplo, pela procura

ou iniciação no novo emprego, pela instalação e acomodação na recente

residência e pelo fortalecimento das suas relações com os outros.

Já inserido no novo país e depois de, eventualmente, ter chamado a família

para junto de si, há que tomar uma nova decisão: ficar permanentemente ou

regressar à sua casa primeira. Caso opte pelo regresso, é provável que haja

43

Tradução: Hora da partida

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Afinal, quem sou eu?

77

um período de familiarização com uma realidade que lhe era natural e que,

com a sua ausência, deixou de o ser.

Em jeito de síntese, o percurso migratório pode, então, ser esquematizado da

seguinte forma:

Figura 3. Percurso migratório

(Ficar)

Decisão

Partir

Reinserção PAÍS DE ORIGEM Preparativos

de partida

Regresso Viagem

Primeira

PAÍS DE DESTINO instalação

Fixação definitiva Inserção

Decisão

Fonte: Rocha-Trindade (1995:38)

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A teoria clássica das migrações, alicerçada no modelo de atracção-repulsão

(push-pull model), sustenta que são vários os factores que “empurram” os

indivíduos da sua terra de origem, mobilizando-os para outros espaços. Esta

deslocação visa, por um lado, a maximização dos bens e, por outro, a

minimização das condições desfavoráveis (pensamento inerente ao Homo

oeconomicus).

Escassez de terra, desemprego, baixos salários, seca, fome e explosão

demográfica são os principais factores de repulsão considerados na hora da

partida. Os factores de atracção, que incidem nas vantagens inerentes à vida

urbana, surgem como a alternativa mais racional a uma vida supostamente

estagnada, sem qualquer esperança de um futuro melhor.

Duas das mais importantes conclusões apuradas por Ravenstein, o principal

precursor deste modelo, são: i) o desenvolvimento do comércio e da tecnologia

conduzem, invariavelmente, à intensificação dos movimentos migratórios e ii)

os factores de ordem económica são os que mais peso têm para os homens na

hora de decidir se a partida da terra de origem é ou não a melhor alternativa

(todos os indivíduos aspiram a aumentar os seus bens materiais).

De uma forma genérica, este modelo centra a sua atenção em factores ligados

ao meio de partida e de chegada, não deixando, no entanto, de ter em

consideração outras variáveis que também interferem na decisão de migrar.

Assim,

Figura 4. Modelo de “atracção-repulsão”

Local de origem Local de destino

repulsão atracção

Variáveis intervenientes

factores factores

Fonte: Jackson (1986:15)

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Afinal, quem sou eu?

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Everett Lee, meio século mais tarde, reestrutura o modelo das migrações de

Ravenstein. A principal diferença incide na definição das “variáveis

intervenientes” enquanto “obstáculos intervenientes”, designadamente a

distância de um local para outro, as barreiras físicas, as leis imigratórias e os

custos dos transportes de pessoas e bens.

O modelo de atracção-repulsão está directamente relacionado com as teorias

do mercado de trabalho, centradas nas propostas teóricas do modelo de

equilíbrio. Este paradigma enfatiza “a existência de uma força de trabalho

«livre» que se desloca «espontaneamente» entre sociedades de tipo

capitalista, mercê de um cálculo económico racional e individual” (Rocha-

Trindade, 1995:81), ou seja, face a uma situação de desequilíbrio, o indivíduo

tende a migrar para um lugar onde a oferta de trabalho e a remuneração pelo

mesmo sejam superiores, sejam mais vantajosas.

De forma a ultrapassar estas abordagens muito localizadas, Wallerstein

defendeu a hipótese de se encarar a questão da migração como parte

integrante de um sistema-mundo. Assim, a assimetria entre países

desenvolvidos (centro) e países em vias de desenvolvimento (periferia)

resultaria na eterna dependência dos segundos em relação aos primeiros. A

migração irrompe como uma resposta a esta disparidade.

Em tais circunstâncias quer o país de origem quer o país de destino legislariam

de modo a minimizar possíveis conflitos de interesses.

Comum a todas estas abordagens é a contemplação dos migrantes enquanto

instrumentos de mudança e não enquanto sujeitos activos.

Como afirma Jackson (1986), a decisão de migrar é semelhante à decisão de

casar: desde que estejam reunidas as condições para o fazer, a última palavra,

é sempre do indivíduo. No entanto, todas as decisões que envolvam escolhas

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Afinal, quem sou eu?

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caracterizam-se pela incerteza. Será que ela aceita? E se não aceitar? Devo

partir? Ou devo ficar?

É por esta razão que há autores que justificam a questão da migração

invocando as teorias da mudança social, pois trata-se, sem dúvida, de um

processo fomentador de mudanças quer a nível individual, quer para os países

de origem e receptor.

Rocha-Trindade (1995) chama a atenção para a importância da introdução do

conceito de redes sociais no âmbito das teorias das migrações. Esta noção de

rede social permite analisar os laços que se estabelecem entre os vários

actores sociais.

É neste contexto que Rémy (1988) desenvolve os conceitos de “espaço

território” e “espaço rede”. O conceito de espaço território é caracterizado

segundo relações de contiguidade e vizinhança. Já o conceito de espaço rede

está estruturado segundo uma lógica que une lugares distantes através da

mobilidade de mercadorias, pessoas e informações, promovendo, desta forma,

a manutenção dos laços entre aqueles que partiram e aqueles que ficaram,

entre o país receptor e o país de origem.

“Ao ligarem migrantes e não migrantes no espaço e no tempo, as redes sociais

dão origem a teias complexas de relações interpessoais que permitem

conceptualizar as migrações como um produto social. Quer haja ou não

migrações e qualquer que seja a sua direcção, composição ou persistência,

estas são condicionadas por estruturas económicas, sociais e políticas

inerentes à história das sociedades emissora e receptora. Estas estruturas são

transportadas e influenciam, através das relações e dos papéis sociais, os

indivíduos e os grupos” (Rocha-Trindade, 1995:91).

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Afinal, quem sou eu?

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A migração é um fenómeno bastante antigo nas ilhas de Cabo Verde. Desde o

século XVII que os seus habitantes se acostumaram a ver os seus pais,

irmãos, tios, avós, primos e amigos a partir para outras paragens. Desde então,

o sonho que os acompanha, ainda que modesto, tem sido sempre o mesmo: o

sonho de uma vida digna.

São várias as razões que induzem os cabo-verdianos a prosseguir a sua

existência noutras terras. Carreira (1977) identifica, sobretudo, causas de

ordem económica e causas de ordem histórica.

No que concerne às primeiras, destaca a deficiente estrutura socioeconómica,

as secas e fomes constantes (consequentes da escassez de chuva), a pressão

demográfica, a desigual distribuição das terras e, mais recentemente, a

importância que assume o volume de divisas resultante das remessas dos que

partiram. A influência exercida entre os insulares pelos migrantes pioneiros e

sua descendência é o primacial motivo de carácter histórico.

Ainda que não empregue, de forma explícita, o conceito de rede social ao

referir-se ao entusiasmo e apoio que os primeiros migrantes exerceram sobre

os ilhéus, está tacitamente a fazê-lo.

França (1992:41), adoptando o modelo de atracção-repulsão de Ravenstein,

agrupa os motivos que terão condicionado os cursos migratórios do seguinte

modo:

Repulsão

Economia débil da população;

Elevado crescimento demográfico;

Frequentes e prolongadas crises de falta de chuvas, com consequências

catastróficas.

Atracção

Necessidade de mão-de-obra barata e dócil de países em desenvolvimento;

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Afinal, quem sou eu?

82

Oferta de melhores condições de vida aos que trabalham naqueles países;

Espírito de aventura (facilitado pela pressão demográfica).

Comunicação

O peso da tradição (emigração histórica);

Informações veiculadas pelos emigrantes de toma-viagem e através da

correspondência;

A melhoria do nível económico com que o emigrante se apresenta no regresso

à terra (aquisição de “bens de prestígio”);

Actuais facilidades de transporte.

Salvo as migrações para São Tomé e Príncipe e Angola, organizadas e

impostas pelo Governo Português até 1974, os movimentos para os restantes

países do mundo têm sido de ordem individual ou familiar, ou seja, têm sido o

fruto da espontaneidade dos actores sociais intervenientes.

A primeira corrente migratória cabo-verdiana, datando do final do século XVII

ou princípios do século XVIII, ter-se-á dirigido para os E.U.A., para onde

partiram como marinheiros a bordo de baleeiras que, com frequência,

passavam pelo arquipélago.

Carreira (1977) está convicto de que estes precursores teriam ido em

pequenos grupos, em reduzido número, e apenas homens. Só depois de

instalados e adaptados à nova realidade, teriam chamado para junto de si as

mulheres e filhos (geralmente por carta).

Ainda hoje, o quadro de apoios à deslocação dos cabo-verdianos para Portugal

é diferenciado segundo o sexo. “No caso dos homens, o suporte financeiro

assenta em recursos situados no país de origem (próprios ou dos familiares

residentes em Cabo Verde), enquanto as mulheres apresentam uma maior

dependência (embora não dominante) relativamente aos familiares já

instalados em Portugal. Esta evidência aponta para um modelo típico das

migrações laborais clássicas, com um movimento em dois tempos: numa

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Afinal, quem sou eu?

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primeira fase imigram os indivíduos do sexo masculino que procuram inserir-se

no mercado de trabalho e encontrar um local de residência; na segunda fase

ocorre o reagrupamento familiar, com a chegada das mulheres e,

eventualmente, das crianças” (Gomes, 1999:45).

A forma como o cabo-verdiano conceptualiza a família, também contribui para

esta circunstância. Dada a importância que atribui aos laços biológicos, sente-

se responsável e solidário com todos os membros da sua família,

independentemente do lugar onde se encontrem a residir. Inclusive, todo

aquele que não preste auxílio aos parentes é apontado pela sociedade como

tendo um mau carácter, uma má índole.

No entanto, não estamos perante um fenómeno exclusivamente cabo-verdiano.

Muitos outros migrantes, designadamente os portugueses, passaram (e

continuam a passar) por uma situação afim: “Os volumosos efectivos de

homens jovens, que antes compunham larga parte das correntes migratórias,

são agora substituídos por mulheres e crianças. As correntes tornaram-se

assim substancialmente correntes de manutenção. Perderam o ímpeto de

expansão que antes as caracterizava. São agora alimentadas sobretudo pelo

processo de junção de famílias” (Barata, 1974:4).

Apesar de acalentarem o mito do eterno retorno, muitos destes primeiros

migrantes, na altura devida, acabaram por decidir-se pela permanência

efectiva. A extraordinária oferta de trabalho e as generosas remunerações

mensais, em comparação com o que aufeririam no seu país, certamente

contribuíram para esta determinação.

Relativamente aos movimentos migratórios cabo-verdianos, do século XX,

Carreira (1977) identifica três fases. São elas:

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Afinal, quem sou eu?

84

Quadro 2. Principais movimentos migratórios cabo-verdianos

FASE DATA e

TOTAIS

CARACTERÍSTICAS

1ª 1900-1920

T= 27.765

(indivíduos)

Marcada pela migração espontânea orientada para os E.U. É

de salientar a influência exercida pelos precursores deste

movimento (informação veiculada, apoio económico e

psicológico, etc.)

2ª 1927-1945

T= 10.120

(indivíduos)

Nesta fase, são duas as tendências migratórias: i) uma baixa

sensível da média anual de saídas (em consequência do

surto de fome ocorrido entre 1921-22 e da depressão

económica mundial de 1929-33); ii) um nítido desvio da

tradicional corrente migratória rumo aos E.U., provocado, em

parte, pelas leis americanas de 1919, 1924 e 1938,

impeditivas da entrada. Destinos alternativos: Dacar e Guiné.

3ª 1946-1973

T= 6.804

(indivíduos)

(Valores

relativos a

1946-52)

Fase do grande êxodo, marcada pela espectacular viragem

de orientação dos destinos dos cabo-verdianos. Por razões

circunstanciais e conjunturais, passam a rumar para os países

europeus: primeiro para a Holanda e, poucos anos volvidos,

para Portugal, França, Luxemburgo, Itália, Suiça, etc.

Esta tradição de partir, bastante enraizada nas gentes de Cabo Verde, continua

a perdurar (o contrário também não seria viável, por razões óbvias). Em 1985,

o Emigrason de 5 de Julho estimava os cabo-verdianos residentes no

estrangeiro entre 405 000 e 420 000 (veja o quadro nº3, página seguinte). “Em

1993, o Bundeskanzleramt da Áustria apresentava o valor de 482 500 como

estimativa máxima para o número de indivíduos com pelo menos um ancestral

cabo-verdiano a viverem no exterior, no final de 80 (aproximadamente 300 000

no continente americano, um pouco mais de 100 000 na Europa e cerca de

76000 em África). Actualmente, será de admitir um valor aproximado dos

500000 para o número de cabo-verdianos a residir fora de Cabo Verde”

(Gomes, 1999:21).

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Afinal, quem sou eu?

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Quadro 3. Estimativa do número de cabo-verdianos residentes no estrangeiro

AMÉRICA

EUA

Brasil

Argentina

255 000

250 000

3 000

2 000

ÁFRICA

Angola

Senegal

São Tomé

Guiné-Bissau

Moçambique

Gabão

67 900 a 76 200

35 000 a 40 000

22 000 a 25 000

8 000

2 000

700 a 1000

200

EUROPA

Portugal

Holanda

Itália

França

Luxemburgo

Espanha

Suiça

Bélgica

Suécia

RFA

Noruega

82 700 a 88 200

50 000

10 000

8 000 a 10 000

7 000 a 9 000

3 000

1 500 a 2 000

1 000 a 2 000

800

700

500

200

TOTAL 405 600 a 419 400

Fonte: Saint-Maurice (1997:47)

Os efeitos da diáspora são bem visíveis “na paisagem humana e física de

quase todas as ilhas” (França, 1992:42), reflectindo-se “não só no tecido social

que a todo o momento se reconstrói, como na própria cultura. Os contributos

culturais das sociedades de imigração (para as sociedades de emigração)

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Afinal, quem sou eu?

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reflectem-se nas formas de estar, de vestir, nas práticas de sociabilidade, no

consumo, na concepção e utilização do espaço, enfim, até mesmo nos valores

que por vezes se antagonizam com os sustentados pelos que nunca partiram.”

(Saint-Maurice, 1997:48-49).

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Afinal, quem sou eu?

87

Capítulo 3. Os cabo-verdianos em Portugal

Os cabo-verdianos em Portugal estão enredados numa teia complexa de

relações interpessoais, perceptível pela densidade de contactos com núcleos

de conterrâneos em países terceiros (com destaque para a França, a Holanda,

os EUA, a Itália e a Espanha).

Tudo indica tratar-se de uma comunidade transnacional, “(...) que tem em

Portugal uma plataforma de rotação, quer para a partida para outros locais,

sobretudo para a Europa, quer para a chegada de indivíduos que já tiveram

experiências migratórias em países terceiros” (Gomes, 1999:47).

“É com base nestas idas e vindas e nas redes de trocas e relações que as

comunidades no exterior estabelecem com as suas terras de origem que surge

na literatura da especialidade o conceito de transmigrante” (Quintino, 1999:21).

Esta elevada mobilidade, associada à inexistência de um controlo real das

entradas de estrangeiros, explica, em certa medida, a dificuldade das fontes

estatísticas oficiais, designadamente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

(SEF) e do Instituto Nacional de Estatística (INE), em obter dados escrupulosos

sobre a população cabo-verdiana a residir na “cauda da Europa”.

A diversidade do universo em questão constitui um outro entrave: a

comunidade cabo-verdiana é a soma dos cabo-verdianos residentes, dos

portugueses de naturalidade cabo-verdiana, dos portugueses nascidos em

Portugal mas com origem cabo-verdiana (descendentes) e dos cabo-verdianos

com outras nacionalidades (por exemplo, de outros PALOP).

A informação estatística que apresento neste trabalho, concernente à

população cabo-verdiana a residir em Portugal, por questões de ordem prática,

deriva dos elementos disponíveis no XIII Recenseamento Geral da População

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Afinal, quem sou eu?

88

e III Recenseamento da Habitação de 1991 pelo INE e no IECCV (Inquérito do

Estudo da Comunidade Cabo-verdiana) de 199844.

Já foi mencionado que, mais que uma mera tendência natural, a atracção dos

migrantes para espaços geográficos específicos é uma estratégia de

concentração sociocultural. Como se pode observar pelo quadro nº4, os cabo-

verdianos vêm confirmar esta prática: de um total de 15.714 indivíduos, são

cerca de 14.153 os que residem (ou residiam) em Lisboa e Vale do Tejo.45

Quadro 4. Distribuição regional dos cabo-verdianos que residem em Portugal, pelas NUTS 2

CABO-VERDIANOS DIANOS

N %

Norte 259 1,7

Centro 242 1,5

Lisboa e Vale do Tejo 14.153 90,1

Alentejo 196 1,3

Algarve 766 4,9

Madeira 14 0,1

Açores 84 0,5

Total 15.714 100,1

Fonte: INE, Censo de 1991

Os primeiros bairros cabo-verdianos (na verdadeira acepção do termo), que

surgiram ainda na década de 70, foram o da Venda Nova e o da Pedreira dos

Húngaros. “Eram zonas desgraçadas, que não prestavam, indesejáveis. Mas

44

Apesar da enorme discrepância entre os valores revelados por estas Instituição e os apresentados por outras fontes, as ilações são semelhantes. Sobre este tema veja os estudos desenvolvidos por Gomes (1999) e Bastos et al. (1999) (ambos confrontam os dados recolhidos e publicados por diversas fontes, designadamente INE, SEF, IECCV, Entreculturas, STAPE, entre outros). 45

45

Gomes (1999:59) declara que, em 1999, o contingente de população cabo-verdiana deveria situar-se, com elevada garantia, entre 79.000 e 85.000 indivíduos (consistindo em 83.000 o valor médio). Baseando-se nestes dados, demonstra, igualmente, que 90% desta população está concentrada nos distritos de Lisboa e Setúbal. Bastos et al. (1999:36), com dados relativos a 1998, verifica a mesma tendência.

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Afinal, quem sou eu?

89

eram as possíveis. Eram indispensáveis e não foi fácil consegui-lo. Na Venda

Nova, por exemplo, houve grandes guerras entre cabo-verdianos e ciganos que

não queriam deixar instalar os novos migrantes. A afirmação foi feita à custa de

muitos conflitos, com mútuas agressões e incêndios. Depois, estes espaços

começaram a ficar pequenos e muitos outros bairros foram sendo construídos.

Os maiores são na Amadora (Alto da Cova da Moura, Bairro de Santa

Filomena, Venda Nova) e em Oeiras (Pedreira dos Húngaros, Alto de Santa

Catarina)” (Rocha et al., 1993:32).

Vicente (1998), num estudo realizado no bairro do Alto da Cova da Moura,

apurou, por um lado, que a falta de espaço, de higiene e de segurança são os

principais factores que actuam ao nível da insatisfação dos moradores e, por

outro lado, a constrição dos laços de amizade, de solidariedade e das redes de

suporte informais operam como factores geradores de satisfação.

Como se pode verificar pela leitura do quadro nº5 (página seguinte), existem,

para além destes, muitos outros espaços de “terra trazida” de Cabo Verde,

nomeadamente Azinhaga dos Besouros, Estação Militar do Alto da Damaia,

Bairro 6 de Maio, Fontaínhas, Alto dos Barronhos, Alto da Loba, Quinta da

Serra, Via Longa (Icesa), Marianas, Estrêla d`África, Quinta da Vitória e Portas

de Benfica. Na margem Sul do Tejo (distrito de Setúbal), temos a Bela Vista

(Amarelo), a Quinta da Princesa e Santa Marta de Corroios.

Visitei alguns destes aglomerados, mas o de Santa Marta de Corroios, por

razões óbvias, foi o único que esquadrinhei. Trata-se um bairro degradado,

com 172 barracas46, na sua maior parte construídas em tijolo e cimento,

inacabadas e sem rebouco, encontrando-se em condições precárias. Não

existe rede de esgotos, a água para consumo é fornecida por três “bicas” de

utilização colectiva e a energia eléctrica é fornecida por um único contador.

46

Dados relativos a 1995 (fornecidos pela Câmara Municipal do Seixal).

Page 90: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

90

O bairro é constituído por 247 famílias, na sua maioria oriundas dos PALOP,

com especial incidência para os santomenses e cabo-verdianos (veja

novamente o quadro nº6).

Quadro 5. Os 20 maiores bairros de cabo-verdianos nos distritos de Lisboa e de

Setúbal

Bairro Habitação Freguesia Concelho Africanos Cabo-verdianos

%

Alto de Sª Catarina B Linda-a-velha

Oeiras 2.670 2.520 94,4%

Azinhaga dos Besouros

B Brandoa Amadora 2.772 2.429 87,6

Alto da Cova da Moura

D Buraca e Damaia

Amadora 3.170 2.340 73,8

Est. Militar do Alto da Maia

D Reboleira Amadora 2.162 2.126 98,3

Pedreira dos Húngaros

B Linda-a-velha

Oeiras 2.026 1.681 83,0

Bela Vista (Amarelo)

S S.Sebastião Setúbal 2.200 1.500 68,2

Bairro 6 de Maio B Falagueira/ V. Nova

Amadora 1.365 1.325 97,1

Fontaínhas B Falagueira/ V. Nova

Amadora 1.356 1.308 96,5

Alto dos Barronhos B Carnaxide Oeiras 1.400 1.275 91,1

Alto da Loba S Paço de Arcos

Oeiras 1.330 1.211 91,1

Santa Filomena B Mina Amadora 1.473 1.210 82,1

Quinta da Serra BD Prior Velho Loures 3.100 1.200 38,7

Via Longa (Icesa) S Via Longa V.F. Xira 2.175 1.125 51,7

Marianas B Carcavelos Cascais 1.690 945 55,9

Estrêla d`África B Falagueira/ V. Nova

Amadora 905 840 92,8

Quinta da Vitória D Portela Loures 1.540 750 48,7

Santa Marta de Corroios

D Corroios Seixal 860 720 83,7

Portas de Benfica BD Venda Nova

Amadora 688 674 98,0

Quinta da Princesa S Amora Seixal 895 670 74,9

Quinta dos Cravos B Marvila Lisboa 735 665 90,5

Legenda: B – Predominantemente barracas; D – Casas abarracadas ou habitações degradadas, de renda baixa; S – Habitações de renda social.

Fonte: Bastos et al., 1999:44

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Afinal, quem sou eu?

91

A naturalidade da população residente mostra o elevado grau de confluência

de culturas (veja o quadro nº6, pág. 89). No entanto, o relacionamento entre os

vários grupos não se tem processado da melhor forma. Segundo a Câmara

Municipal do Seixal, este bairro encontra-se dividido em duas zonas distintas: a

zona branca e a zona negra o que tem dificultado o relacionamento inter-étnico

dos seus habitantes47.

Para além destas características, comuns a qualquer outro bairro de casas

abarracadas, podemos ver mulheres a cutchir o milho no pilão e a separá-lo no

balaio48, alguns bancos à porta das casas, crianças pacientemente à espera

que acabem de lhes fazer as tranças, gente a jogar às cartas... podem ouvir-se

muitos risos, música a sair das habitações em alto som (nem sempre cabo-

verdiana) e muitas palavras (senão todas) em crioulo.

Depois de conhecer e conviver com diversos residentes (sobretudo mulheres e

crianças), dei-me conta de que, também aqui, os cabo-verdianos são fadjado.49

47

Das várias vezes que visitei o bairro, não me apercebi desta fronteira entre brancos e negros. 48

Complemento do pilão. “Trata-se de um cesto pouco fundo, de diâmetro variável (35 a 40cm), feito de fibras de folhas de palmeira, tiras de carriço e bordadura de varas, presas com cordas de bananeira ou piteira” (Filho, 1997:219) . 49

Esta descrição corresponde à forma como vejo estes bairros. A minha familiaridade com o espaço e com as pessoas, aliada à importância que atribuo aos elementos tipicamente cabo-verdianos, não me induzem a dar relevo a aspectos como a falta de saneamento básico ou a criminalidade. No entanto, é óbvio que ninguém entra num destes bairros sem que tenha um objectivo muito específico e, sobretudo, sem que tenha pelo menos um informador qualificado (por forma a que quando for interpelado possa responder que anda à procura de fulano X). Só assim é possível circular por estes caminhos com relativa segurança. Confesso que apreciei bastante percorrer Santa Marta de Corroios e ouvir, com alguma frequência, chamarem-me pelo nome, especialmente as “minhas” crianças.

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Afinal, quem sou eu?

92

Quadro 6. População do Bairro de Santa Marta de Corroios por País de origem50

País de Origem Nº %

Portugal 223 31,5

São Tomé 215 30,4

Cabo Verde 203 28,7

Angola 37 5,2

Guiné 25 3,5

Moçambique 1 0,1

Não referido 4 0,6

TOTAL 708 100

Fonte: Projecto de Intervenção em Santa Marta de Corroios (Candidatura ao II QCA, Subprograma INTEGRAR, S.C.M. Seixal). Ano 1995.

A estrutura etária da população cabo-verdiana caracteriza-se pela sua

jovialidade (cerca de 72,5% tem idade igual ou inferior a 44 anos, contra uma

média de 57% da população portuguesa) e pela predominância de indivíduos

em idade activa (o índice da população em idade activa é de 89%, contra uma

média de 67% da população portuguesa).

É ainda de salientar a debilidade dos índices de juventude (7,6%, contra um

valor médio de 20%) e de velhice (3% contra um valor médio de 14%)51.

50

Depois de ler atentamente este projecto, fiquei convencida de que os dados apresentados são referentes à nacionalidade e não à origem dos residentes.

Page 93: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

93

Esta estrutura corrobora o argumento de que a migração cabo-verdiana insere-

se no modelo típico das migrações laborais clássicas (alegórico ascendente

masculino das vagas migratórias). Como se pode observar pelo quadro nº7 e

pela respectiva pirâmide etária (página seguinte), “é uma estrutura típica de

uma população imigrante cujo móbil de emigração assenta em razões

económicas, mais concretamente na procura de emprego que lhes permita

obter um nível mínimo de subsistência” (Saint-Maurice, 1997:63).

Quadro 7. Distribuição etária da população portuguesa e da população cabo-verdiana a residirem Portugal.

Grupo etário Pop, portuguesa Pop, cabo-verdiana

0-4 544.309 156

5-9 646.161 392

10-14 781.933 650

15-19 845.588 1.251

20-24 765.248 1.588

25-29 726.628 1.902

30-34 694.606 2.773

35-39 661.076 2.686

40-44 634.519 1.199

45-49 569.623 765

50-54 559.346 812

55-59 562.041 576

60-64 533.325 428

65-69 470.049 220

70-74 344.747 129

75-79 271.089 93

80-84 165.553 64

85 91.306 30

Total 9.867.147 15.714

Fonte: INE, Censo de 1991

51

O Índice de Juventude refere-se à população com idade compreendida entre os 0 14; o

Índice de Velhice à população com 65 anos; o Índice de População em Idade Activa agrupa

os indivíduos entre os 15 64 anos (não nos podemos esquecer de que estes valores concernem à população com nacionalidade cabo-verdiana a residir em Portugal e não à população portuguesa com ascendência caboverdiana.

Page 94: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

94

Gráfico2. Pirâmide etária da população portuguesa e da população cabo-

verdiana a residir em Portugal.

0200.000400.000600.000800.0001.000.000 0 500 1000 1500 2000 2500 3000

0-4

5-9

10-14

15-19

20-24

25-29

30-34

35-39

40-44

45-49

50-54

55-59

60-64

65-69

70-74

75-79

80-84

/85

Pop. Portuguesa Pop. Cabo Verdiana a residir em Portugal

Fonte: INE, Censo de 1991

Na generalidade, trata-se de uma mão-de-obra desqualificada e com um baixo

nível de escolaridade, o que explica a elevada concentração no sector da

construção civil, indústrias e serviços de limpeza, conforme se pode constatar

da análise dos quadros nº8 e 9 (páginas seguintes).

Page 95: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

95

Quadro 8. Situação profissional dos cabo-verdianos com mais de 14 anos

1991 Efectivos

N %

Activos 10.113 64,4

Patrões e por conta próp. 1.033 10,2

Por conta de outrém 8.966 88,7

Outros 114 1,1

0/1 (Profissões científicas,

técnicas, artísticas, etc.)

98 1,0

2 (Directores e quadros

superiores administativos)

109 1,1

3 (Pessoal administrativo e

similares)

127 1,3

4 (Pessoal de comércio e

vendedores)

142 1,4

5 (Serviços de segurança,

domésticos e similares)

775 7,7

6 (Agricultores, trabs.

Agrícolas, pescadores, etc.)

130 1,3

7/ 9 (Trabs. Das indústrias e

condutores de máquinas)

8.732 86,3

Não-activos 5.601 35,6

Domésticas 1.899 33,9

Estudantes 1.264 22,6

Reformados 548 9,8

Outros 1.890 33,7

Total 15.714 100,0

Fonte: INE, Censos 1991

Page 96: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

96

Quadro 9. Habilitações escolares da Comunidade Cabo-verdiana residente em Portugal por grupos etários (%)

15 15-24 25-34 35-64 64 Total

Analfabetos 0,2 0,6 1,8 15,9 56,1 7,8

Sabe ler e escrever 0,2 1,4 8,5 21,4 24,3 10,6

Ensino primário 19,2 5,3 23,4 37,6 10,3 22,5

Ciclo preparatório 45,5 15,9 20,0 10,7 3,7 18,1

3º ciclo / unificado 35,5 9,1 7,0 2,9 1,9 9,3

Freq. ensino superior 0,0 31,6 9,4 2,6 0,0 11,9

Ensino secundário 0,0 18,7 9,5 2,7 0,9 8,3

Curso médio 0,0 2,9 3,8 2,7 0,9 2,6

Freq. ensino superior 0,0 13,7 11,3 0,8 0,0 6,5

Ensino superior 0,0 0,7 5,1 2,4 1,9 2,2

Mestrado 0,0 0,0 0,0 0,3 0,0 0,1

Doutoramento 0,0 0,0 0,1 0,1 0,0 0,1

Total de respostas 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

10 anos 57,9 0,0 0,0 0,0 0,0 14,8

NR no total dos inquéritos 3,6 6,1 1,3 1,3 3,6 3,3

Fonte: IECCV (Inquérito do Estudo da Comunidade Cabo-verdiana), 1998. n=5147 in Gomes, 1999:111

Gomes (1999) analisa a estrutura da família cabo-verdiana a residir em

Portugal a partir de três situações distintas, designadamente o estado civil dos

inquiridos, o tipo de agregados familiares em que residem e os laços que

mantêm com os familiares no exterior (com relevo para os residentes em Cabo

Verde).

Em relação ao estado civil dos inquiridos e de acordo com as informações

fornecidas pelo IECCV (quadro nº10), o número de indivíduos solteiros supera

Page 97: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

97

a percentagem dos casados e dos que vivem em união de facto. Esta situação

está concordante com a jovialidade característica da comunidade cabo-

verdiana.

Quadro 10. Repartição da população cabo-verdiana por estado civil e sexo

Estado civil HM H M

Solteiro 2921 1528 1393

Casado 1428 747 681

União de facto 529 265 264

Separado/divorciado 137 52 85

Viúvo 86 21 65

Total 5101 2613 2488

Fonte: IECCV (Inquérito do Estudo da Comunidade Cabo-verdiana), 1998. n=5147 in Gomes, 1999:111

No que concerne ao tipo de agregados familiares em que residem e consoante

os valores apresentados no quadro nº11 (página seguinte), é perceptível que a

dimensão da família clássica cabo-verdiana é ligeiramente superior à dimensão

da família portuguesa52.

Também a observação deste quadro revela uma estrutura própria de uma

população migrante: a maioria das famílias cabo-verdianas é constituída por 1

ou por 4 ou mais indivíduos.

Quadro 11. Famílias clássicas, segundo a sua dimensão e pessoas nas famílias

52

De acordo com dados de 1995, fornecidos por Cláudio Furtado, na obra A Mulher Caboverdiana, o tamanho médio da família cabo-verdiana, em Cabo Verde, é de 4.2 indivíduos.

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Afinal, quem sou eu?

98

Dimensão das famílias

(nº pessoas)

Total de famílias (pop.

Portuguesa)

% Total de famílias com representante de nacionalidade

cabo-verdiana

%

1 435.864 13,8 1110 17,6

2 797.770 25,3 689 10,9

3 748.123 23,8 937 14,8

4 682.036 21,7 1121 17,7

5 276.056 8,8 949 15,0

6 115.953 3,7 638 10,1

7 48.147 1,5 383 6,1

8 22.018 0,7 221 3,5

9 10.489 0,3 130 2,1

10 10.947 0,3 143 2,3

TOTAL 3.147.403 100 6321 100

Pessoas nas famílias

9.808.961

25573

100

Dimensão média da família

3,1 4,0

Fonte: INE, Censos 1991

São várias as razões para que “em igualdade de circunstâncias (estrutura

etária), os padrões familiares dos cabo-verdianos sejam relativamente mais

extensos do que os da sociedade de acolhimento: o superior índice de

fecundidade (maior número de filhos por mulher), provável na comunidade

cabo-verdiana (...); a maior dificuldade, por razões económicas, de constituição

de agregados independentes por parte dos jovens (o que retarda a saída da

residência familiar e a fragmentação dos agregados); e o apoio à família

alargada, no âmbito das redes migratórias” (Gomes, 1999:82).

Longe da família, dos amigos e da terra onde nasceu, o migrante sente

necessidade de se integrar numa rede (ou em várias) que atenue essa

ausência. A rede social, reflexo de um reinforço da identidade étnica, influi para

além de quaisquer fronteiras físicas

Em relação aos laços que a população cabo-verdiana mantém com outros

núcleos de conterrâneos, geralmente são perpetuados por intermédio de

Page 99: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

99

cartas, do envio de dinheiro e outros bens (bolachas, panos, roupa, perfumes,

medicamentos, etc.), telefone, visitas esporádicas, associações, etc.

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Afinal, quem sou eu?

100

PARTE II

OS ALUNOS E A ESCOLA BÁSICA Nº5 DE SANTA

MARTA DE CORROIOS

PARTE II. Os Alunos e a Escola Básica nº5 de Santa Marta de

Corroios

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Afinal, quem sou eu?

101

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Afinal, quem sou eu?

102

Capítulo 4. Caracterização dos alunos

A leitura do gráfico nº4 ao gráfico nº11 (da página 103 à 106), prova que a

composição deste microcosmos reflecte, efectivamente, os movimentos e

características da sociedade portuguesa.

Uma primeira observação prende-se com um dos fenómenos que caracteriza o

tecido social português: a pluralidade de singularidades. A partir do momento

em que 55% do universo de estudo apresenta uma ascendência africana,

torna-se também inelutável a heterogeneidade deste espaço.

De facto, apenas 45% dos alunos abordados afirmaram que os seus pais são

portugueses. Os restantes declararam uma origem africana (sobretudo cabo-

verdiana, santomense e angolana).

Muito cedo me dei conta de que a maioria dos alunos portugueses com origem

africana (não os de nacionalidade africana) é sensível a esta temática: de todas

as vezes que o assunto surgiu as suas atitudes e respostas reflectiram um zelo

desmedido.

Numa das primeiras incursões à Escola nº5 de Santa Marta de Corroios,

procurei, desde logo, averiguar a nacionalidade e origem dos alunos em

estudo. Alguns deles, perante a minha hesitação quanto à sua nacionalidade,

rapidamente respondiam: "Eu não! Eu não sou cabo-verdiano! Eu sou

português!". De seguida, inquiridos a respeito da nacionalidade dos pais,

retorquiam: "Ah, eles são cabo-verdianos. Mas eu, sou português".

Um outro fenómeno que confirma a representatividade deste microcosmo está

subjacente a alguns valores, aparentemente paradoxais, apresentados nos

gráficos.

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Afinal, quem sou eu?

103

Sabendo que a população são-tomense a residir em Portugal é numericamente

bastante inferior à população cabo-verdiana53, parece ilógico que 10% dos

alunos tenha nacionalidade são-tomense e que apenas 6% sejam cabo-

verdianos.

No entanto, se atentarmos mais uma vez para a nacionalidade dos pais dos

alunos, vemos que cerca de 30% são cabo-verdianos e que apenas 21% são

são-tomenses.

Esta situação é facilmente explicada se nos recordarmos de que, desde a

década de 60, milhares de cabo-verdianos têm deixado a sua terra rumo a

Portugal. Muitos desses primeiros migrantes, com ou sem intenção, acabaram

por ficar, inserindo-se a nível instrumental numa nova sociedade. Estes alunos

são os seus descendentes.

Relativamente à distribuição da população por sexos, poucas são as

considerações a tecer, uma vez que estamos perante uma população

equilibrada. Observando o gráfico nº3 (página seguinte), vemos que 54% dos

alunos são do sexo masculino e 46% são do sexo feminino.

O cruzamento desta variável com todas as outras que foram analisadas (ver

anexo 5) demonstra que não houve nenhum condicionamento dos resultados

com base no sexo.

53

Segundo o XIII Recenseamento Geral da População de 1991, existem pouco mais de 2000 santomenses a residir em Portugal (contra os 15.714 cabo-verdianos estimados pela mesma fonte e para o mesmo ano).

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Afinal, quem sou eu?

104

Gráfico 3. Distribuição dos alunos por sexo e idade

(Pirâmide etária)

É importante referir que a grande maioria dos alunos de origem africana e

alguns alunos de nacionalidade e origem portuguesa habitam (ou habitavam)

no Bairro de Santa Marta de Corroios.

Esta contingência tem implicações directas no seu comportamento. Por

exemplo, muitas destas crianças têm uma sobrecarga de tarefas extra-

escolares (cuidar dos irmão mais novos, levá-los à creche, lida da casa ou de

outros pequenos estabelecimentos, etc.), que tanto podem ser executadas

antes como depois das aulas (as aulas têm início às 8 horas e terminam às 18

horas).

É por estas razões (entre outras) que, infelizmente, nem têm disponibilidade

nem disposição para efectuar os trabalhos de casa, nem estão com a devida

atenção a tudo o que o professor lhes está a ensinar (ou a tentar ensinar) na

sala de aula.

Num trabalho sobre o insucesso escolar das crianças cabo-verdianas, Moniz,

também ela cabo-verdiana, acentua que estas crianças, sobretudo as

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Afinal, quem sou eu?

105

raparigas, demonstram uma maturidade precoce no que concerne a

responsabilidades do foro doméstico: “ter uma rapariga em casa é motivo de

satisfação para quem trabalha, pois, ao chegar, espera encontrar tudo feito,

desde casa arrumada até refeições confeccionadas. Se tiver uma criança

pequena, e a rapariga tiver os seus 10 anos, não precisa recorrer a ajudas

suplementares, pois esta fica encarregue de tudo. (...) +Isto liga-se a uma

tradição muito antiga em que se casava muito cedo, e a ideia de prepará-las

quanto antes para esse efeito, mantém-se” (Moniz, 1997:15).

Também Aguiar (1997)54 defende que as crianças que residem em “bairros

cabo-verdianos” exteriorizam atitudes e comportamentos que tendem a

dificultar a sua inserção no ensino básico.

Para além destes problemas, resultantes da circunstância de crescerem num

espaço segregado (caracterizado por uma cultura muito própria e diferente da

cultura dominante), não podemos ignorar que a maioria destas crianças

apresenta um défice de saúde, alimentação e condições de higiene (para além

do tão falado défice de língua ou do défice de material escolar).

É então natural que, quando solicitados a responderem à questão "Quem sou

eu?"55, tenham declarado, antes de mais, “Somos crianças” (ver Anexo 5 /

gráfico 1), ou seja, “independentemente de termos de efectuar uma série de

tarefas, nós também temos o direito a comportarmo-nos enquanto crianças;

afinal, é isso que nós somos”. Curiosamente, as crianças portuguesas brancas

à mesma pergunta responderam “Somos portuguesas” (a categoria “criança”

surge como 4ª escolha).

54

Este estudo, realizado na Escola Básica nº2 da Damaia (Lisboa), incidiu igualmente sobre crianças que frequentavam o 3º e 4º anos. Tendo como grupo alvo 12 crianças, algumas a residir no bairro 6 de Maio e no bairro Estrela d`África, a autora propõe-se a verificar a hipótese de que a segregação residencial influencia o comportamento das crianças das minorias étnicas dificultando a sua inserção na escola. 55

Esta questão metodológica, foi explicada nas páginas 53-54.

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Afinal, quem sou eu?

106

Nacionalidade dos Alunos do 3º ano

1

23

6

31

1

1

1

1

1

0

5

10

15

20

25

30

7 8 9 10 11 12 13 14

Idade

mero

de a

lun

os

O

A

ST

CV

P

Gráfico 4. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97.

Gráfico 5. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos seus pais

Page 107: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

107

Gráfico 6. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das

suas mães

Gráfico 7. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a

nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos

34

19

19

1

11

11

3

7

5

14

110

10

20

30

40

50

60

70

80

me

ro d

e P

es

so

as

P CV ST A O

Nacionalidade

Nacionalidade dos Alunos e Pais do 3º ano

Maes

Pais

Alunos

Nacionalidade das Maes dos Alunos do 3º ano

7 8 9 10 11 12 13 141

15

2 1

5

3 3

3

1

1

2

1 1

0

5

10

15

20

25

30

35

1 2 3 4 5 6 7 8

Idade

me

ro d

e m

ae

s

A

ST

CV

P

Idade

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Afinal, quem sou eu?

108

Gráfico 8. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97.

Gráfico 9. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos

seus pais.

Nacionalidade dos Alunos do 4º ano

1

17

45

1 1

2

1

1

2

1

1

1

2

1

0

5

10

15

20

25

7 8 9 10 11 12 13 14

Idade

mero

de a

lun

os A

ST

CV

P

Nacionalidade dos Pais dos Alunos do 4º ano

1

13

12

4

2

4

1 1

5

2

2

1

1

10

5

10

15

20

25

7 8 9 10 11 12 13 14Idade

mero

de p

ais

A

ST

CV

P

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Afinal, quem sou eu?

109

Gráfico 10. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das

suas mães.

Gráfico 11. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a

nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos

Nacionalidade das Maes dos Alunos do 4º ano

1

12

13

4

2

3

1 1

6

2

2

1

1

10

5

10

15

20

25

7 8 9 10 11 12 13 14Idade

mero

de m

aes

A

ST

CV

P

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Afinal, quem sou eu?

110

Capítulo 5. Uma escola Intercultural?

Apesar do esforço por parte dos professores, penso que o esforço que está a

ser desenvolvido na Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no sentido de dar a

conhecer e valorizar o Outro, ou seja, no sentido de dar “vida e alma” aos

projectos interculturais, ainda não é o suficiente.

Esta iniciativa, à semelhança de tantas outras, está a desenvolver, em relação

às crianças de origem africana, “manifestações folclóricas

descontextualizadas”, o que é qualificado por Torres (1994:149-151) da

seguinte forma:

1- “Trivialização”: consideram-se apenas os aspectos mais evidentes da

realidade, como por exemplo, hábitos alimentares, indumentária,

manifestações festivas, folclore, etc.

2- “Tratamento da informação como recordações ou dados exóticos”:

contrariamente ao que se verifica relativamente aos valores e

conhecimentos da cultura dominante, que são acompanhados e

ilustrados por toda uma gama de materiais didácticos, desde livros a

material informático, apenas uma minoria (quando existe uma minoria)

da informação respeitante às minoria étnicas é veiculada com o recurso

a meios similares.

3- “Desconexão das situações de diversidade da vida quotidiana nas

aulas”: “O Dia de...”, é uma prática corrente das escolas que

desenvolvem, ou pretendem desenvolver, projectos interculturais. No

entanto, este acto estimula a que se fale de determinados

acontecimentos apenas uma vez por ano (e nem sempre

contextualizados da melhor forma)56.

56

Também Machado faz referência a esta prática comum: “As mensagens multiculturais seriam então emitidas na convicção, não questionada, de que essa pertença é algo que vai por si, relativamente imutável e contida dentro das suas próprias fronteiras, dando azo a representações estereotipadas e folclorizantes da chamada “cultura de origem” das crianças

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Afinal, quem sou eu?

111

4- “Estereotipização”: Infelizmente, recorre-se com alguma frequência a

estereótipos do tipo “os cabo-verdianos são agressivos e andam com

facas”, “os ciganos são ladrões”, “os africanos vivem miseravelmente”,

etc. Ao invés de esclarecer uma situação, está a acentuar-se e a

revitalizar a discriminação dos migrantes e sua descendência.

5- “Tergiversação”: Muitas vezes a história dos povos é apresentada de

forma a justificar a opressão “natural” de algumas sociedades.

6- “Paternalismo”: Assenta na crença da superioridade de uns povos sobre

outros, nomeadamente dos europeus sobre os africanos. Não raras

vezes, o ocidental é apresentado como o salvador dos nativos, dos

indígenas...”se não fosse o homem branco, certamente os africanos

ainda se encontrariam num estado primitivo”. Nestas sessões, são

usuais palavras como “donativos”, “sacrifício”, “caridade”, “pena” para

com os povos dos países subdesenvolvidos.

Apesar do empenho desta instituição e da própria Câmara Municipal do Seixal,

é por todos estes motivos que, ao longo do trabalho me refiro à Escola de

Santa Marta de Corroios enquanto um espaço pluricultural e não intercultural.

Esta escola ainda não conseguiu destacar-se no quadro geral das acções

educativas interculturais que estão a ser desenvolvidas um pouco por todo o

País. As actividade com vista a promover o diálogo entre nós e os outros não

passaram de “curriculum tipo turista” (Torres, 1994): encenação de uma dança

africana; realização, uma vez por ano, do almoço constituído por alimentos e

pratos africanos (cuscus, cachupa, etc); narração de experiências pessoais

sobre Cabo Verde, mais concretamente sobre a Boavista (esta escola é

(associando-se a “cultura cabo-verdiana”, por exemplo, a certas práticas culinárias ou a certos tipos de música) (Machado, 1994:125-126).

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Afinal, quem sou eu?

112

geminada com uma escola desta ilha, pelo que o intercâmbio de professores

constitui uma das prerrogativas) e pouco mais57.

Também Cortesão et al. (1991) são de opinião de que a educação intercultural

no nosso país não é praticada. Chegam mesmo a afirmar que, enquanto a

escola e os currícula não tiverem em conta a cultura, as necessidades e os

interesses dos grupos minoritários, a educação intercultural não passará de

uma intenção, de uma utopia.

Parafraseando Moscovici (1992), se o nosso aparelho cognitivo funciona como

uma orquestra, a escola só reconhece o funcionamento de um instrumento a

solo. Ou seja, a expressão “diálogo entre-culturas” não abdica da transmissão

unidimensional das normas e conhecimentos da «tribo branca». As formas de

cultura étnica não têm lugar neste Universo.

Ainda a este propósito, Wells (1975) defende que os alunos negros, porto-

riquenhos, mexicanos e de outras minorias, que estudam em escolas

americanas, demonstram uma maior aptidão e interesse por um ensino que

reflicta o recurso a metodologias de carácter prático (não incidindo

exclusivamente em livros e gramáticas).

Ao ingressarem neste mundo (o mundo escolar, o veículo da socialização

formal), uma das primeiras regras que as crianças cabo-verdianas rapidamente

aprendem é a de que, dentro do edifício escolar, a língua oficial é a portuguesa.

Quanto ao crioulo, sua língua de sempre, há que evitá-lo (apenas no recreio,

espaço profano, é que podemos ouvi-las a comunicar em crioulo).

Durante a minha permanência neste espaço, apercebi-me de que a utilização

do crioulo por estas crianças, para além de uma necessidade, é sobretudo um

acto de afirmação face ao Outro. "A aprendizagem de uma língua é mais que

57

É importante deixar claro que não sou contra este tipo de actividades, considero-as é insuficientes face aos objectivos da educação intercultural. No entanto, na impossibilidade de se realizarem outras actividades mais incisivas é óbvio que estas são sempre preferíveis a nenhumas.

Page 113: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

113

uma simples sequência de exercícios escolares. É a ligação entre o indivíduo e

aqueles que falam a mesma língua" (Duyckaerts,1994:31), por oposição aos

que não a entendem, por oposição ao Outro.

Esta é uma das causas que explica as dificuldades acrescidas que estas

crianças sentem ao longo da sua formação escolar: se sempre falaram em

crioulo, e se pensam em crioulo, é nesta língua que, instintivamente, tendem a

expressar-se na escrita. Assim, se pronunciam «tera», ao invés de «terra», é

«tera» que escrevem e lêem.

Numa das sessões de trabalho na escola, um aluno de nacionalidade

portuguesa, mas de origem cabo-verdiana, escreveu incorrectamente a palavra

«terra» (tendo escrito «tera») durante a elaboração de uma composição. A

reacção de uma colega sua que se apercebeu do sucedido, foi a de começar a

rir-se e a chamar a atenção de todos os outros: “- Já viram? O António não

sabe escrever «terra»! É mesmo burro!”. Após estas observações, todos os

outros começaram a rir-se. Quanto ao António, deu sinais de estar muito aflito

e envergonhado.

Perante esta situação, que certamente não sucederia se a política educativa

intercultural que se quer introduzir estivesse a actuar, a minha reacção foi a de

chamar a atenção para a circunstância de que, se o António havia errado é

porque havia escrito a palavra «terra» em crioulo, e isso só havia sido possível

porque ele dominava duas e não apenas uma língua, como a maioria dos seus

colegas. Perante este comentário, a situação rapidamente se inverteu e

António, agora orgulhoso, voltou-se para a sua classe e disse: “ – Estão a ver?

Eu sei duas línguas e vocês só sabem uma.”

A questão da língua é fulcral (ainda que não seja a única) para compreender

algumas das dificuldades que as crianças de origem cabo-verdiana

efectivamente sentem ao ingressarem numa escola que veicula um ensino

homogéneo e que não tem em conta a especificidade dos alunos que

compõem as salas.

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Afinal, quem sou eu?

114

É o que sucede com aqueles alunos de origem cabo-verdiana que residem em

Santa Marta: em casa e no bairro comunicam de uma forma e na escola é-lhes

exigido que falem de outra completamente diferente, para a qual nem estão e

nem foram preparados.

“O código linguístico da língua materna de uma criança cabo-verdiana é

diferente daquele que é utilizado na escola. Estas crianças ao entrarem para a

escola não apresentam qualquer atraso no desenvolvimento linguístico dentro

das regras e padrões do crioulo, mas revelam dificuldades quando são

confrontadas com determinadas situações que apelam à comunicação em

língua portuguesa (...)” (Gomes, 1996:15).

Moniz (1997) refere que, se por um lado há autores que defendem que seria

positivo que as crianças cabo-verdianas falassem somente o português e não o

crioulo, por outro lado há estudos que revelam que as crianças de origem

estrangeira que dominam bem a sua língua (neste caso o crioulo) têm

apresentado resultados escolares bastante razoáveis.

Face aos êxitos escolares dos filhos de migrantes, os apologistas desta teoria

aconselham as mães estrangeiras a, durante os primeiros anos de vida dos

seus filhos, estabelecerem conversas apenas na língua materna. “Isto porque a

criança necessita de adquirir uma riqueza de linguagem que só é possível se

as mães comunicarem numa língua que lhes é familiar, caso contrário,

adquirem simplesmente uma linguagem pobre que lhes vai dificultar o

desenvolvimento psíquico e a capacidade de aprendizagem” (Moniz, 1997:17).

No caso do português e do crioulo cabo-verdiano, o “segregacionismo

linguístico”, sobretudo nos primeiros anos da sua vida, não é a melhor solução

para as crianças de origem cabo-verdiana.

Page 115: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

115

Independentemente da sua origem, devem aprender a escrever e a falar

correctamente o português, caso contrário, dificilmente conseguirão inserir-se

(a nível instrumental) 58nesta sociedade.

O problema não está no crioulo, mas sim nos currícula que a escola, enquanto

instituição responsável pela transmissão de conhecimentos e valores

coadunados com os interesse da sociedade, veicula. As políticas e acções

educativas não deveriam aspirar a metamorfosear os alunos cabo-verdianos

naquilo que eles não são, nem poderão ser. Devem, sim, procurar devolver-

lhes a auto-estima necessária para que acreditem que vale a pena investir na

sua educação (nomeadamente, através da valorização da sua língua de origem

assim como da sua cultura).

Este é, de facto, um problema. As crianças cabo-verdianas não se sentem

motivadas a conseguir um aproveitamento escolar acima da média. Se, por um

lado, os professores não demonstram confiança em relação a esses alunos,

não acreditando que tenham capacidade para alcançar melhores resultados,

por outro lado, os próprios pais, voltados para investimentos imediatos

(trabalhar e receber o ordenado no fim do mês), não os estimulam nesse

sentido.

É também verdade que a superlotação das classes não facilita o trabalho do

professor. É muito difícil, por vezes impossível, atender às dificuldades e às

especificidades dos alunos.

Na Escola de Santa Marta de Corroios, à semelhança do que se passa um

pouco por todo o País, sobretudo nos locais de maior concentração de grupos

étnicos, não há vencedores neste projecto: os professores sentem-se

insatisfeitos por não conseguirem melhores resultados dos seus alunos e por

terem de estar constantemente a chamar-lhes a atenção (ora pela falta de

58

A inserção dos cabo-verdianos em Portugal verifica-se apenas a nível instrumental e não cultural: os elementos culturais não se desvanecem com facilidade. Há valores que o tempo modifica mas não apaga.

Page 116: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

116

modos59 ora pela lentidão com que aprendem); os alunos com origem africana

mostram-se desinteressados e desmotivados (aprendem matérias com pouca

utilidade prática e sem nenhum significado, descontextualizadas); os pais não

se sentem compensados pelo esforço.

À pergunta: “Porque é que alguns cabo-verdianos conseguem ser bem

sucedidos na escola, mesmo sendo vítimas de todas as dificuldades apontadas

pelo insucesso escolar dos mesmos?”, Moniz alega que “a resposta, entre

muitas outras, pode estar no espírito de insatisfação e na procura incessante

do novo e do diferente, que tem sido demonstrada pela história da migração

cabo-verdiana” (Moniz, 1997:22).

59

Também Milzer (1998:165) refere que as crianças pertencentes a minorias étnicas têm “dificuldade em comportarem-se correctamente na sala, por exemplo, não sabem sentar-se”.

Page 117: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

117

PARTE III

PERCEPÇÕES DO "EU" EM ESPAÇO ESCOLAR

PARTE III. Percepções do “Eu” num Espaço Escolar

Page 118: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

118

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Afinal, quem sou eu?

119

"O imaginário infantil está mediatizado pelo que

vê, ouve e sente”.

(Iturra, 1997)

“Mais que uma questão de interiorização, a

socialização é também um processo de

apropriação, reinvenção e reprodução.”

(Saramago, 1999:15)

Hurtado et al. (1994) afirmam que, da mesma forma que pensamos em nós

enquanto seres dotados de uma personalidade única, também pensamos em

nós em termos de categorias sociais e grupos.

A este propósito, Foeman et al. (1999) referem-se à necessidade que todos

sentimos em nos incluir e em incluir os outros em categorias exclusivas. No

entanto, esta pretensão nem sempre é conseguida. Por exemplo, como

considerar uma criança que é filha de um negro com uma branca? Essa

criança é branca ou negra? Similarmente, como considerar uma criança que é

portuguesa mas cujos pais são cabo-verdianos? Essa criança é portuguesa ou

cabo-verdiana?

De facto, a categorização social, assim como a consciência de pertença a uma

determinada categoria, nem sempre são óbvias. É neste contexto que Mattoso

refere "a anedota que se conta do rei D. Luís quando, já bem adiantado o

século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou, se

eram portugueses. A resposta foi bem clara: «Nós outros? Não, meu Senhor!

Nós somos da Póvoa do Varzim!" (Mattoso, 1998:15).

Com base nos dados quantitativos e qualitativos obtidos, procurarei traduzir a

visão das crianças da Escola Nº5 de Santa Marta de Corroios, especificando o

caso das crianças de origem cabo-verdiana, e demonstrar quais os elementos

identitários que as caracterizam e que, necessariamente, as opõem a outros

grupos.

Quem são, então, estas crianças de origem cabo-verdiana?

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Afinal, quem sou eu?

120

Capítulo 6. Origem e Nacionalidade

Ao analisar as respostas dos alunos ao TST, verifiquei que a nacionalidade

constitui um elemento identitário pertinente. Foram muitos os alunos que

responderam: "Sou português", "Sou cabo-verdiano", "Sou santomense" ou

ainda "Sou angolano" (ver Anexo 5 / quadro 2, gráfico 1).

Não deixa de ser curioso que perante a interrogação "Quem sou eu?", algumas

crianças de nacionalidade portuguesa mas de origem cabo-verdiana, se

tenham identificado enquanto cabo-verdianas, o que me leva a inferir que,

apesar de já terem nascido em território português e de nunca terem ido a

Cabo Verde, vêem-se e sentem-se cabo-verdianas.

É o caso de Serafim, português, filho de pai cabo-verdiano e mãe são-tomense

(9 anos de idade) que responde "Sou negro, sou cabo-verdiano, sou português

e sou criança"; de Bela, aluna portuguesa, origem cabo-verdiana (10 anos de

idade) que se identifica como portuguesa, preta e cabo-verdiana, ou ainda de

Rodrigo, criança portuguesa, origem cabo-verdiana (com 9 anos de idade) que

se afirma, antes de mais, como um cabo-verdiano.

Vanessa, uma aluna de nacionalidade portuguesa mas filha de pais cabo-

verdianos e com 10 anos de idade, na sua auto-descrição, afirma: "Tenho

cabelos pretos, olhos castanhos, sou cabo-verdiana". Um outro aluno, com 10

anos de idade, filho de pai cabo-verdiano e de mãe portuguesa, declara: "Eu

sou o Augusto, sou baixo, sou cabo-verdiano, tenho os olhos castanhos e os

meus cabelos são pretos".

Também Saint-Maurice (1997) refere que, apesar de 92% dos indivíduos por si

inquiridos afirmarem que se sentem cabo-verdianos, apenas 72% o são na

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Afinal, quem sou eu?

121

realidade (recordando Bakalian, podemos afirmar que uma coisa é o ser cabo-

verdiano, outra é o sentir-se cabo-verdiano)60.

Não deixa de ser oportuno mencionar que os alunos que sentem necessidade

em afirmar que são cabo-verdianos, mesmo não o sendo realmente, têm 9 ou

mais anos de idade. Segundo autores como Jasinskaja-Lahti et al. (1999) e

Saylor et al. (1999), é, então, natural que estejam conscientes da sua

diferença em relação aos outros portugueses e da sua similaridade com outros

cabo-verdianos (aqueles com quem lidam e convivem diariamente).

Estas crianças demonstram que a identidade, entendida enquanto um

sentimento de pertença a um “nós” por oposição aos “outros”, não é um dado

adquirido mas sim uma estratégia de sobrevivência manipulável.

Independentemente de mostrarem preferência por um prato com bife, batata

frita e ketchup ou por um hamburguer de uma multinacional a uma boa

cachupa, de distinguirem a música rap das mornas (ou de qualquer outra

melodia da sua terra de origem), da sua forma de vestir (típica da juventude

norte-americana: números grandes de t-shirts, sweat-shirts, e calças de ganga

e ainda ténis e boné de marca) e de afirmarem, com muita frequência, que são

portugueses, quando submetidos ao TST, ou seja, quando inquiridos sobre

quem realmente são, respondem que são cabo-verdianos.

Mas, o que é que significa para estas crianças o ser cabo-verdiano? A tradução

que faço do que me foi dado a observar, é a de que, para estas crianças o ser

cabo-verdiano está associado à consciência de partilha de uma mesma língua

e consciência de pertença (real ou imaginária) a um território comum: todos

falam crioulo (e têm orgulho por isso) e todos sentem uma afinidade pela terra

dos seus pais (independentemente de a conhecerem ou não). A este propósito,

veja a figura que se segue (página seguinte).

60

Luís de França, no capítulo V da obra “Comunidade Cabo-verdiana em Portugal” (1992) também trata esta questão do ser e do sentir

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Afinal, quem sou eu?

122

Quanto ao grau de consciência étnica61 a maioria das crianças, pelos menos as

mais velhas (entre os 9 e os 13 anos), estará na “fase do encontro com racismo

e sociedade”, ou seja, estes portugueses de origem cabo-verdiana têm a

percepção das suas semelhanças e diferenças em relação ao grupo dominante

(nas relações sociais que estas crianças estabelecem, a noção de “fronteira

étnica” está bem patente).

No entanto, e apesar de alguns afirmarem que têm orgulho na sua

ascendência, penso que nenhum deles explora o significado de pertença a

esse grupo ou estabelece um compromisso com a sua identidade étnica.

Figura 5. “Cabo Verde” imaginado (nunca visitado) por um aluno de origem cabo-verdiana.

Teremos ainda oportunidade de verificar que estes alunos associam as

categorias etnia e “raça”.

61

Sobre este assunto, reveja as páginas 33-34.

Page 123: Afinal, quem sou eu? A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar

Afinal, quem sou eu?

123

Capítulo 7. "Raça"

Na apresentação dos dados, foi-me possível verificar que a maioria dos alunos

que, na 1ª opção, se percepciona em termos de nacionalidade, identifica-se, na

2ª opção, em termos de “raça”, tendo sido frequentes respostas como "Sou

português(a) e sou branco(a)"; "Sou português(a) e sou negro(a)"; "Sou cabo-

verdiano(a) e sou negro(a)" ou ainda "Sou cabo-verdiano(a) e sou preto(o)" (ver

Anexo 5).

No início desta pesquisa, sobretudo depois de ter conversado com N´ganga (no

Congresso de Estudantes Africanos, 1996) e de ter lido a sua obra "Preto no

Branco - a regra e a excepção" (1995)62, deparei-me com uma dúvida em

relação à categoria «Raça»: Estas crianças identificar-se-iam enquanto negras

ou enquanto pretas?

Apesar de vários alunos afirmarem, informalmente, que são negros, porque

pertencem à raça negra e que o preto não é mais que uma cor, por exemplo,

de uma camisola ou de um carro, a verdade é que ao responderem à pergunta

"Quem sou eu?", cerca de metade dos alunos negros respondeu que é preto

(ver Anexo 5 / quadro 2, 4, 6, 8).

Apurei igualmente que na maioria dos trabalhos da autoria das crianças

negras, a palavra "preto" surge com muita frequência.

Esta identificação poderá estar relacionada com o facto de estas crianças

ouvirem mais vezes a designação "preto", quer por parte de outras crianças

quer por parte de alguns adultos.

62

Nesta obra, o autor considera preferível a denominação de "preto" à de "negro": "Agora, o branco já não teme o preto, isto já acabou. Enfim... Agora, só tem pudor, receio, medo de pronunciar a palavra «preto» em frente do preto, e quando o faz ou empalidece, ou dispara uma série de explicações ou, ainda, exalta-se consigo próprio até à flor dos cabelos. Por sua vez, o preto tem pânico, medo, pavor de escutar a palavra «preto»; quando a escuta, gostava de desaparecer, fugir, evaporar-se, receia ser identificado com ela. Não sou preto, sou negro, diz orgulhosamente, sem perceber que não disse rigorosamente nada. Porquê tantos problemas por causa de uma palavra?" (N´ganga, 1995:13).

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Afinal, quem sou eu?

124

Ainda que a «Nacionalidade» e a «Raça» tenham sido duas das categorias

mais apontadas por estas crianças, quando lhes sugeri que fizessem o seu

auto-retrato, o qual deveria permitir a sua identificação, averiguei que,

contrariamente aos alunos brancos, a grande maioria dos alunos negros

apropriou-se da categoria oposta (ver Anexo 5 / gráfico 2).

Uma aluna são-tomense, apesar de assegurar: "(...) E eu tenho os olhos pretos

e cabelos pretos", no seu auto-retrato desenhou-se como tendo os cabelos

castanhos claros, maçãs do rosto cor-de-rosa e a pele clara. Ao observar este

auto-retrato, interpelei-a acerca da real possibilidade de, caso não a

conhecesse, a conseguir identificar a partir daquele mesmo desenho. A aluna

pareceu não compreender a minha dúvida. Era óbvio que eu iria identificá-la.

Este caso é semelhante ao de Clotilde, uma outra aluna de nacionalidade

portuguesa, mas de origem cabo-verdiana, que assevera: "Eu sou preta, tenho

olhos castanhos, cabelos castanhos e pequenos (...)". No entanto, como se

pode observar, o seu auto-retrato não corresponde a esta descrição.

Figura 6. Auto-retrato das alunas Felismina e Clotilde a) Felismina, aluna com 9 anos de idade e nacionalidade são-tomense b) Clotilde, aluna com 10 anos de idade, nacionalidade portuguesa e origem cabo-verdiana

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Afinal, quem sou eu?

125

São, de facto, muitos os casos de alunos de origem e nacionalidade africana

que, apesar de se descreverem como: "Eu sou preto"; "Eu sou um bocado

preta, os meus olhos são castanhos, o meu cabelo é preto"; "Eu sou mulato";

"Eu sou castanho"; "Eu sou baixinho e tenho os olhos castanhos, cabelos

pretos, nariz preto e ouvidos pretos" ou "Eu sou o Daniel, tenho cabelo preto,

os meus olhos são castanhos e a minha cor é negra", elaboram auto-retratos

reveladores da apropriação da categoria oposta (ver Anexo 4.1).

Inclusive, num outro exercício em que lhes foi sugerido que desenhassem a

árvore genealógica da sua família, a grande maioria dos negros, mesmo

aqueles que haviam realizado um auto-retrato sem apropriação da categoria

oposta, representou os vários elementos como brancos (repare no seguinte

exemplo)63.

Figura 7. Árvore genealógica e auto-retrato. A autoria é de Anabela, aluna com 10 anos de idade, nacionalidade são-tomense. Repare que a aluna não teve o mesmo cuidado na execução dos dois exercícios.

63 Houve apenas uma aluna, Mónica, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana que, apesar de

ter realizado um auto-retrato considerado incorrecto, representou correctamente a sua família (veja o Anexo 4.5).

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Afinal, quem sou eu?

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Poderão ser duas as causas para estes casos: i) estes alunos não passaram

por situações que os levassem a consciencializarem-se da sua identidade

racial, pelo que, para estas crianças, é mais importante a sua condição de

crianças que a cor que têm; ou ii) estão a representar-se como gostariam de

ser e não como realmente são, representam o seu eu ideal 64(no entanto,

quando questionados se, caso tivessem o poder de mudar a sua cor o fariam, a

esmagadora maioria dos alunos respondeu negativamente).

Gopaul-McNicol (1995), realizou um estudo nas Índias Ocidentais com 302

crianças da pré-escolar, com idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos,

pertencentes a várias classes socio-económicas e com vários tons de pele (do

mais escuro ao mais claro).

Neste estudo, e à semelhança de Clark e Clark, recorreu ao "Doll Test". Para

além desta técnica, 34 dessas crianças foram submetidas às mesmas questões

através do método de múltipla escolha.

Os resultados desta investigação indicam que a atmosfera em que as crianças

vivem, os valores que passam para eles na escola e nos media vão influenciar

a sua percepção.

Assim, a preferência demonstrada pela boneca branca (geralmente associada

aos aspectos positivos, nomeadamente a mais simpática, a mais bonita, aquela

que gostariam de ser, etc) quer por crianças brancas quer por crianças negras,

pode ser explicada com base em quatro factores. São eles:

i) Percepção da supremacia branca (reminiscências de um passado colonial).

64

“Ao desenhar, a criança parece projectar um desejo ou, talvez, uma tentativa de possuir o objecto; se na realidade não o obtém, pelo menos tem uma imagem do mesmo” (Di Leo, 1991:44).

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Afinal, quem sou eu?

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ii) Percepção de que o professor tem preferência pelos alunos brancos (em

privado, alguns admitiram ao autor serem mais atentos e cuidadosos com

crianças brancas, não deixando de demonstrar o seu favoritismo).

iii) Percepção de que o poder económico está nas mãos dos brancos, pelo que

a única forma de ter um bom emprego, ganhar bastante dinheiro e morar numa

casa grande é aspirando a ser branco.

iv) Percepção de que a televisão é racista, ou seja, é quase exclusivamente

branca.

A propósito da influência dos media na percepção da questão racial, quando

consultei os alunos da Escola de Santa Marta de Corroios se já tinham ouvido

falar em racismo e, no caso da resposta ser positiva, através de que meios

(como hipóteses de resposta tinham casa, escola, rua e televisão), a maioria

dos alunos referiu que ouvira falar em racismo na televisão (veja Anexo 5 /

gráfico 17).

No entanto, ainda que já tenham ouvido falar, muitos não souberam explicar o

que é:

"O racismo é uma coisa muito má e eu não gosto do racismo". (António, 9 anos

de idade, origem cabo-verdiana)

"O racismo é feio e nem Deus nem Jesus fizeram o racismo. O racismo não

devia existir".

"O racismo para mim são as drogas, não gostar dos filhos e ser muito mau"

(Rodrigo, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana)

"O racismo é uma coisa que não se deve fazer, pelo menos na rua" (Afonso, 8

anos de idade, origem são-tomense)

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"Olá amigos, já ouviram falar em racismo? Cuidado, nunca se metam com eles

e nunca vão para dentro dos carros; se eles vos chamarem não vão que eles

fazem mal, é por isso que não devemos provocá-los" (Odete, 8 anos de idade,

portuguesa).

"O racismo é quando uns não gostam dos outros e quando uma pessoa é feia e

outra é bonita e a bonita começa a gozar. Isto eu acho que é um racismo".

(Alina, 12 anos de idade, são-tomense)

Observei igualmente que vários alunos negros definem o racismo enquanto o

ódio dos brancos em relação aos negros, ou seja, enquanto um fenómeno

unilateral. Estes são alguns dos casos:

"Se estou com uma amiga branca e outra da sua cor crítica, é racismo (...) Eu

não sou racista porque não se deve ser racista. Eu não gosto quando me

chamam de preta, eu fico magoada" (Felismina, 9 anos de idade, são-

tomense).

"O racismo é uma coisa muito feia, porque às vezes aparece o skinhead e o

preto está a andar na rua e ele chega lá e às vezes dá-lhe uma facada ou uma

cacetada e ele pode morrer (...)" (Ruca, 10 anos de idade, origem cabo-

verdiana).

"Gorete era uma menina que morava no país dos brancos e um dia ela teve um

sonho e sonhou que no país dos brancos estavam a matar todos os pretos. No

outro dia Gorete ficou muito assustada e foi para a terra dela e viveu muito feliz

para sempre." (Sofia, 10 anos de idade, origem cabo-verdiana)

"A pessoa racista é aquela que não gosta de pretos. (...) Os brancos são finos."

(Clara, 10 anos de idade, cabo-verdiana)

"Eu acho que existem pessoas racistas, porque os brancos são racistas."

(Princesa, 8 anos de idade, origem cabo-verdiana)

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"Tem algumas pessoas que são brancas e que não gostam das pretas."

(Mónica, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana)

"Há pessoas brancas que me chamam preto e eu não sou preto. (...) Quando

vou ao Lidl comprar coisas para a minha mãe um homem que se chama Pedro

chama-me preto" (Serafim, 9 anos de idade, nacionalidade portuguesa, filho de

pai cabo-verdiano e de mãe são-tomense).

"Porque algumas pretas estão bem vestidas, os brancos ficam com inveja, é

isso que é racismo" (Pinto, 11 anos de idade, cabo-verdiano).

Figura 8 Desenho da autoria de Trindade, 10 anos de idade, são-tomense.

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Figura 9. Desenho da autoria de Clotilde, 10 anos de idade, origem cabo-verdiana

Outras crianças entendem o racismo como o ódio entre pessoas de diferentes

nacionalidades, nomeadamente enquanto o ódio que sentem os são-tomenses

pelos cabo-verdianos (e vice-versa).

"O meu irmão gosta de uma menina, só que os pais dela não gostam do meu

irmão. A menina gosta dele e ele gosta dela só que eles são de S. Tomé e o

meu irmão é cabo-verdiano e eles não gostam dele. Eles são racistas."

(Mónica, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana)

"Racismo para mim é: alguns cabo-verdianos não se dão com os de S. Tomé e

às vezes podem matar-se" (Bela, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana).

Um caso curioso é o de Princesa, 8 anos de idade, portuguesa mas de origem

cabo-verdiana que escreve um pequeno texto sobre a existência de racismo no

seio da sua própria família, causado precisamente pela diferença de

tonalidades entre os vários membros. Vejamos,

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Figura 10. Desenho da autoria de Princesa. Neste pode ler-se: "Um dia eu briguei com a minha irmã e ela chamou-me racista. Ela chamou-me racista porque eu sou morena e ela é negra e elas dizem que eu sou branca e eu não gosto."

Constatei igualmente que alguns alunos aproveitam a oportunidade de

escrever um texto sobre o racismo para expressar a sua opinião sobre

determinados colegas (na maioria dos casos, o alvo dos comentários encontra-

se sentado mesmo ao lado destes pequenos críticos).

"As pessoas que não gostam umas das outras são racistas. As pessoas que

chamam nomes às outras são racistas. As pessoas brancas que detestam os

pretos são racistas. As pessoas que acusam os outros são racistas. Eu

conheço uma pessoa que diz as coisas que eu digo e que vai falar às outras,

isso quer dizer racismo. Eu conheço uma pessoa que diz coisinhas de outra

pessoa, isso quer dizer racismo." ( Beatriz, 9 anos de idade, portuguesa)

"Eu conheço uma pessoa que é racista só porque eu não lhe mostrei uma coisa

e mostrei a outra colega e ela chamou-me cusca. Mas só que eu sou amiga

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dela. Ela é racista porque não fala comigo." (Matilde, 9 anos de idade,

santomense)

"Aqui na sala há uma pessoa que é racista e foi grosseira comigo e ela disse-

me coisas que eu não gostei e um dia uma educadora da creche veio cá à

escola e essa certa pessoa disse que ela era feia." (Camila, 9 anos de idade,

portuguesa)

"O racismo é uma coisa que não devia existir. O meu colega inventou uma

canção racista e esse meu colega chama-se Bonifácio. Essa canção diz

matamos o branco para comer com pão." (Piedade, 7 anos de idade,

portuguesa)

Há ainda alunos que demonstram a sua incompreensão pela persistência deste

fenómeno:

"Para mim o racismo é uma coisa feia. Nós somos iguais, então para que há

tanto racismo no mundo? Vamos lá a ser amigos e deixar o racismo esgotar-

se." (Vanessa, 11 anos de idade, origem cabo-verdiana)

"As pessoas que são racistas não deviam ser porque elas não gostam das

pessoas brancas. Cá na minha escola não há racistas porque são todos

amigos. A cor não interessa porque os brancos quando vão para a praia

também ficam queimados." (Cátia, 8 anos de idade, portuguesa)

"As pessoas não devem ser racistas porque o sangue é o mesmo só a cor é

que não é, mas cada um é como é, sempre diferente dos outros. Devemos ser

todos amigos porque Deus fez-nos a todos." (Neves, 14 anos de idade,

português, filho de pai santomense e mãe angolana)

"Há pessoas brancas que não gostam de pretos, mas as cores não interessam,

interessa é que sejamos todos amigos uns dos outros." (Pinto, 11 anos de

idade, cabo-verdiano)

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"Eu identifico-me com todas as pessoas do mundo porque somos todos iguais."

(Cristiano, 8 anos de idade, origem são-tomense)

Através de um outro exercício em que lhes foi pedido que desenhassem o seu

super-herói, apurei que apenas três crianças (Feliciana, 13 anos de idade,

cabo-verdiana; Bernardo, 9 anos de idade, português; Inês, 9 anos de idade,

portuguesa, mãe angolana e pai são-tomense) mencionam um herói negro e,

curiosamente, esse herói é o Michael Jackson (que tanta controvérsia tem

causado)65.

As restantes 77 crianças referiram-se a super-heróis brancos: personagens do

Dragon-Ball, Navegantes da Lua, Jesus Cristo, Princesa Starla, palhaço

Batatinha, rato Mickey, três porquinhos, Super-homem, Ágata, etc (veja alguns

exemplos no Anexo 4.5).

Mesmo quando lhes foi dada a interpretar a história da "Fada Branca, Fada

Negra", em que a heroína é uma fada negra, na ilustração da história foram

muitos os alunos que representaram essa fada como sendo branca, conforme

se pode observar nas seguintes ilustrações:

Figura 11. Desenho da autoria de António, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana.

65

Bispo, um aluno com 9 anos de idade e de origem cabo-verdiana refere que "Michael Jackson é um racismo porque não gosta da cor dele".

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Afinal, quem sou eu?

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Figura 12. Desenho da autoria de Guerreiro, 8 anos de idade, origem cabo-verdiana

Se examinarmos a programação infantil, rapidamente nos apercebemos que

não é transmitido nenhum desenho animado nem nenhuma série em que o

herói seja negro. Será então de estranhar o comportamento destes alunos?

Será que, com esta atitude, estão a expressar um sentimento de auto-rejeição?

É interessante referir que foram vários os alunos brancos que também não

representaram correctamente a fada negra. Inclusive, quando foram indicados

para que fizessem o desenho da sua sala de aula, não houve nenhuma criança

que revelasse quais os alunos brancos e quais os alunos negros (tendo-se

limitado a desenhar crianças e, em alguns casos, a desenhar a professora e a

mim)66 (veja o Anexo 4.5).

66

Houve apenas uma aluna (Beatriz, 9 anos de idade, portuguesa), que ao ilustrar o tema da amizade desenhou-se a si e às suas amigas e duas delas são negras, como se pode ver em anexo.

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135

Perante estes dados, será que também podemos afirmar que estes alunos

brancos estão a expressar um sentimento de rejeição pelos negros?

Ainda em relação ao auto-retrato, também houve casos, embora menos

frequentes, em que os alunos realizaram um auto-retrato que revela a

apropriação da categoria “negro”, mas que na descrição que fazem de si não

tecem nenhum comentário relativo à nacionalidade ou à “raça”.

Outros alunos, para além de se representarem como “negros” e de na sua

descrição também mencionarem a “raça”, ainda sentem a necessidade de

explicitar a sua satisfação por serem como são: "Eu sou (...) negra, tenho os

cabelos castanhos escuros, (...) tenho os olhos castanhos e gosto da minha

cor" (Anabela, aluna angolana, 10 anos); "Eu sou o Trindade, tenho cabelo

preto, olhos castanhos escuros (...) eu sou castanho e gosto da minha cor"

(aluno são-tomense, 10 anos), ou "Eu sou mulata e tenho os cabelos curtos (...)

Eu tenho os olhos pretos. Eu gosto muito da minha cor e da minha cara"

(Feliciana, aluna cabo-verdiana, 13 anos).

É interessante constatar dois aspectos comuns a todos estes relatos: i) todos

os alunos têm 10 ou mais anos (o que está de acordo com os resultados

apresentados no Anexo 5 / gráfico 7) e ii) nasceram em países africanos (se,

nos seus países, não sentiram necessidade de se percepcionarem em termos

da categoria raça, é natural que, chegando a Portugal, as experiências por que

passaram os tenham levado a construir a sua identidade racial).

Robinson et al. (1995), num estudo sobre os adolescentes afro-americanos e a

cor da pele, verificaram que existe uma relação causal entre satisfação com a

cor da pele e uma auto-estima positiva.

Também Saint-Maurice declara que "a afirmação de uma pertença de forma

orgulhosa e sobrevalorizada traduz-se em segurança e auto-estima, reguladora

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Afinal, quem sou eu?

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do quotidiano onde se processam trocas simbólicas com o próprio grupo e os

outros grupos de referência" (Saint-Maurice, 1997:146).

À questão colocada por Gopaul-McNicol (1995) sobre a possível existência de

uma correlação entre a escolha da boneca e a auto-estima das crianças, Chin

(1999) relembra que Clark e Clark comungavam da opinião de que as crianças

negras que mostrassem preferência pelas bonecas brancas, sofriam de

sentimentos de auto-rejeição (as crianças apercebiam-se de que a sociedade

denegria e desvalorizava os negros, logo, o seu desejo era terem nascido

brancas).

No entanto, o que se tem verificado é que, independentemente do esforço

desenvolvido pelas indústrias de brinquedos (já existem bonecas com vários

tons de pele, do mais claro ao mais escuro, com traços faciais e corporais

característicos dos afro-americanos), são poucas as crianças negras que têm

bonecas negras, ou seja, na sua maioria, as crianças negras têm bonecas

brancas.

Numa das fotografias apresentadas no trabalho de Chin (1999), podemos

observar uma menina, com uma boneca e o seu irmão. A primeira coisa que se

pode notar é que essa menina é negra e a sua boneca é branca. No entanto a

menina e a boneca usam o cabelo de forma muito idêntica (penteado

característico dos africanos). A autora chama a atenção para o facto de que,

em Newhallville, cidade onde realizou a sua pesquisa, este é um caso habitual.

Chin defende que estas raparigas são a prova de que a raça é uma construção

social: nem sempre é a cor da boneca que as leva a identificarem-se com elas.

Ao fazerem as suas bonecas brancas viverem no mundo negro, as crianças

estão a reconfigurar as fronteiras raciais, as quais os produtores de brinquedos

julgaram imutáveis.

Ainda que não tenha tido a oportunidade de ver as bonecas das crianças de

nacionalidade e origem cabo-verdiana que frequentam a Escola de Santa

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Afinal, quem sou eu?

137

Marta de Corroios, observei que a maioria destas crianças usa penteados

característicos dos africanos. Inclusive, numa das actividades realizadas no fim

do ano, nomeadamente a dança africana protagonizada quer por alunos de

origem africana, quer por alunos de origem portuguesa, todas as participantes

ostentaram estes penteados.

Reparei também que num desenho que lhes foi dado a completar,

representando uma menina africana, foram vários os alunos que lhe

acrescentaram miçangas no cabelo (conforme se vê nas seguintes imagens).

Veja no Anexo 4.5 (Outros) a mesma boneca trabalhada por Alice, 8 anos de

idade, portuguesa.

Figura 13. Desenhos da autoria de Sofia, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana e de Anabela, 10 anos de idade, angolana (de origem são-tomense).

Averiguei ainda que, independentemente da categoria apropriada pelos alunos

na realização do seu auto-retrato, quando questionados directamente com qual

das crianças do texto "Meninos de todas as cores" se identificam e porquê,

66,2% escolheram a personagem com base na variável cor da pele (ver Anexo

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Afinal, quem sou eu?

138

3 / Ficha de leitura do texto “Meninos de todas as cores”, pergunta 8; Anexo 5,

gráfico 9). São comuns frases como: "Eu identifico-me com o Carlos porque é

negro como eu", "Eu identifico-me com o Miguel porque é branco como eu" ou

ainda "Eu pareço-me mais com o Ali-Bábá porque é castanho como eu".

No entanto, como pudemos observar, ainda foram vários os alunos que se

identificaram com base em outras variáveis.

Curiosamente, houve um aluno (Gustavo, 8 anos de idade, português), que

respondeu identificar-se com o Carlos (menino negro) porque "tem o queixo

comprido como eu". César, 9 anos de idade, angolano, afirmou identificar-se

com "o menino branco porque ele é português". Uma outra aluna referiu que

"Eu pareço-me com a Flôr de Lótus porque eu gosto de usar totós e tenho a

boca pequena como ela".

Perante estas evidências, sou levada a afirmar que, à semelhança do que Chin

observou, também para estas crianças a raça não passa de uma construção

social, uma vez que não é, necessariamente, a cor que as leva a identificarem-

se com as personagens do texto nem a representarem-se a si e aos outros.

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Afinal, quem sou eu?

139

Capítulo 8. Redes de amizade

A propósito das redes de amizade, Denscombe et al. (1995), realizaram um

estudo que relaciona as variáveis raça e amizade numa escola primária (de

Leicester). A investigação realizada pressupunha que, a partir dos quatro anos

de idade, os alunos têm consciência da questão racial e esta consciência

acaba por resultar numa preferência pelo grupo étnico a que pertence o/a

aluno/a.

No entanto, os professores não se mostraram impressionados com esta

hipótese, alegando que a experiência que tinham com as crianças lhes permitia

afirmar que, na escola primária, não existe nenhum tipo de influência racial na

selecção de amizades e que, ainda que por vezes manifestem alguns

preconceitos ouvidos em casa, os alunos não tinham em conta, em absoluto, a

cor da pele quando se tratava de fazer amizades.

Neste estudo, Denscombe et al. (1995) concluíram que os resultados vão

contra a ortodoxia da preferência étnica nas aulas da escola primária (talvez

como consequência da dimensão da amostra e das técnicas privilegiadas na

recolha de dados, nomeadamente o teste sociométrico).

Relativamente à pesquisa levada a cabo na Escola nº5 de Santa Marta de

Corroios, procurei igualmente estabelecer uma relação entre as variáveis raça

e amizade. Não obstante ter concluído que 40% das crianças tem amigos

preferenciais da mesma raça (ver Anexo 5 / gráfico 16), a minha permanência

no terreno não me permite afirmar que existe, de facto, uma relação entre a

construção da rede de amizades e a variável “raça”, ou seja, à semelhança de

Descombe et al. (1986), não possuo dados concretos que justifiquem a

existência de uma consciência racial que condicione a escolha dos amigos.

É pertinente relembrar que, se por um lado, a maioria destas crianças de

origem africana habita no Bairro de Santa Marta de Corroios, por outro, a

maioria das crianças brancas passa metade do seu dia (manhã ou tarde) no

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infantário da Fábrica Kansas, onde trabalham os seus pais. Não será, então,

natural que, quando interrogadas quanto aos seus amigos preferidos, as

crianças refiram aqueles com quem passam mais tempo e com os quais

certamente se identificam?

Através da observação directa o que me foi possível constatar é que estas

crianças conversam e brincam indiscriminadamente umas com as outras, sem

quaisquer preconceitos.

Também Carvalho et al., autores de um trabalho de investigação sobre jogos e

brincadeiras infantis praticados por crianças numa escola básica do Porto,

afirmam que, no espaço escolar, nunca registaram práticas de racismo ou

xenofobia: "O grupo de jogo é formado segundo critérios bastante diferentes

dos de grupo cultural de pertença. Parece-nos, assim, que a formação dos

grupos de jogo está bastante orientada por outros critérios. Situa-se na

pertença a uma turma, grau de parentesco e, nalguns jogos e brincadeiras, no

género e na idade” (Carvalho et al., 1994:23)

Não é de estranhar que as crianças de origem portuguesa não convidem os

seus amigos portugueses brancos (e vice-versa) para as suas festas de

aniversário ou simplesmente para passarem uma tarde juntas. Afinal, o único

elo de ligação entre estas crianças, que vivem em dois mundos distintos, é a

escola.

O importante seria criar mais “lugares antropológicos” nos quais estas crianças

tivessem de se cruzar com maior frequência, por forma a minimizar o peso da

“característica silenciosa”67 (Saramago, 1999) destes grupos sociais.

67

“Um grupo social silencioso revela-se incapaz de expressar de forma perceptível as suas necessidades e aspirações enquanto grupo social distinto. Por outro lado, o grupo dominante revela-se incapaz de criar oportunidades para que tal suceda” (Saramago, 1999:19).

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Afinal, quem sou eu?

141

Conclusão: Afinal, quem sou eu?

No início parti do pressuposto de que a “raça” e a etnia são variáveis primaciais

na percepção da identidade das crianças com ascendência cabo-verdiana em

espaço pluricultural. Não podia estar mais equivocada. Do que me foi dado a

observar, a “raça” e a etnia são percepcionadas por estas crianças mas não

são sublimadas relativamente a outras variáveis.

No fundo, a minha pressuposição incide na falácia de que os filhos dos

migrantes, mesmo que não o saibam, são perpetuadores incondicionais da

cultura de seus pais: é com essa cultura que se identificam e com é com ela

que se sentem bem.

Mas, de facto, a sua história não é a mesma. “Desde logo, os jovens e crianças

descendentes de imigrantes não são imigrantes eles mesmos. Não têm um

trajecto imigrante e a maior parte nem sequer conhece o país de origem dos

seus pais. Nasceram e/ou foram socializados no quadro da sociedade de

acolhimento, onde sofreram a influência poderosa de contextos como a escola,

mas também dos media, da cidade ou das suas redes de sociabilidade juvenis.

A sua cultura é, inevitavelmente, produto disso mesmo, por maior que seja a

importância da família e por mais que ela constitua um espaço fechado de

reprodução da cultura de origem” (Machado, 1994:121).

Mesmo tendo, eventualmente, condicionado algumas respostas, sou levada a

afirmar que estas crianças têm a percepção da presença de uma fronteira

étnica e rácica, ou seja, têm a percepção da semelhança do “eu” face ao “nós”

e da diferença do “nós” em relação ao “outro”. No entanto, o significado da

pertença a esse grupo não é ainda explorado, não é manipulado com o

objectivo de obtenção de qualquer tipo de vantagem. Ao contrário da

identidade étnica, a etnicidade não está presente68.

68

Milzer (1998) realizou um trabalho de investigação sobre identidades culturais em contexto escolar. Apesar de nos basearmos em metodologias idênticas , as conclusões a que chegamos são diametralmente opostas. A autora afirma que para as crianças com que conviveu “e apesar da sua pequena idade (6-7 anos), a suaraça e todos os atributos a si associados, são uma

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142

A apreensão de Verkuyten (1992)69 relativamente a estes testes não é

infundada: também neste caso a identidade étnica acabou por não se revelar

um critério insigne na auto-definição.

Concordo com Gopaul-McNicol (1995) quando defende que a vontade de uma

criança em assumir uma “raça” ou uma etnia está condicionada pela sua

experiência de vida.

Se a escola e os media, influentes agentes de socialização, continuam a insistir

em veicular “ideias de brancos com vista a tornar os negros psicologicamente

brancos” (Peres, 1999:161), será de estranhar que estas crianças não atribuam

primacial valor à sua cor de pele ou à sua origem, que não idolatrem super-

heróis negros, ou que não se preocupem em representar correctamente a cor

dos seus amigos ou de um qualquer personagem de um texto?

Se observarmos com atenção o Anexo 5 (informação estatística

complementar), verificamos que muitas crianças brancas também não

retrataram correctamente a heroína da história “Fada branca, fada negra”; a

maioria identificou-se com o personagem do texto “Meninos de todas as cores”

por ele ser branco; à pergunta “Quem sou eu?, um número considerável

seleccionou as categorias “branco” e “português”; e o seu super-herói é,

igualmente, alguma personagem da série Dragon-ball (na altura tão em voga),

etc.

Mais do que um hipotético sentimento de auto-rejeição da cultura cabo-

verdiana ou da “raça” negra, a opção por elementos tipicamente brancos é uma

consequência natural da contínua imposição da cultura da «tribo branca».

realidade da qual já estão bem conscientes, esboçando uma percepção clara da circunscrição em que o seu tom de pele coloca a comunidade em que vivem, as suas famílias e a si próprias” (Milzer, 1998:64). Chega mesmo a declarar que “as crianças mais velhas já demonstram um forte sentido de identidade étnica” (p.201) e que “a raça é um factor de grande peso na vida das crianças (pp.203). É pertinte referir que a autora trabalhou apenas com 12 crianças. 69

Sobre este assunto reveja a página 39.

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Afinal, quem sou eu?

143

Quando um aluno negro percepciona que o seu professor tem um nítido

favoritismo pelos seus colegas brancos e que está conivente com a teoria da

cultura como «erva daninha» (Peres, 1999:171), é crível que comece a

alimentar sentimentos de rejeição face à sua cultura de origem (o que

certamente irá reflectir-se numa auto-estima negativa).

Em jeito de síntese, considero que as variáveis “raça” e etnia (esta associada,

sobretudo, à comunhão de uma mesma língua e à persistência no seu

imaginário de um terriório comum) são, de facto, elementos identitários das

crianças com ascendência cabo-verdiana. Elas percepcionam-se enquanto

cabo-verdianas e negras. Mas também são crianças, irmãs/irmãos, filhas/filhos,

pobres, citadinas, portuguesas, residentes do bairro de Santa Marta e

alunas/alunos, entre tantas outras coisas. A lista é infindável.

Creio que existe uma estreita relação entre estas deduções e a idade dos

alunos. Não nos podemos esquecer de que o objecto de estudo são crianças

com uma média de 9 anos de idade, pelo que seria interessante estudar a

mesma questão entre os adolescentes.

Propus-me a interpretar parte da realidade do Outro, ou aquilo que ele entende

ser a sua realidade, o que não significa que aquilo que escrevo seja esse

Outro. Não tenho a pretensão de alvitrar verdades absolutas e universais. Este

trabalho é antes o reflexo de uma série de decisões e reflexões teóricas face a

um realidade particular. Estivessem reunidas outras condições e os resultados

certamente teriam sido outros que não estes.

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Afinal, quem sou eu?

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