Afonsp Henriques Neto

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A vertigem da cidade de Afonso Henriques Neto [entrevista] Floriano Martins . O poeta Afonso Henriques Neto é um daqueles notáveis nomes trazido à cena poética pela antologia 26 poetas hoje (Coleção Bolso, 1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Foi uma revelação importante à época, sem dúvida. E toda a poesia “suja, ruim e sem qualidade” que a crítica recebeu naquele momento aos poucos foi substituída por uma poesia limpa, ruim e sem qualidade. Houve um equívoco de faxina, e removeram o que havia de essencial naquela geração, e que a crítica encarcerava no adjetivo “sujo”. A própria Heloísa, já em 1997, chamava a atenção para o número de mortos dentre estes poetas. Mortos e sumidos, acrescentaria. Porém o saldo é brilhante se pensarmos em Roberto Piva e Afonso Henriques Neto, duas poéticas vibrantes, renovadoras, essenciais para o desdobramento de nossa lírica. Se reconhecidos ou não, este é outro ponto. Afonso Henriques Neto (1944) acaba de publicar um livro de tirar o fôlego, Cidade Vertigem (Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2005), não pelo título, mas sim pela inquietude extrema com que nos leva a percorrer suas 260 pgs. É livro fascinante – por sua linguagem múltipla, mesclando poesia, narrativa, ensaio – e verdadeiro – ao partir de experiências vividas pelo poeta. [FM] FM – Comecemos este nosso diálogo por teu livro novo, Cidade vertigem, livro que já em 1996 situavas como “um livro sobre a megalópole, poemas e textos imersos no puro delírio persecutório/labiríntico/atordoante de um meio ambiente cada vez mais adverso à vida humana e por extensão à poesia”. Qual o saldo desta aventura? De que maneira consideras satisfatória a aventura deste livro? AHN – A publicação do livro Cidade vertigem me deu grande prazer. Realizá-lo foi, sem dúvida, uma aventura. É verdade que desde o início de minha trajetória poética a preocupação com a vida humana nas grandes cidades industriais modernas sempre se mostrou presente. Mas foi a partir de 1985 que resolvi trabalhar um projeto com temática bem definida, ou seja, iniciei mais ou menos naquela data a construção do livro sobre a cidade. Quando fui realizar doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ em 1993, propus como tese desenvolver um trabalho a partir daquele longo poema que vinha escrevendo sobre a idéia de cidade: busquei então ‘explicitar’ as fontes que havia utilizado para a produção do poema, ‘explicando’ assim a sua gênese, ou melhor, descrevendo os processos e os caminhos utilizados pelo eu literário

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A vertigem da cidade de Afonso Henriques Neto

[entrevista]

Floriano Martins

.

O poeta Afonso Henriques Neto é um daqueles notáveis nomes trazido à cena poética pela antologia 26 poetas hoje (Coleção Bolso, 1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Foi uma revelação importante à época, sem dúvida. E toda a poesia “suja, ruim e sem qualidade” que a crítica recebeu naquele momento aos poucos foi substituída por uma poesia limpa, ruim e sem qualidade. Houve um equívoco de faxina, e removeram o que havia de essencial naquela geração, e que a crítica encarcerava no adjetivo “sujo”. A própria Heloísa, já em 1997, chamava a atenção para o número de mortos dentre estes poetas. Mortos e sumidos, acrescentaria. Porém o saldo é brilhante se pensarmos em Roberto Piva e Afonso Henriques Neto, duas poéticas vibrantes, renovadoras, essenciais para o desdobramento de nossa lírica. Se reconhecidos ou não, este é outro ponto. Afonso Henriques Neto (1944) acaba de publicar um livro de tirar o fôlego, Cidade Vertigem (Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2005), não pelo título, mas sim pela inquietude extrema com que nos leva a percorrer suas 260 pgs. É livro fascinante – por sua linguagem múltipla, mesclando poesia, narrativa, ensaio – e verdadeiro – ao partir de experiências vividas pelo poeta. [FM]

FM – Comecemos este nosso diálogo por teu livro novo, Cidade vertigem, livro que já em 1996 situavas como “um livro sobre a megalópole, poemas e textos imersos no puro delírio persecutório/labiríntico/atordoante de um meio ambiente cada vez mais adverso à vida humana e por extensão à poesia”. Qual o saldo desta aventura? De que maneira consideras satisfatória a aventura deste livro?

AHN – A publicação do livro Cidade vertigem me deu grande prazer. Realizá-lo foi, sem dúvida, uma aventura. É verdade que desde o início de minha trajetória poética a preocupação com a vida humana nas grandes cidades industriais modernas sempre se mostrou presente. Mas foi a partir de 1985 que resolvi trabalhar um projeto com temática bem definida, ou seja, iniciei mais ou menos naquela data a construção do livro sobre a cidade. Quando fui realizar doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ em 1993, propus como tese desenvolver um trabalho a partir daquele longo poema que vinha escrevendo sobre a idéia de cidade: busquei então ‘explicitar’ as fontes que havia utilizado para a produção do poema, ‘explicando’ assim a sua gênese, ou melhor, descrevendo os processos e os caminhos utilizados pelo eu literário (ou subjetividade do autor, ou ainda a tal voz poética). Foram escritos, assim, vários ensaios que procuraram dar conta dos principais assuntos tratados no poema: entre outros, a presença da utopia desde Platão até a atualidade; o exame da história da cidade e de algumas idéias de urbanistas que sempre me interessaram; um passeio pelas visões urbanas de escritores como Baudelaire, Eliot, Kafka e Joyce. Utilizei também a prosa poética na forma de uma passagem do poema para os ensaios. Enfim, busquei revelar pela linguagem os delirantes, complexos, labirínticos mecanismos daquele ‘monstro’ que se convencionou chamar de megalópole, esse meio ambiente adverso a tantos sonhos e esperanças. Quando, recentemente, fui dar forma final ao livro, procurei estruturá-lo sem me preocupar com um formato de tese, montando os textos (e escrevendo novos) com total liberdade, de modo que o resultado ficasse o mais interessante possível para o leitor.

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FM – Há uma passagem neste livro, onde recolhes depoimentos inúmeros e ali um deles é do Ferreira Gullar: “Uma cidade / é um amontoado de gente que não planta / e que come o que compra / e pra comprar se vende”. Contudo, o livro não se limita a uma visão pessimista do homem e sua condição urbana. Sob este prisma, qual a utopia do Afonso Henriques Neto?

AHN – É isto mesmo: o livro Cidade vertigem busca uma visão bastante abrangente do assunto, não se limitando à óbvia crítica dos aspectos desumanos da megalópole. A grande cidade tem a nos oferecer também possibilidades luminosas. A minha utopia permanece na direção de um humanismo socialista: educação, saúde, habitação, trabalho, liberdade e lazer para todos. O cinismo contemporâneo pode até falar em ingenuidade dessa formulação colocada assim de maneira tosca (afinal, todos querem isso), mas, do meu ponto de vista, o trabalho poético quer sempre contribuir para o sonho de se tentar construir um homem melhor, que possa viver em sociedade mais tolerante, defensora da justiça e da paz (mesmo quando a poesia vem carregada de conflitos, de sangue, de guerra: reflexo da crua realidade que nos submete, ou ao longo dos séculos nos submeteu). Seja como for, sempre procurei pensar uma cidade mais democrática, socialmente mais equilibrada, mais humana: e se o nome disso é utopia, sigo com ela.

FM – Na mesma entrevista acima referida, concedida à revista Azougue, observas que “a cultura de massa em todos os seus desdobramentos, inclusive pelos caminhos da informática, tem levado a uma mudança para pior na construção de obras literárias”, e em 1997, em depoimento à revista Poesia Sempre, voltas a tocar no assunto, desta vez destacando “a profunda crise atualmente vivida em função da multipresença da imagem televisiva e de certo tipo de retórica imbecilizante que invade a comunicação de massa”. De que maneira a poesia se sente, efetivamente, impedida por tais aspectos e o que tem se modificado nestes últimos 8 anos em que supostamente os poetas já deveriam ter aprendido a combater essa pirotecnia que mencionas?

AHN – Vamos separar as coisas para que fique mais claro o meu pensamento sobre essa tal de cultura de massa. De um lado coloquemos a literatura de massa: são, por exemplo, os romances escritos para um amplo público, seguindo determinados padrões de estrutura e de estilo, com situações e personagens modelados pelo (ou colados ao) senso comum (falamos de um Sidney Sheldon ou de um Paulo Coelho). É óbvio que há que se ter ‘talento’ para bem trabalhar nesse registro, pois o sucesso não está garantido pela simples aplicação das fórmulas mais do que gastas. Do outro lado do estereótipo, se movimentam as estranhas atmosferas que trocam de sinal todo o tempo, um oceano que se move no registro da permanente invenção, o reino sem palavras que costumamos chamar de espaço mitopoético (e que só pode ser tocado, paradoxalmente, por meio da utilização dessas palavras há muito gastas). Roland Barthes vai dizer que a literatura é o logro consciente, o jogo inventado pelo escritor para fugir do lugar comum, esse monstro que está emboscado na curva de cada signo, de cada palavra. É por isso que a poesia ‘vende pouco’, nada tendo que ver com o universo da comunicação de massa: no poema circula uma linguagem rarefeita, uma língua sem traduções nítidas, delírio a dançar o infinito (mesmo que seja só jogo…). Portanto, penso que o poeta não deve se preocupar em excesso com a retórica imbecilizante de toda a comunicação de massa (ela estará sempre presente em todas as mídias, na sociedade do dinheiro/espetáculo, no discurso do mesmo, da redundância): o poeta precisa é afiar as suas armas e gastar a sua energia na produção de uma obra que valha a pena. Pois todo mundo sabe que a arte ajuda demais na construção do sentido/caminho para uma vida mais rica, mais plena.

FM – Uma vez mais recorro a palavras tuas, aqui no tocante à tua geração ou de tua aproximação dos Marginais dos anos 70, enfim, quando recordas que a “impregnação literária” de teus livros em parte te afastava dessa geração, considerando que, no geral, havia ali, nesses poetas, certo descuido com a

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linguagem. Nas gerações posteriores a impregnação literária passou a se verificar, porém com cacoetes de uma leitura limitada, recorrente, desgastada em pequenos vícios que acabaram denunciando um beletrismo. Entre relaxos e caprichos, saltamos de uma geração que aparentemente tinha o que dizer, sem saber como fazê-lo, para uma que aprendeu o domínio de uma técnica, porém nada tem a dizer. Como vês esta passagem, havendo mesmo uma?

AHN – O mundo literário, como tudo mais, não é simples. Disse uma vez em entrevista da minha impregnação literária, fruto principalmente da convivência com o meu pai poeta e com os livros da biblioteca dele. E falei também de certo ‘descaso’ dos poetas da minha geração com a linguagem e com a busca de uma sólida formação literária. Mas veja o exemplo do Cacaso, um dos bons nomes da geração: ele produzia muitos poemas com certo ar ‘largado’, trabalhando dentro do registro coloquial, com pitadas irônicas um pouco à moda dos modernistas de 1922, mas todo mundo sabia de sua excelente formação literária, sendo ele inclusive professor de literatura (o ar ‘largado’ era uma construção consciente). O mesmo aconteceu com a Ana Cristina César, com o Eudoro Augusto. O Francisco Alvim também produz obra bem construída e de grande força lírica, e nos seus poemas sempre ficaram nítidas as influências de vários mestres, como Drummond e Bandeira. O Chacal, que já pertence ao time dos que não lidam de forma contumaz com o passado literário, aposta mais no seu ‘faro’ poético, produzindo um trabalho de muita qualidade. E assim a coisa vai. A minha crítica ao ‘relaxo’ de alguns poetas pode ser aplicada em qualquer tempo. O problema é que como a tal ‘geração marginal’ trabalhou muito no campo do coloquial, ficou mais difícil separar o joio do trigo. Mas ainda prefiro a atitude visceral da geração de 1970 do que certa retórica beletrista, como você bem falou, que vem povoando os livros de hoje: não basta o domínio técnico, uma certa postura formalista, para se fazer um bom poeta. O melhor, talvez, seja juntar as duas coisas: visceralidade e consciência técnica. Mas uma coisa é certa: se você quiser mesmo saber o que é grande literatura, siga os passos do Ezra Pound e procure Homero, Safo, Propércio, Catulo, Dante, Shakespeare, Camões, Fernando Pessoa; no Brasil, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e os modernos.

FM – Estou completamente de acordo contigo de que tanto Jorge de Lima quanto Murilo Mendes “alcançam grandiosidade imagética a partir de um catolicismo vivido na profundidade da presença de um Cristo cósmico, arquiteto de todas as tessituras da vida e da morte etc.”, Encontramos esta mesma dimensão ou zona de tensão, por exemplo, em um poeta como o boliviano Jaime Sáenz (1921-1985). No Brasil, Jorge e Murilo acabaram sendo vítimas de um duplo preconceito, mal compreendidos ora por serem católicos, ora por serem surrealistas. Esta ausência de uma coexistência de princípios opostos entre nós não te parece impeditiva de certo crescimento existencial, garantia inclusive de uma miserabilidade intelectual?

AHN – Sem dúvida alguma. Murilo Mendes e Jorge de Lima foram ‘esquecidos’ por longo tempo por serem católicos e desenvolverem suas imagens a partir da estranheza do universo surrealista. Até hoje ainda esbarramos com esses preconceitos, apesar deles se encontrarem mais diluídos. Acho que Murilo e Jorge são atualmente curtidos com mais liberdade, sem essa bobagem de ‘esquerda’ ou ‘direita’ no mundo da qualidade literária, e isso é muito bom. A verdade é que os melhores poetas apresentam sempre múltiplas faces no seu trabalho, pois a mente humana não é linear e sim exemplo bem acabado do que hoje se costuma chamar de campo da complexidade. 

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POEMA 

A paisagem não vale a pena. Pesa dizê-lo assim tão duramente, mas o que posso fazer contra os mascarados que penetraram os altos muros e agora coabitam os aposentos desolados? Já não vale a pena a manhã. Os embuçados chegaram em surdina e foram destroçando todos os pilares, todas as primaveras, as lúcidas esperanças, vultos tão horrendos que paralisaram o dia. A noite não significa mais nada. As casas dormem e não significam nada. O vento cortou-se em mil fatias de desespero. Que dimensão canta além da treva, a face repousada, os olhos claros?

 

         PARA JIMI HENDRIX, PARA MIM E TODOS VOCÊS

sua música soando em minha (sua) cabeça música suando (o concreto na neblina desmaiando) fragmento ser (fragmento galáxia) vertigem na sensação dos ossos placas de silêncio no labirinto deserto

sua palavra onde?

impedido de voar agora é a abstração da ave sem olhos sem radar imagem - vácuo sob morta (in)consciência

seu universo onde?

mugir lâmpadas de meia-noite oh radical lua da ausência louco louco sim linguagens todas inúteis na pele inútil do tempo

sua energia onde?

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erráticas garras guitarras vomitando vomitando fetos  

   

TEXTO

Oh espina clavada en el hueso  hasta que se oxiden los planetas ( Federico Garcia Lorca)        

O texto, escura escama, pesadelo de eternidade, máscara densa do universo vomitando. O texto, mas não a energia que o pensou, interrogando a simultaneidade absoluta. Há uma esperança nas ruas, nas pedras, no acaso de tudo, uma esperança, uma forma suspensa entre o aparente e a essência, entre o que vemos e a substância, uma esperança, uma certeza talvez de que o rio não se dissolva no mar, de que o ínfimo, o precário, a voz, a sombra, o estalar das carnes na explosão não se dispersem no todo, impensável medusa da inexistência. Há uma luz qualquer sonhando integração, o suposto destino dos ventos, das energias globais, a suposta sabedoria com que o homem fecundou a crosta envenenada do planeta, há uma luz qualquer ensaiando águas pensadas no eterno esvair-se, abstrato expansionário, há uns olhos além da frágil realidade, da terrível matança, da cruel carnificina entre seres pestilentos aquém da fronteira do sonho, um texto além do texto, uma esperança talvez, enquanto somos e nos cumprimos, enquanto somos e nos oxidamos, enquanto somos e prosseguimos.  

   

    ASSIM

Vomitaram trinta estrelas nesse charco de líquidos corpos empoçados. Nas tocas iluminadas os que se iniciam na morte fantasmas de si mesmos

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fecundam ritmos e bússolas e fracassos. Há desgosto e música na atmosfera branca negra. Vomitaram trinta estrelas talvez mais mas o buraco se fecha. Em silêncio algumas flores resistem nas verdes gramas do sol.  

 

 

engole o peixe com a espinha e tocarás a guelra de Deus

aprende todas as palavras antes de reduzi-las a Uma

ser infinitas palavras não precisar de Nenhuma  

     

DOS OLHOS DO NÃO      

se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle não acreditem nesta única realidade neste implacável colar de conchas de ar

se lhes derem os códigos os gestos as modas não acreditem nesta enlatada realidade nesta implacável aranha de invisíveis fios

se lhes derem a esperança o progresso a palavra não acreditem na imposta realidade na implacável engrenagem das hélices de vácuo

aprendam a olhar atrás do espelho onde a história jamais penetra a profunda história do não registrado aprendam a procurar debaixo da pedra a estória do sangue evaporado a estória do anônimo desastre aprendam a perguntar por quem construiu a cidade

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por quem cunhou o dinheiro por quem mastigou a pólvora do canhão para que as sílabas das leis fossem cuspidas sobre as cabeças desses condenados ao silêncio  

   

  A  LORCA

a romã da morte madura no vácuo de estrela e água a romã da morte amargura no prado da madrugada

granada fonte de espinhos

granada profano vinho

romã da morte madura na prata da madrugada

(no azar de sombra e caveira algemas de fogo e nada)

granada carrasco na arena gelada

cães  mastigando o assombro em estilhaços na estrada

granada

estrelas de sangue e de neve horizontes descarnados sol sem luz torta manhã nos olhos (seca romã) de federico parado de federico dormido de federico cuspido de federico e seu nada

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granada lados feridos  

granada assassina estrada de cães de lua e labirinto corpos lançados nos rios corpos salgados nos frios fascista florada e martírio granada nenhuma estrada

(pois além de federico a poesia e a morte bailam máscaras e acasos no despenhadeiro de traços e verbos de federico a infinita manhã naquele instante esgotado)

granada terrível romã madurando a madrugada  

    

UMA NOITE  

o tio cuspia pardais de cinco em cinco minutos. esta grama de lágrimas forrando a alma inteira (conforme se diz da jaula de nervos) recebe os macios passos de toda a família na casa evaporada        mais os vazios passos        de ela própria menina. a avó puxava linhas de cor de dentro dos olhos. uma gritaria de primos e bruxas escalava o vento   escalpelava a tempestade        pedaços de romã podre        no bolor e charco do tanque. o pai conduzia a festa           como um barqueiro           puxando peixes mortos. nós      os irmãos

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          jogávamos no fogo                     dentaduras pétalas tranças           fotografias cuspes aniversários       e sempre       uma canção       só cal e ossos a mãe de nuvem parindo orquídeas no cimento.  

    

QUASE CINZA

eu sei onde ladram os ventos pelos ladrilhos dos mistérios inexistentes. eu sei de que matéria esta sensação de derrota é feita, moldada, entre instrumentos de tortura e pálpebras e espelhos amassados. eu sei dos que falam no escuro a flauta da voz das fábulas. eu sei através do vídeo o vácuo do sangue atrás e além da imagem, violentos planetas vomitando o drama. eu sei as tartarugas infinitas. os bodes expiatórios. os lavabos cheios de unhas vivas. a eternidade do gesto humano morrendo no longo tombadilho. sei das certezas e incertezas verdes. sei do resumo de tudo dançando na chuva mais cotidiana. só não sei do teu sorriso se diluindo em nuvem. só não sei do teu corpo quase infantil de mulher amanhecida. só não sei do timbre de tua voz entre borboletas e musgos fluindo do único verbo. só não sei do opalescente rastro de teus pés entre cachoeiras apagadas. só não sei da galáxia a resumir vazia o silêncio mortal de tua alma quebrada. ai de mim que eras ouro e breve.  

        MAIS UMA VEZ

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o menino chora no meio da noite no meio da praça no meio do coração. o menino chupa laranjas e abismos as bombas caem. está sozinho no meio do oceano no meio de cem milhões no meio do infinito. o menino desenha navios submersos enquanto chovem granadas enquanto mais uma vez o povo é saqueado. o menino chora sob um turbilhão de cavalos em febre sob um teia de equívocos e fracassos. estamos no meio da noite barroca no meio da praça onde os tiranos engolem o ouro no meio do coração torturado por mil punhais envenenados e um punho de sombra redigindo lei imóveis. o menino uiva um labirinto (não há pai nem mãe nem lembrança de ternura para consolar o pranto). o menino uiva uma farpa de cristal um relâmpago de estrelas podres o abandono definitivo (não há luz no quarto onde o menino chora sob um fedor de sinfonia estarrecida). no meio da fome no meio da morte no meio do coração.

   

GRAVURAS LATINAMERICANAS

alguma ciência para se descobrir um cadáver: levantar com estrondo a tampa do baú, seguir a linha de sangue e desespero até a cabeça decepada, abrir devagar a porta do armário rangendo sombras e dentes,

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arrancar do vento a estrela do grito da criança enforcada, esperar a visita do demônio com a mesa posta, olhar-se até o fundo no espelho; alguma ciência para se parir cobras e lagartos: refletir nos olhos inocentes o massacre da multidão traída, vomitar um conto de fadas e mitos redondos na caveira da menina roendo uma boneca vermelha, cravar a roseira entre as asas da andorinha, dançar no baile dos homens de bigode todos fêmeas sob a capa de drácula; alguma ciência para se tecer escândalos: sorrir candidamente quando uma perna brotar lentamente dos músculos do seu ombro esquerdo, dar de mamar a um rato e a um filhote de leopardo, esporrar de amor no meio da avenida, semear meteoros cabeludos e megeras arrotando no leite de vaca da santa trindade, ser o grande rio das palavras e navegar o sol popular da fome e da rebeldia.  

    

          RADIAÇÃO

a mecânica desses jardins em nenhum relógio se revela, ao modo de bruxos na frase do livro feito areia do céu onde sonhamos a palavra do anjo, a sílaba do tempo, o incomunicado silêncio de costas para as constelações do azul inumerável

digo das substâncias que se roeram em nós, corpos amigos em sepulturas pálidas, digo deste sono que meu pai cravou em minhas costas e que cravo nas costas de meus filhos, à maneira de asas, talvez anjos, já vos disse, este jeito de sorrir e amar o humano, herança do que me resta

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POEMA

nada a desenhar sob o diamante do ollhar poeta no abismo medular

nem há no fundo do coração do mundo sonho ou vento demiurgo que tudo venha explicar

carne ou metáfora — não importa — sendo nada tudo alcança: o poeta é a viagem mesmo contra a esperança  

     

PARA UMA DAMA NO VENTO 

pelo silêncio do som pela risada do fim joplin

pela certeza do incerto pelo infinito de tênis janis

pela comovedora explosão pelo galático spleen janis joplin  

 

 

  NOVO, NAVA

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O chão pedrento repele a flor de Minas. Pedro Nava escava os humores da terra penetrando. Turvos tumores de entre lenda e sonho lancetando. Pedro Nava pedra Pedro Nava ave o chão de Minas é planeta denso orbitando o doce amor em flor amarga. Mas se lenda e sonho não suportam a luz do dia sobre tanta lava, se cristalizam, Nava, e a realidade o tempo costura e cicatriza para que esplenda a palavra exata. E tudo se conforma sobre o ser informe a rebelar-se. Mágico pastor de paixão já naufragada e que abismo algum saberia decifrar não fosse florir Minas à beira-mar tecendo trêmulo casulo do segredo, granito, memória iluminada de infinito.  

        EM HERÁCLITO, COM BORGES

Heráclito desliza na manhã em Nova York. O músculo do tráfego (para dizer assim, vento prosaico) no seu sonho relê sentença eterna de que o mesmo rio duas vezes nenhuma imagem verá em suas águas. E esta gema de absoluto (verdade, ficção da ironia?) reverdescendo velhos poemas é diadema urdido no poeta, flama e destino, sangue do espírito, delírio à mesa de Borges (negra Genebra), punhal de um floral agosto, irrevogável. Oh tigre cintilante do sol-posto! Heráclito, nada mas já espelho, Borges, infinito, máscara a mastigar o próprio rosto.  

     

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A UM BRUXO, COM CARINHO

Aqui tempo e espaço se sintonizam ao clarão das galáxias. Joaquim Cardoso dirige o trem do sonho e da morte, descobre a fórmula do abismo, racionaliza a explosão do anjo e do demônio, inaugura a escritura implacável do silêncio. Costuma passear onipotentemente sobre as ruínas da solidão. Navegações teóricas nos abismos do som. Ele caminha com sapatos de borracha no fundo mar. Pela matemática inventa o infinito ou pelo infinito escreve a matemática? Produtor de irrealidades, impera com orgulho sobre as leis do absurdo. (Um pássaro todo pensado em equações flutua sobre o canavial congelado, outro e mesmo Pernambuco, fusão de ciência e poesia, vento e dramaturgia, mágica revelação.). Sapatos de borracha no fundo do mar: lente de aumento sobre o invisível.  

   

        PENSANDO MURILO MENDES

último espasmo da lua e os sumaríssimos suspiros. trigonometria água lustral anjos cubistas relógio de fogo. algo enlouqueceu nos pássaros do olhar. o bonde e o violão se espandongam rangem no sangue entardecer do tempo. pensamento a soabrir a pálpebra para fora da luz antiuniverso da matéria sem palavras. orfeu hidrofeu catastrândula. entre os mortos e a congestão nasal passeia um sacerdote antiquíssimo e a sábio indiferença do abismo oval. tudo enlouqueceu às vésperas do sonho. todos os telhados se evaporaram e a infância. restou aquele menino magro mirando a tristeza infinita dos meteoros sem deus.  

                                   .......

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um poema que seja necessário como uma árvore uma selva                  uma casa                                   um prato de ostras vivas um poema paisagem de violinos de ouro e depois o silêncio do texto                 a branca espuma estrangulando aos poucos a alvura mesma do cisne

II

um poema necessário como o morte este pré-texto chamado vida         e o jamais escrito na luz pulsação de sombra no vidro onde a memória deposita imagens           buquês de nada no rosto envelhecido e flores flores

III

um poema tão pouco necessário como o amor ressecado            do outro lado de tudo    

IV

um poema de mãos atravessando a neblina citando cítaras de maio flora sem raiz infotografável. nenhuma metáfora definitiva ovos de vulcão pulmão de ossos. (quando tudo estiver esquecido não se esqueça do rio de relâmpagos que beijei no seu sorriso). música das ruas. no mais sempre se nasce projeta desfalece. fugace o mar em gelatina seca. infotografável.  

     

EXERCÍCIO

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empurre as mãos lentamente através da pele do rio até tocar o coração da beleza (ruína do tempo impenetrável)

depois as retire lentamente como se puxasse do infinito a respiração da criança nascendo    uma floresta de anjos são cordeiros degolados cortina de facas na direção aurora oco da boca antes da luz oco-palavra

uma floresta de anjos examina com rigor o tempo o texto o torvo mas se cala na véspera do humano

morte é vento que não passa  

   

..........

tempo tempo elucidai o violino entardecente

manhã e vento azuis (o que fizeres não fizeres antes depois vazio inclemente) treva e mente escarlate

meu tempo relâmpago sobre verbos mortos esclarecei o vôo do cristal o gume da luz o agudo hino ó sonho do nada sobre o mar divino  

     

DISCURSO

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nada existe, celebremos a alegria. o nascer e o morrer não nos acontece. só para os outros somos espetáculo. há vento em excesso pelos buracos da linguagem. um jardim muito espesso labirinto de idéias flocos de imagens sobre natais de fumaça. nada existe, celebremos aventura. tudo se instala o sentido esvaziou-se do oceano praias da totalidade. o que não existe celebra a concretude. é grave a pedra a pele desgarrada o esqueleto do silêncio. lábios se tocam em alegria beijo seco jardim de séculos. quase nenhuma fala ninguém mas os caminhos. recordemos: infância veloz olfato de espantos estátua ardente arfando no sonho. apenas não há ninguém mas os espaços (apenas o já nascido previamente ido). infinito buraco sem tempo celebração.  

   

  III

 

ela por fim costurou-se inteira e minha carne acostumou-se

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à claridade. cada detalhe seu é minha pele mapa cozido ao som de fogo louco cântaro de luz colhido à tempestade. cabelos, sua raiz em testa doce, súbito nariz e luz a boca brava no beijo de perfume ouro lava. seios que sei de tanto trigo antes de o ventre abrir-se cavalgantes ninfas castanhas plumas cintilando aurora. e na forma da mão a delicada bunda pousa o gesto pássaro florindo coxas que em mim roçam o ilimitado. ela por fim amou-se lua enterrada lambida no mistério a claridade.  

     

..........

neste rosto em que envelheço o riso da infância arde e canta. eis o poema e seu arremesso mar bramindo nas grades da garganta.

tal o velho a enforcar a criança o breu põe a ferros a manhã. verso a verso a poesia não avança açúcar gago na treva da maçã.

neste corpo em que envelheço poesia murcha na prosa do verso. eterno repetir-se nesse espesso mar de luz, reverso perverso.  

     

MAIS UM NOTURNO

                    A Moacyr Félix

pensando bem nenhum ofício aprendi

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a não ser este de embaralhar palavras à procura de uma essência cada vez mais rara e que tangenciamos quando a noite é tarde. estranho ofício de tentar no dicionário discernir sob a pele do rugido luzes que pensamos ler no irrevelado. ou seja nada disso existe e meu ofício é tatear a melodia enquanto a noite engendra o indecifrável. hipocampos do vazio infância do cadáver que não se acaba tempestades mastigadas na madeira do lápis. pensando bem nem vale a pena mergulhar no abismo feito de língua e eternidade. nosso infinito é agora sol de hoje berrando na janela música de teu corpo sem segredos. nenhum ofício aprendi bem sei e o pouco que tentei entre palavras construir um oceano seco atirou para este canto de silêncio e máscara. esta náusea furta-cor arremedo de estrela na paisagem me acende tantos universos paralelos que asfixiado vou entre relâmpagos de galáxias. na verdade nenhum ofício aprendemos para saber que os planetas vizinhos são desertos e que muito pouco resta para que o homem envenene de vez a nave sideral do azul. em que peito de flor e alarde fundar o rosto da manhã quando, treva, é tarde?  

 

OUTRAS LITANIAS

Cidade em tijolos de sombra sulfurosa em línguas de gangrena cabeluda arte cuspida na luz moída nos murais

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Satã, se enfureça de nossa imensa miséria

Cidade dos labirintos uivantes delirantes vinhedos abafados sonâmbulas epidemias & espermas filosofais

Satã, se enfureça de nossa imensa miséria

Cidade das vísceras radioativas anjos enrabados nas neblinas verbo sem alma os sanguinários jornais

Satã, se enfureça de nossa imensa miséria

Cidade das utopias milenares pesadelos dos defumados arco-íris divindades das asfixias mentais

Satã, se enfureça de nossa imensa miséria

Cidade das lepras de vidro arfante fobias do mel desconhecido carvão dos lunáticos hospitais

Satã, se enfureça de nossa imensa miséria

Cidade das torres e dos gases sepulcrais esquifes de luz coxa em fumegantes natais esqueletos floridos nas chamas de arsenais

Baulelaire, prend pitié de notre misère  

     

        ..........

as mulheres mais belas habitam você fragor do mar nos vulcões do meio-dia espuma lunar a flutuar fotografia que o sonho grava no invisível (você vestida em nuvem violeta, você e um gato branco de patas azuis, você fugindo nua pela praia do infinito, você dançando o som do violino-pensamento, você de olhos de surpresa com o peixe pulsando nas mãos, você, você) aprender você

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intacta liberdade amor é saber leveza no centro da tempestade  

TEXTO  

O texto, escura escama, pesadelo de eternidade,máscara densa do universo vomitando.O texto, mas não a energia que o pensou,interrogando a simultaneidade absoluta.Há uma esperança nas ruas, nas pedras, no acasode tudo, uma esperança, uma forma suspensaentre o aparente e a essência, entre o que vemose a substância, uma esperança, uma certeza talvezde que o rio não se dissolva no mar, de queo ínfimo, o precário, a voz, a sombra,o estalar das carnes na explosãonão se dispersem no todo, impensável medusa da inexistência.Há uma luz qualquer sonhando integração, o supostodestino dos ventos, das energias globais, a supostasabedoria com que o homem fecundou a crostaenvenenada do planeta, há uma luz qualquerensaiando águas pensadas no eterno esvair-se,abstrato expansionário, há uns olhos alémda frágil realidade, da terrível matança, dacruel carnificina entre seres pestilentos aquémda fronteira do sonho, um texto além do texto,uma esperança talvez, enquanto somos e nos cumprimos,enquanto somos e nos oxidamos, enquantosomos e prosseguimos. O avô de |Afonso Henriques Neto foi o poeta simboista Alphonsus de Guimaraes. Creio que grupo que procurou fazer este tipo de poesia aqui no Brasil, foi dos mais notáveis. Ao lado do poeta Cruz e Sousa, Alphonsus conseguiu se desenvolver nesta linguagem tão “francesa”. O simbolismo de Valéry e Mallarmé, poesia essencialmente francesa, quando apareceu, notou certa procura nos poetas do Brasil, que buscavam uma saída aos parnasianos, o “problema” foi justamente o modernismo que veio depois, impedindo que este tipo de poesia fosse mais marcante em nossa literatura. 

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DOS OLHOS DO NÃO  se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaullenão acreditem nesta única realidadeneste implacável colar de conchas de ar

se lhes derem os códigos os gestos as modasnão acreditem nesta enlatada realidadenesta implacável aranha de invisíveis fios

se lhes derem a esperança o progresso a palavranão acreditem na imposta realidadena implacável engrenagem das hélices de vácuo

aprendam a olhar atrás do espelhoonde a história jamais penetraa profunda história do não registradoaprendam a procurar debaixo da pedraa estória do sangue evaporadoa estória do anônimo desastreaprendam a perguntarpor quem construiu a cidadepor quem cunhou o dinheiropor quem mastigou a pólvora do canhãopara que as sílabas das leis fossem cuspidassobre as cabeças desses condenados ao silêncio. O pai de Afonso Henriques Neto é o notável poeta Alphonsus de Guimaraes Filho. Alphonsus morreu em 2008 com 95 anos. Poeta místico, católico, não poderia dizer o quanto e como influenciou a obra do filho, visto que tal argumento seria meramente especulativo. Entretanto, cabe dizer que o poeta gostava muito do que o filho escrevia, posso dizer isso em virtude de um lindo poema do dedicado a ele. Afonso cresceu neste meio de poetas, bons poetas, o que lhe facilita o caminho e clareia a vocação.     

QUANDO O SOL 

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quando o sol tornar a colorir a figueira da montanhaaves iluminadas estarão cantando em teu silêncio. escutarás então o inexistente tempofluindo sob o peso morno das lágrimas:sob sob. quando o sol tocar o ventoe os longos dedos de gelocoçarem a pele da manhãincendiando os galos e os cabelosdas árvores e montanhasdos caracóis e cachoeiras quando o sol puxar entre os denteso interno verbo de todas as galáxiasaltas redes de vento e luz e infinito saberás que atrás de cada torturade cada assassíniode toda a imposturadetrás de cada negação ou falsificaçãodo humano manancialo olhar da vida o permanente olhar da vidasempre ardeu como um grito saltando do pó do avesso do ódiodos ossos das sepulturas dos cárceres do rosto vazio eimplacável.  Assim como outros bons poetas de sua geração, Afonso se tornou mais conhecido em virtude da antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda. Nesta notória antologia, nomes como Ana Cristina Cesar, Cacaso, Chacal, Torquato Neto e outros notáveis poetas da, assim chamada, geração mimeógrafo, apareceram. Apesar de algumas controvérsias, o livro se tornou um marco desta geração, fazendo assim surgir um novo grupo, um novo “rumo” para a poesia daquela época. Tempos depois, nos anos noventa, a mesma tentativa fora feita por Heloisa, porém sem a mesma repercussão. Geração igual aquela, dificilmente haverá.

    

MAIS UMA VEZ  o menino chora no meio da noite

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no meio da praçano meio do coração.o menino chupa laranjas e abismosas bombas caem.está sozinho no meio do oceanono meio de cem milhõesno meio do infinito.o menino desenha navios submersosenquanto mais uma vezo povo é saqueado.o menino chora sob um turbilhãode cavalos em febresob uma teia de equívocos e fracassos.estamos no meio da noite barrocano meio da praçaonde os tiranos engolem o ourono meio do coração torturadopor mil punhais envenenadose um punho de sombra redigindo leis imóveis.o menino uiva um labirinto(não há pai nem mãenem lembrança de ternurapara consolar o pranto).o menino uiva uma farpa de cristalum relâmpago de estrelas podreso abandono definitivo(não há luz no quartoonde o menino chorasob um fedor de sinfoniaestarrecida).no meio da fomeno meio da morteno meio do coração.  Afonso Henriques Neto pensa que a “ a poesia ‘vende pouco’, nada tendo que ver com o universo da comunicação de massa: no poema circula uma linguagem rarefeita, uma língua sem traduções nítidas, delírio a dançar o infinito (mesmo que seja só jogo…). Portanto, penso que o poeta não deve se preocupar em excesso com a retórica imbecilizante de toda a comunicação de massa (ela estará sempre presente em todas as mídias, na sociedade do dinheiro/espetáculo, no discurso do mesmo, da redundância): o poeta precisa é afiar as suas armas e gastar a sua energia na produção de uma obra que valha a pena. Pois todo mundo sabe que a arte ajuda demais na construção do sentido/caminho para uma vida mais rica, mais plena.” Mais opiniões do poeta nesta semana.

    

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 TERCEIRAS MARGENS

  me canso de vez desse teu jeito de poeta metafísicode navegador de intrincado torto lirismoporto de ar aonde vão ter os silênciosde que se armam os gestos para a navegação sem rotacanso-me por todos os nervos desse pobreteu ar pedante e prosaicoa pisar o mesmo chão dos mesmos ossos insolúveis cansei-me de kant de joyce de cabral de pessoame cansei da repetição desse eterno sempre passadoa espreitar atrás da sensação e do idiota e do imprestávelquero que se fodam o verso solto e o empoladoa imagem de lã o provérbio aladoqualquer um dos lados por onde pensa sorrirteu manco roto discurso entanto límpidopois que é só cansaço nem estrela e nempor isso gostaria de enlouquecer cantandoàs margens de nada e falta de ar ou chopevelho dessas margens terceiras e falido rio. Afonso Henriques Neto toca num ponto interessante sobre o processo literário, o relaxamento e o comprometimento. Muitos poetas, sobretudo hoje em dia, optam pelo discurso coloquial tão utilizado pela geração dele nos anos 70. Acontece que naqueles tempos, a coisa se misturava de forma tão visceral, que mesmo poetas com boa formação literária e poetas sem formação literária dialogavam e produziam trabalhos de boa qualidade. Era opção de alguns e único caminho para outros. Cita o próprio poeta em entrevista o Cacaso e a Ana Cristina Cesar de um lado. Chacal, já com outras proposições e apostando no “faro poético”do outro. Outra época.

      

SATISFACTION  quero sugar sua bocana velocidade da luznão aguento maisessa conversa fiadaesse apartamento trancadoessa burocracia de esgoto

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amarelo de papel ressonandoenquanto a lua enlouquecelágrimas e espermasspeed amor speedeu quero chupar vocêcomo um risco de giletena pele noite da estrelaeu quero comer vocêolhando a foda no espelhoe espalhar pelos camposmeus ossos os labirintos o gozocharme postiçonossos prosaicos pentelhosoh sonâmbula dama lúcida paixãonenhum incêndio me bastaminha fome meu tesão.  Ainda sobre a questão relaxamento x comprometimento (não que o poeta “relaxado” não seja comprometido, falo de busca, auto-crítica e aperfeiçoamento), Afonso Henriques Neto diz que “não basta o domínio técnico, uma certa postura formalista, para se fazer um bom poeta. O melhor, talvez, seja juntar as duas coisas: visceralidade e consciência técnica. Mas uma coisa é certa: se você quiser mesmo saber o que é grande literatura, siga os passos do Ezra Pound e procure Homero, Safo, Propércio, Catulo, Dante, Shakespeare, Camões, Fernando Pessoa; no Brasil, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e os modernos.”       

FOGUEIRAS  

não saberia o que fazer com todas essas vozestodas essas narrações de viagem de vida consumida aos                                                         arrancosno meio dos desfiladeiros cintilantes dos corredores de                                                         algodãosolidão e estrelas estripadasnão saberia o que fazer com teus olhos de cenouracor e urro da fera escorrendo pelos teus rins

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rasgando de dor o gozo de tuas mamas tão infantistão despudoradamente infantisnão saberia o que fazer com tua boceta de clarões secretosse o amor é essa mistura de lágrima e corposse despedindo longamente na translúcida estradade parte alguma pra parte nenhuma o amorrios ocos da morte que a vida inutilmentetenta penetrar em líquidos em rochas em pulmões arfantese resta o zumbido neutro dessas moscas implacáveisnão saberia mesmo arrematar a sinfoniapor isso agarro tuas mãos nessa urgênciade astros cadentese ligamos a tv e as formigas lambem o açucartalvez as crianças caminhem pelas fogueiras do tempo.  Ainda sobre os poetas ‘marginais’. É muito certo que a antologia 26 poetas hoje fez com que muitos poetas daquela ótima geração aparecessem. Porém, outros que não concordavam com a proposta do livro, não quiseram ser publicados. Há também os poetas que não eram atuantes na “militante” nuvem cigana e também não apareceram. Há também poetas que participaram do livro e depois “se arrependeram”. Enfim, mas o livro é marcante, de certa forma precisava ser feito. Agora, uma coisa é ter participado de uma antologia, outra coisa é conseguir manter-se com o trabalho bem feito. Quem carrega a obra é o povo.    

NÃO É QUALQUER AMOR  

não é qualquer amor que se acaba em Parisangústia de mel nas praças sinfônicas do infinitonão é qualquer amor que risca na rocha o relâmpagosonhos siderais nas guelras dos furacõesnão é qualquer amor que se celebra na orgia das estrelasrevoada dos deuses até então imóveis nas estátuasnão é qualquer amor que se perfuma com o destino das flautasdoce alfabeto sonhado nos pássaros em primaveranão é qualquer amor que será eterno como a carneoblíqua emoção de lamber em prantos o sol entardecendonão é qualquer amor  

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A questão do coloquialismo na geração marginal é apontada por Cacaso em Não quero prosa como sendo fruto da leitura e da tradição de Manuel Bandeira. Porém, Cacaso também levanta a importância de Mário de Andrade para este tipo de caminho. Concordo com ele pois vi isso na prática, é incrível. Aquela geração foi uma geração que lia muito o Bandeira, sem se desfazer obviamente dos franceses e outros fundamentais como dizia o Torquato Neto, mas foi uma geração que surgiu abrindo o que as anteriores vinham construindo, e creio que é isto que acontece de tempos em tempos, o processo de destruição da reconstrução, ou reconstrução da destruição. Por aí.   

LA MER MÊLÉE AU SOLEIL   

quem trouxe o mar para beberem toda a sua sedejunto ao sangue trêmulo da ironia?rimbaud respirou a vertigemárvores amarelas no coração dos cósmicoscaracóisoh mandala dos verbos e dos sentidos.nublados estão os poemasna carne sem conceito da melodia.assassinado artesão dos corações sem ferrugemamo em desespero os céus prateadosdaquelas sinfônicas esperanças.quantas lágrimas para uivar?quantos cães ferrados a este osso de testamento?todos os versos já visitadosdigeridos mapas das emoções de pedrae sonhoe os navios abertos em grito nos horizontes da cor.o mar aladosol sol Sol.sempre dentro dos olhoso invisível.taça estúpida da palavrarimbaudo desespero branco da eternidadeirrevelável.  

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Em 1976, um ano após a pubublicação de seu segundo livro, Afonso Henriques Neto recebe a seguinte crítica de Carlos Drummond de Andrade : “Sua personalidade poética é indiscutível – tanto mais quanto, chegando após duas gerações de poetas de alta qualidade, ela se afirma independente da influência dos grandes que o rodeiam. E é tanto mais curiosa essa personalidade quanto ela se permite ondular entre formas simplesmente modernas de poesia e formas de nítida vanguarda, como a experimentar forças nos dois setores. Por mim, confesso que o experimentalismo vanguardista me importa menos que a dicção livre, a serviço de alguma coisa veemente que exige expressão comovida e comovedora, sem excluir as graças e os luxos do verso belo em si, mesmo quando aparentemente desarticulado.” Por aí vai.   

TODA PALAVRA  

língua de segredos, arquitetura de vulcões, sonoridadeem cor profunda, nômades do sentido os batalhõeslabiais velares palatais borbulhas,cachoeiras de bichos enlameados, vapor do signo,mel noturno de nuvens esmagadas, calendáriotranslúcido, oceano em lâminas incandescidas, mágicade pedras escarlates, sol, cabeça do mito,usina de fábulas, espetáculos, fetos lunares, plantaçãode sonhos, murmúrios de constelações, acmedos mortos a sobrenadar,luz abstrata, resumo das águas, matemáticasdo vento, história dobrada em si mesma,estranheza do número, imaginar é verbo infinito,formigas em fogo, relâmpagos teóricos, nadase imprime em fátuo papel evanescente, arco tensão,construção do invisível, sólida estrada.   Nesta semana veremos o corpo crítico à poesia de Afonso Henriques Neto. O escritor Antônio Carlos Villaça, em 1981, disse o seguinte sobre Afonso: “tive um choque, ao ler seus poemas de Ossos do paraíso. Tudo alí é abismo. Fiquei verdadeiramente perturbado com a intensidade da sua poesia, que é de uma autenticidade, de uma verdade total, arrepiante“. Não sei o quanto a resenha crítica mudou daqueles tempos pra cá, mas creio que antes era mais substancial, porém hoje, para um jovem poeta, é tão importante quanto, não

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importando onde e como. Afonso Henriques, pela qualidade do trabalho, recebeu muitas outras. Isso aí.    

NÃO SEJA TÃO LITERÁRIO  

não seja tão literáriomas se homero dante a bíbliasão pura literaturapor que não escrever abismos com violinos?(sei que minha geraçãoainda uma vez ironizouos programas do poderos discursos literáriosromantismos concretismospanfletarismos cabotinismosevoé nuvem ciganasaudades cacaso & anamais tantos que sonharamo fim das ditadurasnaqueles roarin’70)e o consolo paralelodas construções diamantinaso la chair est triste, hélas!et j’ai lu touts les livres(não resolvemas me ilumino de imenso)última oportunidade a um cinquentãosem poética consistentemas com tanta vodka pela frente(se pudéssemos estrangular deusa branca medicinatudo tudoironia na neblina)a prosa invadiu de vez a poesiacom música ou sem melodiao verso não mais recamará ossos(parcas as parcasaspérrimos verbos e este ônibusseco)corais de luzes dolorosasnavios do princípio do tempo

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encalhados nos esqueletos sem fim(ninguém virá na estrada parae se vier não há mais jeitorefulgem ruíssimas retinaso anjo se drogou todo de estrelas)no fundo fosso a fera engolea ferida tremendae no entanto a vidaentanto o sonho(virá cantando aleluia pelo atalhotodos desconhecem o mapa mágicorastro sagrado pedra angulartudo se esqueceu)última oportuidade harehare  Antônio Carlos de Brito, ou Cacaso, é um dos meus poetas favoritos. Assim como sua crítica, Cacaso fazia uma poesia muito intressante, uma linguagem bem característica. Cacaso foi amigo de Afonso Henriques Neto, e sobre sua poesia, disse o seguinte: “Mário de Andrade notou, a respeito de Murilo Mendes, que apesar do estilo surrealista, o poeta era carioquíssimo. Algo de análogo se dá com Afonso, que pratica um surrealismo com sotaque… mineiro. Sua imaginação é aérea; sua síntese poética se dá num elevado grau de abstração. A alegoria de Afonso Henriques é fortemente evocativa, uma espécie de inventário de ruínas – familiares, ideológicas, pessoais“. Grande Cacaso!    

CLARÃO  

e os tambores que soam sendo sombrasdos sorrisos de amor, fogo de outrora,eis refulgem na cinza desta hora,luz a corroer a pedra mais escura. ah que esta dor na alma é que perdurarente ao nojo dos anjos, flama impura,relâmpago a transmudar-se em poesia,astro que consola energiza cura. o verso é esta pedra viva, pão

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da luz, claro segredo invioladoa preencher de sonho o que era ausência, muda forma do amor reconquistadopelo fulgor do coração em fúria(estrelas bebem deste sumo intato).  Não que a crítica seja essencial para um poeta ser adorado, porém, para ser lido ela serve muito bem, depois o trabalho é com o leitor. Entretanto vale ressaltar aqui, no caso do nosso homenageado do mês, o que foi dito sobre seu trabalho. Ana Cristina Cesar, minha predileta bem na frente dos outros, disse que “a nova poesia aparece aqui marcada pelo cotidiano, ali por brechtinano rigor. Anticabralina, (…) é antes uma poesia que não se dá ares, que desconfia dos plenos poderes da sua palavra (…), que faz da consciência do distanciamento o seu tema ou o seu tom. (…) No choque entre os poetas, comparece tanto a contenção, a brevidade e o inacabamento (…), como o ‘excesso de palavras’, o derramamento sem pudor de um Afonso Henriques Neto.” Palavra da belíssima. 

 

 RADAR DE ELEVADOR

(rápido reflexo de los ’70 en nuestros trópicos)  

primeiro o cheiroovos fritos pigarros & zumbidossobre a mesa frutas da estaçãoouvido pouco atentolenta circulação o sangue o trânsitojanela trancada da manhãnenhum cigarronenhuma idéiaplanos do godardfaxineira no quadrocomposição tão caseirasangue sugadoaranha capitalistavertigens bêbadas do maruaunovos baianos no rádio na porta o jornal

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nuvem na cortina entreabertaabrir janela sobre o caminhão de coca-colaplanos do godardpor favor traz o açucarssshih! como é que se pode esquecer?o senhor me desculpea mosca salta do prato emborcadopara o silêncio dos óculospijama com nervos expostosuma água escorre na morteque não sei estancarbule de minha mãe de trinta anos atrássalto de mosca o silêncio óculos esmagadossol na faca da manhãgaláxia no ladrilho latido lá foralonge como um ex-votoarrastando os pés o verbo o açucarpreciso limpar o aquáriouma simbologia de relâmpagosnão sei lidar com a revolta dos filhosnem com a paixão da vizinhapeixe morre torto de velhicemesmo   Terminando o que foi dito sobre sua poesia, creio que o relato mais interessante é do pai de Afonso, o poeta Alphonsus de Guimaraes Filho. Grande poeta que será com certeza estudado por aqui, lhe dedicou um poema, que na horizontal, fica assim : Afonso Henriques, meu filho poeta,/poeta de um tempo atônito e triste./Tudo nos fere? tudo nos inquieta?/A luz, que amamos, subsiste./Desmoronam-se mitos? Recriaremos/outros. O Mundo atômico é grito?/De afeto é que povoaremos/com um sonho infinito./Sombras somos no pânico e na vertigem?/Pouco importa. Que nos leve/a luz que vem da origem:/não é ouro, nem breve. Voltamos na terça, que ninguém é de ferro.     

COMPLETO 

amor tão completoque o efêmero reflita o eternoque o silêncio sonhe a melodiaque os cavalos sejam selvagens

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ventanias amor tão completoque longe o corpo viva pertoque na água adormeça a transparênciaque na treva se esclareçaa incandescência amor tão completoque o gozo fecunde o desertoque a pele fale pelo que arrepiaque o desejo arda a infinitapoesia  Afonso ressalta que é preciso tentar assimilar visceralidade com consciência técnica. É ler Homero, Safo, Catulo, Dante, Camões, Shakespeare, Fernando Pessoa, e aqui no Brasil, de acordo com Afonso, ler Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Augusto do Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa e o modernos, dos quais, levanto em Mário de Andrade e Manuel Bandeira, nossa grande “bandeirante”, já na minha opinião. Listar nomes sempre será injusto, ou causará impactos, pois todos temos nossos sopros, porém, há sopros tão substanciais que mesmo discordando, conduzem muito bem nossa vela.   

NÃO EXISTE  

Esta paisagem não existe.Existiu um dia de tanto solque esta paisagem se enfeitoude infância transparente.Hoje a fórmula enguiçou.Subo a rua das notícias mortase o pouco do cheiro que restoude sonho dentro da noitesobre esse velhos meninosrola por um sentimento difícilgesto de agonia espessasombra sem possível aurora.Esta paisagem é a horado verbo estagnar-se.E os sóis vingadores

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a arrancarem do futuroum sangue novo que invadaas trêmulas rochas da mortesão apenas o mesmo rioesquecido de correrdesesperançado de mar.Contudo canta canta coraçãoinventa a luminosa paisagempersonagem sem raiz e chão.  Afonso tem um texto visceral, um discurso que pontua versos como uma pegada de gigante (assim que me sinto). Vemos aí questões dos anos 60 e 70, influências surrealistas, político sem ser excessivamente engajado, o que é bom, e outras coisas que só lendo e relendo para perceber, eu tenho as minhas, mas creio que apontar características de um poeta é questão pessoal. Afonso é professor da UFF e poeta desde sempre, morador do Cosme Velho que achou sua linguagem desde cedo, pelo menos é o que vi ao longo desde mês.   Reportagem no Futura que fala deste grupo de e-mail, bem legal     http://www.youtube.com/watch?v=ymYDWW2WPzY&feature=channel_page

 VOCÊ

  

as mulheres mais belashabitam vocêfragor do mar nos vulcões do meio-diaespuma lunar a flutuarfotografia que o sonho grava no invisível(você vestida em nuvem violeta, você e um gatobranco de patas azuis, você fugindo nuapela praia do infinito,você dançando o som do violino-pensamento,você de olhos de surpresa com o peixe pulsando nas mãos,você, você)aprender vocêintacta liberdadeamor é saber levezano centro da tempestade  

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Das pesquisas que fiz sobre a obra de Afonso Henriques Neto, encontrei muitas vezes relatos de leitores e críticos como “um dos únicos fazendo boa poesia contemporânea“. É uma questão interessante, pois Afonso é de uma geração muito talentosa cujas figuras, hoje, são como ”mitos urbanos”. Poetas emblemáticos, poetas de rua, poetas que se foram ainda jovens, todos misturados, como a cavalaria, o pelotão de frente de um exército, pois se hoje, a minha geração tem essa liberdade toda, para mim, é porque eles deram seu sangue (nossa!).     

MUITO ANTIGO  

o doloroso exame da tarde me incendeiaem nebuloso crepúsculo a cuspir luar.hordas de mortos pelos campos onde branqueiafloração soprada em vago a flutuar. bem quisera das águas ácidas deste marbeber o sumo de prata dos enluaradossilêncios de bocas, uma a uma, decepadas,raiva do tempo a chover, a nos entrangular. não há mais quem peça amor nos olhs paradose das mensagens de bronze regressam navioscom seus cordames de névoa e os velames de lua,caveiras de sonhos por tombadilhos vazios. Eis que chegamos ao final de mais uma antologia poética. A obra do poeta Afonso Henriques Neto foi nosso objeto de estudo através deste pequeno mergulho. Visceralidade sem perder a compreensão técnica, foi a primeira coisa que ficou. Espero que tenham gostado de sua poesia, ou apenas de ter conhecido. As respostas foram muitas e sempre positivas. Semana que vem entraremos em um novo universo poético, novas proposições, outras influências, outros versos, outros versos.  

MATURANDO  

toda a mágica lenta maturação.recolha uma rara imagem da infância e a lance no vôo do tiê-sangue

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e da nuvem ao fundo despeje a chuvasobre um amor antigodesenho a cantar no barro do temposabor-frêmito de cristalentão formapoesiasilêncio a se escrever música no aberto.toda a mágica supõe um céu maravilhado.a destilação é lentasabemospois de um jovem perfumesentir a sombra de um sustoa descoberta da luz em flores mortasporejar essências quando a surpresaflutuar abismosbrancos teatros do invisível.mágicas que são bonecosnarrando o que o poema busca nas fábulase nas auroras.