Aforismos de Friedrich Nietzsche - rl.art.br · mente como um fenômeno estético a existência e o...
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Salva-o a arte, e pela arte salva-o para si ... a vida.
[...] a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensa-
mentos de nojo sobre o susto e o absurdo da e-
xistência em repre-sentações com as
quais se pode vi-ver: o sublime co-mo domesticação
artística do susto e o cômico como alí-
vio artístico do nojo diante do absurdo.
[...]metafísica da arte, repetindo mi-
nha proposição an-terior de que so-mente como um
fenômeno estético a existência e o
mundo aparecem como legitimados:
sentido este em que precisa-mente o mito trágico tem de
convencer-nos de que mesmo o feio e o desarmonioso são um jogo artístico que a vonta-
de, na eterna plenitude de seu prazer, joga consigo mes-
ma. [...] um fenômeno dionisía-
co, que nos revela sempre de novo o construir e demolir lú-
dicos do mundo individual co-mo a efusão de um prazer pri-mordial, de maneira seme-
lhante a como Heráclito o Obscuro compara força for-
madora do mundo a uma cri-ança que ludicamente põe pe-
dras para cá e para lá, e faz montes de areia e os desman-
tela. O dizer-sim à vida, até mes-
mo em seus problemas mais
estranhos e mais duros, a von-tade de vida, alegrando-se no
sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria ine-xauribilidade foi isso que deno-
minei dionisíaco, foi isso que entendi como ponte para a psi-
cologia do poeta trágico. Mas sentir-se, como huma-
nidade (e não somente como indivíduo), tão esbanjado co-
mo vemos a florescência isola-da ser esbanjada pela nature-za, é um sentimento acima de
todos os sentimentos. Mas quem é capaz dele? Certamen-
te apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se.
[...] a todo espiritual per-tence algo de corporal; com
seu auxílio pode-se ligar o es-pírito, causar-lhe dano, ani-
quilá-lo; o corporal fornece a pega com que
se pode pegar o espiritual.
[...] tem de haver nele próprio algo
de errante, que encontra
sua alegria na mudança e na
transitorieda-de.
[...] A ob-servação ine-xata comum
vê na nature-za, por toda
parte, oposi-ções, como
por exemplo “quente e frio”, onde não há oposições, mas
apenas diferenças de grau. [...] É indizível o quanto de dor, pretensão, dureza, estra-
nhamento, frieza, penetrou assim no sentimento humano,
por se pensar ver oposições em lugar das transições.
[...] Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é
preciso saber, de tempo em tempo, perder-se – e depois reencontrar-se.
Textos extraídos do livro
“Nietzsche, Pensadores”, Vol. 1.
Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS Ano XII – Nº 23 – Maio/Jul. 2012 – Feira de Santana-BA – ISSN 2179-1139
Aforismos de Friedrich Nietzsche
J. Miguel
2 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
sumário Editorial
Informes
Pesquisa Sertania - p. 3
Festival de Sanfoneiros - p. 3
XI São João da UEFS - p. 3
Celebração das Culturas dos Sertões - p. 3
Festival Cinema pela Verdade - p. 3
Artigos Para seduzir um texto Marcos Monteiro p. 4
Mulher, Mulheres, as Mulheres na Educação Mirela Figueiredo Iriart - p. 4
Gênero e Religião Anísia Gonçalves Dias Neta - p. 5
Cidades e cidadãos, aquele abraço nos cemitérios Vicente Deocleciano Moreira - p. 7
Imagens ecológicas na poesia de Manuel de Barros:
a relevância do ínfimo Weslley Moreira de Almeida - p. 9
Sem anos com Luiz Gonzaga Miguel Almir Lima de Araújo - p. 11
Pendurando aspectos dos valores comunais de Sussuarana: O Educar em Cordel Cutucando a Onça Sérgio Ricardo Santos da Silva - p. 12
Poemas
Sem ter chuva no Sertão Gabriel Pereira da Silva - p. 15
Bosques de flor de canela do agreste Maria Angélica Rocha Fernandes - p. 15
Pencas de Sonhos Edivânia Santos de Carvalho - p. 15
Líris - p. 15
Acaso Henrique Magalhães - p. 16
Desejo Leonardo Sacramento - p. 16
José Antonio - p. 16
Líris - p. 16
Orientações para envio de material
- Recebemos artigos, poemas e
imagens com temáticas diversas que sejam relevantes para a hu-manidade.
- Texto de até três páginas; es-
paço simples; fonte times new roman 12; parágrafo com recuo; colocar dados do autor após o
título.
- Enviar o material via e-mail: [email protected]
expediente
editorial Neste nº 23 iniciamos nossa pro-
sa com aforismos de Nietzsche in-terpenetrados por uma das imagens mais simbólicas do povo nordestino: o São João.
Nos parágrafos de “Para seduzir um texto”, viajamos na aventurosa relação que existe entre autor e tex-to, no processo de criação, por uma linguagem cômica e ficcional.
Em “Mulher, Mulheres, as Mulhe-res na Educação”, percorremos os desafios da Educação em prol da integração das diferenças, na luta contra a reificação dos papéis de gênero e na ressignificação da histó-
ria das mulheres. Na leitura de “Gênero e Religião”
o leitor vai encontrar uma discussão fecunda a respeito da religião e suas implicações nas relações de gênero.
No artigo “Cidades, cidadãos, a-quele abraço nos cemitérios” o autor perscruta nossa relação com a mor-te e ressalta sua importância como objeto de reflexão para o caminhar
humano. Em “Imagens ecológicas na poe-
sia de Manoel de Barros: a relevân-cia do ínfimo” o autor tece caminhos no entre-lugar onde se encontram os campos da Literatura e da Ecolo-
gia, salientando a relevância do ínfi-mo para uma sensabilização eco-humana.
Caminhado pelas veredas de “Sem anos com Luiz Gonzaga” o autor an-
darilha pelas figurações mitopoéticas desse personagem símbolo da cultura sertânica, debulha os sentidos de su-as canções, de sua indumentária, de sua presença no nosso imaginário
mítico. “Pendurando aspectos dos valores
comunais de Sussuarana: o educar em Cordel Cutucando a Onça” articu-la diálogos sobre a importância dos versos cordelísticos, e desencadeia
uma reflexão acerca da palavra poéti-ca que prepara novas configurações de mundo para os educandos.
No passeio pelas páginas do perió-dico também se pode transitar pelas
imagens e suas figurações sertânicas, míticas e simbólicas que alumbram-nos em fruições.
Os poemas singram sendas do i-maginário do sertão, os conflitos e-
xistenciais, o desejo e a paixão; tra-duzem a pluralidade de sensações e modos de estar no mundo.
Assim, convidamos você para uma boa leitura!
Site do NIT www.uefs.br/nit
Comissão Editorial
Danilo Cerqueira Almeida
João Paulo dos Santos Silva
Fabrícia Maria Bezerra
Miguel Almir L. de Araújo (Coord.)
Weslley Moreira de Almeida
Conselho Editorial
Dr. Eduardo Oliveira
(UFBA)
Dr. Miguel Almir Lima de Araújo
(UEFS)
Dr. João Francisco Regis de Morais
(UNICAMP)
Drª. Mirela Figueredo Santos
(UEFS)
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(UNEB)
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João Paulo dos Santos Silva
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
FEIRA DE SANTANA
Reitor
José Carlos Barreto de Santana
Diretor do Departamento de
Educação
Marco Antônio Leandro Barzano
Coordenador do NIT
Miguel Almir L. de Araújo
3 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
informes Pesquisa “Sertania:
o imaginário dos povos do Ser-tão”
A pesquisa “Sertania: o imagi-
nário dos povos do Ser-tão”, co-
ordenada pelo professor da UEFS Dr. Miguel Almir Lima de Araújo, teve participação de professores
e estudantes da UEFS e da UNEB e foi realizada nos Sertões de 5 estados do Nordeste (Sergipe,
Piauí, Pernambuco, Alagoas e Ba-hia) e Norte de Minas Gerais, en-tre os anos de 2009 a 2011. A
mesma contou com o apoio da UEFS e da FAPESB.
Através de diversos procedi-
mentos metodológicos atinentes às pesquisas qualitativas (entrevistas, questionários, cole-
ta de textos e imagens – dese-nhos, fotografias, pinturas... –, observação participante, filma-
gens...) os pesquisadores sedi-mentaram dados bastante ex-
pressivos acerca dos modos de vida, dos saberes e sentires – das sabedorias/sabenças – que
constituem a vida cotidiana, as pelejas e celebrações dos povos dos Sertões no destinar de suas
sagas agridoces. Nas fontes dos mananciais das crenças, valores e idéias que perfazem as saben-
ças e os viveres cotidianos des-ses povos sertânicos, ficou bas-tante realçada a presença do es-
pírito e das posturas de solida-riedade/de compartilhamento, de honestidade, de respeito, de fé,
de luta e de resistência aos desa-fios das intempéries que os asso-lam. Apesar das tantas agruras,
os sertanejos celebram intensa-mente suas vidas através das folias de suas manifestações cul-
turais como o São João, o Reisa-do, o Bumba-meu-boi, os feste-jos religiosos etc.
Seus imaginários são plasma-dos por diversos símbolos mito-poéticos como Luiz Gonzaga,
Lampião, Pe. Cícero, Antonio Conselheiro etc.
Estes símbolos traduzem a for-
ça das crenças, das tradições cul-turais, do espírito de luta, de re-sistência e de celebração da vida
XI São João da UEFS
Aconteceu no dia 15 de junho
de 2012 a Celebração do XI São João da UEFS, no Parque Espor-tivo da Universidade. A celebra-
ção foi muito expressiva. Ocor-reram apresentações de diversos folguedos joani-
nos. Neste ano comemo-ramos os 100 anos de Luiz Gonzaga, o Gonza-
gão. A Celebração do XI São
João da UEFS foi assumi-
da pela Reitoria da UEFS e organizada por uma comissão intersetorial:
NIT/Departamento de E-ducação, ADUFS, UNDEC,
PROEX, SINTEST e DCE, com o apoio do CUCA.
Festival Cinema pela Verdade
Ocorreu na UEFS, nos dias 29 e 30 de maio o Festival de Cine-ma pela Verdade. Este festival
retrata o período da ditadura mi-litar no Brasil e suas consequên-cias. As atividades do festival a-
conteceram ao longo dos meses de maio e junho, em Universida-des de todo o Brasil. A realização
na UEFS contou com o apoio do Núcleo de Inovação Tecnológica, do Projeto Sala de Cinema e do
Coletivo Inovacine.
Festival de Sanfoneiros
Foi realizado no dia 23 de mai-
o, no auditório Central da UEFS, o V Festival de Sanfoneiros, que homenageou o centenário do Rei
do Baião, Luiz Gonzaga. O even-to organizado pelo CUCA/UEFS contribuiu para afirmar as tradi-
ções nordestinas na multiplicida-de de ritmos que envolvem o uso da sanfona, instrumento tão
marcante em nossas manifesta-ções culturais.
Celebração das Culturas dos Sertões
Aconteceu entre os dias 05 a 09 de maio, em Feira de Santana e Salvador, a Celebração das
Culturas dos Sertões. Com espe-táculos musicais, desfile de va-queiros, rodas de conversas, fei-
ra de artesanato e tantas outras atividades, o evento promoveu a cultura sertânica nas suas diver-
sas matizes.
desse povo. O viver cotidiano desses povos se traduz nesta
saga agridoce em que a triste-za, as dores, o sofrimento cau-sado pelas secas, os descasos
políticos etc. são desafiados e entrecruzados com momentos intensos de alegria e contenteza
mediante a força de suas tradi-ções culturais, de seus muti-rões.
J. Miguel
4 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
O texto simplesmente não me enxergava. E eu, desses desen-
gonçados apaixonados, dislexava em ciúmes dos seus trejeitos e dengos com outros leitores.
Alisei carinhosamente seu ca-beçalho elogiando seus cabelos e ele, em desdenhoso escárnio,
retirou ostensivo a peruca, ar-rancando gargalhadas de meus concorrentes.
Como quem não sabe o que fazer, como quem não sabe o que pensar, como quem não sa-
be o que dizer, fui sussurrando frases feitas, dessas infalíveis, causando apenas um estremeci-
mento involuntário de cansaço e nojo.
Chorei, me sentindo ridículo
mas esperando suscitar compai-xão, e ele indiferente retirou-se
para o seu grupo de calorosa conversação.
Fui me acercando, devagar e silencioso, deixando as horas passar em muda contemplação
e, inopinadamente, fiz cócegas em suas entrelinhas e recebi, primeira vez, resposta diferen-
te. Uma bofetada na cara, de texto muito ofendido, pela pre-tensão do pretendente.
Então resolvi apelar: enfiei o dedo com gosto em todas as suas epíforas sem lhe deixar
respirar. Com esforço, conse-guiu me afastar com um safa-não, mas eu estava me sentindo
quase vitorioso e invadi sua lín-gua com a língua, beijo apaixo-nado, demorado, sedutor, sine-
doqual. E o texto se entregou, lingua-
Mulher, Mulheres, as Mulheres na Educação
Mirela Figueiredo Iriart Professora da UEFS
São muitas, são tantas, diversas,
São fortes, são frágeis, complexas,
Transparentes, são inteiras,
contraditórias, São múltiplas.
Ousam, inventam, criam, dão vida,
Tecem, bordam, arrematam,
alimentam Ensinam...
E o que é ensinar, se não a-cordar o adormecido, significar o sem sentido, acolher gestar,
transformar e transformar-se O ato pedagógico é feminino em
sua natureza?
Existe uma natureza feminina que se atualiza no ato
educativo?
As memórias, biografias, his-tórias e narrativas das e sobre
as mulheres revelam que as ex-periências como filha, esposa,
mãe, mulher e professora estão
entrelaçadas, muitas vezes con-fundindo-se, quando não se so-
brepondo. Do espaço doméstico, privado
e privatizado pelo domínio mas-
culino, a passagem ao lugar pú-blico e reconhecido socialmente, não se deu para as mulheres
sem lutas, conflitos e renuncias, mas também com sensibilidade e astúcia. A passagem das mulhe-
res do espaço doméstico ao es-paço público deu-se pelo conti-nuum do lugar de cuidadoras,
função que já ocupavam na famí-lia.
A recuperação desta história
das mulheres significa a sua rein-tegração na história dos seres humanos, como história da hu-
manidade (Sousa, Cynthia P. de; Catani, Denice B.; Souza, Maria
Cecília C.C. de; Bueno, Belmira
Para seduzir um texto
Marcos Monteiro
Teólogo e Mestre em Filosofia
gem deslizando em carícias, pa-lavras e frases dançando ciran-
das, valsas, e um tango argenti-no tão bem dançado que se tor-nou nota de rodapé.
De bem com a vida, finalmen-te se entendendo, aproveitamos todo o tempo disponível para ar-
rulhos e colóquios, nessa fideli-dade silenciosa em que nos per-tencemos tão plenamente que eu
não pergunto se transa com ou-tros leitores, nem ele pergunta se tenho outros textos.
E nós dois sabemos que esta-remos sempre assim, juntos, tal-vez com alguns desentendimen-
tos oportunos e inoportunos, até que a morte nos separe. Ou até que o texto da eternidade nos
convide para o seu círculo her-menêutico.
artigos
5 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
renças de gênero na escolha das carreiras e áreas de conhe-
cimento, num círculo vicioso de discriminação, construído por mensagens culturais que reifi-
cam os papéis de gênero como antagônicos e não complemen-tares. Como podemos analisar
hoje a participação feminina em várias esferas do domínio públi-co, por um viés não maniqueísta
ou simplificador, entendendo
que este movimento pela igual-dade, deve refletir o direito as diferenças e singularidades da
condição feminina, construída historicamente? Sem recorrer-se mais a noções como compe-
titividade, ambição desmedida, sucesso a qualquer custo, para justificar sua legitimidade? O
lugar da mulher na educação é
O., 1996). Recuperar esta me-mória é discorrer sobre os luga-
res sociais que as mulheres ocu-param e sobre as atividades que desempenharam numa sociedade
marcada pelo discurso e ethos masculino.
Na história do tempo presente,
vivem-se momentos de ruptura, mudança de papéis, redistribui-ção de poderes, flexibilidade das
fronteiras entre o público e o pri-vado, recolocando as questões sociais e históricas na busca por
compreender a construção das identidades sociais e pessoais como um jogo dinâmico, tecidas
nos entre - lugares (mulher-ho-mem; negro-branco; eu-outros), negociando sentidos, que nos po-
sicionem no mundo, a partir dos lugares de gênero, de classe, de
etnia, de profissão, configurando múltiplos pertencimentos e pa-péis sociais.
Hoje ser mãe, mulher e profis-sional configura a constelação de papéis femininos, negociados en-
tre as esferas pública e privada, renventando os papéis e funções tradicionais, na família e na soci-
edade: diferentes arranjos famili-ares, divisão de tarefas entre os sexos, compartilhamento da edu-
cação da geração mais jovem com diferentes instituições socia-lizadoras. Amplia-se, desta forma
o espectro de possibilidades de participação, ação e significação das mulheres no espaço público,
reconfigurando o privado como instâncias intercambiáveis.
A feminização da educação, no
entanto, assumiu um significado de desvalorização econômica e social do ensino, justificada mui-
tas vezes pelo discurso da voca-ção, cunhada pelas mulheres que a assumiram como devotamento
e pela baixa qualificação profis-sional, exaltando-se qualidades como altruísmo, abnegação, de-
dicação em troca de baixa remu-neração (Sousa, Cynthia P. de; Catani, Denice B.; Souza, Maria
Cecília C.C. de; Bueno, Belmira O., 1996).
O ingresso das mulheres nos
cursos de nível superior parece ultrapassar a dos homens, mas ainda se mantém algumas dife-
Atuar e pesquisar em defesa dos direitos das mulheres, ho-
je, no contexto latino america-no, brasileiro, é diferente do
contexto em que as precurso-ras do movimento feminista se situavam. Fazendo um paralelo
dessas realidades percebemos mudanças inclusive no sujeito
de nosso pensar e também no método pelo qual percorremos para traçar uma análise.
o do desvelamento dos afetos, das memórias pessoais, resignifi-
cadas no encontro com o outro, de sensibilidade ética e moral pa-ra cuidar e gerar pessoas.
Vivemos inúmeros desafios na educação, desde o plano ético, político e econômico, ao plano
moral dos sujeitos, das relações com o conhecimento, dos senti-dos do saber e do desejo de ser,
convocando-nos a repensar valores sociais, científicos, fa-miliares na construção de uma
noção de justiça e equidade que integre as diferenças, que respeite as minorias, que hu-
manize as relações cotidianas, que valorize o multiculturalis-mo e nos religue ao plano da espiritualidade, da arte e da filosofia. A educação pode represen-
tar este espaço de resignifica-ção do feminino, construído por discursos que qualifiquem
as suas práticas, articulando saberes e experiências únicas
e singulares, reescrevendo a história das mulheres na edu-
cação.
Referências
SOUSA, Cynthia P. de; CATANI,
Denice B.; SOUZA, Maria Cecília
C.C. de; BUENO, Belmira O. Me-
mória e autobiografia: formação
de mulheres, formação de profes-
soras. Revista Brasileira de Educa-
ção, n. 2 Mai/jum/jul/ago, 1996.p.
61-76.
Após Joan Scott (SCOTT,
1990) ter estruturado o conceito
de categoria de gênero como ca-
tegoria relacional em diálogo
c o m a s t e o r i a s p ó s -
estruturalistas, a teoria feminista
sai da discussão de conceito de
mulher, para a discussão de re-
lação entre homens e mulheres,
ou seja, para discutir gênero.
Atualmente, o contexto que
temos é da categoria de gênero
Gênero e Religião
Anísia Gonçalves Dias Neta Estudante de Teologia e Filosofia-FBB
Lizandra
6 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
presente no campo teórico dialo-gando com outros saberes, influ-
enciando e sendo influenciada por eles. As feministas hoje se encontram discutindo academica-
mente suas teorias, práticas e lugares políticos (SCHMIDT, 2004).
A prática teórica, como é cha-mada, deve sempre rever e transgredir os espaços de poder,
dentro e fora do feminismo. As-sim, a prática será sempre cam-po de atuação da teoria estuda-
da, como campo de pesquisa. Não devemos, contudo, pelo
fato de abandonarmos as suas
categorias de análise, ou o ponto de partida de suas análises, esquecer das matriarcas que
lutaram no espaço político, e que tanto abriram espaço
para nós hoje. Devemos sim, lembrar delas para dar uma identidade à nossa lu-
ta, já que estamos imbrica-dos, relacionados e relacio-nando com outros saberes e
categorias, como socioeco-nômica, étnica, etc.
Em contrapartida, deve-
mos subverter a essa identi-dade hegemônica e clara-mente demarcada como eu-
ropeia e norte-americana, e pro-curar nossa própria identidade, no que se refere a um contexto
latino americano, brasileiro. As-sim, a partir de princípios e e-xemplos da hegemônica teoria
feminista devemos reler o nosso espaço e contexto criando uma prática e um lugar político onde
caiba nossa realidade, dando voz e vez a mulheres e lutas de mu-lheres que fazem parte do nosso
cotidiano. Não entendemos mais que ho-
mem e mulher é uma determina-
ção biológica, nem que seus pa-péis na sociedade são uma cons-trução masculina. Entendemos
que a biologia determina macho e fêmea, e não masculino e femi-nino. Também que os papéis so-
ciais são determinados dentro de uma cultura ideológica machista, androcêntrica, patriarcal, e que
são exercidos, defendidos e re-produzidos por homens e mulhe-res. “Não se nasce mulher, torna
as mulheres ocupam também esses espaços de poder, no en-
tanto, elas são minorias quanti-tativas, e muitas vezes, reprodu-zem o discurso do sistema que
as oprimem. A aceitação desse cenário se
dá devido à manutenção do pa-
triarcado judaico-cristão, dos dogmas e das regras que foram muito bem construídos e consoli-
dados ao longo dos tempos pelo poder do sagrado, ao ponto de ser reproduzido por homens e
mulheres sem qualquer questio-namento que pudesse vir a aba-lar as estruturas patriarcais da
religião. Por fim, parte da resis-
tência que encontramos em
mudar o comportamento e as relações de poder da
sociedade é devido a influ-ência dessa cultura ociden-tal-cristã que todos(as)
nós, latino-americanos(as), brasileiros(as), nos encon-tramos. Sabemos que den-
tro da religião há movi-mentos, correntes e teolo-gias que pretendem seguir
pelos caminhos da justiça, liberdade, igualdade e fra-ternidade entre homens e
mulheres, contra as fortes ideo-logias do machismo e sexismo. No entanto, estes movimentos e
correntes não são as teologias hegemônicas presentes na religi-ão, e o patriarcado ainda é uma
forte influência determinada pelo poder simbólico que o sagrado impõe.
Referências
BEAUVOIR, Simone. O Segundo
Sexo. Vol. 2. Rio de Janeiro: No-va Fronteira, 1980. NUNES, Maria José Rosado. Gê-
nero e Religião. Revista Estudos Feministas. 13(2): 256. Florianó-polis. maio-agosto/2005.
SCHMIDT, Simone Pereira. Como e por que somos feministas. Re-vista Estudos Feministas. v.12 n.
spe. Florianópolis. set/dez. 2004. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
Educação e Realidade, vol. 16, n 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990.
se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 9).
Encontramos, todavia, um espaço onde esses papéis mas-culinos e femininos estão de-
marcados e protegidos por uma força simbólica muito maior que a da cultura machista, que é o
poder do sagrado (NUNES, 2005). A religião é o lugar onde se confere poder e autoridade
para o discurso machista, e ali ele se fortalece e toma propor-ções de dominação ainda maio-
res. A importância que as pes-soas dão ao sagrado é tão rele-vante que questões de opressão
claras tornam-se sequer questi-
onáveis pelo simples fato de a-tribuírem vontade de Deus a esta ou aquela situação. Os tex-
tos sagrados quando usados pa-ra legitimar a dominação da ide-ologia machista são um instru-
mento poderoso para dificultar a libertação dessa sociedade das relações injustas de poder.
Apesar de discutirmos rela-ção, não devemos deixar de lembrar que discutimos aqui a
partir da minoria, que é a mu-lher. E por isso, quando relacio-namos Gênero e Religião e iden-
tificamos tantas mulheres nesse espaço, também demarcamos claramente que elas são maior
número que os homens, e estão muito mais situadas nos espa-ços de prática religiosa e dos
cultos, enquanto eles estão na administração, na elaboração das normas, regras e dogmas,
na direção e domínio da palavra e dos instrumentos de poder, entre outros. Em alguns casos,
Joaquim Franco
7 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
Cidades e cidadãos, aquele abraço nos cemitérios
Vicente Deocleciano Moreira Professor da UEFS
Lizandra
Pra você que me esqueceu ...
Aquele abraço ...
Gilberto Gil, “Aquele Abraço”.
Reagir com nojo e desdém e recusar-se a ler um trabalho que
fale sobre a morte e/ou ... o na-da querer saber sobre a morte ... são condutas de evitação e de
esquecimento da morte. É muito alto o preço a ser pago por essa recusa, pelo ‘nariz torcido’ ou
‘tapado’, pela boca franzida e pe-lo “cruz credo!”, “desconjuro!”. O alto preço é perder a oportunida-
de de entrar em contato com re-flexões antropológicas e indica-ções de leitura sobre a morte.
Hospitais psiquiátricos, pri-sões, quartéis, terreiros de Can-domblé, conventos cemitérios ...
são exemplos de instituições to-tais (GOFFMAN, Erving – Mani-cômios, prisões e conventos),
por funcionarem geograficamen-te distantes das zonas centrais
urbanas e sob normas de condu-ta específicas e diferenciadas das demais que regem a vida social
como um todo. Investigar a his-tória particular de cada uma des-sas instituições é um passo vigo-
roso para a compreensão do ca-minhar histórico-urbano da cida-de que as abriga. Os mais anti-
gos terreiros de Candomblé, de Salvador, foram fundados (inícios do século XX) nas matas e coli-
nas mais ermas e mais invisíveis à perseguição policial. Um século depois a cidade, já bem crescida,
os envolveu e os abraçou ... a-quele abraço!
Apesar de vivermos repetindo
que ‘a morte faz parte da vida’, somos traídos, enquanto indiví-duos, grupos e coletividades,
pelas inúmeras justificativas, dis-cursos e práticas rituais de evi-tação e de esquecimento da mor-
te em que cidadãos e cidades nos envolvemos. Na MPB, canta-mos nos belos versos de Caetano
Veloso (“Divino Maravilhoso”) “É
preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a
morte”, uma regra de evitação e de esquecimento da morte. De-semborcamos os nossos chine-
los e calçados tanto quanto os das pessoas com as quais convi-vemos; chinelo emborcado pode
augurar (agourar) o ‘emborca-mento’ (sepultamento) de seu dono. Quando nos referimos a
uma pessoa falecida temos o cuidado preventivo e higiênico
de adicionar-lhe o (indesejável) título de finado(a) antes do no-
me de batismo. Nos velórios em residências ou salas cemiteriais, o defunto – por mais amado
que tenha sido em vida - tem os pés apontados para a por-ta ... para que ele “saia” e ja-
mais volte ao convívio com fa-miliares e parentes vivos. Logo que despertamos de um sonho
com uma pessoa falecida, dize-mos coisas como: “Ele(a), nosso(a) bem amado(a) e saudoso
(a), que fique por lá”, “Deus guarde sua alma”, “Que Deus o(a) tenha em sua santa gló-
ria” ... e coisas assim. Quando chegamos de um en-
terro, cremação ... enfim de
um cemitério, imediatamente co-locamos as vestes que lá usamos
no cesto de roupas ‘sujas’; é co-mo se o cemitério, a morte e os que lá estão sepultados contami-
nassem nossas roupas e que, por isso, poderíamos nos contaminar ou aos outros da família, amigos,
vizinhos ... e todos correriam o risco (!) de morrer. Mas, por for-tes e poderosas razões financei-
ras, não costumamos jogar fora os sapatos que pisaram aquele temido chão. Porém, não apenas
por estas vigorosas razões. O ‘perigo’ dos cemitérios acredita-mos que venha do ar ... dos mi-
asmas (vapores, fluidos invisí-veis ...) que – supomos – serem produzidos pelos túmulos e pela
poeira e cinzas das cremações. Sujeitos coletivos, as cidades
também praticam ritos de evita-ção e de esquecimento da morte. Os mais antigos cemitérios de
Salvador (Campo Santo, Quintas, Brotas), Feira de Santana (São Jorge), e de várias outras cida-
des ocidentais, foram construídos numa colina. Mesmo que, nos locais abaixo da montanha, nos-
sos olhos não nos fossem fiéis a ponto de nos fazer olhar para o alto ... Tudo bem ... o importante
é que lá em cima, os ventos (da vida e da saúde) soprariam os miasmas da morte para longe ...
para a cidade dos “pés juntos’. Desviar os olhos do interior de uma funerária é higienizá-los
da imundície ameaçadora da morte. Só que funerárias costu-mam estar mais limpos que mui-
tos supermercados. Limpo é tudo que está no lugar certo e seguro. Avesso do limpo, o sujo é o fora-
da-ordem. (Douglas, Mary – Pu-reza e perigo)
Ocidentais, elegemos a caveira
como símbolo da morte. Não po-deria ser diferente, a caveira e o esqueleto são ossos ‘limpos’ de
tudo o que resulta da ‘sujeira’, do lento processo de decomposi-ção e do apodrecimento bioquí-
8 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
micos das carnes e das vísceras sob uma nova e suportável face:
a face da higienização e da pure-za do que um dia foi vida. (Douglas, Mary – Pureza e pe-
rigo). Cemitério, palavra que nos
vem do grego, significa lugar
para descansar, repousar. Mas “seres para a morte” que somos - como assevera Sartre – dize-
mos com indisfarçável cinismo filosófico, moral e escapista: “se a morte é descanso, prefiro vi-
ver cansado”. Se cemitério é lu-gar de repouso, prefiro estar vivo – “vivinho da silva” - num hotel,
num resort nababesco vivendo alegremente o carpe diem de um final de semana ensolarado e he-
donista, bebendo os mares entre refeições pantagruélicas. Depois,
a cada cair da tarde e a subir de noite, como um Hamlet bêbado e empanturrado, roto e entre um
arroto e outro, o balbuciar entre-cortado de fatias do monólogo macbethiano (Shakespeare, Willi-
am – Macbeth) “Ser ou não ser”: “morrer, dormir não mais”... Tolices: ali mesmo a
morte – como se praticasse uma apologia do “Poema Sujo” de Ferreira Gullar – habita o lado
escuro daquele país ... e esprei-ta.
Desejar a alguém um bom fi-
nal de semana e, com igual gen-tileza, fino trato e fina estampa, também desejar que essa pessoa
descanse em paz ... pode se transformar num bom motivo pa-ra conflitos e inimizades. Mas
quem não quer descansar em paz num silencioso domingo ... calmo ... sereno ... pássaros can-
tando ... depois de uma semana de muita labuta e pouco dinheiro, aborrecimentos e estresse? Po-
rém, todos concordamos que a violência, a guerra, as poluições, a morte e o barulho estão na
cidade onde o possível divino maravilhoso urbano não esconde sua perigosa face.
Atenção ao dobrar uma esqu-quina/ Uma alegria, atenção
menina/ Você vem, quantos anos você tem? Atenção, pre-cisa ter olhos firmes/ Pra este
ra esta escuridão Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divi-
no maravilhoso/ Atenção pa-ra o refrão/ É preciso estar atento e fo-
rte/ Não temos tempo de te-mer a morte ... (“Divino Maravilhoso” – Cae-
tano Veloso) No cemitério ao menos reina
o descanso, a paz, a concórdia e – ousando parodiar Alberto Caeiro/Fernando Pessoa (O
guardador de rebanhos) – predomina o estar de acordo com o mundo. Se há perigo nas
esquinas de um cemitério, isto se deve à ação dos assaltantes possíveis, ou seja, os vivos ... e
os vivaldinos. “Seres para a morte” ... isso
é tão de difícil aceitar quanto parar de sonhar, de fazer proje-tos e promessas; é tão difícil de
aceitar quanto internalizar a resposta de Sileno para Midas: O que de melhor pode aspirar
um ser humano é não nascer, não ter nascido. Mas, para os que nasceram e estão vivos ain-
da, há uma segunda chance: morrer agora (Nietzsche, Frede-rico – A origem da tragédia).
Agora, - já! – neste instante em que você está lendo este meu texto vazio e cheio de inu-
tilidades. Cidades são obras dos seres
humanos e jamais foram ou po-
derão ser diferentes deles. A gestão (laica ou religiosa) da cidade, desde seus passos inici-
ais, até esses nossos dias vãos, construiu cemitérios ao longe e ao alto ... o mais afastado pos-
sível dos olhos, dos caminhos, dos possíveis abraços e, sobre-tudo, da memória das pessoas.
As irmandades religiosas católi-cas constroem seus cemitérios em lugares discretos ainda que
na propriedade do templo ou convento. Os hospitais – desde então e ao menos até esses ins-
tantes – reservam um lugar es-condido e pouco prestigiado ar-quitetônica e socialmente, para
o depósito do morto e para a sala de “seu” velório. Além de “seres para a morte” , sepulta-
mos os mortos e somos seres apaixonados pelas incertezas da
vida; daí termos horror em lem-brar e saber da certeza da morte – não temos tempo para gastar
nesse tipo de lembrança. Ter al-guma saúde mental é esquecer a morte e lembrar do dia do venci-
mento das contas a pagar no fi-nal do mês.
Dinâmica, a cidade cresce e o
cemitério que era distante e alto fica mais e mais próximo e – face a face - no nível dos olhos da ci-
dade e dos cidadãos: “olhos nos olhos”. A cidade dos vivos frente a frente com a “cidade dos mor-
tos” ... numa única cidade. O ce-mitério sempre esteve lá, tran-quilo, calmo, sereno e autossufi-
ciente. A cidade é que foi che-gando, chegando ... sem ceri-
mônia, e sem ser convidada. Mundo dos mortos, mundo dos
vivos, ambas e inseparáveis am-
bas as cidades se abraçam, o tempo todo ... a toda a hora e todos os dias e noites. (Até por-
que a cidade é uma só, e feita de lembranças e memórias) Abra-çam-se, mas não se apertam.
Apertar os corpos e as mãos principalmente de estranhos é flertar com os riscos de contágio,
de contaminação - no caso entre o ‘sujo’ (o cemitério) e o ‘limpo’ (o contexto urbano do
qual aliás o cemitério faz parte). E – afinal – nos previne e nos ensina um dito popular brasilei-
ro: “quem muito abraça pouco aperta”.
Dinâmica, a cidade cresce pa-
ra cima em espigões que pare-
cem querer reeditar a tragédia
bíblica da Torre de Babel. Porém
se um prédio (não precisa ser
tão alto) é por algum infortúnio
e, para muitos desafortunados,
construído próximo a algum ce-
mitério. Na falta de outro jeito
que ao menos os ‘olhos’ princi-
pais desse prédio (as janelas
mais importantes, as das salas e
dos quartos), que eles não olhem para o cemitério. Se o irremediá-
vel remediado está, que na casa
a janela do sanitário ... de onde pouco se vê, muito se oculta e pouco se é visto ... olhe para a
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Imagens ecológicas na poesia de Manoel de Barros:
a relevância do ínfimo
Weslley Moreira de Almeida Licenciado em Letras (UEFS)
Joaquim Franco
A profusão de diálogos inter-disciplinares é algo intrínseco à
Literatura. Talvez este seja o campo em que mais se entrela-çam e conversam os diferentes
saberes. Dois campos que se re-lacionam com certa recorrência são a Literatura e a Ecologia. Es-
sa relação interdisciplinar pode ser vista em grandes obras como Macunaíma, de Mário de Andra-
de; Vidas Secas, de Graciliano Ramos e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto,
dentre tantas outras. Na escrita de Manoel de Barros, também. Seu versar é marcadamente eco-
lógico, contemplativo da intera-ção poética entre ambientes e seres. Seus escritos revelam: “Eu
escrevo com o corpo/Poesia não é para se compreender mas para
incorporar/Entender é parede: procure ser uma árvo-re.” (2010, p.178 – Grifo meu).
O poeta comumente retrata em suas poesias seres da natureza que o cercam como seres os
quais ele quer atingir condição, e pelos quais nutre admiração: “A gente é rascunho de pássaro/Não
acabaram de fazer...” (2010, p. 152).
Deste modo, o autor instiga no
leitor um sentimento eco-
poético, fazendo-o imergir nu-ma visão ecológica mais profun-
da. Visão necessária e ululante diante da hostil relação que o ser humano moderno vem ten-
do com o planeta. Como alerta Guattari (2007), urge unirmos as ecologias (ambiental, social e
mental) na busca por socieda-des sustentáveis, pois os modos de vida humanos individuais e
coletivos evoluem em progressi-va deterioração.
A sociedade de consumo
Terra, és o mais bonito dos planetas Tão te maltratando por
dinheiro Tu que és a nave nossa irmã...
Beto Guedes
O comportamento do ser hu-
mano depois da industrialização se modificou. Trouxe a ideia da maquinização dos processos, da
praticidade, do time is money. Ganhamos a identificação de
consumidores, e até um código para essa nossa atual condição. O lugar de gente parece ganhar
percepção secundária nesse nosso sistema.
O poeta mato-grossense, des-locado - como comumente o é o
poeta moderno -, imprime credi-bilidade aos elementos descarta-dos pela sociedade de consumo.
As coisas ínfimas, os trastes, o inútil são aquilo que ajudam na luminosidade do mundo: “As coi-
sas que não levam a nada/ Têm grande importância”. (BARROS, 2010, p.145). Para o poeta é de
imensa relevância a gratuidade do inútil, as coisas imprestáveis têm incomensurável valor. A so-
ciedade moderna precisa desco-brir, então, a virtude da inutilida-de.
Da sacralidade dos seres
Profetas nasciam de uma linguagem
de rãs Manoel de Barros
Manoel - não raramente – ga-rimpa, no ambiente que o cerca, imagens do sagrado. Possuído
pelo pathos do mitopoético, que, como afirma Araujo (2008, p.133), “inaugura a aura dos es-
tados de espanto e de admiração ao nos con-vocar e nos dis-por diante dos ritmos e das intensi-
dades dos fenômenos”, o poeta
temida necrópolis. A merda olha a merda ... e, ‘bola pra frente’, a
vida continua. Temer a morte é uma perda de tempo; afinal, ela é o “caminho de nós todos”.
Cemitérios criam, em seu en-torno, solos que passam de es-quecidos sem valor – antes do
abraço cidade/cemitério - a es-quecidos desvalorizados econo-micamente quando acontece es-
se inevitável enlace. Querer construir e, mais, querer vender um edifício com varandas, salas
e quartos olhando o cemitério – ainda que se trate de um ‘cemitério jardim’, ‘cemitério
parque’ - pode ser uma piada
financeira desconcertante e de “mau gosto” no mundo sisudo
da economia urbana. ‘Cemi-térios jardim’, ‘cemitérios par-que’ ao tentar esconder cruzes
(cemitérios cristãos), túmulos, mausoléus ... nada mais fazem do que mostrá-las exatamente
porque eles ocultam essas ex-pressivas citações da arquitetu-ra funerária.
Mas, sem mágoas e sem pen-samentos depressivos ou suici-das, o cemitério vive a advertir
a cidade, mesmo sem diverti-la: prá você que me esqueceu, aquele abraço (“Aquele Abraço”
– Gilberto Gil).
10 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
extasia-se com o ínfimo: vaga-lume, pássaro, sapo, formiga,
lata e suas hierofanias. O minús-culo nos seus fenômenos é enti-dade que faz ligação com a divin-
dade: “Todas as coisas apropria-das ao abandono me religam a Deus. / Senhor, eu tenho orgulho
do imprestável!” (BARROS, 2010, p. 342).
Como afirma Roberval Pereira
(2000, p. 30), “a poesia moderna opera um processo de ressacrali-zação”. O retorno desse elemen-
to sacro está ligado à ne-cessidade histórica inadiável da descentralização do lo-
gos. A centralidade da ra-zão fria produz uma vivên-cia contabilista e pragmáti-
ca que mutila as relações eco-humanas. Barros
(2010, p. 342), transgre-dindo essa rota processual vigente, vê milagre na inu-
tilidade das máquinas (pro-duto da razão humana), no imprestável, onde pode de-
sabrochar vida: “Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando chei-
as de areia de formiga e musgo – elas podem um dia mi-lagrar de flores.”
Essa postura do poeta no seu ato letral revela uma relação inti-mista com tudo que se insurge
em vida, dando-lhes condição de sacralidade, assim como o fez Pessoa (2012, p. 11 e 12):
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda
hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Deslocamento do poeta
Somente depois de teres
deixado a cidade verás a que altura suas torres
se elevam acima das casas
Nietzsche
Deslocamento, como afirma
Aleilton Fonseca (2000), é a pa-
lavra que melhor define a con-
dição do poeta ocidental moder-
no. Assim o é Manoel de Barros
que, através do seu olhar poéti-
co, se coloca à parte para uma
incisiva inserção nas coisas: “O
privilégio insetal de ser uma
borboleta me atraiu. Por certo
eu iria ter uma visão diferente
dos homens e das coi-
sas.” (2010, p. 393).
Deste modo, o poeta se des-
loca à condição de inseto para
ser – paradoxalmente – melhor
partícipe do processo de ressig-
nificação da humanidade e do
mundo. Ele não se limita às vi-
sões míopes e embaçadas pro-
movidas pelos óculos do status
quo, sua íris carrega lágrimas
de poesia insurgente.
Educação ambiental e
Literatura
Para reorganização do espaço
e do respeito do ser humano
com o planeta, se faz necessá-
rio trabalhar os sentidos, a ree-
dução para a sensibilidade e
consciência eco-humana no tra-
to com o meio ambiente, vendo
-o não como bem de consumo,
mas como extensão de nós
mesmos. Segundo Sato & Pas-
sos (2002), deveríamos congre-
gar nossa singularidade no plu-
ral por um projeto de todos, a-
gindo criticamente sobre o
mundo. Essa necessidade é ur-
gente, pois os processos de indi-
vidualismo e massificação homo-
geneizante se alastram de modo
feroz, impactando o planeta,
nosso Oikos.
A Literatura tem como essên-
cia a fruição, mas não se pode
alijar de si seu caráter político
(que está presente em quase to-
dos os atos da vida humana).
Oliveira (2010, p. 43) afirma que
o diálogo entre Educação Ambi-
ental e Literatura pode possibili-
tar uma compreensão mais fértil
sobre as questões ambi-
entais, e quanto estas
questões estão intrinca-
das no caminhar huma-
no. Assim, então, é pos-
sível rever os passos de
fora pelo caminhar de
dentro, por uma poética
que gera sensibilidade e
intervenção cuidante do
mundo.
Sensibilidade poética,
Sustentabilidade
planetária
O lixo produzido pelo
nosso luxo é cada vez
mais (e sempre) uma agressão à
vida. Uma absurdez: não ouvi-
mos os gritos do nosso próprio
absurdo. Por isso, afirma o poeta
Manoel de Barros (2010, p.
215): “[...] o grande luxo de
Bernardo é ser ninguém. [...] É
ser que não conhece ter. Tanto
que inveja não se acopla nele.”.
Bernardo é o alter-ego do escri-
tor, personagem que caminha
contra a maré da normalidade
imposta pelo capital. Que não
limita nem rege sua vida pelos
ditames do consumismo, pois
sua maior ambição é a invisibili-
dade nesse sistema.
Uma das lógicas mais agressi-
vas do modo consumista de ser
é a descartabilidade. Esta prática
de mercado, impulsionada pelo
mundo do marketing, resulta no
lucro de poucos e na degradação
da vida de muitos, nesta casa
chamada Terra. Nesse cenário
de opressão (de seres humanos
em relação a si mesmos, e des-
tes em relação à natureza e seus
Carolina Belmondo
11 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
trou nas entranhas de nossa sen-sibilidade com a composição de
suas cantigas, em seus tons mais variados, que re-velam as sagas dos povos sertânicos. Cantigas
de xote, baião, xaxado, arrasta-pés, toadas etc. que tra-duzem, com espirituosi-
dade e sutileza, bem co-mo com primor e maes-tria, os sentimentos, os
modos de vida, as folias e celebrações, as labutas e pelejas que movem e
afirmam o cotidiano da vida dos nordestinos. Cantigas que realçam os
repertórios fecundos de nossa identidade e diver-sidade cultural.
Luiz Gonzaga teve a perspicácia de traduzir o
Sertão em suas dimen-sões mais diversificadas acentuando suas caracte-
rísticas agridoces, agrestes e do-ces: suas securas e tristezas, su-as mazelas e sofreres, como
também suas festanças e alegri-as, suas riquezas e bonitezas.
Em sua extraordinária “Asa
Branca”, o velho Lua debulha e verseja a crueldade da seca que tanto assola a gente sertaneja,
mitopoético configurado com a força das estampas e dos dese-
nhos das imagens, com a plasti-cidade e a robustez da poetici-dade de suas letras e canções
que atravessam o âmago dos
sentires e paixões, das crenças e valores primordiais e fundos que compõem as cepas das vi-
das e da cultura dos Sertões. A vastidão do manancial da
produção musical e poética de
Luiz Gonzaga é incontornável. Este sertanejo das quebradas de Exu, em Pernambuco, pene-
Sem anos com Luiz Gonzaga
Miguel Almir Lima de Araújo Professor da UEFS
Em 2012 comemora-se 100 anos de Luiz Gonzaga. Sua pre-
sença entre nós, em nossos ima-ginários, nas searas da música e da cultura nordestina e brasileira,
é tão intensa e expressiva que se traduz em anos sem fim. Por isso, sem anos. Essa
presença é transtempo-ral. Ultrapassa os limites do tempo cronológico.
Atravessa os desvãos do tempo desmedido. Des-cortina o tempo da qua-
lidade dos sentidos que se revelam em sua cria-ção musical e poética.
Sentidos que, portanto, não se reduzem às lógi-cas lineares e mensurá-
veis do tempo cronológi-co, da lógica do calendá-
rio. Suas criações/produções simbólicas se desbordam no tempo
curvo da eternidade, do intangí-vel – o tempo mitopoético.
Assim, além da esfera do tem-
po quantitativo, a presença da imagem mítica de Luiz Gonzaga, de Gonzagão, do velho Lua, pe-
netra nas teias incontornáveis do tempo qualitativo em suas ver-tentes mítica e poética. Tempo
recursos naturais), a poesia de
Manoel de Barros se põe em in-
conformidade, toca-nos em dire-
ção a um movimento contrário a
tudo que traz indignidade à vida,
com um grito poético que ecoa
em prol de um mundo mais sus-
tentável em todas as suas esfe-
ras ecológicas. Sua poesia, por-
tanto, é denúncia, que transvê –
termo usado por ele – e que dá
à nossa existência condição de
voos.
Deste modo então, o olhar po-
ético do escritor Manoel de Bar-
ros sobre as pequenezas da vida
se insurge como possibilidade de
aguçamento do elemento sensí-
vel, revelando uma ligação sine
qua non do humano com sua al-
teridade, na qual estão incluí-
das (e são respeitadas) todas
as formas de vida.
Referências
ARAÚJO, Miguel Almir Lima de.
Os sentidos do educar: suas fruição no fenômeno do educar. Salvador: EDUFBA, 2008.
BARROS, Manoel de. Poesia re-unida. São Paulo, Leya, 2010. FONSECA, Aleilton. O poeta na
metrópole: expulsão e desloca-
mento. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA, Rubens Alves (org.)
Rotas & Imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santa-
na: UEFS, 2000, p. 43-56. GUATTARI, Felix. As três ecolo-
gias. 18 ed. São Paulo, Papirus, 2007.
OLIVEIRA, Maria Elizabete Nasci-mento. A Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poé-
ticos. Dissertação de mestrado. UFMT, 2010.
PEREIRA, Roberval. A unidade primordial da lírica moderna. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA,
Rubens Alves (org.) Rotas & i-magens: literatura e outras via-gens. Feira de Santana: UEFS,
2000, P. 29-42.
PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. A-
venida, Jaguará do Sul, 2012.
Joaquim Franco
12 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
suas arribações do torrão natal pra outros rincões, as dores que
cravam a vida desse povo em seus tão comuns e intensos ci-clos de estiagens. Em a “Volta da
Asa branca”, Gonzaga revela a intensidade das estações das chuvas, a contenteza dos povos
sertânicos com o vicejar das á-guas esverdecendo a terra e as vidas. Com essas cantigas, ele
realça os opostos complementa-res e interdependentes que per-fazem as vidas sertânicas; que
nos constituem. Gonzagão também tratava
com afinco de sua indumentária
através de adereços e figurinos que se inspiravam nas tradições míticas da cultura sertaneja. No
chapéu que usava com frequên-cia, trazia o símbolo de Lampião,
as proezas do Cangaço como marco da resistência desses po-vos. Nos jaleques e blusões simi-
lares trazia o símbolo do vaquei-ro como personagem mítico que perfaz as sagas cotidianas dos
povos sertânicos, em suas pele-jas pelas brenhas das caatingas espinhosas.
No final de sua travessia no meio de nós, com sua intuição farejadeira e com a fineza de sua
espirituosidade, Gonzagão nos presenteia com a cantiga “Xote ecológico” traduzindo sua indig-
nação diante da perversidade hu-mana mediante atitudes que tan-to desfiguram e degradam o e-
cossistema. Nesta, acentua tam-bém a expressividade da figura emblemática de Chico Mendes
como aguerrido defensor da Eco-logia.
Com o primor de sua sensibili-
dade, de seu espírito irrequieto e inventivo, Luiz Gonzaga engravi-dava suas inspirações para par-
tejar as letras de suas canções nestes confins imensuráveis dos tesouros e do vigor das tradições
culturais dos Sertões, do Nordes-te brasileiro; nas intensidades do viver peregrino, das venturas
bravias e celebrações que mati-zam essa gente sertânica. Fla-grou com perspicácia as sutile-
zas, as proezas, os desalinhos, as veredas tortas, os desafios ingentes das sagas do destinar
Pendurando aspectos dos valores comunais de Sussuarana: o educar
em cordel Cutucando a Onça
Sérgio Ricardo Santos da Silva (Bahialista) Mestrando Educação e Contemporaneidade PPGEduc UNEB
desse povo imbuído de sabedo-rias ancestrais que tanto nos
nutre e encanta. Os vôos das asas brancas, em
suas idas e voltas, com o entoar
de suas cantigas que tocam fun-do nos desvãos de nossas al-mas, continuam e continuarão
ecoando nas veredas dos Ser-
Joaquim Franco
tões do Nordeste, do Brasil e do mundo.A presença do símbolo
mitopoético de Gonzagão, com sua obra imorredoura, descam-ba, em nossos imaginários sertâ-
nicos e mundanejos, pelos flan-cos da eternidade mítica. Sem anos com Luiz Gonzaga!
Começando o pendurar... A personagem principal nas
nossas interações didáticas na Educação é a Literatura de Cor-del. Esta linguagem que pendu-
ra nos seus cordões, narrativas que versam sobre inúmeros as-pectos que compõem as formas
de viver o nosso cotidiano, os diversos momentos históricos do Brasil, as mitologias que re-
gem diversos povos, além de fantasias compostas por perso-nagens que marcaram a história
da Humanidade. Iniciar uma reflexão a partir
de um novo “olhar Arte-
educativo” que contemple os saberes da riqueza poética da Literatura de Cordel, nos remete
ao mundo simbólico da poética.
É esta que rege muitas elabora-ções de mundo, estéticas e for-
ças pulsantes do ser mais ser. E buscar entender seu universo é condição mais que indispensável,
pois “a dinâmica de expansão existencial das diversas contem-poraneidades” (LUZ, 1999. p 1)
configura força, pulsão de agre-gação, sensibilidade e respeito à alteridade.
Faz-se forte e de grande im-portância a construção de um diálogo a partir dos entre-lugares
e dos inter-textos que fazem par-te da nossa existência, e que são negados pelas normatizações
etnocêntricas enfatizadas no coti-diano das escolas e outros espa-ços educativos. Sendo assim,
pretendeu-se desencadear pro-
13 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
cessos investigativos que buscas-sem compreender o educar finca-
do no princípio inaugural da co-m u n a l i d a d e S u s s u a r a n a
(Salvador), tendo a palavra como
instrumento de encantamento
pendurada na Literatura de Cor-
del. Esta apresentou-se durante nossas observações e intera-
ções didáticas como um corpo versado educativo que constrói (re)elaborações de valores co-
munais através da palavra pó-ética.
Nestes espaços, na maioria das vezes, o Cordel quando che-
ga já encontra a si mesmo, no imaginário coletivo, reafirmando diversos princípios que regem
as suas redes de aliança. Pode-mos ver isso nos recitais que participamos nas ações artístico
-culturais que os grupos comu-nitários realizam, nos quais reci-tamos cordéis que emocionam
as pessoas. Muitas delas vêm até nós para relatar o quanto foi bom viajar mais uma vez
para o Sertão. Por que anunciamos que pen-
duramos aspectos de valores
comunais de Sussuarana no Cordel? Porque sua forma re-criadora viaja pelo mundo afo-
ra, não se prende a apenas uma finalidade. A Literatura de
Cordel carrega em si o espírito aventureiro, arteiro, que vem de lá do Sertão, cavalgando
para as grandes capitais, che-gando de mansinho.
Como esses grãos do existir vieram parar no
meu pilão?
A preocupação com a Litera-
tura de Cordel como instru-
mento de encantamento, re-bento de novas elaborações, visões de mundo e de afirma-
ção dos processos civilizatórios africanos e ameríndios das di-versas Comunalidades que inte-
ragem com os “versos cordelís-ticos”, se fez emergente após um contato mais direto com es-
ta a partir de um trabalho artís-tico - pedagógico desenvolvido pelo CRIA – Centro de Referên-
cia Integral de Adolescente – no ano de 2002, em uma oficina artística desenvolvida pelo nos-
so saudoso Mestre poeta Zeca de Magalhães, que proporcionou aos aprendizes um exercício po-
ético de trabalho intuitivo e in-telectivo do poder da palavra.
É nesse contexto de Educação
para Cidadania, que surge o grupo comunitário que desen-volvia um trabalho arte-
educativo com a Literatura de Cordel e o Hip-Hop. Este grupo é o Rap´ensando Sussuarana.
A “Dinâmica do Pilão”, refe-rência metodológica que carac-
teriza as iniciativas do PRODE-SE (Programa Descolonização e Educação/UNEB) é um dos ca-
nais de linguagens que utiliza-mos para introduzir a Literatura de Cordel como um corpo com-
plexo de linguagens versadas, educativas, que constroem e (re)elaboram valores comunais.
O pilão nas nossas aborda-gens e interações pedagógicas com nossas Comunalidades é
utilizado como uma metáfora que (re)significa os valores que constituem o universo mítico,
ancestral e iniciático que rege a pulsão comunal advinda dos elementos culturais, africano e
ameríndio, pois o pilão nessas comunidades tem a função de
transformar os grãos - que serão consumidos e compartilhados - em alimento para todos na co-
munidade. Assim pode ser o Cor-del, um entrelaçamento da lin-guagem poética literária na co-
munidade escolar que busca, a-través de dinâmicas lúdico-estéticas, (re)animar o viver
dentro da instituição e fortalecer o poder de encantamento que a palavra poética tem, comparti-
lhando saberes. Comunalidades são as redes
de alianças, a solidariedade inte-
rativa presentes nos vínculos so-cietais, (...) desenvolvidas numa dimensão espaço-temporal na
qual são reforçados os vínculos de sociabilidade e promovida a co-existência entre as culturas
em torno (LUZ, 1999, p. 64). As-sim, pretendemos desencadear uma reflexão acerca da palavra
poética como pilão que prepara uma nova forma de anunciar
novas configurações de mundo dos educandos, que são nega-das por este mundo centrado no
conhecimento e palavra norma-tizados. É hora de rebentar no-vos valores que transbordem do
pulsar dessas comunalidades. No espaço constituinte dessas
Comunalidades que se configu-
ram no existir dos educandos é
que se “rebenta” a arkhé, o princípio inaugural que vem pi-lando através do nosso versar
na Educação, o grão do existir, além de estabelecer sentido, pulsão comunal: a palavra en-
cantada que tece as redes de alianças, laços ancestrais de a-prendizados mútuos que confi-
guram saberes comuns. Esta palavra criativa, elo de ligação dos nossos educandos com seus
princípios e valores comunais, no nosso trabalho artístico pe-dagógico ganha corpo na Litera-
tura de Cordel – como poderá ser visto durante esta reflexão aonde nossos educandos recri-
am novas formas de anunciar e afirmar seu continuum civiliza-tório, expressando através da
oralidade e do seu registro, o contexto político e a riqueza do imaginário/simbólico.
14 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
corporada a um estado de refle-
xão extraordinário, revelando
assim em novas (re)elaborações
a riqueza poética e fantástica
dessa literatura genuinamente
brasileira assim em novas (re)
elaborações a riqueza poética e
fantástica dessa literatura genui-
namente brasileira.
Referências
ALMEIDA, Márcio Nery de. Viver
a comunalidade na escola: Para
além das habilidades e compe-
tências do Currículo Escolar. Dis-
sertação de Mestrado apresenta-
da ao Programa de Pós-
Graduação em Educação e Con-
temporaneidade da Universidade
do Estado da Bahia UNEB; Sal-
vador, 2007.
FARIAS, Carlos Aldemir. Alfabe-
tos da Alma: histórias da tradi-
ção na escola. Porto Alegre: Suli-
na, 2006.
LUZ, Narcimária Correia
do Patrocínio. Awasoju:
dinâmica da expansão e-
xistencial das diversas
contemporaneidades. Re-
vista da FAEEBA, Salva-
dor, UNEB, nº12, p.45-
74, 1999.
SILVA, Sérgio Ricardo
Santos da. Cordel: Um
corpo versado espetacu-
lar, cavalgando do sertão
para a Sussuarana. A Li-
teratura de Cordel na for-
mação da Cidadania de
jovens da comunidade
Sussuarana. In: SEMEN-
TES, Caderno de Pesqui-
sa, v.VI, p. 127-135. Edi-
tora UNEB, Salvador,
2005.
ASSARÉ, Patativa. Nordestino
sim, nordestinado não. In: Ispi-
nho e Fulô, 3ª Ed. Fortaleza-CE,
2002.
VASCONCELOS, Cláudia Pereira.
SER-TÃO BAIANO: o lugar da
sertanidade na configuração da
identidade baiana. Salvador, E-
dufba, 2011.
VIANA, Arievaldo Lima. Acorda
Cordel na sala de aula. Fortale-
za: Tupinanquim Editora/ Quei-
ma Bucha. 2006.
dia a dia, mostrando que ele só espera que possam expor seu
corpo, com uma intencionalida-de educativa, revelando essa essência educativa.
Considerações “quase” fi-
nais: anunciação para um
tempo poético pela ética da coexistência.
O cordel é mais uma tentativa de veicular conteúdos impres-cindíveis para a formação da
cidadania e se apresenta como um mediador entre a comunida-de e a escola, sendo algo inova-
dor, quando não deveria ser, pois essa manifestação é carac-terística do povo nordestino e
teria que fazer parte do cotidia-no da vida escolar e da comuni-
dade.
Falta ao sistema de ensino a sensibilidade para divulgá-lo e encará-lo como um recurso pe-
dagógico permanente no desen-volvimento do currículo escolar e do diálogo com a comunidade.
Comunidade esta que traz ri-quezas nos seus conhecimentos que, por essência, educam por
si só. Para o educador é necessário,
não só trazer o cordel para a
sala de aula. É necessário trazê-lo numa perspectiva espetacu-lar, onde essa poesia seja incor-
Um grupo de mobilização social que nasceu em 2003 com a pro-
posta de articular grupos artísti-cos culturais, associações comu-nitárias e escolas dentro do bair-
ro de Sussuarana, em Salvador e na Bahia. Assim, estes se confi-guram uma reinvenção das tradi-
ções que o processo sóciocogniti-vo-cultural de perpetuação da nossa existência simbólica se
mantém (FARIAS, 2006). Sussuarana é um bairro que,
como muitos outros periféricos
de Salvador, cresceu perpetuan-do essa existência simbólica, com a ocupação de retirantes
que deixaram seus interiores nordestinos, para tentar uma no-va vida na capital.
O cordel pode ser um mecanis-mo, instrumento acionador de
diversas abordagens didáticas, como pode ser o seu fruto. Assim foi o Cordel das Cri-onças, por
exemplo. Fruto das interações de cunho didático pedagógico das crianças de escolas
municipais de Sussua-rana, territorialidade da periferia soteropoli-
tana, o cordel das Cri-onças contou em verso as narrativas orais pró-
prias da tradição de sua comunalidade.
Zé da Onça inventou
De caçar uma onça
parda
Logo, logo a matou
Isso não teve muita
graça
Mas logo se originou
Do roçado uma praça.
Minha Sussuarana
Você é o meu bem
querer
Não me canso de você
Mora no meu coração
Embora eu more em
você
Desse tempo de emoção
Eu nunca vou me esquecer.
E é justamente nesse Corpo Espetacular que o cordel revela a riqueza da arte no cotidiano, no
Lizandra
15 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
poemas
Joaquim Franco
Sem ter chuva no Sertão
Sem ter chuva no sertão Nas épocas de trovoadas
Fica o sertanejo triste Sem samba sem farinhada Como é que a gente vive
Sem ter queijo nem coalhada.
Pois se ver a sertaneja
Que é a flor do sertão Trapilha e mal vestida Em vestes de algodão
Esse é o maior desgosto Sem ter chuva no sertão
O pai de família triste Se acorda desanimado
Sai cortando xique-xique
Prá dá de comer ao gado Tudo por falta de chuva Se torna desmatelado.
Se um menino pede pão Outro chora por banana
E o pai sentado triste Lá na porta Chupana
Tudo por falta de chuva
Vive triste a raça humana.
Gabriel Pereira da Silva
Feira de Santana-Ba
Bosques de flor de canela no agreste
Flor com cheiro de canela, Do agreste pode ser Gabriela,
Tieta cansada de guerra,
Tereza batista dois maridos enterra.
Somos nós,trançadas nesse
nós... Se Nacib fosse meio Vadinho Ou Ricardo mais ousado um
pouquinho... Se São Jorge Guerreiro
Passasse a ser Jorge Casamen-
teiro Talvez Tieta seria mais feliz
Flor – dona do seu próprio nariz
Se a culinária baiana fosse me-nos gostosa,
a mulher amadiana menos ape-titosa
a literatura menos dadivosa
a vida real poderia ser mais formosa...
Mas a flor,o agreste,a canela,a
guerra,a ficção... Ah,a ficção! São os bosques do
meu coração
Maria Angélica Rocha
Fernandes
Caculé-Ba
Carolina Belmondo
Pencas de sonhos
De longe vejo um
poeta escrevendo.
O que será que ele escreve?
Penso que seja
pencas de sonhos.
Em meio a tanta
gente que ele vê.
Deve escrever;
Haja espaço e linhas
Para desvendar tantos
pensamentos.
Edivânia Santos de Carvalho
Teofilândia-Ba
nas vísceras e
nas estrelas
cada um recolhe
a esperança
que tempera a vida
dos que ainda não
nasceram
só habitam a carne
no intervalo do existir
cada homem é um
e o mesmo
boca de muitos
beijos
cravados na carne
suada
alumiada de memórias
severinas
a insistir
A LUZ LEMBRADA
CURA A SOMBRA
Líris
Indaiatuba-SP
16 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23
Carolina Belmondo
Orisa Gomes
Não te quero acordar
Dorme mais um bocadinho Quero-te apenas beijar
Muito, muito de mansinho.
Quem me dera ter-te aqui
Dar-te os mimos que mereces Tenho ternura por ti
Meu bem, nunca me esqueces.
As saudades o que são?
Trazem-me a tua lembrança. São o querer dum coração
Que vive cheio de esperança.
José Antonio
Portugal
Acaso
de repente me vi
diante de mim
de uma sombra um espelho
uma fumaça
de repente
sou eu lampejo
fogo ou nuvem
de repente um pássaro
uma pluma ave sangria despida
num firmamento
árido
Henrique Magalhães Feira de Santana-BA
Desejo
Viajar é como sentir as flores brotarem na primavera
apenas observar sem ser observado
é passear por onde nunca
estive é ser um rio de águas calmas e
correntes numa aventura de penetrar em
uma floresta densa e bela
é como sentir a brisa nas cur-vas de uma serra,
ver as lavas de um vulcão,
incandescente, fervente é pertencer a esse natural
habitat
é sentir teu corpo, lindo, chei-roso, gostoso...
como num majestoso gesto
começo a sonhar começo a viver começo a viajar
com esse seu olhar posso até me imaginar
nessa floresta me embrenhar
sentir a natureza decifrar
delirar de satisfação
para que eu possa, outras vezes
em teu corpo sentir
o desejo do prazer de viajar.
Leonardo Sacramento
Feira de Santana-BA
nada do depois partido
espalhado nas vielas
decorando muros pichados
entre a pedra e a vela
crucificados
o menino acende o delírio
esfumaça o homem
outros passam apressados.
Líris Indaiatuba-SP