Aforismos de Friedrich Nietzsche - rl.art.br · mente como um fenômeno estético a existência e o...

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Salva-o a arte, e pela arte salva-o para si ... a vida. [...] a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensa- mentos de nojo sobre o susto e o absurdo da e- xistência em repre- sentações com as quais se pode vi- ver: o sublime co- mo domesticação artística do susto e o cômico como alí- vio artístico do nojo diante do absurdo. [...]metafísica da arte, repetindo mi- nha proposição an- terior de que so- mente como um fenômeno estético a existência e o mundo aparecem como legitimados: sentido este em que precisa- mente o mito trágico tem de convencer-nos de que mesmo o feio e o desarmonioso são um jogo artístico que a vonta- de, na eterna plenitude de seu prazer, joga consigo mes- ma. [...] um fenômeno dionisía- co, que nos revela sempre de novo o construir e demolir lú- dicos do mundo individual co- mo a efusão de um prazer pri- mordial, de maneira seme- lhante a como Heráclito o Obscuro compara força for- madora do mundo a uma cri- ança que ludicamente põe pe- dras para cá e para lá, e faz montes de areia e os desman- tela. O dizer-sim à vida, até mes- mo em seus problemas mais estranhos e mais duros, a von- tade de vida, alegrando-se no sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria ine- xauribilidade foi isso que deno- minei dionisíaco, foi isso que entendi como ponte para a psi- cologia do poeta trágico. Mas sentir-se, como huma- nidade (e não somente como indivíduo), tão esbanjado co- mo vemos a florescência isola- da ser esbanjada pela nature- za, é um sentimento acima de todos os sentimentos. Mas quem é capaz dele? Certamen- te apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se. [...] a todo espiritual per- tence algo de corporal; com seu auxílio pode-se ligar o es- pírito, causar-lhe dano, ani- quilá-lo; o corporal fornece a pega com que se pode pegar o espiritual. [...] tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitorieda- de. [...] A ob- servação ine- xata comum vê na nature- za, por toda parte, oposi- ções, como por exemplo “quente e frio”, onde não há oposições, mas apenas diferenças de grau. [...] É indizível o quanto de dor, pretensão, dureza, estra- nhamento, frieza, penetrou assim no sentimento humano, por se pensar ver oposições em lugar das transições. [...] Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se e depois reencontrar-se. Textos extraídos do livro “Nietzsche, Pensadores”, Vol. 1. Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT Departamento de Educação/UEFS Ano XII Nº 23 Maio/Jul. 2012 Feira de Santana-BA ISSN 2179-1139 Aforismos de Friedrich Nietzsche J. Miguel

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Salva-o a arte, e pela arte salva-o para si ... a vida.

[...] a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensa-

mentos de nojo sobre o susto e o absurdo da e-

xistência em repre-sentações com as

quais se pode vi-ver: o sublime co-mo domesticação

artística do susto e o cômico como alí-

vio artístico do nojo diante do absurdo.

[...]metafísica da arte, repetindo mi-

nha proposição an-terior de que so-mente como um

fenômeno estético a existência e o

mundo aparecem como legitimados:

sentido este em que precisa-mente o mito trágico tem de

convencer-nos de que mesmo o feio e o desarmonioso são um jogo artístico que a vonta-

de, na eterna plenitude de seu prazer, joga consigo mes-

ma. [...] um fenômeno dionisía-

co, que nos revela sempre de novo o construir e demolir lú-

dicos do mundo individual co-mo a efusão de um prazer pri-mordial, de maneira seme-

lhante a como Heráclito o Obscuro compara força for-

madora do mundo a uma cri-ança que ludicamente põe pe-

dras para cá e para lá, e faz montes de areia e os desman-

tela. O dizer-sim à vida, até mes-

mo em seus problemas mais

estranhos e mais duros, a von-tade de vida, alegrando-se no

sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria ine-xauribilidade foi isso que deno-

minei dionisíaco, foi isso que entendi como ponte para a psi-

cologia do poeta trágico. Mas sentir-se, como huma-

nidade (e não somente como indivíduo), tão esbanjado co-

mo vemos a florescência isola-da ser esbanjada pela nature-za, é um sentimento acima de

todos os sentimentos. Mas quem é capaz dele? Certamen-

te apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se.

[...] a todo espiritual per-tence algo de corporal; com

seu auxílio pode-se ligar o es-pírito, causar-lhe dano, ani-

quilá-lo; o corporal fornece a pega com que

se pode pegar o espiritual.

[...] tem de haver nele próprio algo

de errante, que encontra

sua alegria na mudança e na

transitorieda-de.

[...] A ob-servação ine-xata comum

vê na nature-za, por toda

parte, oposi-ções, como

por exemplo “quente e frio”, onde não há oposições, mas

apenas diferenças de grau. [...] É indizível o quanto de dor, pretensão, dureza, estra-

nhamento, frieza, penetrou assim no sentimento humano,

por se pensar ver oposições em lugar das transições.

[...] Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é

preciso saber, de tempo em tempo, perder-se – e depois reencontrar-se.

Textos extraídos do livro

“Nietzsche, Pensadores”, Vol. 1.

Núcleo de Investigações Transdisciplinares-NIT – Departamento de Educação/UEFS Ano XII – Nº 23 – Maio/Jul. 2012 – Feira de Santana-BA – ISSN 2179-1139

Aforismos de Friedrich Nietzsche

J. Miguel

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2 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

sumário Editorial

Informes

Pesquisa Sertania - p. 3

Festival de Sanfoneiros - p. 3

XI São João da UEFS - p. 3

Celebração das Culturas dos Sertões - p. 3

Festival Cinema pela Verdade - p. 3

Artigos Para seduzir um texto Marcos Monteiro p. 4

Mulher, Mulheres, as Mulheres na Educação Mirela Figueiredo Iriart - p. 4

Gênero e Religião Anísia Gonçalves Dias Neta - p. 5

Cidades e cidadãos, aquele abraço nos cemitérios Vicente Deocleciano Moreira - p. 7

Imagens ecológicas na poesia de Manuel de Barros:

a relevância do ínfimo Weslley Moreira de Almeida - p. 9

Sem anos com Luiz Gonzaga Miguel Almir Lima de Araújo - p. 11

Pendurando aspectos dos valores comunais de Sussuarana: O Educar em Cordel Cutucando a Onça Sérgio Ricardo Santos da Silva - p. 12

Poemas

Sem ter chuva no Sertão Gabriel Pereira da Silva - p. 15

Bosques de flor de canela do agreste Maria Angélica Rocha Fernandes - p. 15

Pencas de Sonhos Edivânia Santos de Carvalho - p. 15

Líris - p. 15

Acaso Henrique Magalhães - p. 16

Desejo Leonardo Sacramento - p. 16

José Antonio - p. 16

Líris - p. 16

Orientações para envio de material

- Recebemos artigos, poemas e

imagens com temáticas diversas que sejam relevantes para a hu-manidade.

- Texto de até três páginas; es-

paço simples; fonte times new roman 12; parágrafo com recuo; colocar dados do autor após o

título.

- Enviar o material via e-mail: [email protected]

expediente

editorial Neste nº 23 iniciamos nossa pro-

sa com aforismos de Nietzsche in-terpenetrados por uma das imagens mais simbólicas do povo nordestino: o São João.

Nos parágrafos de “Para seduzir um texto”, viajamos na aventurosa relação que existe entre autor e tex-to, no processo de criação, por uma linguagem cômica e ficcional.

Em “Mulher, Mulheres, as Mulhe-res na Educação”, percorremos os desafios da Educação em prol da integração das diferenças, na luta contra a reificação dos papéis de gênero e na ressignificação da histó-

ria das mulheres. Na leitura de “Gênero e Religião”

o leitor vai encontrar uma discussão fecunda a respeito da religião e suas implicações nas relações de gênero.

No artigo “Cidades, cidadãos, a-quele abraço nos cemitérios” o autor perscruta nossa relação com a mor-te e ressalta sua importância como objeto de reflexão para o caminhar

humano. Em “Imagens ecológicas na poe-

sia de Manoel de Barros: a relevân-cia do ínfimo” o autor tece caminhos no entre-lugar onde se encontram os campos da Literatura e da Ecolo-

gia, salientando a relevância do ínfi-mo para uma sensabilização eco-humana.

Caminhado pelas veredas de “Sem anos com Luiz Gonzaga” o autor an-

darilha pelas figurações mitopoéticas desse personagem símbolo da cultura sertânica, debulha os sentidos de su-as canções, de sua indumentária, de sua presença no nosso imaginário

mítico. “Pendurando aspectos dos valores

comunais de Sussuarana: o educar em Cordel Cutucando a Onça” articu-la diálogos sobre a importância dos versos cordelísticos, e desencadeia

uma reflexão acerca da palavra poéti-ca que prepara novas configurações de mundo para os educandos.

No passeio pelas páginas do perió-dico também se pode transitar pelas

imagens e suas figurações sertânicas, míticas e simbólicas que alumbram-nos em fruições.

Os poemas singram sendas do i-maginário do sertão, os conflitos e-

xistenciais, o desejo e a paixão; tra-duzem a pluralidade de sensações e modos de estar no mundo.

Assim, convidamos você para uma boa leitura!

Site do NIT www.uefs.br/nit

Comissão Editorial

Danilo Cerqueira Almeida

João Paulo dos Santos Silva

Fabrícia Maria Bezerra

Miguel Almir L. de Araújo (Coord.)

Weslley Moreira de Almeida

Conselho Editorial

Dr. Eduardo Oliveira

(UFBA)

Dr. Miguel Almir Lima de Araújo

(UEFS)

Dr. João Francisco Regis de Morais

(UNICAMP)

Drª. Mirela Figueredo Santos

(UEFS)

Drª. Sandra Simone Morais Pacheco

(UNEB)

Dr. Roberval Alves Pereira

(UEFS)

Editoração Eletrônica

Danilo Cerqueira Almeida

João Paulo dos Santos Silva

Web designer

Leonardo Nunes da Silva

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE

FEIRA DE SANTANA

Reitor

José Carlos Barreto de Santana

Diretor do Departamento de

Educação

Marco Antônio Leandro Barzano

Coordenador do NIT

Miguel Almir L. de Araújo

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3 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

informes Pesquisa “Sertania:

o imaginário dos povos do Ser-tão”

A pesquisa “Sertania: o imagi-

nário dos povos do Ser-tão”, co-

ordenada pelo professor da UEFS Dr. Miguel Almir Lima de Araújo, teve participação de professores

e estudantes da UEFS e da UNEB e foi realizada nos Sertões de 5 estados do Nordeste (Sergipe,

Piauí, Pernambuco, Alagoas e Ba-hia) e Norte de Minas Gerais, en-tre os anos de 2009 a 2011. A

mesma contou com o apoio da UEFS e da FAPESB.

Através de diversos procedi-

mentos metodológicos atinentes às pesquisas qualitativas (entrevistas, questionários, cole-

ta de textos e imagens – dese-nhos, fotografias, pinturas... –, observação participante, filma-

gens...) os pesquisadores sedi-mentaram dados bastante ex-

pressivos acerca dos modos de vida, dos saberes e sentires – das sabedorias/sabenças – que

constituem a vida cotidiana, as pelejas e celebrações dos povos dos Sertões no destinar de suas

sagas agridoces. Nas fontes dos mananciais das crenças, valores e idéias que perfazem as saben-

ças e os viveres cotidianos des-ses povos sertânicos, ficou bas-tante realçada a presença do es-

pírito e das posturas de solida-riedade/de compartilhamento, de honestidade, de respeito, de fé,

de luta e de resistência aos desa-fios das intempéries que os asso-lam. Apesar das tantas agruras,

os sertanejos celebram intensa-mente suas vidas através das folias de suas manifestações cul-

turais como o São João, o Reisa-do, o Bumba-meu-boi, os feste-jos religiosos etc.

Seus imaginários são plasma-dos por diversos símbolos mito-poéticos como Luiz Gonzaga,

Lampião, Pe. Cícero, Antonio Conselheiro etc.

Estes símbolos traduzem a for-

ça das crenças, das tradições cul-turais, do espírito de luta, de re-sistência e de celebração da vida

XI São João da UEFS

Aconteceu no dia 15 de junho

de 2012 a Celebração do XI São João da UEFS, no Parque Espor-tivo da Universidade. A celebra-

ção foi muito expressiva. Ocor-reram apresentações de diversos folguedos joani-

nos. Neste ano comemo-ramos os 100 anos de Luiz Gonzaga, o Gonza-

gão. A Celebração do XI São

João da UEFS foi assumi-

da pela Reitoria da UEFS e organizada por uma comissão intersetorial:

NIT/Departamento de E-ducação, ADUFS, UNDEC,

PROEX, SINTEST e DCE, com o apoio do CUCA.

Festival Cinema pela Verdade

Ocorreu na UEFS, nos dias 29 e 30 de maio o Festival de Cine-ma pela Verdade. Este festival

retrata o período da ditadura mi-litar no Brasil e suas consequên-cias. As atividades do festival a-

conteceram ao longo dos meses de maio e junho, em Universida-des de todo o Brasil. A realização

na UEFS contou com o apoio do Núcleo de Inovação Tecnológica, do Projeto Sala de Cinema e do

Coletivo Inovacine.

Festival de Sanfoneiros

Foi realizado no dia 23 de mai-

o, no auditório Central da UEFS, o V Festival de Sanfoneiros, que homenageou o centenário do Rei

do Baião, Luiz Gonzaga. O even-to organizado pelo CUCA/UEFS contribuiu para afirmar as tradi-

ções nordestinas na multiplicida-de de ritmos que envolvem o uso da sanfona, instrumento tão

marcante em nossas manifesta-ções culturais.

Celebração das Culturas dos Sertões

Aconteceu entre os dias 05 a 09 de maio, em Feira de Santana e Salvador, a Celebração das

Culturas dos Sertões. Com espe-táculos musicais, desfile de va-queiros, rodas de conversas, fei-

ra de artesanato e tantas outras atividades, o evento promoveu a cultura sertânica nas suas diver-

sas matizes.

desse povo. O viver cotidiano desses povos se traduz nesta

saga agridoce em que a triste-za, as dores, o sofrimento cau-sado pelas secas, os descasos

políticos etc. são desafiados e entrecruzados com momentos intensos de alegria e contenteza

mediante a força de suas tradi-ções culturais, de seus muti-rões.

J. Miguel

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4 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

O texto simplesmente não me enxergava. E eu, desses desen-

gonçados apaixonados, dislexava em ciúmes dos seus trejeitos e dengos com outros leitores.

Alisei carinhosamente seu ca-beçalho elogiando seus cabelos e ele, em desdenhoso escárnio,

retirou ostensivo a peruca, ar-rancando gargalhadas de meus concorrentes.

Como quem não sabe o que fazer, como quem não sabe o que pensar, como quem não sa-

be o que dizer, fui sussurrando frases feitas, dessas infalíveis, causando apenas um estremeci-

mento involuntário de cansaço e nojo.

Chorei, me sentindo ridículo

mas esperando suscitar compai-xão, e ele indiferente retirou-se

para o seu grupo de calorosa conversação.

Fui me acercando, devagar e silencioso, deixando as horas passar em muda contemplação

e, inopinadamente, fiz cócegas em suas entrelinhas e recebi, primeira vez, resposta diferen-

te. Uma bofetada na cara, de texto muito ofendido, pela pre-tensão do pretendente.

Então resolvi apelar: enfiei o dedo com gosto em todas as suas epíforas sem lhe deixar

respirar. Com esforço, conse-guiu me afastar com um safa-não, mas eu estava me sentindo

quase vitorioso e invadi sua lín-gua com a língua, beijo apaixo-nado, demorado, sedutor, sine-

doqual. E o texto se entregou, lingua-

Mulher, Mulheres, as Mulheres na Educação

Mirela Figueiredo Iriart Professora da UEFS

São muitas, são tantas, diversas,

São fortes, são frágeis, complexas,

Transparentes, são inteiras,

contraditórias, São múltiplas.

Ousam, inventam, criam, dão vida,

Tecem, bordam, arrematam,

alimentam Ensinam...

E o que é ensinar, se não a-cordar o adormecido, significar o sem sentido, acolher gestar,

transformar e transformar-se O ato pedagógico é feminino em

sua natureza?

Existe uma natureza feminina que se atualiza no ato

educativo?

As memórias, biografias, his-tórias e narrativas das e sobre

as mulheres revelam que as ex-periências como filha, esposa,

mãe, mulher e professora estão

entrelaçadas, muitas vezes con-fundindo-se, quando não se so-

brepondo. Do espaço doméstico, privado

e privatizado pelo domínio mas-

culino, a passagem ao lugar pú-blico e reconhecido socialmente, não se deu para as mulheres

sem lutas, conflitos e renuncias, mas também com sensibilidade e astúcia. A passagem das mulhe-

res do espaço doméstico ao es-paço público deu-se pelo conti-nuum do lugar de cuidadoras,

função que já ocupavam na famí-lia.

A recuperação desta história

das mulheres significa a sua rein-tegração na história dos seres humanos, como história da hu-

manidade (Sousa, Cynthia P. de; Catani, Denice B.; Souza, Maria

Cecília C.C. de; Bueno, Belmira

Para seduzir um texto

Marcos Monteiro

Teólogo e Mestre em Filosofia

gem deslizando em carícias, pa-lavras e frases dançando ciran-

das, valsas, e um tango argenti-no tão bem dançado que se tor-nou nota de rodapé.

De bem com a vida, finalmen-te se entendendo, aproveitamos todo o tempo disponível para ar-

rulhos e colóquios, nessa fideli-dade silenciosa em que nos per-tencemos tão plenamente que eu

não pergunto se transa com ou-tros leitores, nem ele pergunta se tenho outros textos.

E nós dois sabemos que esta-remos sempre assim, juntos, tal-vez com alguns desentendimen-

tos oportunos e inoportunos, até que a morte nos separe. Ou até que o texto da eternidade nos

convide para o seu círculo her-menêutico.

artigos

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5 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

renças de gênero na escolha das carreiras e áreas de conhe-

cimento, num círculo vicioso de discriminação, construído por mensagens culturais que reifi-

cam os papéis de gênero como antagônicos e não complemen-tares. Como podemos analisar

hoje a participação feminina em várias esferas do domínio públi-co, por um viés não maniqueísta

ou simplificador, entendendo

que este movimento pela igual-dade, deve refletir o direito as diferenças e singularidades da

condição feminina, construída historicamente? Sem recorrer-se mais a noções como compe-

titividade, ambição desmedida, sucesso a qualquer custo, para justificar sua legitimidade? O

lugar da mulher na educação é

O., 1996). Recuperar esta me-mória é discorrer sobre os luga-

res sociais que as mulheres ocu-param e sobre as atividades que desempenharam numa sociedade

marcada pelo discurso e ethos masculino.

Na história do tempo presente,

vivem-se momentos de ruptura, mudança de papéis, redistribui-ção de poderes, flexibilidade das

fronteiras entre o público e o pri-vado, recolocando as questões sociais e históricas na busca por

compreender a construção das identidades sociais e pessoais como um jogo dinâmico, tecidas

nos entre - lugares (mulher-ho-mem; negro-branco; eu-outros), negociando sentidos, que nos po-

sicionem no mundo, a partir dos lugares de gênero, de classe, de

etnia, de profissão, configurando múltiplos pertencimentos e pa-péis sociais.

Hoje ser mãe, mulher e profis-sional configura a constelação de papéis femininos, negociados en-

tre as esferas pública e privada, renventando os papéis e funções tradicionais, na família e na soci-

edade: diferentes arranjos famili-ares, divisão de tarefas entre os sexos, compartilhamento da edu-

cação da geração mais jovem com diferentes instituições socia-lizadoras. Amplia-se, desta forma

o espectro de possibilidades de participação, ação e significação das mulheres no espaço público,

reconfigurando o privado como instâncias intercambiáveis.

A feminização da educação, no

entanto, assumiu um significado de desvalorização econômica e social do ensino, justificada mui-

tas vezes pelo discurso da voca-ção, cunhada pelas mulheres que a assumiram como devotamento

e pela baixa qualificação profis-sional, exaltando-se qualidades como altruísmo, abnegação, de-

dicação em troca de baixa remu-neração (Sousa, Cynthia P. de; Catani, Denice B.; Souza, Maria

Cecília C.C. de; Bueno, Belmira O., 1996).

O ingresso das mulheres nos

cursos de nível superior parece ultrapassar a dos homens, mas ainda se mantém algumas dife-

Atuar e pesquisar em defesa dos direitos das mulheres, ho-

je, no contexto latino america-no, brasileiro, é diferente do

contexto em que as precurso-ras do movimento feminista se situavam. Fazendo um paralelo

dessas realidades percebemos mudanças inclusive no sujeito

de nosso pensar e também no método pelo qual percorremos para traçar uma análise.

o do desvelamento dos afetos, das memórias pessoais, resignifi-

cadas no encontro com o outro, de sensibilidade ética e moral pa-ra cuidar e gerar pessoas.

Vivemos inúmeros desafios na educação, desde o plano ético, político e econômico, ao plano

moral dos sujeitos, das relações com o conhecimento, dos senti-dos do saber e do desejo de ser,

convocando-nos a repensar valores sociais, científicos, fa-miliares na construção de uma

noção de justiça e equidade que integre as diferenças, que respeite as minorias, que hu-

manize as relações cotidianas, que valorize o multiculturalis-mo e nos religue ao plano da espiritualidade, da arte e da filosofia. A educação pode represen-

tar este espaço de resignifica-ção do feminino, construído por discursos que qualifiquem

as suas práticas, articulando saberes e experiências únicas

e singulares, reescrevendo a história das mulheres na edu-

cação.

Referências

SOUSA, Cynthia P. de; CATANI,

Denice B.; SOUZA, Maria Cecília

C.C. de; BUENO, Belmira O. Me-

mória e autobiografia: formação

de mulheres, formação de profes-

soras. Revista Brasileira de Educa-

ção, n. 2 Mai/jum/jul/ago, 1996.p.

61-76.

Após Joan Scott (SCOTT,

1990) ter estruturado o conceito

de categoria de gênero como ca-

tegoria relacional em diálogo

c o m a s t e o r i a s p ó s -

estruturalistas, a teoria feminista

sai da discussão de conceito de

mulher, para a discussão de re-

lação entre homens e mulheres,

ou seja, para discutir gênero.

Atualmente, o contexto que

temos é da categoria de gênero

Gênero e Religião

Anísia Gonçalves Dias Neta Estudante de Teologia e Filosofia-FBB

Lizandra

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6 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

presente no campo teórico dialo-gando com outros saberes, influ-

enciando e sendo influenciada por eles. As feministas hoje se encontram discutindo academica-

mente suas teorias, práticas e lugares políticos (SCHMIDT, 2004).

A prática teórica, como é cha-mada, deve sempre rever e transgredir os espaços de poder,

dentro e fora do feminismo. As-sim, a prática será sempre cam-po de atuação da teoria estuda-

da, como campo de pesquisa. Não devemos, contudo, pelo

fato de abandonarmos as suas

categorias de análise, ou o ponto de partida de suas análises, esquecer das matriarcas que

lutaram no espaço político, e que tanto abriram espaço

para nós hoje. Devemos sim, lembrar delas para dar uma identidade à nossa lu-

ta, já que estamos imbrica-dos, relacionados e relacio-nando com outros saberes e

categorias, como socioeco-nômica, étnica, etc.

Em contrapartida, deve-

mos subverter a essa identi-dade hegemônica e clara-mente demarcada como eu-

ropeia e norte-americana, e pro-curar nossa própria identidade, no que se refere a um contexto

latino americano, brasileiro. As-sim, a partir de princípios e e-xemplos da hegemônica teoria

feminista devemos reler o nosso espaço e contexto criando uma prática e um lugar político onde

caiba nossa realidade, dando voz e vez a mulheres e lutas de mu-lheres que fazem parte do nosso

cotidiano. Não entendemos mais que ho-

mem e mulher é uma determina-

ção biológica, nem que seus pa-péis na sociedade são uma cons-trução masculina. Entendemos

que a biologia determina macho e fêmea, e não masculino e femi-nino. Também que os papéis so-

ciais são determinados dentro de uma cultura ideológica machista, androcêntrica, patriarcal, e que

são exercidos, defendidos e re-produzidos por homens e mulhe-res. “Não se nasce mulher, torna

as mulheres ocupam também esses espaços de poder, no en-

tanto, elas são minorias quanti-tativas, e muitas vezes, reprodu-zem o discurso do sistema que

as oprimem. A aceitação desse cenário se

dá devido à manutenção do pa-

triarcado judaico-cristão, dos dogmas e das regras que foram muito bem construídos e consoli-

dados ao longo dos tempos pelo poder do sagrado, ao ponto de ser reproduzido por homens e

mulheres sem qualquer questio-namento que pudesse vir a aba-lar as estruturas patriarcais da

religião. Por fim, parte da resis-

tência que encontramos em

mudar o comportamento e as relações de poder da

sociedade é devido a influ-ência dessa cultura ociden-tal-cristã que todos(as)

nós, latino-americanos(as), brasileiros(as), nos encon-tramos. Sabemos que den-

tro da religião há movi-mentos, correntes e teolo-gias que pretendem seguir

pelos caminhos da justiça, liberdade, igualdade e fra-ternidade entre homens e

mulheres, contra as fortes ideo-logias do machismo e sexismo. No entanto, estes movimentos e

correntes não são as teologias hegemônicas presentes na religi-ão, e o patriarcado ainda é uma

forte influência determinada pelo poder simbólico que o sagrado impõe.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O Segundo

Sexo. Vol. 2. Rio de Janeiro: No-va Fronteira, 1980. NUNES, Maria José Rosado. Gê-

nero e Religião. Revista Estudos Feministas. 13(2): 256. Florianó-polis. maio-agosto/2005.

SCHMIDT, Simone Pereira. Como e por que somos feministas. Re-vista Estudos Feministas. v.12 n.

spe. Florianópolis. set/dez. 2004. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.

Educação e Realidade, vol. 16, n 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990.

se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 9).

Encontramos, todavia, um espaço onde esses papéis mas-culinos e femininos estão de-

marcados e protegidos por uma força simbólica muito maior que a da cultura machista, que é o

poder do sagrado (NUNES, 2005). A religião é o lugar onde se confere poder e autoridade

para o discurso machista, e ali ele se fortalece e toma propor-ções de dominação ainda maio-

res. A importância que as pes-soas dão ao sagrado é tão rele-vante que questões de opressão

claras tornam-se sequer questi-

onáveis pelo simples fato de a-tribuírem vontade de Deus a esta ou aquela situação. Os tex-

tos sagrados quando usados pa-ra legitimar a dominação da ide-ologia machista são um instru-

mento poderoso para dificultar a libertação dessa sociedade das relações injustas de poder.

Apesar de discutirmos rela-ção, não devemos deixar de lembrar que discutimos aqui a

partir da minoria, que é a mu-lher. E por isso, quando relacio-namos Gênero e Religião e iden-

tificamos tantas mulheres nesse espaço, também demarcamos claramente que elas são maior

número que os homens, e estão muito mais situadas nos espa-ços de prática religiosa e dos

cultos, enquanto eles estão na administração, na elaboração das normas, regras e dogmas,

na direção e domínio da palavra e dos instrumentos de poder, entre outros. Em alguns casos,

Joaquim Franco

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7 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

Cidades e cidadãos, aquele abraço nos cemitérios

Vicente Deocleciano Moreira Professor da UEFS

Lizandra

Pra você que me esqueceu ...

Aquele abraço ...

Gilberto Gil, “Aquele Abraço”.

Reagir com nojo e desdém e recusar-se a ler um trabalho que

fale sobre a morte e/ou ... o na-da querer saber sobre a morte ... são condutas de evitação e de

esquecimento da morte. É muito alto o preço a ser pago por essa recusa, pelo ‘nariz torcido’ ou

‘tapado’, pela boca franzida e pe-lo “cruz credo!”, “desconjuro!”. O alto preço é perder a oportunida-

de de entrar em contato com re-flexões antropológicas e indica-ções de leitura sobre a morte.

Hospitais psiquiátricos, pri-sões, quartéis, terreiros de Can-domblé, conventos cemitérios ...

são exemplos de instituições to-tais (GOFFMAN, Erving – Mani-cômios, prisões e conventos),

por funcionarem geograficamen-te distantes das zonas centrais

urbanas e sob normas de condu-ta específicas e diferenciadas das demais que regem a vida social

como um todo. Investigar a his-tória particular de cada uma des-sas instituições é um passo vigo-

roso para a compreensão do ca-minhar histórico-urbano da cida-de que as abriga. Os mais anti-

gos terreiros de Candomblé, de Salvador, foram fundados (inícios do século XX) nas matas e coli-

nas mais ermas e mais invisíveis à perseguição policial. Um século depois a cidade, já bem crescida,

os envolveu e os abraçou ... a-quele abraço!

Apesar de vivermos repetindo

que ‘a morte faz parte da vida’, somos traídos, enquanto indiví-duos, grupos e coletividades,

pelas inúmeras justificativas, dis-cursos e práticas rituais de evi-tação e de esquecimento da mor-

te em que cidadãos e cidades nos envolvemos. Na MPB, canta-mos nos belos versos de Caetano

Veloso (“Divino Maravilhoso”) “É

preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a

morte”, uma regra de evitação e de esquecimento da morte. De-semborcamos os nossos chine-

los e calçados tanto quanto os das pessoas com as quais convi-vemos; chinelo emborcado pode

augurar (agourar) o ‘emborca-mento’ (sepultamento) de seu dono. Quando nos referimos a

uma pessoa falecida temos o cuidado preventivo e higiênico

de adicionar-lhe o (indesejável) título de finado(a) antes do no-

me de batismo. Nos velórios em residências ou salas cemiteriais, o defunto – por mais amado

que tenha sido em vida - tem os pés apontados para a por-ta ... para que ele “saia” e ja-

mais volte ao convívio com fa-miliares e parentes vivos. Logo que despertamos de um sonho

com uma pessoa falecida, dize-mos coisas como: “Ele(a), nosso(a) bem amado(a) e saudoso

(a), que fique por lá”, “Deus guarde sua alma”, “Que Deus o(a) tenha em sua santa gló-

ria” ... e coisas assim. Quando chegamos de um en-

terro, cremação ... enfim de

um cemitério, imediatamente co-locamos as vestes que lá usamos

no cesto de roupas ‘sujas’; é co-mo se o cemitério, a morte e os que lá estão sepultados contami-

nassem nossas roupas e que, por isso, poderíamos nos contaminar ou aos outros da família, amigos,

vizinhos ... e todos correriam o risco (!) de morrer. Mas, por for-tes e poderosas razões financei-

ras, não costumamos jogar fora os sapatos que pisaram aquele temido chão. Porém, não apenas

por estas vigorosas razões. O ‘perigo’ dos cemitérios acredita-mos que venha do ar ... dos mi-

asmas (vapores, fluidos invisí-veis ...) que – supomos – serem produzidos pelos túmulos e pela

poeira e cinzas das cremações. Sujeitos coletivos, as cidades

também praticam ritos de evita-ção e de esquecimento da morte. Os mais antigos cemitérios de

Salvador (Campo Santo, Quintas, Brotas), Feira de Santana (São Jorge), e de várias outras cida-

des ocidentais, foram construídos numa colina. Mesmo que, nos locais abaixo da montanha, nos-

sos olhos não nos fossem fiéis a ponto de nos fazer olhar para o alto ... Tudo bem ... o importante

é que lá em cima, os ventos (da vida e da saúde) soprariam os miasmas da morte para longe ...

para a cidade dos “pés juntos’. Desviar os olhos do interior de uma funerária é higienizá-los

da imundície ameaçadora da morte. Só que funerárias costu-mam estar mais limpos que mui-

tos supermercados. Limpo é tudo que está no lugar certo e seguro. Avesso do limpo, o sujo é o fora-

da-ordem. (Douglas, Mary – Pu-reza e perigo)

Ocidentais, elegemos a caveira

como símbolo da morte. Não po-deria ser diferente, a caveira e o esqueleto são ossos ‘limpos’ de

tudo o que resulta da ‘sujeira’, do lento processo de decomposi-ção e do apodrecimento bioquí-

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8 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

micos das carnes e das vísceras sob uma nova e suportável face:

a face da higienização e da pure-za do que um dia foi vida. (Douglas, Mary – Pureza e pe-

rigo). Cemitério, palavra que nos

vem do grego, significa lugar

para descansar, repousar. Mas “seres para a morte” que somos - como assevera Sartre – dize-

mos com indisfarçável cinismo filosófico, moral e escapista: “se a morte é descanso, prefiro vi-

ver cansado”. Se cemitério é lu-gar de repouso, prefiro estar vivo – “vivinho da silva” - num hotel,

num resort nababesco vivendo alegremente o carpe diem de um final de semana ensolarado e he-

donista, bebendo os mares entre refeições pantagruélicas. Depois,

a cada cair da tarde e a subir de noite, como um Hamlet bêbado e empanturrado, roto e entre um

arroto e outro, o balbuciar entre-cortado de fatias do monólogo macbethiano (Shakespeare, Willi-

am – Macbeth) “Ser ou não ser”: “morrer, dormir não mais”... Tolices: ali mesmo a

morte – como se praticasse uma apologia do “Poema Sujo” de Ferreira Gullar – habita o lado

escuro daquele país ... e esprei-ta.

Desejar a alguém um bom fi-

nal de semana e, com igual gen-tileza, fino trato e fina estampa, também desejar que essa pessoa

descanse em paz ... pode se transformar num bom motivo pa-ra conflitos e inimizades. Mas

quem não quer descansar em paz num silencioso domingo ... calmo ... sereno ... pássaros can-

tando ... depois de uma semana de muita labuta e pouco dinheiro, aborrecimentos e estresse? Po-

rém, todos concordamos que a violência, a guerra, as poluições, a morte e o barulho estão na

cidade onde o possível divino maravilhoso urbano não esconde sua perigosa face.

Atenção ao dobrar uma esqu-quina/ Uma alegria, atenção

menina/ Você vem, quantos anos você tem? Atenção, pre-cisa ter olhos firmes/ Pra este

ra esta escuridão Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divi-

no maravilhoso/ Atenção pa-ra o refrão/ É preciso estar atento e fo-

rte/ Não temos tempo de te-mer a morte ... (“Divino Maravilhoso” – Cae-

tano Veloso) No cemitério ao menos reina

o descanso, a paz, a concórdia e – ousando parodiar Alberto Caeiro/Fernando Pessoa (O

guardador de rebanhos) – predomina o estar de acordo com o mundo. Se há perigo nas

esquinas de um cemitério, isto se deve à ação dos assaltantes possíveis, ou seja, os vivos ... e

os vivaldinos. “Seres para a morte” ... isso

é tão de difícil aceitar quanto parar de sonhar, de fazer proje-tos e promessas; é tão difícil de

aceitar quanto internalizar a resposta de Sileno para Midas: O que de melhor pode aspirar

um ser humano é não nascer, não ter nascido. Mas, para os que nasceram e estão vivos ain-

da, há uma segunda chance: morrer agora (Nietzsche, Frede-rico – A origem da tragédia).

Agora, - já! – neste instante em que você está lendo este meu texto vazio e cheio de inu-

tilidades. Cidades são obras dos seres

humanos e jamais foram ou po-

derão ser diferentes deles. A gestão (laica ou religiosa) da cidade, desde seus passos inici-

ais, até esses nossos dias vãos, construiu cemitérios ao longe e ao alto ... o mais afastado pos-

sível dos olhos, dos caminhos, dos possíveis abraços e, sobre-tudo, da memória das pessoas.

As irmandades religiosas católi-cas constroem seus cemitérios em lugares discretos ainda que

na propriedade do templo ou convento. Os hospitais – desde então e ao menos até esses ins-

tantes – reservam um lugar es-condido e pouco prestigiado ar-quitetônica e socialmente, para

o depósito do morto e para a sala de “seu” velório. Além de “seres para a morte” , sepulta-

mos os mortos e somos seres apaixonados pelas incertezas da

vida; daí termos horror em lem-brar e saber da certeza da morte – não temos tempo para gastar

nesse tipo de lembrança. Ter al-guma saúde mental é esquecer a morte e lembrar do dia do venci-

mento das contas a pagar no fi-nal do mês.

Dinâmica, a cidade cresce e o

cemitério que era distante e alto fica mais e mais próximo e – face a face - no nível dos olhos da ci-

dade e dos cidadãos: “olhos nos olhos”. A cidade dos vivos frente a frente com a “cidade dos mor-

tos” ... numa única cidade. O ce-mitério sempre esteve lá, tran-quilo, calmo, sereno e autossufi-

ciente. A cidade é que foi che-gando, chegando ... sem ceri-

mônia, e sem ser convidada. Mundo dos mortos, mundo dos

vivos, ambas e inseparáveis am-

bas as cidades se abraçam, o tempo todo ... a toda a hora e todos os dias e noites. (Até por-

que a cidade é uma só, e feita de lembranças e memórias) Abra-çam-se, mas não se apertam.

Apertar os corpos e as mãos principalmente de estranhos é flertar com os riscos de contágio,

de contaminação - no caso entre o ‘sujo’ (o cemitério) e o ‘limpo’ (o contexto urbano do

qual aliás o cemitério faz parte). E – afinal – nos previne e nos ensina um dito popular brasilei-

ro: “quem muito abraça pouco aperta”.

Dinâmica, a cidade cresce pa-

ra cima em espigões que pare-

cem querer reeditar a tragédia

bíblica da Torre de Babel. Porém

se um prédio (não precisa ser

tão alto) é por algum infortúnio

e, para muitos desafortunados,

construído próximo a algum ce-

mitério. Na falta de outro jeito

que ao menos os ‘olhos’ princi-

pais desse prédio (as janelas

mais importantes, as das salas e

dos quartos), que eles não olhem para o cemitério. Se o irremediá-

vel remediado está, que na casa

a janela do sanitário ... de onde pouco se vê, muito se oculta e pouco se é visto ... olhe para a

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9 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

Imagens ecológicas na poesia de Manoel de Barros:

a relevância do ínfimo

Weslley Moreira de Almeida Licenciado em Letras (UEFS)

Joaquim Franco

A profusão de diálogos inter-disciplinares é algo intrínseco à

Literatura. Talvez este seja o campo em que mais se entrela-çam e conversam os diferentes

saberes. Dois campos que se re-lacionam com certa recorrência são a Literatura e a Ecologia. Es-

sa relação interdisciplinar pode ser vista em grandes obras como Macunaíma, de Mário de Andra-

de; Vidas Secas, de Graciliano Ramos e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto,

dentre tantas outras. Na escrita de Manoel de Barros, também. Seu versar é marcadamente eco-

lógico, contemplativo da intera-ção poética entre ambientes e seres. Seus escritos revelam: “Eu

escrevo com o corpo/Poesia não é para se compreender mas para

incorporar/Entender é parede: procure ser uma árvo-re.” (2010, p.178 – Grifo meu).

O poeta comumente retrata em suas poesias seres da natureza que o cercam como seres os

quais ele quer atingir condição, e pelos quais nutre admiração: “A gente é rascunho de pássaro/Não

acabaram de fazer...” (2010, p. 152).

Deste modo, o autor instiga no

leitor um sentimento eco-

poético, fazendo-o imergir nu-ma visão ecológica mais profun-

da. Visão necessária e ululante diante da hostil relação que o ser humano moderno vem ten-

do com o planeta. Como alerta Guattari (2007), urge unirmos as ecologias (ambiental, social e

mental) na busca por socieda-des sustentáveis, pois os modos de vida humanos individuais e

coletivos evoluem em progressi-va deterioração.

A sociedade de consumo

Terra, és o mais bonito dos planetas Tão te maltratando por

dinheiro Tu que és a nave nossa irmã...

Beto Guedes

O comportamento do ser hu-

mano depois da industrialização se modificou. Trouxe a ideia da maquinização dos processos, da

praticidade, do time is money. Ganhamos a identificação de

consumidores, e até um código para essa nossa atual condição. O lugar de gente parece ganhar

percepção secundária nesse nosso sistema.

O poeta mato-grossense, des-locado - como comumente o é o

poeta moderno -, imprime credi-bilidade aos elementos descarta-dos pela sociedade de consumo.

As coisas ínfimas, os trastes, o inútil são aquilo que ajudam na luminosidade do mundo: “As coi-

sas que não levam a nada/ Têm grande importância”. (BARROS, 2010, p.145). Para o poeta é de

imensa relevância a gratuidade do inútil, as coisas imprestáveis têm incomensurável valor. A so-

ciedade moderna precisa desco-brir, então, a virtude da inutilida-de.

Da sacralidade dos seres

Profetas nasciam de uma linguagem

de rãs Manoel de Barros

Manoel - não raramente – ga-rimpa, no ambiente que o cerca, imagens do sagrado. Possuído

pelo pathos do mitopoético, que, como afirma Araujo (2008, p.133), “inaugura a aura dos es-

tados de espanto e de admiração ao nos con-vocar e nos dis-por diante dos ritmos e das intensi-

dades dos fenômenos”, o poeta

temida necrópolis. A merda olha a merda ... e, ‘bola pra frente’, a

vida continua. Temer a morte é uma perda de tempo; afinal, ela é o “caminho de nós todos”.

Cemitérios criam, em seu en-torno, solos que passam de es-quecidos sem valor – antes do

abraço cidade/cemitério - a es-quecidos desvalorizados econo-micamente quando acontece es-

se inevitável enlace. Querer construir e, mais, querer vender um edifício com varandas, salas

e quartos olhando o cemitério – ainda que se trate de um ‘cemitério jardim’, ‘cemitério

parque’ - pode ser uma piada

financeira desconcertante e de “mau gosto” no mundo sisudo

da economia urbana. ‘Cemi-térios jardim’, ‘cemitérios par-que’ ao tentar esconder cruzes

(cemitérios cristãos), túmulos, mausoléus ... nada mais fazem do que mostrá-las exatamente

porque eles ocultam essas ex-pressivas citações da arquitetu-ra funerária.

Mas, sem mágoas e sem pen-samentos depressivos ou suici-das, o cemitério vive a advertir

a cidade, mesmo sem diverti-la: prá você que me esqueceu, aquele abraço (“Aquele Abraço”

– Gilberto Gil).

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10 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

extasia-se com o ínfimo: vaga-lume, pássaro, sapo, formiga,

lata e suas hierofanias. O minús-culo nos seus fenômenos é enti-dade que faz ligação com a divin-

dade: “Todas as coisas apropria-das ao abandono me religam a Deus. / Senhor, eu tenho orgulho

do imprestável!” (BARROS, 2010, p. 342).

Como afirma Roberval Pereira

(2000, p. 30), “a poesia moderna opera um processo de ressacrali-zação”. O retorno desse elemen-

to sacro está ligado à ne-cessidade histórica inadiável da descentralização do lo-

gos. A centralidade da ra-zão fria produz uma vivên-cia contabilista e pragmáti-

ca que mutila as relações eco-humanas. Barros

(2010, p. 342), transgre-dindo essa rota processual vigente, vê milagre na inu-

tilidade das máquinas (pro-duto da razão humana), no imprestável, onde pode de-

sabrochar vida: “Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando chei-

as de areia de formiga e musgo – elas podem um dia mi-lagrar de flores.”

Essa postura do poeta no seu ato letral revela uma relação inti-mista com tudo que se insurge

em vida, dando-lhes condição de sacralidade, assim como o fez Pessoa (2012, p. 11 e 12):

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e o sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda

hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Deslocamento do poeta

Somente depois de teres

deixado a cidade verás a que altura suas torres

se elevam acima das casas

Nietzsche

Deslocamento, como afirma

Aleilton Fonseca (2000), é a pa-

lavra que melhor define a con-

dição do poeta ocidental moder-

no. Assim o é Manoel de Barros

que, através do seu olhar poéti-

co, se coloca à parte para uma

incisiva inserção nas coisas: “O

privilégio insetal de ser uma

borboleta me atraiu. Por certo

eu iria ter uma visão diferente

dos homens e das coi-

sas.” (2010, p. 393).

Deste modo, o poeta se des-

loca à condição de inseto para

ser – paradoxalmente – melhor

partícipe do processo de ressig-

nificação da humanidade e do

mundo. Ele não se limita às vi-

sões míopes e embaçadas pro-

movidas pelos óculos do status

quo, sua íris carrega lágrimas

de poesia insurgente.

Educação ambiental e

Literatura

Para reorganização do espaço

e do respeito do ser humano

com o planeta, se faz necessá-

rio trabalhar os sentidos, a ree-

dução para a sensibilidade e

consciência eco-humana no tra-

to com o meio ambiente, vendo

-o não como bem de consumo,

mas como extensão de nós

mesmos. Segundo Sato & Pas-

sos (2002), deveríamos congre-

gar nossa singularidade no plu-

ral por um projeto de todos, a-

gindo criticamente sobre o

mundo. Essa necessidade é ur-

gente, pois os processos de indi-

vidualismo e massificação homo-

geneizante se alastram de modo

feroz, impactando o planeta,

nosso Oikos.

A Literatura tem como essên-

cia a fruição, mas não se pode

alijar de si seu caráter político

(que está presente em quase to-

dos os atos da vida humana).

Oliveira (2010, p. 43) afirma que

o diálogo entre Educação Ambi-

ental e Literatura pode possibili-

tar uma compreensão mais fértil

sobre as questões ambi-

entais, e quanto estas

questões estão intrinca-

das no caminhar huma-

no. Assim, então, é pos-

sível rever os passos de

fora pelo caminhar de

dentro, por uma poética

que gera sensibilidade e

intervenção cuidante do

mundo.

Sensibilidade poética,

Sustentabilidade

planetária

O lixo produzido pelo

nosso luxo é cada vez

mais (e sempre) uma agressão à

vida. Uma absurdez: não ouvi-

mos os gritos do nosso próprio

absurdo. Por isso, afirma o poeta

Manoel de Barros (2010, p.

215): “[...] o grande luxo de

Bernardo é ser ninguém. [...] É

ser que não conhece ter. Tanto

que inveja não se acopla nele.”.

Bernardo é o alter-ego do escri-

tor, personagem que caminha

contra a maré da normalidade

imposta pelo capital. Que não

limita nem rege sua vida pelos

ditames do consumismo, pois

sua maior ambição é a invisibili-

dade nesse sistema.

Uma das lógicas mais agressi-

vas do modo consumista de ser

é a descartabilidade. Esta prática

de mercado, impulsionada pelo

mundo do marketing, resulta no

lucro de poucos e na degradação

da vida de muitos, nesta casa

chamada Terra. Nesse cenário

de opressão (de seres humanos

em relação a si mesmos, e des-

tes em relação à natureza e seus

Carolina Belmondo

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11 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

trou nas entranhas de nossa sen-sibilidade com a composição de

suas cantigas, em seus tons mais variados, que re-velam as sagas dos povos sertânicos. Cantigas

de xote, baião, xaxado, arrasta-pés, toadas etc. que tra-duzem, com espirituosi-

dade e sutileza, bem co-mo com primor e maes-tria, os sentimentos, os

modos de vida, as folias e celebrações, as labutas e pelejas que movem e

afirmam o cotidiano da vida dos nordestinos. Cantigas que realçam os

repertórios fecundos de nossa identidade e diver-sidade cultural.

Luiz Gonzaga teve a perspicácia de traduzir o

Sertão em suas dimen-sões mais diversificadas acentuando suas caracte-

rísticas agridoces, agrestes e do-ces: suas securas e tristezas, su-as mazelas e sofreres, como

também suas festanças e alegri-as, suas riquezas e bonitezas.

Em sua extraordinária “Asa

Branca”, o velho Lua debulha e verseja a crueldade da seca que tanto assola a gente sertaneja,

mitopoético configurado com a força das estampas e dos dese-

nhos das imagens, com a plasti-cidade e a robustez da poetici-dade de suas letras e canções

que atravessam o âmago dos

sentires e paixões, das crenças e valores primordiais e fundos que compõem as cepas das vi-

das e da cultura dos Sertões. A vastidão do manancial da

produção musical e poética de

Luiz Gonzaga é incontornável. Este sertanejo das quebradas de Exu, em Pernambuco, pene-

Sem anos com Luiz Gonzaga

Miguel Almir Lima de Araújo Professor da UEFS

Em 2012 comemora-se 100 anos de Luiz Gonzaga. Sua pre-

sença entre nós, em nossos ima-ginários, nas searas da música e da cultura nordestina e brasileira,

é tão intensa e expressiva que se traduz em anos sem fim. Por isso, sem anos. Essa

presença é transtempo-ral. Ultrapassa os limites do tempo cronológico.

Atravessa os desvãos do tempo desmedido. Des-cortina o tempo da qua-

lidade dos sentidos que se revelam em sua cria-ção musical e poética.

Sentidos que, portanto, não se reduzem às lógi-cas lineares e mensurá-

veis do tempo cronológi-co, da lógica do calendá-

rio. Suas criações/produções simbólicas se desbordam no tempo

curvo da eternidade, do intangí-vel – o tempo mitopoético.

Assim, além da esfera do tem-

po quantitativo, a presença da imagem mítica de Luiz Gonzaga, de Gonzagão, do velho Lua, pe-

netra nas teias incontornáveis do tempo qualitativo em suas ver-tentes mítica e poética. Tempo

recursos naturais), a poesia de

Manoel de Barros se põe em in-

conformidade, toca-nos em dire-

ção a um movimento contrário a

tudo que traz indignidade à vida,

com um grito poético que ecoa

em prol de um mundo mais sus-

tentável em todas as suas esfe-

ras ecológicas. Sua poesia, por-

tanto, é denúncia, que transvê –

termo usado por ele – e que dá

à nossa existência condição de

voos.

Deste modo então, o olhar po-

ético do escritor Manoel de Bar-

ros sobre as pequenezas da vida

se insurge como possibilidade de

aguçamento do elemento sensí-

vel, revelando uma ligação sine

qua non do humano com sua al-

teridade, na qual estão incluí-

das (e são respeitadas) todas

as formas de vida.

Referências

ARAÚJO, Miguel Almir Lima de.

Os sentidos do educar: suas fruição no fenômeno do educar. Salvador: EDUFBA, 2008.

BARROS, Manoel de. Poesia re-unida. São Paulo, Leya, 2010. FONSECA, Aleilton. O poeta na

metrópole: expulsão e desloca-

mento. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA, Rubens Alves (org.)

Rotas & Imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santa-

na: UEFS, 2000, p. 43-56. GUATTARI, Felix. As três ecolo-

gias. 18 ed. São Paulo, Papirus, 2007.

OLIVEIRA, Maria Elizabete Nasci-mento. A Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poé-

ticos. Dissertação de mestrado. UFMT, 2010.

PEREIRA, Roberval. A unidade primordial da lírica moderna. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA,

Rubens Alves (org.) Rotas & i-magens: literatura e outras via-gens. Feira de Santana: UEFS,

2000, P. 29-42.

PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. A-

venida, Jaguará do Sul, 2012.

Joaquim Franco

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12 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

suas arribações do torrão natal pra outros rincões, as dores que

cravam a vida desse povo em seus tão comuns e intensos ci-clos de estiagens. Em a “Volta da

Asa branca”, Gonzaga revela a intensidade das estações das chuvas, a contenteza dos povos

sertânicos com o vicejar das á-guas esverdecendo a terra e as vidas. Com essas cantigas, ele

realça os opostos complementa-res e interdependentes que per-fazem as vidas sertânicas; que

nos constituem. Gonzagão também tratava

com afinco de sua indumentária

através de adereços e figurinos que se inspiravam nas tradições míticas da cultura sertaneja. No

chapéu que usava com frequên-cia, trazia o símbolo de Lampião,

as proezas do Cangaço como marco da resistência desses po-vos. Nos jaleques e blusões simi-

lares trazia o símbolo do vaquei-ro como personagem mítico que perfaz as sagas cotidianas dos

povos sertânicos, em suas pele-jas pelas brenhas das caatingas espinhosas.

No final de sua travessia no meio de nós, com sua intuição farejadeira e com a fineza de sua

espirituosidade, Gonzagão nos presenteia com a cantiga “Xote ecológico” traduzindo sua indig-

nação diante da perversidade hu-mana mediante atitudes que tan-to desfiguram e degradam o e-

cossistema. Nesta, acentua tam-bém a expressividade da figura emblemática de Chico Mendes

como aguerrido defensor da Eco-logia.

Com o primor de sua sensibili-

dade, de seu espírito irrequieto e inventivo, Luiz Gonzaga engravi-dava suas inspirações para par-

tejar as letras de suas canções nestes confins imensuráveis dos tesouros e do vigor das tradições

culturais dos Sertões, do Nordes-te brasileiro; nas intensidades do viver peregrino, das venturas

bravias e celebrações que mati-zam essa gente sertânica. Fla-grou com perspicácia as sutile-

zas, as proezas, os desalinhos, as veredas tortas, os desafios ingentes das sagas do destinar

Pendurando aspectos dos valores comunais de Sussuarana: o educar

em cordel Cutucando a Onça

Sérgio Ricardo Santos da Silva (Bahialista) Mestrando Educação e Contemporaneidade PPGEduc UNEB

desse povo imbuído de sabedo-rias ancestrais que tanto nos

nutre e encanta. Os vôos das asas brancas, em

suas idas e voltas, com o entoar

de suas cantigas que tocam fun-do nos desvãos de nossas al-mas, continuam e continuarão

ecoando nas veredas dos Ser-

Joaquim Franco

tões do Nordeste, do Brasil e do mundo.A presença do símbolo

mitopoético de Gonzagão, com sua obra imorredoura, descam-ba, em nossos imaginários sertâ-

nicos e mundanejos, pelos flan-cos da eternidade mítica. Sem anos com Luiz Gonzaga!

Começando o pendurar... A personagem principal nas

nossas interações didáticas na Educação é a Literatura de Cor-del. Esta linguagem que pendu-

ra nos seus cordões, narrativas que versam sobre inúmeros as-pectos que compõem as formas

de viver o nosso cotidiano, os diversos momentos históricos do Brasil, as mitologias que re-

gem diversos povos, além de fantasias compostas por perso-nagens que marcaram a história

da Humanidade. Iniciar uma reflexão a partir

de um novo “olhar Arte-

educativo” que contemple os saberes da riqueza poética da Literatura de Cordel, nos remete

ao mundo simbólico da poética.

É esta que rege muitas elabora-ções de mundo, estéticas e for-

ças pulsantes do ser mais ser. E buscar entender seu universo é condição mais que indispensável,

pois “a dinâmica de expansão existencial das diversas contem-poraneidades” (LUZ, 1999. p 1)

configura força, pulsão de agre-gação, sensibilidade e respeito à alteridade.

Faz-se forte e de grande im-portância a construção de um diálogo a partir dos entre-lugares

e dos inter-textos que fazem par-te da nossa existência, e que são negados pelas normatizações

etnocêntricas enfatizadas no coti-diano das escolas e outros espa-ços educativos. Sendo assim,

pretendeu-se desencadear pro-

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13 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

cessos investigativos que buscas-sem compreender o educar finca-

do no princípio inaugural da co-m u n a l i d a d e S u s s u a r a n a

(Salvador), tendo a palavra como

instrumento de encantamento

pendurada na Literatura de Cor-

del. Esta apresentou-se durante nossas observações e intera-

ções didáticas como um corpo versado educativo que constrói (re)elaborações de valores co-

munais através da palavra pó-ética.

Nestes espaços, na maioria das vezes, o Cordel quando che-

ga já encontra a si mesmo, no imaginário coletivo, reafirmando diversos princípios que regem

as suas redes de aliança. Pode-mos ver isso nos recitais que participamos nas ações artístico

-culturais que os grupos comu-nitários realizam, nos quais reci-tamos cordéis que emocionam

as pessoas. Muitas delas vêm até nós para relatar o quanto foi bom viajar mais uma vez

para o Sertão. Por que anunciamos que pen-

duramos aspectos de valores

comunais de Sussuarana no Cordel? Porque sua forma re-criadora viaja pelo mundo afo-

ra, não se prende a apenas uma finalidade. A Literatura de

Cordel carrega em si o espírito aventureiro, arteiro, que vem de lá do Sertão, cavalgando

para as grandes capitais, che-gando de mansinho.

Como esses grãos do existir vieram parar no

meu pilão?

A preocupação com a Litera-

tura de Cordel como instru-

mento de encantamento, re-bento de novas elaborações, visões de mundo e de afirma-

ção dos processos civilizatórios africanos e ameríndios das di-versas Comunalidades que inte-

ragem com os “versos cordelís-ticos”, se fez emergente após um contato mais direto com es-

ta a partir de um trabalho artís-tico - pedagógico desenvolvido pelo CRIA – Centro de Referên-

cia Integral de Adolescente – no ano de 2002, em uma oficina artística desenvolvida pelo nos-

so saudoso Mestre poeta Zeca de Magalhães, que proporcionou aos aprendizes um exercício po-

ético de trabalho intuitivo e in-telectivo do poder da palavra.

É nesse contexto de Educação

para Cidadania, que surge o grupo comunitário que desen-volvia um trabalho arte-

educativo com a Literatura de Cordel e o Hip-Hop. Este grupo é o Rap´ensando Sussuarana.

A “Dinâmica do Pilão”, refe-rência metodológica que carac-

teriza as iniciativas do PRODE-SE (Programa Descolonização e Educação/UNEB) é um dos ca-

nais de linguagens que utiliza-mos para introduzir a Literatura de Cordel como um corpo com-

plexo de linguagens versadas, educativas, que constroem e (re)elaboram valores comunais.

O pilão nas nossas aborda-gens e interações pedagógicas com nossas Comunalidades é

utilizado como uma metáfora que (re)significa os valores que constituem o universo mítico,

ancestral e iniciático que rege a pulsão comunal advinda dos elementos culturais, africano e

ameríndio, pois o pilão nessas comunidades tem a função de

transformar os grãos - que serão consumidos e compartilhados - em alimento para todos na co-

munidade. Assim pode ser o Cor-del, um entrelaçamento da lin-guagem poética literária na co-

munidade escolar que busca, a-través de dinâmicas lúdico-estéticas, (re)animar o viver

dentro da instituição e fortalecer o poder de encantamento que a palavra poética tem, comparti-

lhando saberes. Comunalidades são as redes

de alianças, a solidariedade inte-

rativa presentes nos vínculos so-cietais, (...) desenvolvidas numa dimensão espaço-temporal na

qual são reforçados os vínculos de sociabilidade e promovida a co-existência entre as culturas

em torno (LUZ, 1999, p. 64). As-sim, pretendemos desencadear uma reflexão acerca da palavra

poética como pilão que prepara uma nova forma de anunciar

novas configurações de mundo dos educandos, que são nega-das por este mundo centrado no

conhecimento e palavra norma-tizados. É hora de rebentar no-vos valores que transbordem do

pulsar dessas comunalidades. No espaço constituinte dessas

Comunalidades que se configu-

ram no existir dos educandos é

que se “rebenta” a arkhé, o princípio inaugural que vem pi-lando através do nosso versar

na Educação, o grão do existir, além de estabelecer sentido, pulsão comunal: a palavra en-

cantada que tece as redes de alianças, laços ancestrais de a-prendizados mútuos que confi-

guram saberes comuns. Esta palavra criativa, elo de ligação dos nossos educandos com seus

princípios e valores comunais, no nosso trabalho artístico pe-dagógico ganha corpo na Litera-

tura de Cordel – como poderá ser visto durante esta reflexão aonde nossos educandos recri-

am novas formas de anunciar e afirmar seu continuum civiliza-tório, expressando através da

oralidade e do seu registro, o contexto político e a riqueza do imaginário/simbólico.

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14 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

corporada a um estado de refle-

xão extraordinário, revelando

assim em novas (re)elaborações

a riqueza poética e fantástica

dessa literatura genuinamente

brasileira assim em novas (re)

elaborações a riqueza poética e

fantástica dessa literatura genui-

namente brasileira.

Referências

ALMEIDA, Márcio Nery de. Viver

a comunalidade na escola: Para

além das habilidades e compe-

tências do Currículo Escolar. Dis-

sertação de Mestrado apresenta-

da ao Programa de Pós-

Graduação em Educação e Con-

temporaneidade da Universidade

do Estado da Bahia UNEB; Sal-

vador, 2007.

FARIAS, Carlos Aldemir. Alfabe-

tos da Alma: histórias da tradi-

ção na escola. Porto Alegre: Suli-

na, 2006.

LUZ, Narcimária Correia

do Patrocínio. Awasoju:

dinâmica da expansão e-

xistencial das diversas

contemporaneidades. Re-

vista da FAEEBA, Salva-

dor, UNEB, nº12, p.45-

74, 1999.

SILVA, Sérgio Ricardo

Santos da. Cordel: Um

corpo versado espetacu-

lar, cavalgando do sertão

para a Sussuarana. A Li-

teratura de Cordel na for-

mação da Cidadania de

jovens da comunidade

Sussuarana. In: SEMEN-

TES, Caderno de Pesqui-

sa, v.VI, p. 127-135. Edi-

tora UNEB, Salvador,

2005.

ASSARÉ, Patativa. Nordestino

sim, nordestinado não. In: Ispi-

nho e Fulô, 3ª Ed. Fortaleza-CE,

2002.

VASCONCELOS, Cláudia Pereira.

SER-TÃO BAIANO: o lugar da

sertanidade na configuração da

identidade baiana. Salvador, E-

dufba, 2011.

VIANA, Arievaldo Lima. Acorda

Cordel na sala de aula. Fortale-

za: Tupinanquim Editora/ Quei-

ma Bucha. 2006.

dia a dia, mostrando que ele só espera que possam expor seu

corpo, com uma intencionalida-de educativa, revelando essa essência educativa.

Considerações “quase” fi-

nais: anunciação para um

tempo poético pela ética da coexistência.

O cordel é mais uma tentativa de veicular conteúdos impres-cindíveis para a formação da

cidadania e se apresenta como um mediador entre a comunida-de e a escola, sendo algo inova-

dor, quando não deveria ser, pois essa manifestação é carac-terística do povo nordestino e

teria que fazer parte do cotidia-no da vida escolar e da comuni-

dade.

Falta ao sistema de ensino a sensibilidade para divulgá-lo e encará-lo como um recurso pe-

dagógico permanente no desen-volvimento do currículo escolar e do diálogo com a comunidade.

Comunidade esta que traz ri-quezas nos seus conhecimentos que, por essência, educam por

si só. Para o educador é necessário,

não só trazer o cordel para a

sala de aula. É necessário trazê-lo numa perspectiva espetacu-lar, onde essa poesia seja incor-

Um grupo de mobilização social que nasceu em 2003 com a pro-

posta de articular grupos artísti-cos culturais, associações comu-nitárias e escolas dentro do bair-

ro de Sussuarana, em Salvador e na Bahia. Assim, estes se confi-guram uma reinvenção das tradi-

ções que o processo sóciocogniti-vo-cultural de perpetuação da nossa existência simbólica se

mantém (FARIAS, 2006). Sussuarana é um bairro que,

como muitos outros periféricos

de Salvador, cresceu perpetuan-do essa existência simbólica, com a ocupação de retirantes

que deixaram seus interiores nordestinos, para tentar uma no-va vida na capital.

O cordel pode ser um mecanis-mo, instrumento acionador de

diversas abordagens didáticas, como pode ser o seu fruto. Assim foi o Cordel das Cri-onças, por

exemplo. Fruto das interações de cunho didático pedagógico das crianças de escolas

municipais de Sussua-rana, territorialidade da periferia soteropoli-

tana, o cordel das Cri-onças contou em verso as narrativas orais pró-

prias da tradição de sua comunalidade.

Zé da Onça inventou

De caçar uma onça

parda

Logo, logo a matou

Isso não teve muita

graça

Mas logo se originou

Do roçado uma praça.

Minha Sussuarana

Você é o meu bem

querer

Não me canso de você

Mora no meu coração

Embora eu more em

você

Desse tempo de emoção

Eu nunca vou me esquecer.

E é justamente nesse Corpo Espetacular que o cordel revela a riqueza da arte no cotidiano, no

Lizandra

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15 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

poemas

Joaquim Franco

Sem ter chuva no Sertão

Sem ter chuva no sertão Nas épocas de trovoadas

Fica o sertanejo triste Sem samba sem farinhada Como é que a gente vive

Sem ter queijo nem coalhada.

Pois se ver a sertaneja

Que é a flor do sertão Trapilha e mal vestida Em vestes de algodão

Esse é o maior desgosto Sem ter chuva no sertão

O pai de família triste Se acorda desanimado

Sai cortando xique-xique

Prá dá de comer ao gado Tudo por falta de chuva Se torna desmatelado.

Se um menino pede pão Outro chora por banana

E o pai sentado triste Lá na porta Chupana

Tudo por falta de chuva

Vive triste a raça humana.

Gabriel Pereira da Silva

Feira de Santana-Ba

Bosques de flor de canela no agreste

Flor com cheiro de canela, Do agreste pode ser Gabriela,

Tieta cansada de guerra,

Tereza batista dois maridos enterra.

Somos nós,trançadas nesse

nós... Se Nacib fosse meio Vadinho Ou Ricardo mais ousado um

pouquinho... Se São Jorge Guerreiro

Passasse a ser Jorge Casamen-

teiro Talvez Tieta seria mais feliz

Flor – dona do seu próprio nariz

Se a culinária baiana fosse me-nos gostosa,

a mulher amadiana menos ape-titosa

a literatura menos dadivosa

a vida real poderia ser mais formosa...

Mas a flor,o agreste,a canela,a

guerra,a ficção... Ah,a ficção! São os bosques do

meu coração

Maria Angélica Rocha

Fernandes

Caculé-Ba

Carolina Belmondo

Pencas de sonhos

De longe vejo um

poeta escrevendo.

O que será que ele escreve?

Penso que seja

pencas de sonhos.

Em meio a tanta

gente que ele vê.

Deve escrever;

Haja espaço e linhas

Para desvendar tantos

pensamentos.

Edivânia Santos de Carvalho

Teofilândia-Ba

nas vísceras e

nas estrelas

cada um recolhe

a esperança

que tempera a vida

dos que ainda não

nasceram

só habitam a carne

no intervalo do existir

cada homem é um

e o mesmo

boca de muitos

beijos

cravados na carne

suada

alumiada de memórias

severinas

a insistir

A LUZ LEMBRADA

CURA A SOMBRA

Líris

Indaiatuba-SP

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16 Maio a julho de 2012 FUXICO Nº 23

Carolina Belmondo

Orisa Gomes

Não te quero acordar

Dorme mais um bocadinho Quero-te apenas beijar

Muito, muito de mansinho.

Quem me dera ter-te aqui

Dar-te os mimos que mereces Tenho ternura por ti

Meu bem, nunca me esqueces.

As saudades o que são?

Trazem-me a tua lembrança. São o querer dum coração

Que vive cheio de esperança.

José Antonio

Portugal

Acaso

de repente me vi

diante de mim

de uma sombra um espelho

uma fumaça

de repente

sou eu lampejo

fogo ou nuvem

de repente um pássaro

uma pluma ave sangria despida

num firmamento

árido

Henrique Magalhães Feira de Santana-BA

Desejo

Viajar é como sentir as flores brotarem na primavera

apenas observar sem ser observado

é passear por onde nunca

estive é ser um rio de águas calmas e

correntes numa aventura de penetrar em

uma floresta densa e bela

é como sentir a brisa nas cur-vas de uma serra,

ver as lavas de um vulcão,

incandescente, fervente é pertencer a esse natural

habitat

é sentir teu corpo, lindo, chei-roso, gostoso...

como num majestoso gesto

começo a sonhar começo a viver começo a viajar

com esse seu olhar posso até me imaginar

nessa floresta me embrenhar

sentir a natureza decifrar

delirar de satisfação

para que eu possa, outras vezes

em teu corpo sentir

o desejo do prazer de viajar.

Leonardo Sacramento

Feira de Santana-BA

nada do depois partido

espalhado nas vielas

decorando muros pichados

entre a pedra e a vela

crucificados

o menino acende o delírio

esfumaça o homem

outros passam apressados.

Líris Indaiatuba-SP