Afro-descendência em cadernos negros e jornal do MNU

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Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU Florentina da Silva Souza Série PPCor

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Afro-descendênciaem Cadernos Negros

e Jornal do MNU

Florentina da Silva Souza

Afro-descendência

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JornaldoM

NU

–Florentina

daSilva

Souza

A escolha de uma produção textual que se define como

“negra”, como objeto de estudo, evidencia a opção por lidar

mais detidamente com uma outra parte da minha formação

identitária, o afro, marcado pela cor da pele e pela necessi-

dade de tornar patente a impossibilidade da transparência.

Os textos de Sociologia, História, Antropologia, Estudos

Culturais, Estudos Pós-coloniais e Black Studies se entre-

cruzam com debates, reflexões, aulas, seminários, leituras, dis-

cursos vários, dos quais me apropriei, atribuindo-lhes valores

diferenciados – uma apropriação que faz adaptações, realça o

que se configura pertinente para o estudo dos periódicos,

explorando as possibilidades de remoldar e trair ou aban-

donar idéias e conceitos que não s enquadrem nas nuances

por mim escolhidas.

Este livro é resultado de umapesquisa qua investigou o processode invenção de um discurso de re-presentação e de produção de iden-tidades afro-brasileiras em duas pub-licações alternativas ligadas ao movi-mento negro no Brasil: Os cadernosnegros e o jornal do movimento ne-gro unificado.

A autora divide o trabalho emtrês partes: na primeira, discute a pos-sibilidade de proposição de um con-ceito de literatura afro-brasileira ouuma “literatura negra” no Brasil. E,também, questiona a viabilidade deum conceito de identidade culturalafro-brasileira.

Em seguida, nas duas últimaspartes, sugere a leitura dos “traços”que os discursos culturais dos CN edo Jornal do MNU, autodefinidoscomo negros, vêm, há algum tempo,inscrevendo na cultura brasileira.

Em todos os momentos do trabal-ho, a autora busca estabelecer umdiálogo entre os textos dos periódicose os estudos sobre a cultura. Temascomo identidade, tradição cultural,racismo e discriminação racial, diáspo-ra africana, movimentos negros,desigualdades sociais, desemprego emarginalidade são abordados nos poe-mas e contos, artigos e entrevistaspublicados nos periódicos e levam otrabalho a discutí-los na análise dasversões apresentadas pelos periódicose a compará-las com outras versõesque circulam no campo das idéias con-temporâneas.

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Identidades

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jovens negros na universi-

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NNiillmmaa LLiinnoo GGoommeess ee

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brasileiras – Socialização

entre pares e preconceito

RRiittaa ddee CCáássssiiaa FFaazzzzii

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Portugal – Antropologia,

multiculturalidade e

educaçãoNNeeuussaa MMaarrii MMeennddeess ddee GGuussmmããoo

• Rediscutindo a mestiçagem

no Brasil – Identidade

nacional vveerrssuuss Identidade

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www.autenticaeditora.com.br0800 2831322 S

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A AUTORA

Florentina Souza, natural de Sal -vador, Bahia, professora Adjunta de Lite -ratura Brasileira da UFBA.

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e Jornal do MNU

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Florentina da Silva Souza

Coleção Cultura Negra e Identidades

Série PPCor

Afro-descendênciaem Cadernos Negros

e Jornal do MNU

1ª edição1ª reimpressão

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Copyright © 2005 by Florentina da Silva Souza

2006

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhumaparte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meiosmecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem aautorização prévia da editora.

Autêntica Editora

Belo HorizonteRua Aimorés, 981, 8º andar – Funcionários30140-071 – Belo Horizonte – MGTel: (55 31) 3222 6819 – TELEVENDAS: 0800 2831322www.autenticaeditora.com.bre-mail: [email protected]

São PauloRua Visconde de Ouro Preto, 227 – Consolação01.303.600 – São Paulo/SP – Tel.: (55 11) 3151 2272

S729aSouza, Florentina da Silva

Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU/Florentina da Silva Souza. – 1 ed., 1 reimp. – Belo Horizon-te: Autêntica, 2006.

272p. (Cultura negra e identidades)

ISBN 85-7526-168-1

1.Cultura afro-brasileira. I.Título. II.Série.

CDU 39(81=6)

Coordenação do PPCor: Pablo Gentili, Renato Emerson dos Santos,Raquel César, Renato Ferreira e Osmundo Pinho

Coordenação do Laboratório de Políticas Públicas: Emir Sader

Coordenadora da coleção Cultura Negra e Identidades: Nilma Lino Gomes

Conselho Editorial: Marta Araujo (Universidade de Coimbra); Petronilha

Beatriz Gonçalves e Silva (UFSCAR); Renato Emerson dos Santos (UERJ);Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MINAS); Kabengele Munanga (USP).

Projeto gráfico da capa: Jairo Alvarenga Fonseca

Editoração eletrônica: Waldênia Alvarenga Santos Ataíde

Revisão: Rodrigo Pires Paula

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Para meus pais, Manoel e Deonice,pelo muito que fizeram e fazem.

Para Adilton, Hamilton, Romilson, Romilton e Luã,pela alegre convivência e pela carinhosa ajuda

nos bons e maus momentos.Para Florita, Bia,Gabriel eBruno que chegaram depois.

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O presente livro resulta da minha tese de doutorado defendi-da na Universidade Federal de Minas Gerais, no ano de 2000. Oespaço de tempo compreendido entre a defesa e a publicação, tal-vez, exigisse uma versão revista e ampliada. Decido, entretanto,publicar com alguns cortes e algumas revisões apenas, mantendo otexto que produzi àquela altura, acreditando que os acréscimos po-dem e provavelmente já estão sendo realizados em outros textosque tenho escrito.

É impossível listar o nome de todos a quem eu devo agradecerpela contribuição para que conseguisse transformar meu projeto emtese e em livro. Ciente disto, escolhi alguns nomes que foram tãoimportantes quanto muitos dos que estão em outra lista: Profa. Dra.Eneida Maria de Souza, pela competente orientação, pelas váriasleituras e sugestões e, principalmente, pela amizade; Profa. Dra.Eneida Leal Cunha, pelo incentivo, leituras e, sobretudo, paciência.Prof. David Murray, pela valiosa orientação e pela carinhosa acolhi-da; os colegas Bruno, Cândida e José Eduardo, pela valiosa amiza-de e companheirismo; Fernando, pela tranqüila colaboração artísti-ca; Nazareth Mota, pela paciente e cuidadosa revisão, meus pais,Manoel e Deonice, pelo amor, carinho e incentivo constantes; NiloRosa, companheiro de muitas viagens, pelo muito que partilhamos.Agradeço também aos escritores e, principalmente, aos organizado-res dos Cadernos Negros e do Jornal do MNU, sem o trabalho eempenho deles, não teríamos o registro de vozes afro-brasileiras

AGRADECIMENTOS

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que pensaram, discutiram e fizeram intervenções no prestigiado cam-po da produção escrita, rasurando e suplementando os discursoscanônicos que, durante anos, apresentaram unicamente a sua ver-são da história da literatura e da cultura no Brasil. Agradeço ainda àCAPES, pela bolsa, durante todo o período do curso.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................

PARTE I – UMA TEXTUALIDADE AFRO-BRASILEIRA...................

As vozes e seu tempo.........................................................................

Texto, cor e histórias...........................................................................

Linhagens.............................................................................................

PARTE II – A ÁSPERA ARTE...........................................................

Os Cadernos Negros..........................................................................

Os prefácios-manifestos.....................................................................

Diálogos com a tradição.....................................................................

A cor e a pele.......................................................................................

Momentos de celebração...................................................................

Trânsitos da diáspora:Bahia [(África-Europa) e América]....................................................

De rosários e de contas......................................................................

Terreiro que fez batuque e dança a guerra.......................................

PARTE III – A PALAVRA CRÍTICA....................................................

Nêgo: palavras da Bahia.....................................................................

Cultura e indústria cultural.................................................................

O Jornal Nacional do Movimento Negro Unificado:política e discussão identitária...........................................................

Deslocando o silêncio........................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................

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INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

O esboço de um projeto de estudo dos discursos produzidospor autores negros no Brasil começou a ser gerado quando da eclo-são, na mídia e nos meios institucionais, de debates relativos às co-memorações do centenário da abolição. Passei a colecionar folhetos,artigos e ensaios sobre o tema do negro no Brasil e a observar dife-rentes aspectos de seus enunciados. Quando surgiram as condiçõespara fazer o doutorado, o projeto já estava mais ou menos delineadoe intentava analisar revistas e jornais negros que circularam na déca-da de oitenta. A formalização do projeto levou-me a reduzir o corpusde análise a dois periódicos publicados durante as últimas décadasdo século passado, os Cadernos Negros e o Jornal do MovimentoNegro Unificado (Jornal do MNU).

Esses periódicos, que constituem o foco desta investigação,ao lado de outros como Maioria Falante e Jornegro, ilustram, demodo exemplar, as estratégias empreendidas pelos negros brasileirospara produzir e divulgar um discurso identitário que almeja interferirna estrutura e no exercício do poder político-cultural. Eles documen-tam o discurso de uma geração de escritores negros, nascidos, emsua maioria, por volta dos anos de 1950 e composta de estudantesque militaram ou eram próximos aos partidos e aos movimentos deesquerda e de entidades negras, no fim da década de setenta. Desdeentão, os escritores organizam-se com o objetivo de tornarem audí-veis suas vozes de crítica e de protesto, contra os modelos de repre-sentação e de tessitura das relações raciais no Brasil. Os textos,

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literários ou não, são compostos de fragmentos da vivência e dascontradições decorrentes da ambivalência de ser, simultaneamente,participante e excluído, pertencente e não ao país. Além disso, reafir-mam a diferença étnico-cultural e apostam na possibilidade de o dis-curso identitário afro-brasileiro gerar tensões que contribuam para aemancipação do grupo étnico.

A pesquisa que resultou neste livro tem por objetivo examinaro processo de invenção de um discurso de representação e de produ-ção de identidades afro-brasileiras proposto pelas duas citadaspublicações alternativas ligadas ao movimento negro no Brasil. OsCadernos Negros divulgam contos e poemas de temática variada,majoritariamente relacionada à vida, tradição e cultura dos afro-des-cendentes no Brasil. O Jornal do MNU apresenta um conjunto detextos ligados à discussão das formas e possibilidades de atuaçãopolítica de negros e mestiços na vida pública, nas entidades negras enos partidos políticos.

Os textos do periódico literário inovam na proposição de ima-gens que desestabilizam os estereótipos negativos dos afro-descen-dentes e na explicitação do desejo de emancipá-los, por meio da con-cretização de mudanças na ordem das representações e dos lugaressociais, um tema quase ausente na produção literária brasileira insti-tuída. Inovam, ainda, na formação de um público leitor, majoritaria-mente afro-brasileiro, que é estimulado a refletir sobre seus lugares epapéis na vida do país. Como toda produção engendrada na pressãodo embate político e cultural com as tradições instituídas, os textosdos Cadernos Negros apresentam-se regidos por uma lógica queprivilegia a comunicabilidade, em detrimento de uma lógica da experi-mentação. No intuito de ampliar o universo de leitores e simpatizan-tes, os escritores e os responsáveis pela edição usam, preferencial-mente, uma linguagem despojada de rebuscamento, que faz darepetição de imagens e de propostas um recurso de grande eficácia.

As publicações foram escolhidas como objeto de estudo, ten-do em vista, inicialmente, o seu longo período de circulação continu-ada, aliado ao fato de contarem com a participação de escritores devárias cidades brasileiras e, ainda, por circularem em vários estados.Por outro lado, como documentos verbais, ambos os periódicos via-bilizam a criação de um espaço público para a expressão de um grupo

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INTRODUÇÃO

excluído, silenciado e tornado invisível nos setores privilegiados dasociedade brasileira e propõem-se a contribuir para o despertar da“consciência crítica” de um grande número de afro-descendentes,nem sempre atentos às ambigüidades perversas do cordial racismobrasileiro. Os autores assumem, assim, uma função pedagógica e amissão político-cultural de alertar e unir os leitores para avaliação dolugar étnico de onde falam os grupos que constroem ou reelabo-ram os discursos nacionais – função que não poderá ficar imune aalguma perspectiva emancipatória herdada do iluminismo, acredi-to. Junte-se aos aspectos destacados o fato de o Jornal do MNUser “herdeiro” de uma escrita de reivindicação, que se filia a umatradição da Imprensa Negra a qual, desde o início do século XX,empenha-se em discutir os mecanismos de inserção do negro navida do país. Como afro-brasileiros, os escritores propõem-se afalar de seu lugar étnico-cultural e, a partir dele, sugerem modelosde análise da cultura africana e das relações raciais no Brasil. En-quanto periódico literário, os CN filiam-se a uma tradição de litera-tura, cujas preocupações mais explícitas residem na discussão deuma tema considerado “incômodo” ou tabu para os vários setoresletrados dessa sociedade, historicamente interessada em escamo-tear suas heranças culturais mestiças. Retomam também uma ou-tra tradição de escrita política, persuasiva e interessada na arregi-mentação de consciências e ações em prol de intervençõescorretivas no quadro social e político do Brasil.

As produções textuais em foco começam a ser publicadas em1978 e 1981, praticamente no período definido por Silviano Santiagocomo “o momento histórico de transição do século XX para o seu‘fim’”. Compõem, assim, o período que, de acordo com o escritorcitado, “se define pelo luto dos que saem, apoiados pelos compa-nheiros de luta e pela lembrança dos fatos políticos recentes, e, aomesmo tempo, pela audácia da nova geração que entra arrombando aporta como impotentes e desmemoriados radicais da atualidade”.1

Situam-se, inicialmente, os textos, em um momento em que as discus-sões identitárias se voltam para a necessidade de fincar raízes e esta-belecer fronteiras rigorosas; no entanto, os diálogos e trocas que o

1 SANTIAGO, 1998. p.11-12.

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movimento negro estabelecerá com os partidos de esquerda e com omarxismo, e as influências do pensamento contemporâneo propicia-rão, a partir da década de 90, uma compreensão da identidade comocategoria móvel, dual, construída no interior da vida cultural. Sinto-mático dessa compreensão é o acréscimo do subtítulo “Contos/poe-mas afro-brasileiros” aos exemplares dos CN, a partir de 1995.

Os periódicos compõem, ainda, o que denomino, neste traba-lho, de “movimento negro” no Brasil, expressão que não se refereespecificamente a uma entidade ou grupo, mas que, segundo explica-ção do Jornal do MNU, compreende

[...] o conjunto de iniciativas de resistência e de produção

cultural e de ação política explícita de combate ao racismo

que se manifesta por via de uma multiplicidade de organiza-

ção em diferentes instâncias de atuação, com diferentes lin-

guagens, por via de uma multiplicidade de organização espa-

lhadas pelo país.Trata-se, de fato, de um mosaico que tenta sustentar suaidentidade no propósito comum de posicionar-se contra oracismo.2

Diversificado, necessário e produtivo para a construção de identi-dades, os movimentos negros no Brasil têm-se mobilizado para a realiza-ção de rituais de afirmação como celebração de datas, resgate de aconte-cimentos históricos, releitura e organização de arquivos que contestam apretendida homogeneidade das histórias registradas e resgatadas pelamemória cultural instituída, a promoção de atos públicos de protesto e dedenúncia com vistas a interferir na base de construção da memória, nadisposição de forças políticas da sociedade e a intervir no desenho daauto-imagem do afro-brasileiro. Como produções da margem e da dife-rença, os textos literários em apreço tendem a ser desvalorizados pelasleituras empreendidas, a partir de uma tradição estética e erudita ociden-tal, por aqueles olhos e instrumentos de análise forjados no contextopolítico, estético e cultural da alta modernidade, que selecionou asformas e temas do “bom gosto” e do “bom tom”.

2 Documento do Primeiro Encontro Nacional de Entidades Negras, apud Jornaldo MNU, n. 18. p. 6.

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INTRODUÇÃO

É dado inconteste que as formas, técnicas e temas, autores etextos indicados como melhores/piores dependem das opções de gostoe critérios estabelecidos pela citada tradição estética à qual se atribuia função de eleger incluídos e excluídos do cânone. As duas últimasdécadas do século XX têm insistentemente proposto alterações e“correções” ao sistema de representação e valor instituídos, sugerin-do a participação da alteridade na construção desses valores/repre-sentações e recusando as propostas de um cânone único e universal.As sugestões reivindicatórias dissonantemente efetivadas pelos gru-pos minoritários encontram resistências por parte da crítica institucio-nal que, muitas vezes, não consegue entender a pertinência dessasdemandas – resistências que podem ser explicadas por vários fatores.

Primeiramente, vale destacar que a formação intelectual e pro-fissional dos membros do universo letrado pautou-se sob rigorosaseleção de autores, temas, experiências que privilegiam o componen-te elevado, sublime e atemporal e as grandes paixões e questões dahumanidade. A vida cotidiana, seus problemas e dificuldades, o ho-mem e a linguagem comuns, o popular, em contrapartida, foram, nessecontexto, analisados como o componente inferior, o baixo – represen-tantes do desprestigiado e carentes de qualidade estética. Concomi-tantemente, a contestação do status quo, do cânone e seus valoressedimentados e ratificados por instituições e práticas acadêmicastambém contribui para a rejeição das práticas discursivas reivindica-tórias. Assim, a utilização de temas circunscritos à esfera do baixo,não-poético e efêmero, juntamente com a falta de investimentos naexperimentação e sofisticação da linguagem, põem essas práticas tex-tuais no limbo das reflexões acadêmicas.

A inscrição dessa investigação em uma linha de pesquisa quepropõe o registro e análise de momentos diversos da História e daMemória Cultural e dialoga com os Estudos Culturais, a LiteraturaComparada, a História, a Antropologia e a Sociologia, propicia quetais textos sejam analisados sob outra perspectiva. A História, nassuas versões mais contemporâneas, tem procurado evidenciar o pon-to de vista dos grupos marginalizados e suas participações na vida enos fatos sociais. Este trabalho contribui para a ordenação de umahistória e de uma memória dos empreendimentos desenvolvidos porum grupo minoritário nas relações de poder no Brasil, com vistas aalterar as políticas de representação e de organização de poder.

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Já os Estudos Culturais, aspirando “constituir ‘um bloco históri-co’”3 composto de vários grupos sociais, configura-se como uma in-tervenção crítica que promove a desierarquização dos objetos cultu-rais e insiste na necessidade de reverterem-se conceitos e formas. Estecaráter político da “pós-disciplina”, para ainda ficar com Jameson, abreperspectivas para que grupos minoritários4 possam representar-se nosvários domínios socioculturais. O valor dos objetos culturais e estéti-cos deverá ser conferido de acordo com os interesses, lugares e inter-pretações dos diversos receptores aos quais eles se destinam. O fatode os chamados grupos minoritários desejarem participar dos centrosde significação e valor como legítimos selecionadores dos seus obje-tos culturais não implica, entretanto, a inexistência de critérios valora-tivos. Esses critérios sempre existirão, e apenas serão fundamentadosem outras bases que não as ocidentais instituídas.

O trabalho de pesquisa iniciou-se com a busca dos primeirosnúmeros dos CN e do Jornal, já que eu só possuía os números publi-cados a partir de 1988. Comecei a procurar, junto aos arquivos dasentidades e aos de membros do movimento negro, os números maisantigos dos periódicos, pois as bibliotecas e arquivos públicos nãodispõem desse material. De posse de aproximadamente vinte númerosde cada periódico, estabeleci como meta inicial a identificação e poste-rior análise das principais idéias e objetivos dos textos, com o fim dedescobrir/construir uma sintaxe de leitura dos mesmos e, principalmen-te, acompanhar, mapear e avaliar o processo de elaboração de um perfilidentitário afro-brasileiro. Foram selecionados os temas e os autoresrecorrentes, as propostas mais enfatizadas e os escritores mais citadospara entender os mecanismos teóricos e metodológicos utilizados pe-los editores e escritores para construírem as bases de sustentação dosseus discursos. À medida que ia me detendo na leitura, constatava queos discursos assumiam um tom político-pedagógico, o qual enfatizavaa necessidade de ser produzido e divulgado um discurso emancipa-tório, a partir da invenção de uma memória cultural afro-brasileira –

3 JAMESON, 1994. p. 11.4 A expressão “grupo minoritário” é utilizada no presente trabalho tendo em

vista, sempre, a qualidade da participação do grupo na economia das relaçõesde poder e, nunca, o aspecto quantitativo.

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INTRODUÇÃO

objetivo insistentemente reiterado nos textos editoriais do Jornal enos prefácios e introduções dos CN.

De início, soube que Correia Leite, Oswaldo Camargo, MyriamFerrara, para citar alguns, já haviam tentado, antes, fixar lugares e per-sonagens da memória de uma produção textual afro-brasileira. Elesregistram a importância da Imprensa Negra5 no panorama cultural deSão Paulo e Rio de Janeiro, e, mais especificamente, os empreendimen-tos efetivados pelos afro-descendentes para inserir seus discursos nouniverso sociocultural brasileiro durante todo o século XX.

No percurso percebi, ainda, que os debates e as propostasapresentados pelos grupos negros de Salvador constituíam uma fa-ceta do movimento geral de estudantes e trabalhadores negros dediversos estados do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas eRio Grande do Sul, nomeadamente nas capitais. Tais indivíduos en-contravam-se congregados em entidades diversas, empenhadas naconstrução de auto-imagem e auto-estima positivas dos afro-descen-dentes, e também no resgate de uma tradição cultural e uma históriaque fundamentassem essa construção. Os participantes liam textosde sua própria autoria, discutiam textos de autores brasileiros, tradu-ziam e reproduziam ensaios e poemas de autores estrangeiros, princi-palmente afro-descendentes, que se reportassem aos movimentosculturais e políticos dos negros na diáspora e na África.

Lidos os poemas, contos e crônicas dos CN do número 1 aonúmero 19, procurei acompanhar os diálogos que estabeleciam entresi, assim como as modificações que o periódico e os textos foramsofrendo com o passar dos anos. Foram selecionados, entre os temasrecorrentes, aqueles que me pareceram mais significativos: a necessi-dade de compor contra-narrativas da história do negro no Brasil; acunhagem de outros significados para o termo negro e afins; o esta-belecimento de vínculo com tradições de origem africana e com ou-tras tradições de afro-descendentes da chamada diáspora negra; adiscussão dos quadros de identidade cultural forjados para o país e ainserção do negro, neste quadro, enquanto afro-brasileiro. Esses te-

5 Nome dado ao conjunto de periódicos produzidos e publicados por escritoresnegros e mestiços desde 1915, aproximadamente, até o fechamento da FrenteNegra, em 1937.

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mas são discutidos e analisados, no presente trabalho, em uma pers-pectiva histórico-cultural que extrapola a apreciação literária, uma vezque os textos sugerem possibilidades de leitura que ultrapassam osvetores de uma análise deste teor.

Entretanto, outras dificuldades de maior complexidade delinea-ram-se no decorrer da pesquisa: a resistência provocada pela minhaformação acadêmica, pois que, para legitimar minha investigação,sentia, por vezes, a necessidade de escolher ou tentar situar os textosliterários no universo de certos valores estéticos, ditos universais, oque, a princípio, trouxe-me algumas dificuldades. Ressalto, entretan-to, que não fez parte dos meus propósitos comparar os textos dos CNcom a literatura canônica, haja vista que a ausência desses textos dasseleções e antologias institucionalizadas já evidencia que essa pro-dução se pauta por critérios de eficácia e valor distintos daquelesestabelecidos pelas instâncias de legitimação do literário.

Porém, se, no início, o material trouxe-me dificuldades contor-náveis, seu desenrolar fez-me defrontar com impasses graves e con-ceituais: vi-me diante de várias ordens de dilemas que a finalização dotrabalho não logrou superar, nem o poderia.

A ausência de designativo em expressões como literatura, tra-dição, cultura, identidade e entre outras, incontornavelmente, implicaum enunciado e uma enunciação brancos – uma literatura, uma tradi-ção ou uma cultura, ocidental, masculina, de vocação universalizan-te. De tal modo que, diante de qualquer proposta de desvio dessessignificados, o sujeito da enunciação, para evitar ambigüidades, éforçado a informar seguidamente a ordem do desvio semântico, ge-rando no texto uma redundância vocabular que infringe as normas dobom estilo. (No caso do presente trabalho, vejo-me diante da impos-sibilidade de fugir à aludida coação da língua para repetir constante-mente o adjetivo “negro” a fim de precisar de que textos, de quaisculturas e de onde falo.)

O outro dilema é de ordem estilística e também contraria asnormas da praxe acadêmica, estando relacionado à impossibilidadede colocar-me no lugar distanciado de pesquisador objetivo. Nestetexto, por vários momentos evidenciados na minha linguagem, nãoobstante as amarras da formação acadêmica, sujeito e objeto de dis-curso se confundem e ocupam o mesmo lugar, tornando-se os dois

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INTRODUÇÃO

“uma só carne”. Se, no início da pesquisa, a terceira pessoa verbalaparecia de modo automático, hoje, constato a dubiedade de minhaposição: pesquisador e também objeto da pesquisa na alternância, in-voluntária, muitas vezes incontrolável, da primeira e terceira pessoas.

Mas existe ainda uma outra dificuldade anteposta ao meu tra-balho: os textos dos CN selecionados para análise são rotulados,pela tradição acadêmica, como textos paraliterários, ou pouco literários,e acabam por obter legitimação em outros meios que não os institu-cionais. Os vínculos evidentes com o campo dos Estudos Culturaishabilita esta pesquisa a inserir-se nos estudos comparatistas e dialo-gar com estudiosos interessados em questões extraliterárias, comoidentidade cultural, hibridização, diferença, alteridade, raça e racismo,black studies, relações de poder. Como se pode observar, transito, eo mesmo fazem os textos, por entre um vasto campo de polêmicasdiscussões teóricas e diferenciadas práticas críticas.

Stuart Hall6 destaca, embora criticamente, que o pós-modernis-mo tem uma profunda e ambivalente fascinação pela diferença – dife-rença sexual, cultural, racial e, acima de tudo, pela diferença étnica.Essa atitude coloca o tema da diferença entre os mais discutidos emais presentes em encontros, seminários e outros eventos acadêmi-cos. No entanto, no artigo “What is this ‘black’ in black popularculture?”, Hall enfatiza que, não obstante a fascinação ter seus efei-tos positivos, a visibilidade que, especificamente, os negros come-çam a desfrutar nos estudos contemporâneos é “cuidadosamenteregulada e segregada”,7 chamando a atenção para as ambivalênciasdo mecanismo de abertura para a diferença – tema que, por mais deuma vez, foi discutido pelo Jornal do MNU, interessado em analisar aqualidade da inserção do afro-descendente e da cultura negra no mer-cado de bens simbólicos e na indústria cultural no Brasil. Mobiliza-me,na análise dos textos, a possibilidade de entender o modo comoseus autores constroem imagens que se contrapõem e redesenham

6 Escritor afro-caribenho, residente na Inglaterra e um dos fundadores do chama-do Centro de Estudos Culturais de Birmingham, considerado um dos importan-tes estudiosos da área dos black studies na Inglaterra, sendo atualmente professorda Open University, Londres.

7 HALL, op. cit. In: MORLEY & CHEN (Eds.) 1996. p. 468.

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as imagens instituídas e a sua potencialidade para alterar o funciona-mento das malhas do sistema de exclusão-inclusão, visibilidade-invi-sibilidade dos afro-descendentes na chamada cultura brasileira.

Como afro-brasileira8 , interessa-me contribuir para a configura-ção de lieux de mémoire, na expressão de Pierre Nora, lugares estescriados por um jogo de memória e história, lembrança e esquecimento,movido por uma vontade de impedir o esquecimento dos fatos a seremfixados como “momentos de celebração”, atualizáveis e prontos a teremseus sentidos infinitamente reciclados.9 A construção desse arquivo decelebração mostra-se importante e produtiva para a definição do que éeste “afro” da expressão afro-brasileira, adaptando a questão propostapor Hall10 –difícil tarefa que vem sendo empreendida por atores sociaispopulares e pelos movimentos sociais empenhados na preservação eatualização de tradições como as do candomblé, da umbanda, os quaisreivindicam um papel social para os negros que transcenda os limitesconcedidos nas atividades esportivas ou musicais.

Esse “afro”, na minha e em outras configurações identitárias“afro-brasileiras”, indica a necessidade incontornável de conviver ede circular num espaço diversificado e de trânsito entre culturas di-versas. Esse espaço nos coloca, sempre, na obrigação de aprender emanejar uma cultura eurocêntrica, pretensamente universal e absoluta,que nos representa de modo depreciativo.

A escola, nos seus diferentes graus, me pôs em contato comimagens de inferioridade e exterioridade que eu procurava contestarpor meio das tentativas de incorporação de um código de valoresocidentais e pelo empenho para manejar “devidamente” esse código.

8 A designação “afro-brasileiro” por mim utilizada visa ressaltar duas ordens deligações culturais simbólicas: as mantidas e as restabelecidas com a África ecom os africanos e seus descendentes, hoje habitando em várias partes domundo; e uma outra que ressalta as marcas e as configurações assumidas, nocontexto histórico-cultural brasileiro, pela rede de conexões e trocas negociadasentre o continente africano o os países da chamada diáspora negra. Já o termo“afro-descendente” comparece no texto com o intuito de pôr em evidência osvínculos com o continente africano, seus descendentes e suas tradições cultu-rais que não se perderam na diáspora .

9 NORA. In: FABRE & O’MEALLY (Eds.), 1994. p. 284.10 HALL. What’s this “black” in black popular culture? op. cit.

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INTRODUÇÃO

Por uns tempos, privilegiei, na minha formação e estudos, o lado“não-afro” da minha identidade; a escola, a universidade, a profissãoeram espaços em que lidava majoritariamente com temas e questõesrelativos aos interesses do “mundo branco”.

Hoje, minha fala e meu olhar expõem um vínculo inegável coma tradição ocidental em que fui formada, mas igualmente traduzemuma ligação inconteste com as tradições, formas de ver e de ser queecoam uma outra tradição cultural, recalcada, mas que também mol-dou minhas histórias e aquelas que eu contaria como fruto dasexperiências pessoais.

A escolha de uma produção textual que se define como “ne-gra”, como objeto de estudo, evidencia a opção por lidar mais detida-mente com uma outra parte da minha formação identitária, o afro,marcado pela cor da pele e pela necessidade de tornar patente a im-possibilidade da transparência. Explicita o desejo de fixar o lugar deonde falo e de assegurar o espaço para a opacidade deste “afro” nomeu discurso. A seleção da bibliografia e das idéias discutidas nodecorrer deste trabalho está diretamente ligada aos caminhos quepercorri entre 1996 e 2000. Os textos de Sociologia, História, Antro-pologia, Estudos Culturais, Estudos Pós-coloniais e Black Studiesse entrecruzam com debates, reflexões, aulas, seminários, leituras,discursos vários, dos quais me apropriei, atribuindo-lhes valores di-ferenciados – uma apropriação que faz adaptações, realça o que seconfigura pertinente para o estudo dos periódicos, explorando aspossibilidades de remoldar e trair ou abandonar idéias e conceitosque não se enquadrem nas nuances por mim escolhidas.

A bolsa sanduíche da CAPES propiciou-me um período de es-tudos na Universidade de Nottingham, durante o qual tive a oportu-nidade de um contato mais próximo com textos de autores preocupa-dos com a inserção dos afro-descendentes na cultura britânica. Aleitura de textos de Stuart Hall, Kobena Mercer, Paul Gilroy suscitouquestões e reflexões sobre as possibilidade de analisar imagens dosafro-descendentes apresentadas por textos culturais variados, comvistas a perceber as similaridades e diferenças que extrapolam oslimites de filiações nacionais – apesar das inegáveis diferenças exis-tentes entre as sociedades brasileira e britânica no tocante às repre-sentações e papéis de atuação do negro.

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A hibridização, no sentido de mestiçagem, é comum ao vocabu-lário dos intérpretes da cultura brasileira, desde o século XIX. Entre-tanto, antes da proliferação dos chamados estudos pós-coloniais, elafoi por muito tempo lida e compreendida como a deterioração de umacultura superior no contato com culturas consideradas “inferiores”,que não conseguem atingir a perfeição da primeira. O século XIXapontou a hibridização como responsável pelo atraso de povos coloni-zados e relacionou o conceito à biologia, que apontava para a infertili-dade e a degenerescência congênita do híbrido. Assim, por muito tem-po, o conceito foi considerado inadequado, no sentido de “politicamentecorreto”, para o uso nos estudos da cultura no Brasil. Nos recentesanos 90, Homi Bhabha, no entanto, caracteriza a hibridização como“intervenção do colonizado no exercício da autoridade colonial, umareversão dos efeitos de desapropriação colonial”, uma atuação produ-tiva do subordinado que, incluindo no discurso do colonizador osconhecimentos negados, “rompe suas bases de autoridade e as suasregras de reconhecimento”11. O autor enfatiza a produtividade do con-ceito para a análise das intervenções ativas das culturas dominadas noprocesso de configuração da cultura imposta. O híbrido é sempre aque-le que encontrou resultado positivo na busca de uma brecha, umapossibilidade de desestabilizar a tela do mesmo e do seu duplo12.

Os elementos da cultura desqualificada rompem as bases daautoridade do discurso colonial, abalando suas regras de reconheci-mento e de exercício de poder. Assim, longe de ser vista como nega-tiva, a hibridização além de apontar a inexistência de pureza cultural,é encarada como positiva, na medida que atesta uma atuação produti-va da cultura tida por minoritária e evidencia também uma “fragilidade”da cultura hegemônica13 que se deseja mostrar como impermeável àsinfluências das demais culturas. Considero a cultura afro-brasileira

11 BHABHA, 1998. p. 162-163.12 BHABHA, 1998. p. 150-176.13 As expressões hegemônica/o e hegemonia são utilizadas neste texto na pers-

pectiva de leituras de Gramsci que entendem os grupos hegemônicos comoaqueles que, além de definirem os discursos e situações significativos e supérflu-os, controlam ações, produzem imagens, divulgam-nas e constroem os siste-mas de representação e o corpo de valores que reafirmam ou reproduzem seuslugares de enunciação.

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híbrida, construída como intervenção simultaneamente sofrida e pra-ticada pelas culturas africanas, européias e indígenas. Semelhante ediferente das culturas africanas e da cultura européia, a cultura afro-brasileira não é nem só africana, nem mímica da européia, mas híbrida,pois é formada nos cruzamentos dos contatos forçados e, às vezes,até desejados.

Estou ainda considerando a cultura africana da diáspora noBrasil como uma cultura duplamente híbrida. Primordialmente híbrida,porque resultante do contato e da interação de povos africanos deetnias diversas que foram obrigados a criar, como forma de resistênciacultural, uma memória comum; híbrida ainda porque forçada a relaci-onar-se com povos europeus e ameríndios e a fazer uso de seuscomportamentos e costumes para desenhar a sua identidade e garan-tir a sua sobrevivência. Os africanos e afro-descendentes construí-ram sua memória através da negociação com as várias culturas cita-das, negociação cujos reflexos observam-se na hibridização de rituaisreligiosos, práticas cotidianas e populares. Parafraseando mais umavez Hall, “este afro” na cultura afro-brasileira é resultante dessa du-pla hibridização e não aponta para qualquer possibilidade de “pure-za”. Acrescenta-se também que os estudos culturais advertem quetodas as identidades são resultantes de ligações sincronizadas dediversas fronteiras culturais, de confluência de diversas tradições, deestratégias de codificação e transcodificação de sentidos e poderes.Stuart H all, bell hooks [sic.], Cornel West, escritores afro-descen-dentes, de modo diferenciado demonstram a importância das altera-ções no sistema de representação para a reconfiguração da auto-imagem do negro na diáspora. Eles sustentam que um dos principaisobjetivos dos estudos e movimentos negros nos dias atuais tem-sedeslocado para a articulação da “complexidade e diversidade daspráticas negras no mundo moderno e pós-moderno”. Tais práticas,segundo os autores, devem ser articuladas de modo a favorecer aatuação e intervenção dos afro-descendentes da diáspora nos cam-pos de poder das sociedades em que vivem.

Considerando os conceitos de Black Atlantic e de diásporaprodutivos para a análise da configuração híbrida do discurso afro-brasileiro, recorro ao ensaio de Gilroy, em antologia de título sugesti-vo: Pós-colonial em questão: céus comuns, horizontes divididos, de

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1996, em que o autor explica os diversos trânsitos e redes de inter-câmbios forjados entre as culturas africanas e as culturas negrasproduzidas na diáspora14. O Atlântico negro assinala a existência deuma base desterritorializada e múltipla para as afinidades e aproxima-ções existentes e construídas entre as populações negras na diáspo-ra. O conceito enfatiza as viagens, os intercâmbios, as trocas e acirculação intensa através do Atlântico, nos quais foram/são negoci-adas mercadorias, tradições e influências que dão o tom e o perfil dasidentidades negras na diáspora, simultaneamente díspares e simila-res, jamais puras, sempre mutáveis e interconectadas.

Aproprio-me do conceito de Atlântico Negro, estendo-o até oAtlântico Sul onde também se efetivaram e ainda se efetivam intensosmovimentos de intercâmbio entre os afro-descendentes do Brasil, Cari-be, Estados Unidos, Europa e África, desafiando estreitezas de naciona-lismos e estabelecendo uma rede de trocas entre cultura local e global.

A diáspora, ainda de acordo com Gilroy,15 será compreendidanão apenas como deslocamento geográfico, mas principalmente comouma circunstância de vida de parcela significativa da população dopaís, teoricamente vista como membro da nação e, entretanto, exclu-ída e discriminada por uma sociedade que a vê como inumana ou não-cidadã devido à sua ascendência africana. Parte dessa populaçãobusca nos contatos com as culturas de origem africana motivaçõespara a criação de suas bases culturais e de seus perfis identitários deauto-afirmação. O fato de articularem-se de modo desviante com atradição européia hegemônica confere a esses grupos a possibilida-de de criar caminhos culturais outros que não aqueles impostos pelacultura institucionalizada.

A circulação de textos e informações através do “AtlânticoNegro” tem o Brasil como um dos seus portos desde o século XVI,quando, além de escravos, navios procedentes da África traziam ma-terial de culto, alimentos, tecidos, canções e notícias. No século XX,a circulação de idéias, notícias e textos de Du Bois, Garvey, Césai-re, Fanon, Amílcar Cabral e outros pode ser vista como elementoincentivador da produção de textos e criação de associações nas

14 GILROY, In: CURTI & CHAMBERS, 1996. p. 17-29.15 GILROY, 1995.

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INTRODUÇÃO

primeiras décadas desse século no Brasil. Por outro lado, nas décadasfinais do século XX, intensifica-se o trânsito com a intensa circulação demúsicas, moda, informações variadas e benefícios das tecnologias decomunicação. Se os afro-brasileiros receberam e continuam a receberinfluências e textos variados através dos meios cada vez mais diversifica-dos, os mesmos meios de comunicação conduzem de volta, quase quesimultaneamente, outros textos e outras notícias de quadros que compo-rão o circuito das trocas. A diáspora africana também cria seu circuitoparticular de comércios e intercâmbios e trocas efetivados pelo mar, peloar e por intermédio das possibilidades abertas pelos avanços tecnológi-cos. Viagens de idas e vindas, trocas, incompreensões e compreensõesparciais das situações específicas de racismo e discriminação racial, dasadaptações religiosas, dos encaminhamentos das lutas sociais, tudo istocompõe o comércio alternativo ou informal que até hoje se estabeleceatravés do Atlântico Negro definido por Paul Gilroy no seu já citado OAtlântico Negro: Modernidade e dupla consciência.

Operando no interior de uma compreensão de cultura comoprocesso de montagem multinacional constituído de práticas discur-sivas variadas que abrangem diversos setores da vida, e organizan-do bases bibliográficas que viabilizam o diálogo com os temas dosperiódicos, esta pesquisa circula nos campos da História e MemóriaCultural e dos Estudos Culturais. Tenho por meta contribuir para oregistro e análise do processo de construção de um discurso identitá-rio duplo, afro-brasileiro, e para o delineamento de uma concepçãodas formas culturais enquanto portadoras de valor e de poder.

Para construir as trilhas para a análise dos periódicos, dividiesse trabalho em três partes, na primeira, discuto a possibilidade deproposição de um conceito de literatura afro-brasileira ou uma “litera-tura negra” no Brasil, caracterizando o que denomino produção textu-al afro-brasileira. Examino as definições de literatura negra ou literaturaafro-brasileira propostas pelos escritores do periódico e estabeleço umdiálogo com os estudos sobre literatura negra desenvolvidos por auto-res como Zilá Bernd16 , Oswaldo Camargo17 e Luiza Lobo18 . Entendo

16 BERND, 1987.17 CAMARGO, 1987.18 LOBO, 1987.

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que os textos aqui analisados, autodenominados “produção textualnegra”, colocam-se como discursos interessados em interferir nosdebates sobre identidade, representação e poder dentro do espaçocultural brasileiro, e, na minha leitura, sugiro que sejam lidos comosuplemento ao discurso da fabular fusão das três raças tristes.

Considerando a construção de uma identidade negra como umdos temas mais freqüentes nessa produção textual, principalmenteem seus momentos iniciais, ainda na primeira parte questiono a viabi-lidade de um conceito de identidade cultural afro-brasileira a partirdas sugestões dos estudos contemporâneos que a compreendemcomo posicional, circunstancial, móvel, gerada pelas necessidadesde congraçamento ou união estratégicos, pois, como destaca EneidaSouza, nos dias atuais, “torna-se difícil pensar em identidade comocategoria estanque, ao se reconhecer que o indivíduo está cindido efragmentado pela marca desse outro que o habita”19. Por outro lado,o caráter relacional da identidade ou do desejo de forjar identidadestorna-se mais nítido no momento em que se entende a categoria comoconstruída em um campo de relações que gera espaço de encontro doMesmo com o Outro ou do próprio com o alheio.

As sociedades contemporâneas caracterizam-se pela tendên-cia a traçar desenhos identitários a partir de um jogo intenso entre asdiferenças; assim, são construídas identidades por meio da diversi-dade de transações sociais marcadas por experiências sociais varia-das e pela ampliação de espaços e de trajetos de circulação dos indi-víduos e dos bens simbólicos. O trânsito mais ou menos livre entre osdiferentes universos, províncias e lugares sociais torna-se possíveldevido à natureza simbólica das construções sociais, do seu carátermultifacetado e da sua relativa estabilidade. Entretanto, Appadurai20

destaca que, apesar da tendência à homogeneização marcante nomundo globalizado, as marcas culturais locais contestam e modificamcontinuamente os signos e símbolos recebidos, rescrevendo-os paraque sejam recompostos os símbolos e representações identitáriaslocais. As pequenas localidades, a chamada periferia ou os gruposétnicos minoritários não recebem de modo passivo as informações e

19 SOUZA, 1991. p.19.20 WILLIAMS & CHRISMAN (Eds.), 1993 p. 324-339.

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os bens culturais que lhes são disponibilizados pelo mercado global.Cada comunidade procede significativos deslocamentos e re-inter-pretações dos bens culturais com os quais interage, deslocamentosque, aparentemente imperceptíveis, tornam-se evidentes, sempre, aosolhares mais atenciosos.

Insiro, ainda, os CN e o Jornal do MNU em uma linhagemtextual, cuja emergência, segundo seus autores, pode ser situada nasprimeiras décadas do último século, e constitui um circuito de publi-cação alternativo produzido por negros e mestiços e destinado a umpúblico ledor do mesmo grupo étnico. Essa imprensa alternativa cir-culou no Brasil, principalmente em São Paulo, e tinha por objetivopromover atividades recreativas e culturais que viabilizassem a inte-gração do negro na sociedade brasileira. Na descrição de Roger Bas-tide, constituem-se órgãos de educação, protesto e reivindicação demobilidade social21.

Os periódicos filiam-se a uma tendência, tímida e ainda poucoestudada, de tematizar as dificuldades encontradas pelos afro-descen-dentes para desfrutarem o direito à cidadania na sociedade brasileira.

O estabelecimento de uma linhagem no interior de uma especí-fica “tradição” de imprensa não visa buscar momentos precisos deorigem da tradição textual. Há algum tempo que as buscas dos luga-res de essência ou pureza, os princípios honrosos foram desautoriza-dos por pensadores como Nietzsche. Afinal, o segredo existente pordetrás das coisas é “que elas são sem essência ou que sua essênciafoi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estra-nhas” 22 , dirá Foucault ao negar a solenidade da origem e propor quea genealogia seja entendida como um espreitar paciente dos aconte-cimentos despojados de qualquer ilusão idealista ou metafísica quantoà possibilidade de apreensão de uma origem. Buscar os marcos daproveniência inscritos nos corpos e não a origem é o que sugere oautor na insistência em desmistificar as continuidades construídaspara viabilizar a tranqüilidade da evolução. Enfatizando o disperso edesordenado, os acidentes e desvios, a genealogia se volta para “os

21 BASTIDE, 1973. p. 130-131.22 Como sugere Foucault na leitura que faz de Nietzsche. FOUCAULT, 1993.

p. 18-37

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erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimen-to ao que existe e tem valor para nós”.23

O olhar atento que proponho às “restritas”, particulares e me-nos prestigiadas tradições negras, objetiva sugerir o entendimentode que é possível constituir um desenho da cultura brasileira quecomporte o suplemento da diversidade étnica e cultural que a com-põe e que tem sido desprezado pelos discursos forjadores das ori-gens e identidades nacionais planas e homogêneas24 . Esse olhar tam-bém me possibilita construir uma linhagem da textualidadeafro-brasileira que elege seus marcos iniciais em escritores como LuísGama, Lima Barreto, Lino Guedes e Solano Trindade.

Com a expectativa de apresentar uma outra vertente da históriada cultura nacional, sugiro, nas duas últimas partes, a leitura dos“traços” que os discursos culturais dos CN e do Jornal do MNU,autodefinidos como negros, vêm, há algum tempo, inscrevendo nacultura brasileira. Os desenhos dessa escritura ficam registrados e aeles podem ser atribuídos sentidos vários, entre os quais o de umatentativa, nem sempre bem sucedida, de debater e participar ativa-mente do desenho e da análise do quadro nacional. Escolhi, pois, ostextos da Imprensa Negra como marcos posicionais, dispersos e he-terogêneos dessa produção textual.

Em todos os momentos do trabalho, procuro estabelecer umdiálogo entre os textos dos periódicos e os estudos sobre a cultura –daí o trânsito entre História, Sociologia, Antropologia e Literatura.Temas como identidade, tradição cultural, racismo e discriminaçãoracial, diáspora africana, movimentos negros, desigualdades sociais,desemprego e marginalidade são abordados nos poemas e contos,artigos e entrevistas publicados nos periódicos e levam o trabalho adiscuti-los na análise das versões apresentadas pelo periódicos e acompará-las com outras versões que circulam no campo das idéiascontemporâneas.

23 FOUCAULT, 1993. p. 21.24 BHABHA, 1998. p. 198-238.

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