Agamben, giorgio o sacramento da linguagem

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( EDIToRAufmg .) o SACRAMENTO DA LINGUAGEM Arqueologia do juramento i I Giorgio Agamben HUMANITAS ---------- . '
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Page 1: Agamben, giorgio   o sacramento da linguagem

( EDIToRAufmg .)

o SACRAMENTODA LINGUAGEM

Arqueologia do juramento

i I Giorgio AgambenHUMANITAS ----------

.'

Page 2: Agamben, giorgio   o sacramento da linguagem

GIORGIO AGAMBEN

o SACRAMENTO DA LINGUAGEM

ARQUEOLOGIA DO JURAMENTO

(HOMO SACER li, 3)

Tradução

SELVINO JosÉ ASSMANN

Belo HorizonteEditora UFMG

2011

Page 3: Agamben, giorgio   o sacramento da linguagem

© 2008, Gius. Laterza & Figli, todos os direitos reservados. Publicado em acordo com

Marco Vigevani Agenzia Letteraria. Título orginal : 11sacramento dei linguaggio.Archeologia dei giuramento.

© 2011, Editora UFMG

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizaçãoescrita do EclitoL

A259s Agamben, Giorgio, 1942-

O sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento CHomo

sacer lI, 3) / Giorgio Agamben ; tradução: Selvino José Assmann. ­

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

91 p. - CHumanitas)

Tradução de: Il sacramento dellinguaggio. Archeologia dei giuramento

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-7041-885-2

1. Juramentos - História. 2. Juramentos - Filosofia. r. Assmann,

Selvino José. lI. Título. III. Série.

CDD:320.01

CDU:32

Elaborada pela DITTI - Setor de Tratamento da InformaçãoBiblioteca Universitária da UFMG

DIRETORA DA COLEÇÃO Heloisa Maria Murgel Starling

COORDENAÇÃO EDITORIAL Danivia WolffASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo

COORDENAÇÃO E PREPARAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro

REVISÃO TÉCNICA Olimar Flores-Júnior

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COORDENAÇÃO GRÁFICA, FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Cássio Ribeiro

PROJETO GRÁFICO Glória Campos - MangáPRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

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Ala direita da Biblioteca Central- Térreo - Campus Pampulha31270-901 Belo Horizonte MG

Te!: + 55 31 3409-4650 - Fax: + 55 31 3409-4768

[email protected]

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Von diesen Vorgangen meldet kein Zeuge;sie zu verstehn bietet unser eignes Bewusstseinkeinen Anhalt. Nur eine Urkunde ist uns von ihnen

geblieben, so schweigsam dem unkundigen,wie beredt dem kundigen: die Sprache.

[Arespeito desses processos, nenhuma testemunha nos informa,a nossa consciência não nos fornece pretexto algum.Resta-nos apenas um documento, tão mudopara o ignorante, quão eloquente para o erudito:a linguagem.]

Hermann Usener

Der Schematismus der Verstandesbegriffe ist...ein Augenblick in welchem Metaphysik und Psysikbeide Ufer zugleich berühren Styx intetjusa.

[O esquematismo dos conceitos do intelecto é...um instante no qual metafísica e física juntamas suas margens Styx intetjusa.]

Immanuel Kant

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o SACRAMENTO DA LINGUAGEM

BIBLIOGRAFIA

ÍNDICE ONOMÁSTICO

SUMÁRIO

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o SACRAMENTO DA LINGUAGEM

1. Em 1992, o livro de Paolo Prodi, 11sacramento dei potere,

chamou fortemente a atenção para a importância decisiva dojuramento na história política do Ocidente. Situado como articu­lação entre religião e política, o juramento não só testemunha a"dupla pertinência" (Prodi, p. 522) que define, segundo o autor,a especificidade e a vitalidade da cultura ocidental cristã; ele,de fato, foi também - tal é o diagnóstico de que parte o livro(ibid., p. 11) - a "base do pacto político na história do Ociden­te", que, enquanto tal, é possível encontrar exercendo um papelimportante toda vez que este pacto entra em crise ou volta aser reatado de maneiras diferentes, do início do cristianismo atéa luta pelas investiduras, desde a "sociedade jurada" da IdadeMédia tardia até a formação do Estado moderno. Coerente comessa sua função central, o declínio irreversível do juramento emnosso tempo tem tudo a ver, segundo Prodi, com uma "crise queinveste o próprio ser do homem como animal político" (ibid.).

Se atualmente somos "as primeiras gerações que, não obstantea presença de algumas formas e liturgias do passado C ..), vivema própria vida coletiva sem o juramento como vínculo solene etotal, sacralmente ancorado, a um corpo político" (ibid.), issosignifica, então, que nos encontramos, sem termos consciênciadisso, no limiar de "novas formas de associação política", cujarealidade e cujo sentido ainda nos resta degustar.

Como está implícito no subtítulo (O juramento político nahistória constitucional do Ocidente), o livro de Prodi é uma inves­tigação histórica e, como costuma acontecer em tais investigações,

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o autor não se põe o problema do que ele mesmo define como o"núcleo a-histórico e imóvel do juramento-acontecimento" Cibid.,

p. 22). Desse modo, a definição "do ponto de vista antropoló­gico", a que ele brevemente acena na Introdução, repete lugarescomuns extraídos das pesquisas dos historiadores do direito, doshistoriadores da religião e dos linguistas. Como acontece comfrequência, quando um fenômeno ou um instituto se põe nocruzamento entre territórios e disciplinas diferentes, nenhumadelas pode reivindicar integralmente o juramento como seu,e no volume muitas vezes imponente dos estudos específicosnão encontramos uma tentativa de síntese que dê conta da suacomplexidade, da sua origem e da sua relevância global. Tendo,por outro lado, em consideração que não parece cientificamenterecomendável fazer um compêndio eclético dos resultados decada disciplina, e que o modelo de "uma ciência geral dohomem" já não goza, há tempo, de uma boa reputação, opresente estudo propõe-se não tanto investigar a origem, massim fazer uma arqueologia filosófica do juramento.

Relacionando o que está em jogo numa investigação históricacomo a de Prodi - e que, como toda verdadeira inv"estigaçãohistórica, não pode deixar de questionar o presente - com osresultados das pesquisas da linguística, da história do direito e dareligião, trata-se, pois, de nos perguntarmos antes de mais nada:o que é o juramento? O que nele está implicado, se ele definee põe em questão o próprio homem como animal político? Se ojuramento é o sacramento do poder político, o que, na sua estru­tura e na sua história, tornou possível que ele fosse investido desemelhante função? Que plano antropológico, em todo sentidodecisivo, nele está implicado, para que o homem todo, na vida ena morte, pudesse, nele e por ele, ser colocado em questão?

2. A função essencial do juramento na constituição políticaé expressa claramente na passagem de Licurgo que Prodi res­salta no seu livro. "O juramento - lê-se aqui - é o que mantém[to synechon] unida a democracia." Prodi poderia ter citado outrapassagem do filósofo neoplatônico Hiérocles, que, no ocaso dohelenismo, parece reforçar essa centralidade do juramento trans­formando-o no princípio complementar da lei: "Mostramosantes

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que a lei [nomos] é a operação sempre igual por meio da qualDeus traz eterna e imutavelmente todas as coisas à existência.

Agora, denominamos juramento [horkos] aquilo que, seguindotal lei, conserva [diaterousan] todas as coisas no mesmo estado

e as torna estáveis, de maneira que, enquanto elas estão contidasna garantia do juramento e mantêm a ordem da lei, a imutávelfirmeza da ordem da criação é o cumprimento da lei criadora"

(Hirzel, p. 74; cf. Aujoulat, pp. 109-110).

Convém prestar atenção nos verbos que expressam a funçãodo juramento nas duas passagens. Tanto em Licurgo, quanto emHiérocles, o juramento não cria, não traz à existência, mas man­tém unidos (synechô) e conserva (diatereô) o que algo diferente(em Hiércoles, a lei; em Licurgo, os cidadãos ou o legislador)trouxe à existência.

Função análoga parece conferir ao juramento aquilo que Prodidefine como o texto fundamental que a cultura jurídica romananos legou sobre este estatuto, a saber, a passagem do De offi­ciis (III, 29, 10) na qual Cícero define o juramento da seguinteforma: Sed in iure iurando non qui metus sed quae vis sit, debet

intellegi; est enim iusiurandum affirmatio religiosa; quod autem

affirmate quase deo teste promiseris id tenendum est. Iam enimnon ad iram deorum quae nulla est, sed ad iustitiam et ad fidempertinet.1 Affirmatio não significa simplesmente um proferimen­to linguístico, mas aquilo que confirma e garante (o sucessivoaffirmate promiseris só reforça a mesma ideia: "O que prometestena forma solene e confirmada do juramento."). E é para essafunção de estabilidade e garantia que Cícero chama a atenção,ao escrever no início: "No sacramento é importante compreen­der não tanto o medo que ele gera, mas a sua eficácia própria[vis]." E aquilo em que consiste tal vis resulta inequivocamenteda definição etimológica da fides, que, segundo Cícero, está em

questão no juramento: quia fiat quod dictum est appelatam fidem(ibid., I, 23).2

1 No juramento, porém, não deve ser considerado o medo, mas qual é suaeficácia; o juramento é, de fato, uma afirmação religiosa: o que prometestesolenemente, como se Deus fosse testemunha disso, é o que deve ser mantido.Não se trata, realmente, da ira dos deuses, que não existe, mas da justiça eda fé. (N.T.)

2 Por fazer aquilo que é dito chama-se de fé. (N.T.)

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É na perspectiva dessa vis específica que importa reler as

palavras com que Émile Benveniste, no início do seu artigo de

1948, intitulado L 'expression du serment dans Ia Grece ancienne

[Aexpressão do juramento na Grécia antiga], indica a sua função:

[O juramento] é uma modalidade particular de asserção, queapoia, garante, demonstra, mas não fundamenta nada. Indi­vidual ou coletivo, o juramento só existe em virtude daquiloque reforça e torna solene: pacto, empenho, declaração. Eleprepara ou conclui um ato de palavra que só possui um con­teúdo significante, mas por si mesmo não enuncia nada. Naverdade é um rito oral, frequentemente completado por umrito manual, cuja forma é variável. E a sua função não residena afirmação que produz, mas na relação que institui entrea palavra pronunciada e a potência invocada (Benveniste [1],pp.81-82).

O juramento não tem a ver com o enunciado como tal, mas

com a garantia da sua eficácia: o que nele está em jogo não é a

função semiótica e cognitiva da linguagem como tal, mas sim a

garantia da sua veracidade e da sua realização.

3. Tanto as fontes quanto os estudiosos parecem concordar

em afirmar que o juramento, nas suas diferentes formas, tem a

função precípua de garantir a verdade e a eficácia da linguagem.

"Os homens - escreve Fílon - sendo infiéis (apistoumenoi, isentos

de pistis, ou seja, de credibilidade), recorrem ao juramento para

obter confiança" (De sacro Ab. et Caini 93). Tal função parece

ser tão necessária à sociedade humana que, apesar da evidente

proibição de qualquer forma de juramento nos Evangelhos (cf.

Mt. 5, 33-37 e Tg. 5, 12), ele foi acolhido e codificado pela Igreja,

transformando-o em parte essencial do próprio ordenamento

jurídico, legitimando assim a sua manutenção e a sua progressiva

extensão para o direito e para as práticas do mundo cristão. E

quando, em 1672, Samuel Pufendorf acolhe, no seu De jure na­

turae et gentium, a tradição do direito europeu, é precisamente

sobre a sua capacidade de garantir e confirmar não apenas os

pactos e os acordos entre os homens, mas, de forma mais geral,

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a própria linguagem, que ele fundamenta a necessidade e a

legitimidade do juramento:

Através do juramento, a nossa linguagem e todos os atos quese concebem através da linguagem [sermoni eoneipiuntunrecebem uma insigne confirmação (jirmamentum]. A respeitodestes [atos] poderia ter falado oportunamente mais adiante,na seção em que são abordadas as garantias dos pactos; con­tudo preferi falar deles nesse lugar, pois com o juramento sãoconfirmados não só os pactos, mas também a nossa simpleslinguagem [quod iureiurando non paeta solum, sed et simplexsermo soleat eonfirmari] (Pufendorf, p. 326).

Poucas páginas depois, Pufendorf reforça o caráter acessóriodo vínculo do juramento, que, ao mesmo tempo que confirmauma asserção ou uma promessa, pressupõe não somente a lingua­gem, mas, no caso do juramento promissório, o proferimento deuma obrigação: "Os juramentos em si não produzem uma novae peculiar obrigação, mas sobrevêm como um vínculo de algummodo acessório [velut accessorium quoddam vinculum] a uma

obrigação válida em si" Cibid., p. 333).

Portanto, o juramento parece ser um ato linguístico destinadoa confirmar uma proposição significante (um dictum), garantindosua verdade ou sua efetividade. É dessa definição - que estabelece

uma distinção entre o juramento e seu conteúdo semântico - queprecisamos verificar a correção e as implicações.

~ Sobre a natureza essencialmente verbal do juramento (emboraele possa vir acompanhado por gestos, como o de erguer amão direita) há uma concordância da maioria dos estudiosos,de Lévy-Bruhl a Benveniste, de Loraux a Torricelli. Comreferência à natureza do dietum, costuma-se fazer uma distinção

entre juramento assertório, que se refere a um fato passado(confirmando, portanto, uma asserção), e juramento promissório,que se refere a um ato futuro (nesse caso, é confirmada umapromessa). A distinção já aparece claramente enunciada emSérvio (Aen. XII, 816: Juro tune diei debere eum eonfirmamus

aliquid aut promittimus). Contudo, não é sem razão queHobbes remetia essas duas formas de juramento a uma só figura,essencialmente promissória: Neque obstat, quod iusiurandum

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non solum promissorium, sed aliquando aifirmatorium dicipossit: nam qui aifirmationem iuramento confirmat, promittitse vera respondere3 (De cive lI, 20). A diferença tem a ver, defato, não com o ato de juramento, idêntico nos dois casos, mascom o conteúdo semântico do dictum.

4. No final da sua reconstrução da ideologia das três funçõesmediante a epopeia dos povos indo-europeus, Georges Dumézilexamina um conjunto de textos (celtas, irânicos e védicos) nosquais parecem estar em jogo os males ou os "flagelos" (fléaux)correspondentes a cada uma dessas funções. Trata-se, por assimdizer, dos "flagelos funcionais" das sociedades indo-europeias,cada uma das quais ameaça uma das três categorias ou funçõesfundamentais: os sacerdotes, os guerreiros, os agricultores (emtermos modernos: a religião, a guerra, a economia). Em umdos dois textos celtas examinados, o flagelo correspondente àfunção sacerdotal é definido como "a dissolução dos contratosorais", a saber, a renegação e o desconhecimento das obrigaçõesassumidas (cf. Dumézil [1],p. 616). Também os textos irânicos evédicos evocam o flagelo em termos semelhantes: a infidelidadeà palavra dada, a mentira ou o erro nas fórmulas rituais.

É possível pensar que o juramento seja o remédio contra este"flagelo indo-europeu", que é a violação da palavra dada e, demaneira mais geral, a possibilidade da mentira inerente à lingua­gem. Contudo, justamente para fugir de tal flagelo, o juramentose revela singularmente inadequado. Nicole Loraux, no seu es­tudo sobre Giuramento, figlio di Discordia4 [juramento, filho deDiscórdia], deteve-se numa passagem de Hesíodo (lbeog., 231­232), na qual o juramento é definido negativamente só através dapossibilidade do perjúrio, "como se o primeiro não tivesse outroobjetivo senão punir o segundo, e tivesse sido criado, a título deflagelo maior, só para os perjúrios que ele próprio produz, pelosimples fato de existir" (Loraux, pp. 121-122).Assim,já na época

3 E não tem nenhuma importância se o juramento consiste numa promessa, ou,como certas vezes sucede, numa afirmação; pois quem confirma sua afirmaçãomediante um juramento está prometendo falar a verdade. (N.T.)

4 Este é o título de uma das partes do livro de N. Loraux, La cité divise. L'oublidans Ia mémoire d'Athenes. Paris: Payot & Rivages, 1997. (N.T.)

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arcaica, quando o vínculo religioso poderia ter sido mais forte,o juramento parece implicar constitutivamente a possibilidadedo perjúrio e ser destinado, paradoxalmente, - conforme sugereLoraux - não a impedir a mentira, e sim a combater os perjúrios.Independente de como se entende a etimologia do termo gregousado para o perjúrio (epiorkos), sobre o qual os estudiosos nãoparam de discutir, é certo que na Grécia arcaica e clássica eleé considerado óbvio. Assim, Tucídides, ao descrever as cidadesassoladas pela guerra civil, afirma que já não existe "palavrasegura nem juramento que incuta temor", mas a inclinaçãodos gregos (especialmente dos espartanos) para o perjúrio eraproverbial mesmo em tempo de paz. Platão, por sua vez, desa­conselha o juramento das partes nos processos, pois isso levariaa descobrir que metade dos cidadãos são perjuros (As leis, XII,948e). É significativo que, por volta do séc. III a.c., os chefes deescola estoicos discutissem se era suficiente, para que houvesseperjúrio, que aquele que prestava juramento tivesse, no instantedo proferimento, a intenção de não o manter (era a opinião deCleanto), ou se era necessário, conforme sustentava Crisipo, queele não cumprisse de fato o que havia prometido (d. Hirzel, p.75; Plescia, p. 84). Como garantia de um contrato oral ou de umapromessa, o juramento aparecia, com toda evidência, e desde oinício, totalmente inadequado ao objetivo, e uma simples sançãoda mentira certamente teria sido mais eficaz. Aliás, o juramentonão constitui um remédio contra o "flagelo indo-europeu", masantes é o próprio flagelo que está presente no seu interior naforma do perjúrio.

É possível então que, originalmente, no juramento nãoestivesse em jogo apenas a garantia de uma promessa ou averidicidade de uma afirmação, mas que o instituto que hojeconhecemos com este nome contenha a memória de um estágiomais arcaico, no qual ele tinha a ver com a própria consistênciada linguagem humana e com a própria natureza dos homensenquanto "animais falantes". O "flagelo" que ele devia impedirnão era unicamente a inconfiabilidade dos homens, incapazesde serem fiéis à própria palavra, mas uma fraqueza que tem aver com a própria linguagem, com a capacidade das palavras dese referirem às coisas, e a dos homens de se darem conta da suacondição de seres que falam.

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l'li A passagem de Hesíodo a que Loraux se refere aparece emTbeog. 231-232: "Horkos, que aos homens sobre a terra grandedesgraça / traz, quando alguém voluntariamente perjura." Semprena Teogonia(775-806), a água do Estige é descrita como "o grandejuramento dos deuses" (cheõn megan horkon) e, também nessecaso, ela faz o papel de "grande flagelo para os deuses (mega

pema theoisin), pois quem dos mortais, espargindo a mesma [águado Estige], jura um perjúrio C ..) até que passe um ano jaz semalento e sem voz num estendido leito e mau torpor o cobre (...)e quando o mal perfaz um ano, passa de uma a outra prova maisáspera: por nove anos a fio é mantido longe dos deuses semprevivos, e não frequenta com eles nem conselho nem banquetes".

Contudo, desde sua origem, o nexo entre juramento e perjú­rio aparece tão essencial que as fontes falam de uma verdadeira"arte do juramento" - em que, segundo Homero (Od., 19, 394),se destacava Autólico - que consistia em proferir juramentosque, graças a artifícios verbais, tomados ao pé da letra, podiamsignificar algo diferente do que podiam entender as pessoasa quem eram prestados. Nesse sentido, deve ser entendida aobservação de Platão segundo a qual "Homero tem grandeestima por Autólico, o avô materno de Odisseu, e afirma queele superava todos os homens na arte de roubar e de jurar"(kleptosynei th'horkõi te) (República, 334b).

5. Como se deve entender a arche que está em questão

em uma investigação arqueológica, como aquela que aqui nos

propomos? Até a primeira metade do século XX, nas ciências

humanas, o paradigma de investigação desse tipo havia sido

elaborado pela linguística e pela gramática comparada. A ideia

de que fosse possível retomar, através de uma análise puramentelinguística, a estados mais arcaicos da história da humanidade,

foi entrevista no final do século XIX por Hermann Usener, na sua

pesquisa sobre os Nomes dos deuses. Perguntando-se, no início

de sua investigação, como pôde acontecer a criação de nomes

divinos, ele sugere que, para responder a semelhante pergunta,não temos outros documentos senão os que provêm de uma

análise da linguagem (cf. Usener, p. 5). No entanto, já antes

dele a gramática comparada havia inspirado as investigações

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dos estudiosos - como Max Müller e Adalbert Kuhn, além

de Émile Burnouf - que, nos últimos trinta anos do século

XIX, haviam tentado fundamentar a mitologia comparada e a

ciência das religiões. Assim como a comparação entre formas

linguísticas aparentadas permitia remontar a períodos da língua

não atestados historicamente (aquelas formas indo-europeias,

por exemplo, *deiwos ou *med, que os linguistas costumam

fazer preceder por um asterisco para as distinguir das palavrasdocumentadas nas línguas históricas), assim também era possível

remontar, através da etimologia e da análise dos significados,

a estágios da história das instituições sociais que, do contrário,seriam inacessíveis.

Nesse sentido é que Dumézil pôde definir a sua investigaçãocomo obra "não de um filósofo, mas de um historiador da história

mais antiga e da franja de ultra-história [de Ia plus vieille histoire

et de Iajrange d'ultra-histoire] que se pode sensatamente tentar

alcançar" (Dumézil [2],p. 14), declarando ao mesmo tempo o seu

débito com a gramática comparada das línguas indo-europeias.

A consistência da "franja de ultra-história" que aqui o historia­dor busca alcançar está, portanto, associada à existência do indo­

-europeu e do povo que o falava. Ela existe no mesmo sentido

e na mesma medida em que existe uma forma indo-europeia;

mas cada uma dessas formas, ao pretendermos ser rigorosos,

nada mais é do que um algoritmo que expressa um sistema decorrespondências entre as formas existentes nas línguas históricas

e, segundo as palavras de Antoine Meillet, o que denominamos

indo-europeu nada mais é que "o conjunto desses sistemas de

correspondências C ..) que pressupõe uma língua x falada por

homens x em um lugar x em um tempo x') em que x equivale

simplesmente a "desconhecido" (Meillet, p. 324). A não ser que

se queira legitimar o monstrum de uma investigação histórica que

produz os seus documentos originais, do indo-europeu nunca

poderão ser extrapolados acontecimentos que se supõem histo­ricamente acontecidos. Por isso, o método de Dumézil constituiu

um progresso significativo com relação à mitologia comparada

do final do século XIX, ao reconhecer, por volta de 1950, que a

ideologia das três funções (sacerdotes, guerreiros, pastores, ou,

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em termos modernos, religião, guerra, economia) "não se tradu­zia necessariamente, na vida de uma sociedade, numa divisão

tripartite real dessa sociedade, segundo o modelo indiano", mas

que ela representava, isso sim, e precisamente, uma "ideologia",

algo parecido com "um ideal, e ao mesmo tempo, um modo deanalisar e interpretar as forças que regulam o curso do mundo e

a vida dos homens" (Dumézil [I), p. 15).

No mesmo sentido, quando Benveniste publica, em 1969, oseu Vocabulário das instituições indo-europeias, declarando na

premissa que, nas suas análises, "não entra qualquer pressuposto

extralinguístico" (Benveniste [2], I, p. 10), certamente não ficaesclarecido de que maneira devem ser entendidos o locus epis­

temológico e a consistência histórica daquilo que ele chama de

"instituição indo-europeia".

Convém definir nesse caso, na medida do possível, a natureza

e a consistência da "história mais antiga" e da "franja de ultra­

-história" que uma arqueologia pode alcançar. De fato, é evidente

que a arche a que a arqueologia procura remontar não pode

ser entendida de algum modo como um dado situável em uma

cronologia (mesmo que seja em uma grade espaçosa de tipo

pré-histórico) e nem sequer, para além dela, em uma estruturameta-histórica intemporal (por exemplo - como dizia ironica­mente Dumézil- no sistema neuronal de um hominídeo). Ela é,

sobretudo, uma força ativa na história, exatamente assim como

as palavras indo-europeias expressam, antes de mais nada, um

sistema de conexões entre as línguas historicamente acessíveis;

assim como a criança, na psicanálise, é uma força que continua

agindo na vida psíquica do adulto; e como o big bang, que se

supõe ter dado origem ao universo, é algo que não para de

mandar para nós a sua radiação fóssil. Contudo, à diferença do

big bang, que os astrofísicos procuram datar, embora em termosde milhões de anos, a arche não é um dado, uma substância ou

um acontecimento, mas sim um campo de correntes históricas

tesas entre a antropogênese e o presente, entre a ultra-história ea história. E, como tal - ou seja, enquanto, assim como a antro­pogênese, ela é algo que se supõe necessariamente acontecido,mas que não pode ser hipostasiado em um acontecimento na

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cronologia - ela pode, eventualmente, permitir a inteligibilidadedos fenômenos históricos.

Por conseguinte, investigar arqueologicamente o juramentoequivalerá a orientar a análise dos dados históricos, que limita­mos, no seu essencial, ao âmbito greco-romano, na direção de

uma arche tesa entre a antropogênese e o presente. Por outras

palavras, a hipótese consiste em que a enigmática instituição, ao

mesmo tempo jurídica e religiosa, que designamos com o termo"juramento", se tornará inteligível unicamente se a situarmos numaperspectiva na qual ela pôe em questão a própria natureza dohomem como ser falante e como animal político. É disso que

provém a atualidade de uma arqueologia do juramento. A ultra­-história, assim como a antropogênese, não é um acontecimento

que se possa considerar realizado uma vez por todas; ela sempreestá em curso, pois o homo sapiens nunca cessa de se tornarhomem; ele talvez ainda não tenha terminado de aceder à língua

e de jurar sobre a sua natureza de ser falante.

6. Antes de prosseguir nossa investigação, será necessano

limpar o terreno de um equívoco preconceituoso, que impede

o acesso à "história mais antiga" ou à "franja de ultra-história"que uma arqueologia pode sensatamente esperar atingir. Sãoexemplares, nesse sentido, as análises que Benveniste dedicouao juramento, primeiro no artigo, já citado, de 1947 e, depois,

no Vocabulário das instituições indo-europeias. Em ambas,é essencial o abandono da etimologia tradicional do termohorkos, que o remetia a herkos, "recinto, barreira, vínculo", e a

interpretação da expressão técnica para o juramento - horkon

omnymai - como "aferrar com força o objeto sacralizante".Horkos designa, portanto, "não uma palavra ou um ato, mas uma

coisa, a matéria investida pela potência maléfica, que confere

ao empenho o seu poder obrigante" (Benveniste [1], pp. 85-86).Horkosé a "substância sagrada" Cibid., p. 90), que se encarna, emcada oportunidade, na água do Estige, no cetro do herói ou nas

vísceras das vítimas sacrificais. Seguindo os passos de Benveniste,um grande historiador do direito grego, Louis Gernet, lembra,

praticamente com os mesmos termos, a "substância sagrada"

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com que se põe em contato aquele que profere o juramento(Gemet [1],p. 270: "Jurar significa ingressar na esfera das forçasreligiosas, a saber, as mais terríveis").

A ideia segundo a qual explicar um instituto histórico significanecessariamente reconduzi-lo a uma origem e a um contextosagrado ou mágico-religioso é tão forte nas ciências humanas,a partir do final do século XIX, que, quando Jean Bollack, em1958,escreve o seu artigo "Styxet serments" a fim de demonstrar,contra Benveniste, que o termo horkos adquire seu verdadeirosentido unicamente se o remetermos à sua derivação etimológicade herkos, não se dá conta de que, no fundo, mantém o essencialda argumentação que ele tem a pretensão de criticar:

o juramento coloca o jurante, através da força mágica dascoisas, numa relação particular com os objetos invocadose com o mundo (...) Muitos objetos invocados, como o lar,pertencem ao campo do sagrado. Contudo, num universovastamente sacralizado,todo objeto que serve de testemunhapodia transformar-se, de garantia e guarda, em potênciaterrificante.É esta relação específica,que liga o homem aosobjetos invocados, que acaba sendo definida pelo termohorkos, que não designa - como pensa Benveniste- o objetosobre o qual o juramento é proferido, mas o recinto com oqual quem jura se faz circundar CBollack,p. 30-31).

A sacralidade desloca-se aqui do objeto para a relação, mas aexplicação continua a mesma. Segundo um paradigma insis­tentemente repetido, a força e a eficácia do juramento devemser buscadas na esfera das "forças" mágico-religiosas, a que elepertence em sua origem e que se pressupõe ser a mais arcaica:as "forças" derivam dela e declinam com o declínio da féreligiosa. Nesse caso, tem-se como pressuposto para o homemque nós conhecemos historicamente um homo religiosus, queexiste apenas na imaginação dos estudiosos, pois todas as fontesdisponíveis nos apresentam sempre, como vimos, um homemreligioso e, ao mesmo tempo, irreligioso, fiel aos juramentose, ao mesmo tempo, também capaz de perjúrio. O que aquipretendemos questionar é precisamente esse tácito pressupostode qualquer análise do instituto.

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~ Como sugere o próprio Benveniste, a tese sobre o horkoscomo "substância sagrada" deriva de um artigo de EliasBickermann, estudioso da antiguidade clássica, que era tambémum excelente historiador do judaísmo e do cristianismo. Oreferido artigo, publicado em 1935, na Revue des Études]uives,

refere-se ao juramento só como exemplo de método, no âmbitode uma crítica ao livro de Gerardus van der Leeuw sobre a

Fenomenologia da religião, publicado dois anos antes. Osprincípios metodológicos que Bickermann expõe parecem terexercido notável influência em Benveniste, embora reflitam,

de fato, uma formação cultural comum (Bickermann que,desde 1933, havia lecionado na École Pratique des HautesÉtudes de Paris, e até 1942, quando foi obrigado, pela suaorigem judaica, a refugiar-se nos Estados Unidos - onde seunome se tornará Bickerman - havia sido chargé des recherches[encarregado de pesquisas] no Centre National de Ia RechercheScientifique, se remete explicitamente ao método de AntoineMeillet, que havia sido o mestre de Benveniste). O que aconteceé que os quatro princípios metodológicos recomendados porBickermann (abandono do recurso à psicologia para explicaros fenômenos religiosos; decomposição dos fatos nos seuselementos constitutivos ou "temas"; análise da função decada elemento na sua particularidade; estudo da função decada elemento no fenômeno em questão) estão pontualmentepresentes em Benveniste. Mais uma vez, contudo, um estudioso

tão atento, ao examinar detalhadamente o juramento a fim deexemplificar o seu método, repete acriticamente o paradigma daprimordialidade do sagrado, que Benveniste retomará quase nosmesmos termos: "Sempre e em todos os lugares, a ideia consisteem colocar uma afirmação em relação com uma coisa sagradaC..) o objetivo, contudo, continua sendo o mesmo: colocar aafirmação em relação com a Substância sagrada" (Bickermann,pp. 220-221).

7. A respeito da pretensa ambivalência do termo sacer, mos­

tramos noutro lugar (Agamben, pp. 79-89) as insuficiências e

as contradiçôes ligadas à doutrina do "sagrado" elaborada naciência e pela história das religiões entre o final de século XIX

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e os primeiros decênios do século xx. Basta recordarmos aquique o momento determinante na constituição desse "mitologe­ma científico", que condicionou negativamente as investigaçõesdas ciências humanas num setor especialmente delicado, é oencontro entre a noção latina do sacer e a de mana, que ummissionário anglicano, Robert Henry Codrington, havia descritona sua obra sobre as populações da Melanésia (TheMelanesians,

1891). Catorze anos antes, Codrington já havia comunicado asua descoberta em carta a Max Müller, que a usou nas HilbertLectures, onde o conceito de mana se transforma no modo emque "a ideia do infinito, do invisível, e daquilo que mais tardeserá chamado o divino, pode aparecer em forma vaga e nebu­losa junto aos povos mais primitivos" (Müller, p. 63). Nos anosseguintes, a noção reaparece sob diferentes nomes nos estudosetnográficos sobre os indígenas norte-americanos (orenda entreos iroqueses; manitou entre os algonquinos; wakan entre osdacotas), até que Robert Marret, no seu Threshold of Religion

(909), transforma tal "força" invisível em categoria central daexperiência religiosa. Apesar da inconsistência das teorias sobrea religião de autores como Müller (que exerceu uma verdadeiraditadura sobre a nascente "ciência"- ou melhor, como ele prefe­ria chamá-Ia - "história" das religiões) e Marret, a quem se devea noção de animismo (outro mitologema científico que custamorrer), a ideia de um "poder ou de uma substância sagrada",terrível e ao mesmo tempo ambivalente, vaga e indeterminada,como categoria fundamental do fenômeno religioso, exerceusua influência não apenas sobre Durkheim, Freud, Rudolf, Ottoe Mauss, mas também sobre essa obra-prima da linguística doséculo XX que é Vocabulário das instituições indo-europeiasde Benveniste.

Foi preciso esperar pelo ensaio de Lévi-Strauss,de 1950,paraque o problema do significado de termos como mana fosse abor­dado em bases inteiramente novas. Empáginas memoráveis, Lévi­-Straussfez aproximações desses termos com expressões comunsda nossa linguagem, como truc (troço) ou machin (negócio),usadas para designar um objeto desconhecido ou cujo uso nãose consegue explicar. Mana, orenda, manitou não designamalgo parecido com uma substância sagrada nem os sentimentos

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sociais relativos à religião, mas sim um vazio de sentido ou umvalor indeterminado de significação, que tem a ver, sobretudo,

com os próprios estudiosos que a eles recorrem:

Sempre e em qualquer lugar, esse tipo de noções, como sefossem símbolos algébricos, intervém para representar umvalor indeterminado de significação, em si mesmo sem sen­tido e, portanto, capaz de receber qualquer significado, cujaúnica função consiste em preencher um vazio entre signifi­cante e significado ou, mais exatamente, em assinalar que,numa determinada circunstância, numa determinada ocasião,acaba sendo estabelecida uma relação de inadequação entresignificante e significado (Lévi-Strauss, p. XlIV).

Se há um lugar - acrescenta Lévi-Strauss - em que a noção

de mana de fato apresenta as características de uma potênciamisteriosa e secreta, esse lugar é, sobretudo, o pensamento dosestudiosos: "Lá realmente o mana é mana" Cibid., p. XLV). No

final do século XIX, a religião na Europa havia se tornado, de

modo bem evidente, pelo menos para aqueles que pretendiamfazer a sua história ou construir uma ciência a seu respeito, algo

tão estranho e indecifrável a ponto de eles precisarem buscar achave de leitura muito mais entre os povos primitivos do quena própria tradição; tais povos, porém, através dos conceitos

como mana, não podiam fazer nada mais do que restituir, comonum espelho, a mesma imagem extravagante e contraditória que

aqueles estudiosos neles haviam projetado.

l'I; Falando de uma inevitável desconexão entre significante esignificado, Lévi-Strauss retoma e desenvolve de maneira nova ateoria de Max Müller, que vê na mitologia uma espécie de "doen­ça" do conhecimento causada pela linguagem. Segundo Müller, aorigem dos conceitos mitológicos e religiosos deve ser buscada,justamente, na influência que a linguagem, em que estão neces­sariamente presentes paronímias, polissemias e ambiguidades detodo tipo, exerce sobre o pensamento. "Amitologia - escreve ele- é a sombra opaca que a linguagem projeta sobre o pensamentoe que nunca poderá desaparecer enquanto língua e pensamentonão coincidirem completamente, circunstância que nunca poderáacontecer" (apud Cassirer, p. 13).

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8. Outro aspecto do mitologema que acabamos de descrever

(e, de fato, inseparável dele) é a ideia segundo a qual a esfera

da sacralidade e da religião - muitas vezes unida à da magia,

fazendo com que se fale também, reforçando a confusão, de uma

esfera "mágico-religiosa" - coincide com o momento mais arcaico

a que a investigação histórica nas ciências humanas, mesmo com

prudência, possa chegar. Uma simples análise textual mostra que

se trata de uma pressuposição arbitrária, feita pelo estudioso no

ponto em que atinge, no próprio âmbito da investigação, um limite

ou um umbral documentário, como se a passagem para aquilo queFranz Overbeck denominava Urgeschichte (história das origens)

e Dumézil "franja de ultra-história" implicasse necessariamente

um salto de olhos fechados para o elemento mágico-religioso,

que frequentemente nada mais é do que o nome dado, mais ou

menos conscientemente, pelo estudioso, à terra incógnita que

se estende para além do âmbito que o paciente trabalho dos

historiadores conseguiu definir. Tenha-se em conta, por exemplo,

na história do direito, a distinção entre esfera religiosa e esfera

profana, cujas marcas distintivas nos aparecem, pelo menos em

época histórica, de algum modo definidas. Quando atinge nesse

âmbito um estágio mais arcaico, o estudioso tem a impressão

que as fronteiras ficam indeterminadas e, por esse motivo, é

levado a formular a hipótese de um estágio precedente, no qual

a esfera sagrada e a profana (e muitas vezes também a mágica)

ainda não se distinguem entre si. Nesse sentido, ao abordar o

direito grego mais antigo, Louis Gemet chamou de "pré-direito"

Cpre-droit) uma fase originária em que direito e religião aparecemindiscemíveis. Na mesma perspectiva, Paolo Prodi, na sua história

política do juramento, evoca um "indistinto primordial", no qual

o processo de separação entre religião e política ainda não foi

iniciado. Em casos desse tipo, é essencial ter a prudência de não

projetar, simples e acriticamente, sobre o pressuposto "indistinto

primordial", as características por nós conhecidas que definem a

esfera religiosa e a profana, e que são justamente o resultado do

paciente trabalho dos historiadores. Do mesmo modo que um

composto químico tem propriedades específicas impossíveis de

serem reduzidas à soma dos elementos que o compõem, assim

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também aquilo que aparece antes da divisão histórica - admi­

tindo-se que algo semelhante exista - não é necessariamente asoma opaca e indistinta das características que definem os seusfragmentos. O pré-direito não pode ser apenas um direito mais"arcaico", da mesma forma que aquilo que vem antes da religiãocomo a conhecemos historicamente não é apenas uma religião

mais primitiva (o manna); aliás, seria aconselhável evitar o uso

dos próprios termos religião e direito, e tentar imaginar um x,

para cuja definição precisamos nos armar de toda cautela possível,realizando uma espécie de epoche arqueológica, que suspenda,pelo menos provisoriamente, a atribuição dos predicados comque costumamos definir religião e direito.

O que, nessa altura, deveria ser questionado é o umbral de

indistinção com que se choca a análise de pesquisador. Não éalgo que deva ser incautamente projetado sobre a cronologia,como um passado pré-histórico para o qual realmente faltam os

documentos, mas ser visto como um limite interno, cuja com­preensão, ao serem questionadas as distinções adquiridas, podelevar a uma nova definição do fenômeno.

t'I; O caso de Mauss constitui um bom exemplo para mostrarcomo a pressuposição do conjunto sacral age decididamente,embora venha a ser, pelo menos em parte, neutralizada pelaatenção especial dada aos fenômenos que define o seu método.A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa comuma tentativa de distinguir os fenômenos mágicos frente à religião,ao direito e à técnica, com os quais muitas vezes tinham sidoconfundidos. No entanto, a análise de Mauss se depara todas asvezes com fenômenos (por exemplo, os ritos jurídico-religiososque contêm uma imprecação, como a devo tio) que não é possívelatribuir a uma única esfera. Assim, Mauss é levado a transformar

a oposição dicotômica religião - magia numa oposição polar,traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremosdo sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente,umbrais de indecidibilidade (cE. Mauss, p. 14). É sobre estes um­brais que ele concentra o seu trabalho. O resultado, conformeobservou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos mágicos,por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, "o seu objetivoprincipal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os

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fenômenos e a tendência da maior parte dos mesmos de iremalém de qualquer definição, por se situarem simultaneamente emníveis diversos" (Dumézil [3],p. 49).

9. Venhamos agora ao juramento, que - na única época em

que o podemos analisar, a saber, aquela para a qual dispomos

de documentos - se apresenta como um instituto jurídico quecontém elementos que costumamos associar à esfera religiosa.É totalmente arbitrário distinguir nele uma fase mais arcaica, emque nada mais seria do que um rito religioso, de uma fase maismoderna, a qual pertence plenamente ao direito. De fato, desdeos documentos mais antigos de que dispomos, como é o caso,em Roma, da inscrição do vaso de Dvenos, que é datado do final

do séc. VI a.c., o juramento se apresenta como uma fórmula

promissória de caráter certamente jurídico - no caso específico,como a garantia prestada pelo tutor da mulher ao (futuro) maridono momento do casamento ou do noivado. Contudo, a fórmula,

escrita em latim arcaico, menciona os deuses, ou melhor, juraos deuses Ciovesat deiuos quoi me mitat: "quem me manda ­

é o vaso que fala - jura (pelos) os deuses" - Dumézil [3], pp.14-15). Aqui, de modo algum, precisamos pressupor como mais

antiga, na história do juramento, uma fase puramente religiosaque nenhum documento disponível atesta como tal: de fato, nafonte mais antiga que a tradição latina nos permite alcançar, o

juramento é um ato verbal destinado a garantir a verdade deuma promessa ou de uma asserção, que apresenta as mesmas

características mostradas mais tarde pelas fontes e que, por ne­nhum motivo, precisamos definir como mais ou menos religioso,mais ou menos jurídico.

O mesmo vale para a tradição grega. O juramento que as

fontes mais antigas nos apresentam numa vasta casuística implicao testemunho dos deuses, a presença de objetos (o cetro, como

acontece no "grande juramento" - megas horkos- de Aquiles, noinício da llíada, mas também os cavalos, o carro ou as vísceras

do animal sacrificado; são todos elementos encontrados em época

histórica) para juramentos que certamente têm natureza jurídica(assim como ocorre nos pactos entre cidades federadas, em que o

juramento é definido "legal", horkos nomimos - d. Glotz, p. 749),

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E, conforme verificamos, também os deuses juram, invocando aágua do Estige; e, tendo em conta o que Hesíodo nos diz sobre

a punição do perjúrio feito por um Deus, também os deusesestão submetidos à autoridade do juramento. Além disso, conta­mos com um testemunho importante, o de Aristóteles, que nosinforma que os filósofos mais antigos, "que por primeiro fizeram

especulações em torno do divino [theologesantas]", colocavam

entre os primeiros princípios do cosmo, ao lado de Oceano e

de Tétis, "o juramento sobre a água que chamam Estige" [Met.)983b, 32]' e acrescenta: "O mais antigo [presbytaton] é o mais

venerável [timiõtaton], e o mais venerável é o juramento [horkosde timiõtaton estin]" (ibid.) 34-35), De acordo com este testemu­

nho, o juramento é o que há de mais antigo, não menos antigodo que os deuses, que, aliás, estão, de algum modo, submetidosa ele. Isso, porém, não significa que ele deva ser pensado como

"substância sagrada"; pelo contrário, o contexto da passagem,que é o da reconstrução do pensamento de Tales no interior da

breve história da filosofia que abre a Metajísica, nos induz so­

bretudo a situarmos o juramento entre os "princípios primeiros"

[prõtai aitiai] dos filósofos pré-socráticos, como se a origem docosmo e do pensamento que o compreende implicasse de algumamaneira o juramento.

Todo o problema da distinção entre o jurídico e o religioso,especialmente no caso do juramento, está, portanto, mal colocado.

Não só não temos motivo para postular uma fase pré-jurídica naqual ele pertenceria apenas à esfera religiosa, mas talvez devaser revista toda a nossa maneira habitual de representarmos a

relação cronológica e conceitual entre o direito e a religião. Tal­vez o juramento nos apresente um fenômeno que não seja, emsi, nem (só) jurídico, nem (só) religioso, mas que, precisamentepor isso, possa nos permitir repensarmos desde a sua raiz o queé o direito, o que é a religião.

l"; Ao contrapormos direito e religião, importa lembrar que osromanos consideravam a esfera do sagrado como parte integrantedo direito. O Digesto começa distinguindo ius publicum, quediz respeito ao status reipublicae, e ius privatum, que tem a vercom a singulorum utilitatem; logo depois, porém, o iuspublicum

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é definido como o direito "que consiste nas coisas e nos ritossagrados, nos sacerdotes e nos magistrados" Ciuspublicum quodin sacris, in sacerdotibus, in magistratibus consistit) (Ulpiano,Dig. I, 1). No mesmo sentido, Gaio (Inst. 11,2) distingue as coisasde acordo com o fato de pertencerem ao ius divinum ou ao iushumanum, esclarecendo que divini iuris sunt veluti res sacrae et

religiosae [são, como tais, do direito divino as coisas sagradas ereligiosas]; contudo, esta summa divisio das coisas é, obviamente,interna ao direito.

10. Dois textos permitir-nos-ão retomar a análise do juramentoem novas bases. O primeiro é uma passagem das Legum allego­

riae (204-208) de Fílon, que, a propósito do juramento que Deus

fez a Abraão em Gn. 22, 16-17, põe o juramento numa relaçãoconstitutiva com a linguagem de Deus:

Observa que Deus não jura sobre algum outro - não há nin­guém que lhe seja superior -, mas sobre si mesmo, pois eleé o melhor de todos. Alguns dizem, porém, que jurar nãotem a ver com ele porque o juramento é feito tendo em vistaa confiança [pisteõsheneka], e só Deus é digno de confiança[pistos]C ..) O fato é que as palavras de Deus são juramen­tos [hoi logoi tou theou eisín horkoi], leis divinas e normassacrossantas. E a prova da sua força reside no fato de queaquilo que ele diz acontece [an eipei ginetai], o que constituia característica mais específica do juramento. Consequênciadisso é que aquilo que ele diz, todas as palavras de Deus sãojuramentos confirmados pelo fato de se cumprirem nos atos[ergon apotelesmasiJ. Dizem que o juramento é um testemu­nho [martyria] de Deus sobre as coisas pelas quais se luta.Mas quando é Deus quem jura, ele estaria testemunhandopor si mesmo, o que é absurdo, pois quem dá testemunhoe aquilo pelo qual se testemunha devem ser diferentes. (...)Se entendermos de maneira correta a expressão "jurei sobremim mesmo", daremos um ponto final a tais sofismas. Talveza situação seja a seguinte: ninguém dos que podem dar umagarantia [pistoun dynatai] pode fazê-Io com segurança comrespeito a Deus, pois a ninguém ele mostrou sua natureza, masa manteve escondida a todo o gênero humano (...) Portanto,ele só pode fazer afirmações sobre si mesmo, pois só ele

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conhece exatamente e sem erros a sua própria natureza. Namedida em que só Deus pode, com certeza, comprometer-seconsigo e com suas ações, por isso, e com razão, ele jurousobre si mesmo, tornando-se fiador de si mesmo [õmnye

kath 'heautou pistoumenos heauton], e nenhum outro o pode­ria fazer. Por esse motivo, deveriam ser considerados ímpiosos que dizem jurar sobre Deus: ninguém, de fato, jura sobreele, porque não se pode ter conhecimento da sua natureza.Devemos contentar-nos de poder jurar sobre o seu nome,ou seja, sobre a palavra que dele é intérprete [tou ermeneõs

logou]. E este é o Deus para os seres imperfeitos, enquanto oDeus dos perfeitos e dos sábios é o primeiro. Por isso, Moisés,cheio de maravilha pelo excesso do não gerado, disse: "jurarássobre o seu nome" e não sobre ele. A criatura gerada só podedar confiança e testemunho da palavra de Deus, enquanto opróprio Deus é a fé [pistis] e o testemunho mais forte de si.

Procuremos resumir em cinco teses as implicações dessebreve tratado sobre o juramento:

1. O juramento é definido como a realização das palavrasnos fatos (an eipéi ginetai - correspondência pontual entrepalavra e realidade).

2. As palavras de Deus são juramentos.

3. O juramento é o lagos de Deus, e só Deus jura verdadei­ramente.

4. Os homens não juram sobre Deus, mas sobre o nome dele.

5. Por não sabermos nada de Deus, a única definição certa

que podemos dar a respeito dele é que ele é o ser, cujoslogo i são horkoi, cuja palavra, com absoluta certeza, dátestemunho de si.

O juramento, definido pela correspondência entre palavrase atos, cumpre nesse caso uma função absolutamente central,e não só no plano teológico, enquanto define Deus e o seu la­

gos, mas também no plano antropológico, enquanto relaciona alinguagem humana com o paradigma da linguagem divina. Se ojuramento é, de fato, a linguagem que sempre se realiza nos fatos,e este é o lagos de Deus (no De saerifieiis [65], Fílon escreveráque "Deus, no mesmo instante em que fala, faz lho theos legõn

hama epoiei]"); o juramento dos homens é, então, a tentativa de

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adequar a linguagem humana a este modelo divino, tornando-o,

tanto quanto é possível, pistas, crível.

No De sacrificiis (93), Fílon insiste nessa função do jura­mento.

Os homens - escreve ele - sendo infiéis, apelam para o juramentoa fim de obter credibilidade; Deus, pelo contrário, mesmo quandofala é confiável [pistas],pois seus logoi em nada diferem, quanto àcerteza, de um juramento. Nós acrescentamos às afirmações o jura­mento, enquanto é Deus quem torna confiável o próprio juramento.Deus não é crível por causa [dia] do juramento, mas o juramento éseguro por causa de Deus.

Pensemos sobre a recíproca implicação entre Deus e o jura­

mento contida na última frase, que retoma um modelo retórico

frequente não apenas no judaísmo, e que age enquanto inverte

uma verdade estabelecida (bom exemplo disso é o que consta em

Me. 2,27: "o sábado é feito para [dia] o homem e não o homem

para o sábado"). Na tradição clássica, pistas é, por excelência,

o harkas, assim como, na tradição judaica, pistas [eman] é, por

excelência, o atributo de Deus. Desenvolvendo esta analogia,

(talvez seguindo os passos do verso de Ésquilo - fr. 369 - no

qual se lê que "o juramento não é fiador do homem, mas o ho­

mem, do juramento"), Fílon estabelece uma conexão essencial

entre Deus e juramento, fazendo deste a própria palavra de

Deus. Dessa maneira, porém, não só a linguagem humana, mas

também o próprio Deus acaba sendo irresistivelmente remetido

para a esfera do juramento. No juramento, a linguagem humana

comunica-se com a de Deus; por outro lado, se Deus é o ser

cujas palavras são juramentos, será totalmente impossível decidir

se ele é confiável por causa do juramento, ou se o juramento é

confiável por causa de Deus.

11. O segundo texto é a célebre passagem do De aificiis (HI,

102-107), de que já citamos algumas linhas, e que agora devemos

situar no seu devido contexto. Nela se trata do comportamento de

Atílio Régulo que, enviado a Roma pelos inimigos de quem era

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prisioneiro com o juramento de que retomaria, decide retomar

sabendo que seria levado à morte. A pergunta que Cícero faz

tem a ver com a origem do poder obrigante do juramento. "Oque acontece - perguntar-se-á - no juramento? O que tememos,realmente, é a ira de ]úpiter?" Em todo caso - responde ele ­

todos os filósofos afirmam que oS deuses não se irritam nem

fazem mal aos seres humanos. É nesta altura que ele enuncia a

célebre definição do juramento que já citamos: "No juramento

não deve ser compreendido o medo que ele gera, mas qual é

a sua eficácia [non qui metus sed quae vis sit debet intellegi]. O

juramento é uma afirmação religiosa [aifirmatio religiosa]: o queprometeste solenemente, como se Deus fosse testemunha disso,

é o que deves manter."

É decisiva a argumentação com a qual Cícero fundamenta,

nesse momento, a vis do juramento. Ela não diz respeito à ira dos

deuses, que não existe (quae nulla est), mas à confiança (fides).

A obrigatoriedade do juramento não deriva, portanto, segundo

a opinião demasiadamente repetida pelos estudiosos modernos,dos deuses, que foram chamados apenas como testemunhas,

mas do fato de que o mesmo se situa no âmbito de um instituto

mais amplo, a fides, que regula tanto as relações entre os seres

humanos, quanto aquelas entre os povos e as cidades. "Quem

viola um juramento, viola a confiança" (Quis ius igitur iurandum

violat, is fidem violat). Na passagem, citada anteriormente, do

primeiro livro da obra, a fides, "fundamento da justiça", haviasido definida etimologicamente, assim como aconteceu em Fílon,

através da realização do que é dito: quia fiat quod dictum est

appellatamfidems Cibid., I, 23). A fé é, pois, essencialmente, a

correspondência entre a linguagem e as ações. Régulo - assim

pode concluir Cícero - agiu bem observando o seu juramento: se

é lícito não observar um juramento com os piratas, com os quais,

enquanto hostes omnium [inimigos de todos], não pode existir

uma fé comum, seria injusto "perturbar com perjúrio os pactos eos acordos que regulam as guerras e a hostilidade" (condiciones

pactionesque bellicas et hostiles perturbare periuro).

5 Porque se faz o que é dito chama-se de fé. (N.T.)

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l'; É oportuno esclarecer o significado do termo religiosus nadefinição ciceroniana do juramento. Res religiosa é, em Roma,o que foi consagrado aos deuses inferiores (religiosae quae diismanibus relictae sunt - Gaio 2, 2); nesse sentido, é religiosus porexcelência o sepulcro, o lugar em que foi inumado um cadáver(corpus, que os romanos distinguiam de cadaver, que designaum morto sem sepultura). A res religiosa é subtraída ao usoprofano e ao comércio, e não pode ser alienada nem gravadade servidão, não pode ser dada em usufruto ou como penhora,nem sequer pode ser transformada em objeto de qualquercontrato (d. Thomas, p. 74). De maneira mais geral, a coisareligiosa, assim como a coisa sagrada, está sujeita a uma sériede prescrições rituais, que a tornam inviolável e que é precisoobservar escrupulosamente. Compreende-se assim em que sentidoCícero pôde falar do juramento como aifirmatio religiosa. A"afirmação religiosa" é uma palavra garantida e sustentada poruma religio, que a subtrai ao uso comum e, ao consagrá-Ia aosdeuses, a transforma em objeto de uma série de prescrições rituais(a fórmula e o gesto do juramento, a convocação dos deusescomo testemunhas, a maldição em caso de perjúrio etc). Oduplo sentido do termo religio, que, segundo os léxicos, significatanto "sacrilégio, maldição", quanto "escrupulosa observânciadas fórmulas e normas rituais", nesse contexto explica-se semdificuldades. Em certa passagem do De natura deorum (II,11), os dois sentidos aparecem, ao mesmo tempo, distintos ejustapostos: o cônsul Tibério Graco, que havia se esquecido depedir a proteção [dos deuses] no momento da designação dosseus sucessores, prefere admitir o seu erro e anular a eleiçãoocorrida contra a religio, ao invés de deixar que um "sacrilégio"(religio) contamine o Estado: peccatum suum, quod celariposset,confiteri maluit, quam haerere in republica religionem, consulessummum imperium statim deponere, quam id tenere punctumtemporis contra religionem.6

É nesse sentido que, ao fazer coincidir os dois significadosdo termo, tanto Cícero quanto César e Lívio podem falar deuma "religião do juramento" (religia iusiurandi). De maneira

6 Preferiu confessar o seu pecado, que poderia ter ocultado, ao invés de, na vidapública, ficar devendo ã religião; (preferiu) depor imediatamente os cônsulesdetentores do sumo poder para não manter o poder, por pouco tempo quefosse, contra a religião. (N.T.)

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semelhante, Plínio, referindo-se às prescrições a observar comrespeito a determinadas partes do corpo, pode falar de umareligio que tem a ver com os joelhos, com a mão direita einclusive com a urina (Hominum genibus quaedam et religioinest observatione gentium (. ..) inest et aliís partibus quaedamreligio, sicut in dextera: osculis adversa adpetitur, in fideporrigitur (NH, XI, 250-251). E quando, em texto de carátermágico, lemos a fórmula contra a dor de garganta: hanc religionemevoco, educo, excanto de istis membris, medullis 7 (Mauss, p. 54),religio vale tanto como "malefício", quanto como conjunto dasfórmulas rituais que devem ser observadas a fim de produzir (eeliminar) o feitiço.

Quando, ao projetar, anacronisticamente, um conceito mo­derno sobre o passado, se fala atualmente de uma "religiãoromana", não se deve esquecer que, segundo a clara definiçãoposta por Cícero nos lábios do pontífice máximo Cota, ela nadamais era do que o conjunto das fórmulas e das práticas rituais aobservar no ius divinum: cum omnis populi Romani religio insacra (as consagrações) et in auspicia (auspícios que devem serconsultados antes de qualquer ato público importante) divisasit (De nato deorum III, 5), Por esse motivo, ele podia indicara sua etimologia (aliás, compartilhada pelos estudiosos mo­dernos) no verbo relegere, observar escrupulosamente: quiautem omnia quae ad cultum deorum pertinerent diligente rretractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi exrelegendo8 (ibid., II, 72).

12. A proximidade entre fé e juramento não deixou de serpercebida pelos estudiosos e é comprovada pelo fato de que,no grego, pistis é sinônimo de horkos em expressões como:pistin kai horka poieisthai (prestar juramento), pista dounaikai lambanein (fazer troca de juramento). Em Homero, pista(confiáveis) são, por excelência, os juramentos. E, no âmbito

7 Do interior destes membros, eu chamo, eu faço sair, eu atraio por encantoesta religião. (N.T.)

8 Todas as coisas que pertencem ao culto dos deuses diligentemente retratadase de algum modo relidas, disso se diz que são religiosas pela releitura. (N.T.)

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latino, Ênio, num verso citado por Cícero, define a fides

como "juramento de Júpiter" (ius iurandum !ovis). Além disso,é significativo que sejam apresentadas não só fórmulas dejuramento "para a pistis dos deuses", mas também "para a própriapistis' - kata tés heauton pisteãs diomosamenoi (Dion. Hal. XI,54) - e que, aliás, a "pistis de cada um" Cidia hekastãi pistis)

valesse como o megistos horkos Cibid., II, 75; d. Hirzel, p. 136).

Dumézil e Benveniste reconstituíram, a partir de dados sobre­tudo linguísticos, as linhas originais da antiquíssima instituiçãoindo-europeia que os gregos denominavam pistis, e os romanos,fides (em sânscrito, sraddha): a "fidelidade pessoal". A "fé" é ocrédito com que se conta junto a alguém, como consequência dofato de que somos abandonados confiavelmentea ele, ligando-nosnuma relação de fidelidade. Por isso, a fé é tanto a confiança quedepositamos em alguém - a fé que damos - quanto a confiançacom que contamos junto a alguém - a fé, o crédito que temos.O velho problema dos dois significados simétricos do termo "fé",ativo e passivo, objetivo e subjetivo, "garantia dada" e "garantiainspirada", para a qual havia chamado a atenção Eduard Frankelem famoso artigo, explica-se, sem dificuldades, sob essa pers­pectiva: "Aquele que detém a fides nele colocada por um homemmantém tal homem em seu poder. Por isso, fides torna-se quasesinônimo de dicio e potestas. Na sua forma primitiva, tais relaçõesimplicavam alguma reciprocidade: depositar a própria fides emalguém merecia, em troca, a sua garantia e a sua ajuda. Mas éprecisamente esse fato que marca a desigualdade das condições.Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com aproteção sobre aquele que se submete, em troca da sua submis­são e na mesma medida desta" (Benveniste [2]2, pp. 118-119).

Dessa forma, torna-se compreensível a forte vinculação entreos dois termos latinos fides e credere, que viria a assumir tantaimportância no âmbito cristão. Meillet havia mostrado que oantigo substantivo verbal *kred tinha sido substituído no uso dafides, que expressava noção bem semelhante. Credere justamentesignificava, na sua origem, "dar o * kred", depositar a própria féem alguém de quem se espera proteção e, dessa maneira, vincular­-se com ele na fé (frequentemente, com o aperto da mão direita:dextrae dextras iungentesfidem obstrinximus - LIV. 23, 9, 3).

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Além de regulamentar as relações pessoais, a fides cumpria

uma função importante no direito público internacional, na re­

lação particular que se instaurava através dela entre as cidades

e os povos. Numa guerra, a cidade inimiga podia ser vencida

e destruída com a força (kata kratos), enquanto seus habitan­

tes eram mortos ou reduzidos à escravidão. Contudo, também

podia acontecer que a cidade mais fraca recorresse ao instituto

da deditio in fidem, ou seja, que capitulasse, remetendo-se in­

condicionadamente à lides do inimigo, comprometendo assim,

de algum modo, o vencedor a assumir um comportamento mais

benevolente. Também este instituto era chamado, pelos gregos,

de pistis (dounai eispistin, peithesthai) e, pelos romanos, de fides

(in fidem populi Romani venire ou se tradere)9. Também aqui

encontramos a íntima relação entre fé e juramento: as cidades

e os povos que se vinculavam mutuamente na deditio in fidem

trocavam entre si juramentos para sancionar tal relação.

A fides é, portanto, um ato verbal, acompanhado em geral

de um juramento, Com o qual alguém se entrega totalmente à

"confiança" de outrem, obtendo, em troca, a sua proteção. O

objeto da fides é, em todo caso, assim como no juramento, a

conformidade entre as palavras e as ações das partes.

Dumézil mostrou que, quando em Roma a história do período

monárquico foi pouco a pouco construída de maneira retrospec­

tiva e assumiu uma forma definida, a fides, que cumpria papel

importante na vida pública e privada, acabou sendo divinizada

e associada à figura de Numa, a quem se atribuía a fundação

das sacra e das leges (Dumézil [4], p. 184). Fides torna-se, assim,

uma deusa, para a qual, por volta do ano 250, foi construído um

templo no Capitólio romano; contudo, assim como para Deus

Fidius, a respeito do qual se discute se, originalmente, era distinto

ou não de Júpiter, e que, assim como Mitra, era uma espécie de

"contrato personificado" Cibid.), aqui a religião não precede, mas,se muito, sucede o direito.

Portanto, com a fides, exatamente assim como acontece com

o juramento, encontramo-nos em uma esfera na qual o problema

9 Render-se ao povo romano ou se entregar. (N.T.)

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da relação genética entre religião e direito deve ser retomado em

novas bases. Frente à complexidade desses institutos, que pare­

cem ser ao mesmo tempo morais, religiosos, sociais e jurídicos,de nada serve recorrer, conforme fazem alguns, às categorias do

pré-direito (d. Imbert, p. 411). O fato de os institutos em questão

não serem sancionados juridicamente (impunidade do perjúrio

na época mais antiga, ausência de ação legal para o credor que

apelou para a fides do devedor) não significa que eles devam

ser considerados mais religiosos do que jurídicos; significa, sim,

que a investigação com eles chegou a um limite, que nos obrigaa reconsiderarmos as nossas definições do que é jurídico e do

que é religioso.

~ É lugar comum da doutrina sobre o juramento afirmar quea ausência de sanção do juramento na época antiga seja o sinaldo seu pertencimento à esfera religiosa, enquanto a punição doperjúrio teria sido deixada para os deuses. Os estudiosos con­tinuam citando o dictum de Tácito, deorum iniunas dis cume

(Ann. 1, 73), sem se preocuparem com o contexto jurídico-políticodo qual é tirado. Rubírio foi acusado frente a Tibério de "ter

violado, com um perjúrio, o numen de Augusto" (trata-se, pois,de um tipo especial de juramento "pelo gênio do imperador",que se tornará comum na idade imperial). O problema não é seo perjúrio em geral é punível ou não, mas se Rubírio deve seracusado, por causa do seu perjúrio, de crime de lesa-majestade.Tibério, naquele momento, prefere não se servir de um motivo deacusação de que - conforme nos informa Tácito - mais tarde faráum uso feroz, afirmando sarcasticamente que "no caso daquelejuramento se deve considerar que tivesse sido ofendido Júpiter:as ofensas aos deuses são assunto dos deuses [deorum iniunas

dis cume]". Não se trata, de modo algum, segundo as palavrasde um comenta dor leviano, de um "antigo princípio do direitoromano", mas do sarcasmo de um imperador cuja escassa piedadereligiosa era conhecida (circa deos et religiones negligentior- Sue­tônio, Tib. 69). Isso acaba sendo confirmado pelo fato de que ooutro caso no qual encontramos o mesmo princípio aparece bemmais tarde, referindo-se significativamente ao mesmo problemada aplicabilidade do delito de lesa-majestade a um juramento

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sobre o numen principis (também aqui a resposta do imperadoré negativa e, com uma provável remissão ao dictum de Tibério,se sugere que iusiurandi contempta religio satis deorum ultoremhabet - Codex iuris 4, 1, 210).

É incorreto considerar jurídicas só as disposições para as quaisera prevista uma sanção. Pelo contrário, Ulpiano afirma de modoexplícito que só deve ser considerada peifecta a lei para a qualnão se prevê sanção, enquanto a presença de uma sanção tornaa lei impeifecta ou minus quam peifecta (Liber sing. Regularum,

prol. 1-2)Y No mesmo sentido, a impunidade da mentira emmuitos ordenamentos arcaicos não significa que a sua puniçãofosse da alçada dos deuses. No máximo, é possível que aqui setenha a ver com uma esfera da linguagem que está aquém dodireito e da religião, e que o juramento representa, justamente, olimiar através do qual a linguagem entra no direito e na religio.

Quando, em estudo sobre o juramento na Grécia, podemosler: - "Em linhas gerais, pode-se afirmar que, até ao final do sé­culo VI, a punição divina do perjúrio ainda era uma arma eficazcontra os abusos do juramento. No entanto, a partir do séculoV, o individualismo e o relativismo do movimento sofista come­çou a minar a antiga noção de juramento, pelo menos para umadeterminada parcela da população, e o temor dos deuses nocaso do perjúrio começou a desvanecer" (Plescia, p. 86) - trata­-se de afirmações que apenas refletem a opinião do autor, quese baseia no mal-entendido sobre uma passagem de Platão (Leis

XII, 948b-d), obviamente irônico, no qual Radamante, a quemse atribui a instituição do processo com juramentos, é louvadopor ter compreendido "que os homens de então acreditavamrealmente que os deuses existiam, e com razão, porque naque­le tempo quase todos descendiam dos deuses, e ele mesmoera, pelo menos segundo o que dizem, um deles". A ironia éainda mais acentuada pelo fato de Platão, fortemente contrárioao uso do juramento das partes no processo, acrescentar queRadamante, "ao dar aos contendores um juramento sobre todaquestão contendida, se livrava dela de maneira rápida e segura".

10 Jurar com prejuízo da religião receberá um castigo dos deuses - Codex iuris.(N.T.)

11 Imperfeita ou menos que perfeita (Liber sing. Regularum). (N.T.)

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Igualmente irônica e isenta de toda nostalgia para uma supostadevoção antiga é a razão aduzida logo depois para a exclusãodo juramento das partes: "Ora, quando, no entanto, dizemos queuma parte dos homens de modo algum acredita nos deuses, eoutros pensam que eles não cuidam de nós, enquanto a opiniãoda maioria e dos piores é que, em troca de pequenos sacrifíciose lisonjas, eles os ajudem a subtrair muitas riquezas e os libertemde grandes penas, a arte de Radamante de maneira alguma seriaadequada para os processos dos homens de hoje." A objeçãoessencial contra o juramento das partes consiste, na verdade, emque - conforme se afirma logo depois - o fato de fazer as partesjurarem no processo equivale a obrigar alguém legalmente aoperjúrio: "Realmente é terrível que, havendo muitos processosnuma cidade, se passe a ter a certeza de que, assim, quase me­tade dos cidadãos são perjuros" (d., sempre em Leis X, 887a, aironia de Platão ao falar da tentativa de "estabelecer por lei queos deuses existem" [nomothetountes ÕS ontõn theõn]).

13. Outro instituto com que o juramento está intimamentevinculado é a sacratio. Aliás, tanto as fontes antigas quanto amaioria dos estudiosos concordam em ver no juramento umaforma de sacratio (ou de devo tio, outro instituto com que a con­sagração tende a confundir-se). Em ambos os casos, um homemera transformado em sacer, a saber, consagrado aos deuses eexcluído do mundo dos homens (ou espontaneamente, como nadevotio, ou porque tinha cometido um maleJicium que tornavalícito que qualquer um o matasse). "Denomina-se sacramentum(um dos dois termos latinos para juramento) - lê-se em Festo(466,2) - aquilo que se realiza com a ajuda da consagração dojuramento [iusiurandi sacratione interposita]." "O juramento(sacramentum) - escreve Benveniste (Benveniste [2],2, p. 168)- implica a noção de tornar sacer. Associa-se ao juramento aqualidade do sagrado, a mais terrível entre aquelas que um serhumano pode receber: o juramento aparece como uma operaçãoque consiste em tornar sacer de maneira condicional." Por isso,Pierre Noailles pôde, na mesma perspectiva, escrever a respeitodo juramento: "O ator no processo consagrou a si mesmo, se

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tornou saceratravés do juramento" (Noailles [I), p. 282). "Asitu­ação do perjuro - escreve Hirzel - não era diferente daquela dosacerromano, que se havia votado aos Manes e, assim como esteC ..) podia ser excluído de toda comunidade religiosa ou civil"(Hirze1,p. 158). No mesmo sentido, o juramento pode ser vistocomo uma devo tio: "Basta pronunciar o juramento para alguémse tornar um ser 'votado' (...), pois o juramento é uma devotio

e, conforme se constatou, o horkos grego implica que alguém seconsagre previamente ao poder de uma divindade vingadora emcaso de transgressão da palavra dada" (Benveniste [2), 2, p. 243).

De tudo isso, nasce, no juramento, a importância da maldição(ara, imprecatio), que acompanha constitutivamente o seu pro­ferimento. Plutarco, nessa fonte preciosa para o conhecimentodas antiguidades latinas que são as Quaestiones romanae, já nosinforma que "todos os juramentos são concluídos com uma mal­dição do perjuro" (eis kataran teleutai tes epiorkias - 44). Aliás,os estudiosos tendem a considerar a maldição como a essênciado juramento, e a definir, por isso, o juramento como uma maldi­ção condicional: "Amaldição aparece como a parte essencial nojuramento, enquanto os juramentos de imprecação valem comoos mais poderosos, porque tal aspecto essencial do juramento semanifesta neles de modo mais puro e mais forte. A maldição éo essencial e o originário" (Hirze1,pp. 138-139); "jurar equivale,sobretudo, a maldizer caso se diga o falso ou não se mantenhaaquilo que se prometeu" (Schrader, apud Hirze1,p. 141).

Bickermann observou que, no entanto, a maldição podeestar ausente (os exemplos alegados não se referem, contudo,a fontes gregas ou latinas) e que, por outro lado, pode haverimprecações sem juramento (d. Bickermann, p. 220). A opiniãode Glotz, segundo o qual a maldição acompanha necessariamenteo juramento, mas não se identifica com ele, parece, portanto,ser mais correta, e é nesse sentido que se deve entender a re­comendação, contida em documentos oficiais, de "acrescentar amaldição ao juramento" Ctãi horkãi tan aran inemen - Glotz,p. 752). Além disso, convém precisar que o juramento comportamuitas vezes tanto uma expressão de maus presságios, quanto ade bons presságios e que, nas fórmulas mais solenes, a maldiçãosucede uma bênção: "Àqueles que juram lealmente e continuam

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sendo fiéis ao próprio juramento, que os filhos deem alegria,a terra conceda abundantemente os seus frutos e o gado sejaprolífico; aos perjuros, porém, que nem a terra nem os animaistragam frutos, que pereçam mal, eles e a sua estirpe" (ibid.). Noentanto, a bênção pode faltar, enquanto a maldição deve, pornorma, estar presente (d. Hirzel, p. 138). Esta é a regra em Ho­mero, segundo o qual a maldição vem acompanhada por gestose ritos eloquentes, como quando, na cena em que os troianos eos aqueus trocam juramentos entre si antes do duelo entre Párise Menelau, o Atrida derrama ao chão o vinho de uma cratera, 12

e profere a fórmula: "Esparjam-sepela terra, como este vinho, osmiolos daqueles que por primeiro transgrediram os juramentos"(Il. III, 299-300).

O juramento parece, portanto, resultar da conjunção de trêselementos: uma afirmação, a invocação dos deuses como tes­temunhas e uma maldição dirigida para o perjúrio. No mesmosentido, pode-se afirmar que o juramento é um instituto que uneentre si um elemento do tipo da Pistis - a confiabilidade recípro­ca atribuída às palavras proferidas - e um elemento do tipo dasacratio-devotio (a maldição). Na verdade, porém, os três institutosestão entrelaçados, terminológica e fatualmente, de maneira tãoíntima (conforme acontece no termo sacramentum, que é aomesmo tempo juramento e sacratio) que os estudiosos, mesmosem tirarem todas as consequências dessa proximidade, tendem atratá-los como um único instituto. É oportuno não esquecer quea série pistis-horkos-ara, ou a de fides-sacramentum, remetema um único instituto, certamente arcaico, contemporaneamentejurídico e religioso (ou pré-jurídico e pré-religioso), cujo sentidoe cuja função devemos procurar entender. Mas isso significa que,sob essa perspectiva, o juramento parece perder a sua identidadeespecífica, acabando por confundir-se com afides e a maldição,dois institutos cuja natureza - sobretudo no que diz respeito àmaldição - não fica totalmente clara e, em todo caso, mereceurelativamente pouca atenção por parte dos estudiosos. Por esse

12 Cratera é o nome dado a um vaso antigo, em forma de taça, com duas alças,usado por gregos e romanos para colocar o vinho. (N.T.)

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motivo, uma análise do juramento deverá, antes de mais nada,confrontar-se com o problema da sua relação com a maldição.

l'; A descrição da cena do juramento no Critias (l19d-120d)mostra bastante bem a vinculação entre pistis, horkos e ara. Oato de prestar o juramento é definido, nesse caso, como ummodo de "dar-se a fé" e, por outro lado, é o próprio juramentoque profere votivamente (epeuchomenos) "grandes maldições":"Quando os reis estavam prestes a fazer justiça, davam-se, dessamaneira, mutuamente a fé [pisteis allelois toiasde edidosanJ C ..)

Sobre a coluna, aparecia, além das leis, um juramento que proferiavotivamente grandes maldições para quem violava a fé [horkos enmegalas aras epeuchomenos tois apeithousinJ C ..) Depois, tirandouma ampola de sangue da cratera e derramando-a sobre o fogo,juravam fazer justiça segundo as leis escritas sobre a coluna epunir todos aqueles que as houvessem violado por primeiro."

14. De resto, basta examinar com mais cuidado os elementos

constitutivos do juramento para nos depararmos com incertezase confusões terminológicas no mínimo surpreendentes. Uma das

características do juramento a cujo respeito todos os autores,tanto antigos quanto modernos, de Cícero a Glotz, de Agosti­nho a Benveniste, parecem estar de acordo é a invocação dosdeuses como testemunhas. Nesse sentido, no seu comentário

sobre De inte;pretatione de Aristóteles (4a), Amônio13 faz uma

distinção entre o juramento e a asserção (apofansis) através do

"testemunho de Deus" (martyria tou theou). O juramento, se­gundo essa doutrina repetida infinitas vezes, é uma afirmação à

qual se acrescenta o testemunho divino. As fórmulas imperativasmartys esto (PIND, Pyth IV, 166: karteros horkos martys estõ Zeus,

"poderoso juramento seja testemunha Zeus") ou istõ Zeus (It. 7,411: horkia de Zeus istõ, "veja Zeus os juramentos"), atestadasnas fontes antigas, não parecem deixar dúvidas a respeito.

Mas de fato é assim? Observou-se que o testemunho aqui ana­

lisado difere essencialmente do testemunho em sentido próprio,

como o das testemunhas num processo, pois de forma alguma

13 Amônio Saccas (lat: Ammonius Saccas) (175-242), filósofo grego de Alexandria,é considerado o fundador da escola neoplatônica. (N.T.)

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pode ser contestado ou verificado (Hirzel, p. 25). Não é só o nú­mero das divindades invocadas que tende a aumentar bem maisdo que o número dos "deuses legais" (nomimoi theoi ou theoi

horkioi) a ponto de incluir oito, dezesseis e, por fim, "todos osdeuses" (conforme acontece no juramento de Hipócrates), mas,às vezes, são chamados como testemunhas rios, árvores e até

mesmo objetos inanimados (o "leito legítimo", lechos kouridion

-d. li. 15, 39). Em todo caso, é decisivo que no juramento nãose trata de modo algum de um testemunho em sentido técnico,porque, à diferença de qualquer outro testemunho concebível,ele coincide com a chamada e se realiza e acaba nela. As coisas

não mudam se, conforme sugerem algumas fontes, entendermoso dos deuses não como um testemunho, mas como outorga deuma garantia. Assim como o testemunho, nem sequer aqui podeocorrer tecnicamente a fiança, nem no momento do juramento,nem depois; pressupõe-se que ela já tenha sido realizada com aprofissão do juramento (Hirzel, p. 27).

O juramento é, portanto, um ato verbal que realiza um tes­temunho - ou uma garantia - independentemente do fato deeles acontecerem ou não. A fórmula acima indicada de Píndaro

assume nesse caso todo o seu peso; karteros horkos martys estõ

Zeus, "poderoso juramento seja testemunha Zeus": Zeus não étestemunha do juramento, mas juramento; testemunha e Deuscoincidem no ato de proferir a fórmula. Assim como acontece emFílon, o juramento é um logos que necessariamente se realiza, eeste é, justamente, o logos de Deus. O testemunho é dado pelaprópria linguagem, e o Deus nomeia uma potência implícita nopróprio ato de palavra.

Assim, o testemunho que está em questão no juramento deveser entendido num sentido que pouco tem a ver com o quecostumeiramente entendemos com o termo. Ele tem a ver não

tanto com a verificação de um fato ou um evento, mas sim como próprio poder significante da linguagem. Quando, a propósitodo juramento proposto por Heitor a Aquiles (cf. li. 22, 254-255),lemos que "os deuses serão as melhores testemunhas [martyroi]

e vigilantes daquilo que mantém unido [episcopoi harmoniaõn]",

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o "encaixe" (tal é o significado original do termo harmonia, que

provém do léxico da carpintaria), de que os deuses são testemu­

nhas e vigias, só pode ser aquele que une as palavras e as coisas,

ou seja, o lagos como tal.

l'I; Uma glosa de Hesíquio14 (horkoi: desmoi sphragidos) defineos juramentos como "vínculos do sigilo" (ou sigilantes, se pre­ferirmos a forma sphragideis). No mesmo sentido, no fr. 115 deEmpédocles, se fala de um "decreto eterno dos deuses, sigilado

com grandes juramentos" (plateessi katesphregismenon horkois).O vínculo que nesse caso está em jogo só pode ser aquele queliga o falante à sua palavra e, ao mesmo tempo, as palavras à

realidade. Hirzel observa com razão que o testemunho divino éinvocado não só para o juramento promissório, mas também parao assertório, no qual ele não parece ter sentido, a não ser queaqui esteja em jogo o próprio sentido, a própria força significanteda linguagem (d. Hirzel, p. 26).

15. Se deixarmos de lado o problema da intervenção dosdeuses como testemunhas, para nos voltarmos para o da suainfluência no caso da maldição, a situação não é menos confu­

sa. Que a maldição cumprisse na polis uma função importante,

é provado pelo fato de que, em perfeita analogia com as tesesde Licurgo sobre o juramento - e por mais que isso nos possaescandalizar -, Demóstenes menciona (20, 107) como guardiões

da constituição (politeia) não só o povo e as leis (nomoi), mastambém as maldições (arai). No mesmo sentido, ao lembrar os

vínculos entre os homens praticamente impossíveis de evitar,Cícero cita ao mesmo tempo maldições e fides (Verr. V, 104:ubi fides, ubi exsecrationes, ubi dexterae complexusque?). Oque é, nesse caso, uma maldição e qual pode ser a sua função?

Mesmo do ponto de vista terminológico, a situação de modoalgum fica clara. Os termos que a designam, tanto no gregocomo no latim, parecem ter significados opostos: ara (e o ver­bo correspondente epeuchomai) significa, segundo os léxicos,

14 Hesíquio de Alexandria foi um gramática e lexicógrafo que, provavelmente,viveu no século V, e que fez uma compilação de um rico vocabulário determos incomuns na língua grega. (N.T.)

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tanto "pedido" (e "pedir") quanto "imprecação, maldição" (e"imprecar, maldizer"). O mesmo pode-se dizer para os termos

latinos imprecor e imprecatio, que tanto equivalem a "augurar"e a "maldizer" (também devoveo, que significa "consagrar", nocaso de uma devo tio aos deuses infernais equivale a "maldizer"em sentido técnico). Todo o vocabulário da sacratio, como se

sabe, é marcado por essa ambiguidade, cujas razões procuramosreconstruir noutro momento.

Mais uma vez as interpretações da maldição repetem acritica­mente o paradigma da primordialidade do fato mágico-religiosoe se limitam a remeter a um impreciso "poder numinoso" (d.verbete Fluch no Reallexicon für Antike und Christentum,

p. 1.161) ou a evocar a religião como "auxílio prático para aeficácia do direito" (Ziebarth, p. 57). Nessa perspectiva, LouisGernet, no seu artigo "Le droit pénal de Ia Grece ancienne",pode escrever que

a maldição cumpriu papel importante nas origens do direito.Ela sanciona às vezes as leis ou as substitui, conforme verifi­camos num catálogo de imprecações públicas do século V nacidade de Theos, onde ela é formulada contra uma série dedelitos que dizem respeito à segurança do Estado e à própriasubsistência da cidade. Naturalmente, é, sobretudo, na vidareligiosa e nas práticas do santuário que o seu uso acabousendo perpetuado; mas não pode deixar de se tratar de umatradição muito antiga. A maldição supõe a colaboração dasforças religiosas: estas (que, por princípio, nem sequer sãorepresentadas de forma pessoal) são de algum modo con­densadas pela virtude mágica do rito oral e agem sobre oculpado e sobre o que o circunda, ressequindo neles a fontede toda vida. A imprecação exerce o seu efeito letal até mesmosobre a terra, sobre o que nasce dela e dela se nutre. E, aomesmo tempo e pelo fato de ela ser uma devotio, a maldiçãosignifica uma exclusão da comunidade religiosa constituídapela sociedade: ela se manifesta através de uma interdiçãoem sentido próprio e, na sua aplicação concreta, é um ato depôr fora da lei (Gemet [2],pp. 11-12).

Só o prestígio do paradigma da originariedade do fato mágico­-religioso pode explicar que um estudioso atento como Gernet, ao

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repetir as velhas argumentações de Zierbarth, possa contentar-secom uma interpretação tão obviamente insuficiente, em que nãosó - em contraste evidente com o fato de que a maldição sejaplenamente atestada pelo juramento em época histórica - sãoreconhecidos como óbvios alguns pressupostos míticos, comoa "virtude mágica do rito oral", as "forças religiosas" e os seus"efeitos letais", mas nem sequer se torna claro se ela é um insti­tuto em si, ou se identifica, pelo contrário, com a devo tio e, emúltima instância, com o próprio juramento, que constituiria umaderivação do mesmo.

Por isso, será oportuno suspender, pelo menos provisoriamen­te, as definições tradicionais, que veem na maldição uma invoca­ção dirigida aos deuses para que, a fim de punirem o perjúrio, setransformem de testemunhas em vingadores, perguntando-nos,antes de mais nada, sobre o que nela de fato está em jogo, ouseja, sobre a função imanente que a maldição exerce no jura­mento. Segundo a opinião corrente, no juramento, os deuses (ou,mais precisamente, os seus nomes) são mencionados duas vezes:uma vez como testemunhas do juramento e outra, na maldição,como os que punem o perjúrio. Pensando bem, e se deixarmosde lado as definições míticas, que buscam a explicação dele forada linguagem, em ambos os casos é a relação entre as palavras eos fatos (ou as ações) que define o juramento. Num caso, o nomedo Deus expressa a força positiva da linguagem, ou seja, a justarelação entre as palavras e as coisas ("poderoso juramento, sejatestemunha Zeus");no outro, uma fraqueza do logos, a saber, umaruptura dessa relação. A essa dupla possibilidade corresponde adúplice forma da maldição, que, conforme vimos, se apresentacostumeiramente também como uma bênção: "Se juro bem[euorkounti], a mim muitos bens, se perjuro [epiorkountiJ, muitosmales, ao invés de bens" (Glotz, p. 752;Faraone, p. 139).O nomedo Deus, que significa e garante o encaixe entre as palavras e ascoisas, transforma-se se ele se romper, em maldição. É essencial,em qualquer caso, a cooriginariedade de bênção e maldição,que estão constitutivamente copresentes no juramento.

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~ É suficiente lermos o bastante extenso verbete Fluch no

Reallexicon für Antike und Christentum (que procura reme­diar o reduzidíssimo espaço dedicado ao problema no Pauly­-Wissowa15e no Daremberg-Saglio,16 nos quais a maldição só éabordada passageiramente no artigo sobre a devo tio, de autoriade Bouché-Leclerq) para nos darmos conta de que a literaturacrítica não fez muitos progressos com relação ao artigo citadode Erich Ziebarth ou àquele de George Hendrikson (926). Orecente estudo de Christopher Faraone enfatiza a diferença entrejuramentos que contêm quer bênçãos quer maldições (em geraldestinados à esfera privada) e juramentos acompanhados apenaspor maldições (em geral reservados à esfera pública). Em todocaso, para além da explicação tradicional, que vê na maldiçãoum apelo ao poder religioso para garantir a eficácia do direito,o nexo entre juramento e maldição continua inquestionado.

16. Ziebarth provou a consubstancialidade da maldição com

a legislação grega por meio de uma vasta documentação. A suafunção era tão essencial que as fontes falam de uma verdadeira"maldição política", que sanciona todas as vezes a eficácia da lei.

No preâmbulo da Lei de Caronda lê-se o seguinte: "É necessário

observar [emmenein] o que foi proclamado: quem transgrideé submetido à maldição política [politike ara]" (ibid., p. 60).No mesmo sentido, Dião de Prusa (80.8) nos informa que osatenienses haviam posto (ethento, no sentido forte do termo,

como, por exemplo, em nomon tithenai, dar uma lei) nas leis

de Sólon uma maldição "política" que se estendia também aosfilhos e à descendência (paides kai genos). Ziebarth identificoua presença da maldição "política" nos dispositivos legais detodas as cidades gregas, de Atenas até Esparta, de Lesbos até

15 Pauly-Wissowa é o nome comumente usado para a Realencyclopadie derclassíschen Altertumswíssenschajt, também conhecida como "enciclopédiaalemã", escrita durante vários decênios, a começar por August Pauly (1839),e terminando com Georg Wissowa (1890). O último dos seus 84 volumesfoi publicado em 1978. (N.T.)

16 Daremberg-Saglio é o nome do Díctíonnaíre des Antíquítés Grecques etRomaínes, clássico dicionário em francês dedicado à antiga Grécia e aRoma, escrito por Charles Daremberg e Edmond Saglio, publicado em dezvolumes entre 1873 e 1919. (N.T.)

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Teos e Quios, inclusive até as colônias sicilianas (Tauromenia).

Ela também diz respeito a questões que nada tem de "religio­so", como acontece com a proibição, em Atenas, de exportarprodutos agrícolas diferentes do óleo (d. Ziebarth, p. 64). Alémdisso, antes de toda assembleia, o keryx, o pregoeiro público,

pronunciava solenemente as maldições contra quem houvessetraído o povo ou violado as suas decisões. "Isso significa - co­

menta Ziebarth - que toda a ordem constituída, segundo a qualo demos é soberano, é garantida através de uma ara" (ibid.,

p. 61). Não só o juramento, mas também a maldição - nessesentido, ela é chamada de razão "política" - funciona como umverdadeiro "sacramento do poder".

Nessa perspectiva, como já tinha intuído Willian Fowler (d.Fowler, p. 17), é possível considerar como maldição a fórmulasaeer esto, que aparece no dispositivo das XII tábuas. Não se trata,porém - conforme assinala Fowler - da produção de um taboo,mas da sanção que define a própria estrutura da lei, o seu modode referir-se à realidade (talio esto / saeer esto) (d. Agamben, p.

31). Sob essa luz, aparece como contraditória a enigmática figurado homo saeer, sobre a qual ainda se continua discutindo não só

entre os historiadores do direito. A saeratio que o atingiu - e queo torna ao mesmo tempo matável e insacrificável - nada mais é

do que um desenvolvimento (talvez realizado pela primeira vezpela plebe em tutela do tribuno) da maldição através da qual alei define o seu âmbito. Por outras palavras, a maldição "política"

delimita o loeus em que, somente numa fase sucessiva, se consti­

tuirá o direito penal, e é justamente essa singular genealogia que,de alguma maneira, poderá justificar a incrível irracionalidadeque caracteriza a história da pena.

tl; É na perspectiva dessa consubstancialidade técnica entre lei emaldição (também presente no judaísmo - d. Dt. 21, 23 -, masbem familiar a um judeu que vivesse em ambiente helênico) quese devem entender as passagens paulinas em que se fala de uma"maldição da lei" (katara tou nomou- Cl. 3,10-13). Aqueles quequerem ser salvos mediante as obras (a execução dos preceitos)- é este o argumento de Paulo - "estão sob a maldição [hypo

kataran eisinJ, pois está escrito: é maldito quem não observa

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[emmenei, o mesmo verbo que se encontra na Lei de Caronda]os preceitos escritos no livro da lei". Submetendo-se ele mesmoao juízo e à maldição da lei, Cristo "nos resgatou da maldição dalei, tornando-se ele mesmo maldição, pois está escrito: é malditoquem está pendurado no madeiro". O argumento paulino - por­tanto, o próprio sentido da redenção - só pode ser entendido seo situarmos no contexto do recíproco pertencimento, jurídico enão só religioso, de lei e maldição.

17. Como compreender esta dupla validade (bem-dizente e

mal-dizente) dos nomes divinos no juramento e no perjúrio?Existe um instituto que vive desde sempre em tão estreita inti­

midade com o perjúrio e a maldição, a ponto de ser confundidocom eles e que talvez nos possa oferecer a chave para umainterpretação correta dos mesmos. Trata-se da blasfêmia. Noestudo sobre Ia blasphémie et l'euphémie (originalmente, umaconferência durante um colóquio dedicado, significativamente,

ao nome de Deus e à análise da linguagem teológica), Benve­niste refere-se insistentemente à proximidade entre a blasfêmia,

o perjúrio e o juramento (em francês isso fica evidente na pa­ronímia juron: jurer):

Fora do culto, a sociedade exige que o nome de Deus sejainvocado numa circunstância solene, que é o juramento. Ojuramento é, de fato, um sacramentum, um apelo dirigido aDeus, testemunha suprema da verdade, e um acatamento docastigo divino em caso de mentira ou perjúrio. É o compro­misso mais pesado que um homem possa assumir e a faltamais grave que ele possa cometer, pois o perjúrio pertencenão à justiça dos homens, mas à sanção divina. Por isso, onome do Deus deve figurar na fórmula do juramento. Tambémna blasfêmia o nome de Deus deve aparecer porque, assimcomo o juramento, a blasfêmia toma Deus como testemunha.A blasfêmia Vuron] é um juramento, mas um juramento ofen­sivo (Benveniste [3],p. 256).

Além disso, Benveniste salienta a natureza de interjeição queé própria da blasfêmia, e que, como tal, não comunica mensa­

gem alguma:

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A fórmula blasfema proferida não se refere a nenhuma situaçãoobjetiva particular; a própria blasfêmia é proferida em circuns­tâncias totalmente diferentes. Expressa apenas a intensidadede uma reação frente às circunstâncias. Nem sequer se referea uma segunda ou terceira pessoa. Não transmite mensagemalguma, não abre nenhum diálogo, não pede resposta; a pre­sença de um interlocutor não é necessária (ibid.).

Por isso é tão surpreendente que, para explicar a blasfêmia,o linguista abandone a análise da linguagem e, num dos rarosrecursos à tradição hebraica, apele para a "proibição bíblica depronunciar o nome de Deus" Cibid., p. 254). A blasfêmia é, comcerteza, um ato de palavra, mas se trata, justamente, de "substituiro nome de Deus com a ofensa a ele" Cibid., p. 255). A proibição

não tem como objeto um conteúdo semântico, mas a simplespronúncia do nome, ou seja, uma "pura articulação vocal" (ibid.).

Logo depois, uma citação de Freud introduz uma interpretaçãoda blasfêmia em termos psicológicos:

A proibição do uso donome de Deus serve para reprimir umdos desejos mais intensos do ser humano: o de profanar o sa­grado. Sabemos que o sagrado inspira condutas ambivalentes.A tradição religiosa quis conservar o sagrado divino e excluiraquele maldito. A blasfêmia procura, a seu modo, restabelecera totalidade, profanando o próprio nome de Deus. O nomede Deus é blasfemado porque tudo o que possuímos de Deusé o seu nome (ibid.).

Por parte de um linguista acostumado a trabalhar exclusiva­mente com o patrimônio das línguas indo-europeias, é no mínimosingular o recurso a um dado bíblico (assim como o é também a

explicação psicológica de um fato histórico). Se é verdade que,

na tradição judaico-cristã, a blasfêmia consiste em usar em vãoo nome de Deus (conforme acontece com as formas modernas

como: nom de Dieul, Sacré nom de dieul, "por Deus!"), a pro­núncia blasfema do nome de Deus é muito comum nas línguasclássicas, tão familiares ao linguista, em formas exclamativas

como, por exemplo: edepol, ecastor, por Pólux, por Castor (Nai

ton Castora, no grego), edi medi (por Dius Fidius), mehercules,

mehercle. É significativo que, em todos esses casos, a fórmula

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da imprecação seja idêntica à do juramento: nai, ma, em grego,

introduzem o juramento; edepol e ecastortambém são, no latim,fórmulas de juramento, exatamente como o italiano per dio [porDeus] (Festo [112, 10] aparece, de resto, perfeitamente conscien­

te da derivação dessas exclamações do juramento: Mecastor et

mehercules ius iurandum erat, quasi diceretur: ita me Castor, itame Hercules, ut subaudiatur iuvet)Y

Assim, a blasfêmia nos apresenta um fenômeno perfeitamente

simétrico ao juramento, e para entendê-Io não há nenhuma ne­cessidade de apelar para a proibição bíblica e a ambiguidade do

sagrado. A blasfêmia é um juramento no qual o nome de Deus

é tirado do contexto assertório ou promissório, e é proferido em

si, no vazio, independentemente de um conteúdo semântico. O

nome, que no juramento expressava e garantia a conexão entrepalavras e coisas, e que define a veridicidade e a força do logos,

na blasfêmia expressa a ruptura desse nexo e o fato de ser vã

a linguagem humana. O nome de Deus, isolado e pronunciado

"em vão", corresponde simetricamente ao perjúrio, que separaas palavras das coisas; juramento e blasfêmia, como bem-dição e

mal-dição, cooriginariamente estão implícitos no mesmo evento

de linguagem.

l'i No judaísmo e no cristianismo, a blasfêmia está ligada aomandamento de "não usar o nome de Deus em vão" (que, em

Êx. 20, significativamente aparece depois do mandamento que

proíbe fabricar ídolos). A tradução da Septuaginta (ou lempsei

to onoma kyriou tou theou sou epi mataiõi - "não tomarás onome do Senhor Deus em vão") sublinha a ideia da vacuidadee da vaidade (d. o início do Ec!esiastes: mataiotes mataiotetõn

- "vaidade de vaidades"). A forma originária da blasfêmia não é,

portanto, a injúria feita a Deus, mas a pronúncia vã do seu nome(cf. mataioomai - "devaneio, falo às tontas"). Isso fica evidente

nos eufemismos, que se usam para corrigir a pronúncia blasfemado nome, mudando uma letra ou substituindo-o com um termo

semelhante e sem sentido (assim, no francês par Dieu se torna

17 Por Castor e por Hércules se jurava, como se disséssemos: assim Castor, assimHércules - subentenda-se - me ajude. (N.T.)

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pardi ou parbleu [por Deus!]; d. o italiano "diamine' [que dia­

cho!] e similares). Contrariamente à opinião comum, também nopaganismo existe, embora por razões diferentes, a proibição deproferir o nome dos deuses, que encontra a sua forma extremano costume de manter cuidadosamente escondido o verdadeiro

nome do Deus protetor de uma cidade a fim de evitar a sua evo­

catio (cf. infra, capo 20). Platão informa-nos assim que os gregos

preferiam chamar Hades com o nome de Plutão "pois tinhammedo do nome [phoboumenoi to onoma]" (Crátilo, 403a).

À medida que se perde a consciência da eficácia da pronúnciado nome divino, a forma originária da blasfêmia, que consiste

em proferi-l o em vão, passa a ser secundária em relação ao pro­

ferimento de injúrias ou falsidades sobre Deus. De male dicerede Deo [falar mal de Deus], a blasfêmia se transforma, assim, em

mala dicere de Deo [dizer coisas más de Deus]. Em Agostinho,que, de modo significativo, aborda a blasfêmia nos seus trata­dos sobre a mentira, já se percebe tal evolução. Se a originária

proximidade ao juramento e ao perjúrio ainda está presente, a

blasfêmia agora passa a ser definida como o dizer coisas falsas deDeus: peius est blasphemare quam perierare, quoniam perierando

falsae res adhibetur testis Deus, blasphemando autem de ipso Deofalsa dicuntur (Contra mendacium XVIII, 39); de forma ainda

mais clara: Itaque iam vulgo blasphemia non accipitur, nisi malaverba de Deo dicere (De moro Manich XI, 20).18

É disso que surge o embaraço dos dicionários teológicos mo­dernos quando se acham confrontados com a forma originária da

blasfêmia, que agora aparece como culpa em todo caso venial:

o mais suspeito dessesjurons, a expressão francesa 's...n ...deD...' é considerada por alguns moralistas como uma verdadei­ra blasfêmia e, consequentemente, como culpada (...) tantopor causa do sentido injurioso que contém, ou, pelo menos,parece conter, quanto pelo horror que inspira em qualquer

18 É pior blasfemar do que perjurar, pois ao perjurar atribuem-se coisas falsassob o testemunho de Deus, enquanto ao blasfemar se dizem coisas más dopróprio Deus (Contra mendacium XVIII, 39); de forma ainda mais clara:Portanto o vulgo já não toma a blasfêmia a não ser como o dizer palavrasmás sobre Deus. (N.T.)

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consciência um pouco delicada c...) Outros, pelo contrário,sustentamque só a intençãopode transformá-Iaem blasfêmia"(Dictionnaire de théologie catholique, verbete Blaspheme).

A proibição evangélica do juramento em Mt. 5, 33-37 (d.também Tg. 5,12) deve ser situada neste contexto. Nesse caso, éessencial que Jesus contrapõe ao juramento um lagos que tem aforma nai nai, ou ou, que se costuma traduzir por sim sim, não

não (estõ de ho lagos hymõn nai nai, ou ou). A expressão assumetodo o seu sentido quando se lembra que a fórmula grega dojuramento era nai dia (ou, no negativo, ou ma dia). Extraindo apartícula nai da fórmula e tirando o nome sagrado que a seguia,Jesus contrapõe uma parte do juramento ao todo. Trata-se, por­tanto, de um gesto simetricamente oposto ao da blasfêmia, que,por sua vez, extrai o nome de Deus do contexto do juramento.

18. Com base nisso, torna-se mais fácil entendermos a fun­ção da imprecação no juramento e, ao mesmo tempo, a estreitarelação que a vincula à blasfêmia. O que a maldição sancionaé o fato de não ocorrer a correspondência entre as palavras eas coisas que estão em jogo no juramento. Quando se rompe onexo que une a linguagem e o mundo, o nome de Deus, queexpressava e garantia essa conexão "bem-dizente", torna-se onome da "mal-dição", a saber, de uma palavra que rompe a suarelação verídica com as coisas. Na esfera mítica, isso significaque a mal-dição dirige contra o perjúrio a mesma força malé­fica que o seu abuso da linguagem liberou. O nome de Deus,separado do nexo significante, torna-se blasfêmia, palavra vã einsensata, que justamente através desse divórcio com relaçãoao significado fica disponível para usos impróprios e maléficos.Isso explica por que razão os papiros mágicos muitas vezes sãoapenas elencos de nomes divinos tornados incompreensíveis:na magia, os nomes dos deuses pronunciados em vão, espe­cialmente se forem bárbaros e ininteligíveis, se transformam emagentes da operação mágica. A magia é o nome de Deus - ouseja, o poder significante do lagos - esvaziado do seu sentido,e reduzido, como acontece nas fórmulas mágicas conhecidaspor Ephesia Gramnata, a um abracadabra. Por isso, "a magia

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fala sânscrito na Índia dos prakrit, egípcio e hebraico no mundogrego, grego no mundo latino, e latino entre nós: em todo lugar,ela busca o arcaísmo, os termos estranhos e incompreensíveis"(Mauss, p. SI).

É do juramento - ou melhor, do perjúrio - que nasceram amagia e os encantamentos: a fórmula da verdade, ao romper-se,transforma-se em maldição eficaz, e o nome de Deus, separado

do juramento e da sua conexão com as coisas, converte-se emmurmúrio satânico. A opinião comum que faz derivar o juramentoda esfera mágico-religiosa deve ser, nesse caso, pontualmenteinvertida. O juramento nos apresenta, pelo contrário, em umaunidade ainda indivisa, aquilo que estamos acostumados a de­nominar de magia, religião e direito, que dele resultam como sefossem as suas frações.

Se quem se arriscou no ato de palavra sabia que estava, porisso, cooriginariamente, exposto tanto à verdade quanto à mentira,tanto ao ato de ser bem-dito quanto ao de ser mal-dito, a gravisreligio (Lucrécio, 1, 63) e o direito nascem como a tentativa deassegurar a fé, separando e tecnicizando como institutos especí­ficos bênção e sacratio, juramento e perjúrio. A maldição torna­-se assim algo que se acrescenta ao juramento a fim de garantiraquilo que no início era confiado unicamente à fides na palavra,enquanto o juramento pode assim ser apresentado, nos versos deHesíodo que já citamos antes, como aquilo que foi inventado parapunir o perjúrio. O juramento não é uma maldição condicional;pelo contrário, a maldição e aquele seu simétrico pendant, queé a bênção, nascem como institutos específicos da cisão da ex­periência da palavra que nele estava em jogo. A glosa de Sérvioem Aen. 2, 154 (exsecratio autem est adversorum deprecatio, iusiurandum vero optare prospera)l9 mostra claramente não só adistinção entre maldição e juramento, mas também o fato de seconstituírem como os dois epifenômenos simétricos de uma únicaexperiência de linguagem. E só se conseguirmos compreendera natureza e a validade, por assim dizer, antropogenética dessaexperiência (que Tales, segundo o testemunho de Aristóteles,considerava "a coisa mais antiga" e "mais venerável"), também

19 A maldição é uma ofensa aos adversários, enquanto o juramento é certamenteuma opção pelas coisas benéficas. (N.T.)

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poderemos, talvez, projetar uma nova luz sobre a relação entreaqueles seus restos históricos que magia, religião e direito nosapresentam divididos.

l'\ Nessa perspectiva, é possível retomar o problema do signi­ficado etimológico do termo epiorkos, que deu tanto trabalhoaos estudiosos. Luther (e Benveniste, num primeiro momento)interpreta o termo como o fato de estar submetido a um horkos(nesse caso, o juramento torna-se sinônimo de maldição - cL Lo­raux, p. 126). Leumann (e Benveniste, num segundo momento)interpreta por sua vez o termo como o fato de acrescentar (epi)um juramento (horkos) a uma palavra ou a uma promessa que sesabe serem falsas. Desenvolvendo a última hipótese, poder-se-iaver no epiorkos um juramento acrescido ao juramento, ou seja, amaldição que atinge quem transgride a fides. Nesse sentido, todapalavra que se acrescenta à declaração inicial é uma mal-dição, eimplica um perjúrio. Tal é o sentido da prescrição evangélica deater-se ao nai e ao ou: o sim e o não são as únicas coisas quepodem ser acrescidas ao próprio ato de confiar na palavra dada.

19. É nessa perspectiva que devemos perguntar pelo sentido

e pela função originária do nome do Deus no juramento e, demaneira mais geral, pela própria centralidade dos nomes divinosnos dispositivos que costumamos chamar de religiosos. O grandefilólogo - e, de seu modo, teólogo - Hermann Usener dedicou

ao problema da gênese dos nomes divinos uma monografia, e é

significativo que desde a data de sua publicação (1896) até hojenão tenham surgido a respeito contribuições tão relevantes quan­to a mesma. Pense-se, por exemplo, na já famosa reconstruçãoda formação dos nomes dos núcleos germinais da divindade,que Usener denomina "deuses especiais" CSondergotter). Trata-se

de divindades a cujo respeito nada dizem nem as fontes literá­rias nem as artísticas, e que nos são conhecidas apenas através

das citações dos indigitamenta, a saber, os livros litúrgicos dospontífices que traziam o elenco dos nomes divinos que deve­riam ser pronunciados nas circunstâncias cultuais apropriadas.Os Sondergotter nos são conhecidos apenas por seu nome e,tendo em conta o silêncio das fontes, viviam unicamente no seu

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nome toda vez que o sacerdote os invocasse ritualmente (in­digitabat). Basta uma competência etimológica elementar paraconseguirmos reconstruir o sentido desses nomes e a função

dos "deuses especiais" que eles nomeavam: Veroactortem a ver

com a primeira lavragem do pousio (veroactum); Reparator diz

respeito à segunda lavragem; Inporcitor tem a ver com a última

lavragem que traça as porcae, ou seja, os pequenos relevosde terra entre sulco e sulco; Occator, com o trabalho da terra

usando a grade aplanadora (occa); Subruncinator diz respeitoà extirpação do inço com o sacho (runco); Messor, à operaçãode semear (messis); Sterculinius, ao adubamento com o esterco.

Para cada atividade e situação que podia ser importante paraos homens de então - escreve Usener - eram criados e nome­

ados deuses especiais com uma apropriada cunhagem verbal(Wortprdgung); dessa maneira, não só acabavam divinizadasatividades e situações na sua integridade, mas também partes,atos específicos e momentos das mesmas (p. 75).

Usener mostra que também divindades que ingressaram na

mitologia, como Proserpina e Pomona, eram originariamen­

te "divindades especiais" que nomeavam respectivamente oaparecimento dos brotos (prosero) e a maturação dos frutos(poma). Todos os nomes dos deuses - é esta, aliás, a tese dolivro - são inicialmente nomes de ações ou eventos momentâ­

neos, Sondergotterque, através de um lento processo histórico­

-linguístico, perdem a sua relação com o vocabulário vivo e, ao

se tornarem gradativamente ininteligíveis, se transformam em

nomes próprios. Nessa altura, quando já se vinculou estavel­mente a um nome próprio, "o conceito divino [GottesbegrijJJ

assume a capacidade de receber uma forma pessoal mediante

o mito e o culto, a poesia e a arte" Cibid.) p. 316).

Isso, porém, significa - como se evidencia com os Sonder­

gotter - que no seu núcleo originário o Deus que preside a

cada atividade e a cada situação nada mais é do que o próprionome dessa atividade e situação. O que acaba divinizado, no

Sondergott, é o próprio evento do nome; a própria nomeação,que isola e torna reconhecível um gesto, um ato, uma coisa,

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cria um "Deus especial", é uma "divindade do momento"(Augenblicksgott). O nomen é imediatamente numen, e o nu­men é imediatamente nomen. Temos aqui algo semelhante aofundamento ou ao núcleo originário da função de testemunhoe de garantia da linguagem que, segundo a interpretação tradi­

cional, o Deus acaba assumindo no juramento. Assim como oSondergott, o Deus invocado no juramento não é propriamentea testemunha da asserção ou da imprecação, mas ele representa,ele é o próprio evento de linguagem no qual palavras e coisas seconectam indissoluvelmente. Cada nomeação, cada ato de palavraé, nesse sentido, um juramento, no qual o lagos (quem fala nolagos) se compromete a cumprir a sua palavra, jura sobre a suaveridicidade, sobre a correspondência entre palavras e coisas quenele se realiza. E o nome do Deus nada mais é do que o sigilodessa força do lagos - ou, no caso em que ela deixa de existirno perjúrio, da mal-dição que assim foi efetivada.

!'li A tese de Usener implica de alguma maneira que "a origem dalinguagem é sempre um evento mítico-religioso" (Kraus, p. 407).Isso não equivale, porém, a um primado do elemento teológico:evento do Deus e evento do nome, mito e linguagem coincidemporque, conforme Usener esclarece desde o início, o nome não éalgo já disponível e posteriormente aplicado à coisa a ser nome­ada. "Não se forma um plexo de sons para depois usá-lo comosigno de uma coisa determinada como se fosse uma ficha. Aexcitação espiritual, que evoca um ser que lhe vem ao encontrono mundo exterior, é ao mesmo tempo ocasião e meio do atode nomear [der Anstoss und das Mittel des Benennens]" (Usener,

p. 3). Isso significa que, no evento de linguagem, nome próprioe nome apelativo são indiscerníveis e, conforme observamos nocaso dos Sondergotter, o nome próprio do Deus e o predicado quedescreve uma determinada ação (o ato de aplainar com grade, oato de adubar etc.) ainda não estão divididos. Nomeação e deno­tação (ou, conforme verificaremos, aspecto assertório e aspectoveridicional da linguagem) são inseparáveis na sua origem.

20. Como já vimos, no estudo sobre La blasphémie et

l'euphémie, Benveniste sublinha o caráter interjetivo que definea blasfêmia. "A blasfêmia - escreve ele - manifesta-se como uma

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exclamação e tem a sintaxe das interjeições, de que constitui avariedade mais típica" (Benveniste [3],p. 256). Assim como todaexclamação, também a blasfêmia é "uma palavra que deixamosescapar sob o impulso de um sentimento vivo e improviso"(ibid.) e, como toda interjeição, mesmo que ela sempre se sirva(diversamente do que acontece nas interjeições onomatopaicascomo "ai!","oh!") de termos significantes em si, não tem carátercomunicativo, mas é essencialmente não semântica.

É singular que, abordando expressões de que se servem osprimitivos para significar o divino (como mulungu para os ban­tos, vakanda ou manitu para os indígenas norte-americanos),Cassirer observe que, para entendê-Ias, devemos "retroceder atéao estrato linguístico originário das interjeições. O manitu dosalgonquianos, assim como o mulungu dos bantos, são usadosjustamente dessa maneira: como uma exclamação, que designamenos uma coisa que uma determinada impressão, que se pro­duz frente a tudo aquilo que é insólito, surpreendente, capaz desuscitar admiração ou temor" (Cassirer,pp. 82-83).A mesma coisapode ser dita a respeito dos nomes dos deuses do politeísmo,que representam segundo Cassirer a primeira forma na qual aconsciência mítico-religiosa expressa o seu sentimento de terrorou de veneração (cE.ibid., p. 83).

Assim como a blasfêmia, que é sua outra face, o nome divi­no parece ter constitutivamente a forma de uma interjeição. Nomesmo sentido, a nomeação adamítica em Gn. 2, 19 não podiaser um discurso, mas apenas uma série de interjeições. De acor­do com a dualidade entre nomes e discurso, que, conforme oslinguistas, caracteriza a linguagem humana, os nomes, no seuestatuto originário, constituem um elemento não semântico, massim, puramente semiótico. Eles são as relíquias da interjeiçãooriginária, que o rio da linguagem carrega dentro de si no seudevir histórico.

Nessa sua natureza essencialmente não semântica, mas ex­clamativa, a blasfêmia mostra sua proximidade a um fenômenolinguístico que não é fácil de analisar, a saber, o insulto. Os lin­guistas definem os insultos como termos performativos de tipoparticular que, apesar da aparente semelhança, se opõem ponto

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a ponto aos termos classificatórios normais, que inscrevem o ser

de que são predicados em uma determinada categoria. A frase "ésum idiota" só aparentemente é simétrica àquela "és um arquiteto",pois, à diferença desta, não está destinada a inscrever um sujeitoem uma classificação cognitiva, mas a produzir, através da sua

simples pronúncia, efeitos pragmáticos particulares (Milner, p.295). Os insultos funcionam, portanto, mais como exclamaçõesou nomes próprios do que como termos predicativos e, comisso, mostram sua semelhança com a blasfêmia (blasphemia emgrego significa tanto insulto quanto blasfêmia). Por isso, nãocausa surpresa que a blasfêmia, através de um processo que jáacontece em Agostinho, passe de vã nomeação do nome de Deusà forma de um insulto (mala dicere de Deo), ou seja, de termoinjurioso aposto em exclamação ao nome de Deus. Enquantotermo só aparentemente semântico, o insulto reforça o caráter"vão" da blasfêmia, e o nome de Deus é, dessa maneira, dupla­mente proferido em vão.

~ O poder especial do nome divino é evidente no instituto dodireito bélico romano (já deveria estar claro o motivo pelo qualpreferimos evitar a expressão "direito sagrado" a que, a partir deDanz e Wissowa, nesse caso se faz referência) conhecido comoevocatia. Durante o assédio a uma cidade, imediatamente antes doataque decisivo, o comandante "evocava", ou seja, chamava pelonome as divindades tutelares dos inimigos para que abandonas­sem a cidade e se transferissem para Roma, onde teriam recebidoum culto mais adequado. A fórmula do carmen evacatianisusada

para Cartago nos foi conservada por Macróbio, sem menção donome próprio do Deus (III, 7-9): "Seja um Deus ou uma deusa[siDeus est, si dea es~ que está tutelando o povo e a cidade deCartago, invoco solenemente sobretudo a ti e imploro [precarvenerorque] e peço a vós que abandoneis o povo e a cidade deCartago e deixeis os sagrados templos e as suas cidades C ..) evenhais propícios até Roma, junto a mim e aos meus, e que anossa cidade, os lugares e os templos sagrados vos sejam maisagradáveis e aceitos, e sejais favoráveis a mim, ao povo romanoe aos meus soldados. Se fizerdes assim, de acordo com o quesabemos e compreendemos, consagro-vos [voveo vabis] templose prometo-vos celebrar jogos."

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Que de fato não se tratava de um convite, mas sim de umverdadeiro poder obrigante ligado à pronúncia do nome, resultado fato de sabermos (Plínio, 28, 18) que, a fim de evitar o perigode uma evocação por parte do inimigo, Roma tinha um nomesecreto (o palíndromo Amor ou, segundo Lydo [De mens. IV,25], Flora). E assim como Roma, também os deuses tinham umnome secreto, só conhecido pelo sacerdote (ou pelo mago), que

garantia a eficácia da evocação: dessa maneira, Dioniso era cha­mado, nos mistérios, Pyrigenes; Lucina, com o nome estrangeirode Ilithya, Proserpina, com o de Furva, enquanto o verdadeironome da Bana dea, a quem as matronas romanas dedicavam umculto mistérico, deveria continuar desconhecido para os homens(Güntert, p. 8). O poder mágico do nome que encontramos nasfórmulas e nos amuletos de muitas culturas, em que não apenaso nome evoca a potência nomeada, mas também pode, atravésdo seu progressivo cancelamento, cassá-Ia ou destruí-Ia (comoacontece na fórmula akrakanarba kanarba anarba narba arba

rba ba a - Wessely, p. 28), encontra aqui o seu fundamento.Assim como no juramento (aproximidade entre fórmula mágicae juramento é atestada pelo verbo horkizõ, evocar, conjurar:horkizõ se to hagion onoma, com o acusativo do nome divino,exatamente como acontece no juramento - Güntert, p. 10), apronúncia do nome realiza imediatamente a correspondênciaentre palavras e coisas. Juramento e conjuro são as duas facesda "evocação" do ser.

21. Compreende-se assim o primado essencial do nome deDeus nas religiões monoteístas, o seu identificar-se e quasesubstituir-se ao Deus que nomeia. Se no politeísmo o nomedo Deus nomeava este ou aquele evento de linguagem, esta

ou aquela nomeação específica, este ou aquele Sondergott, nomonoteísmo, o nome de Deus nomeia a própria linguagem. A

disseminação potencialmente infinita de cada evento divino de

nomeação dá lugar à divinização do lagos como tal, ao nome deDeus como arquievento da linguagem nos nomes. A linguagemé o verbo de Deus, e o verbo de Deus é, de acordo com as

palavras de Fílon, um juramento; é Deus enquanto se revela nolagos como o "fiel" (pistas) por excelência. Deus é o jurante na

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língua da qual o homem é apenas o falante, mas no juramentosobre o nome de Deus, a língua dos homens entra em comuni­cação com a língua divina.

Daí surge, em Maimônides e no judaísmo rabínico, a obsti­nação com o estatuto do nome próprio de Deus, o Tetragrama,que é mantido - como sem ha-meforas, "nome distintamentepronunciado", mas também "separado, secreto" - distinto dossimples nomes apelativos (kinnui), que expressam esta ou aquelaação de Deus, este ou aquele atributo divino. "Os outros nomes- escreve Maimônides - como Dayyan (juiz), Tzaddik (justo),Hannoun (clemente), Ra'houm (misericordioso), Elohim, sãoevidentemente nomes comuns, derivados das ações. Mas o nomeque se escreve yod, hé, waw, hé não tem uma etimologia conhe­cida e não se aplica a algum outro ser" (Maimônides, 1, 61). Aocomentar uma passagem do Pirke De-Rabbi Eliezer, no qual se lêque "antes da criação do mundo, não existia senão o Altíssimoeo seu nome", Maimônides acrescenta que dessa maneira "se dizclaramente que os nomes derivados nasceram depois da criaçãodo mundo; e é assim por se tratar de nomes estabelecidos comrelação às ações [de Deus] que têm lugar no mundo; mas seconsiderarmos a sua essência nua e despojada de toda ação, elenão tem nenhum nome derivado, mas apenas um nome próprioque indica a sua essência" Cibid., p. 148). O próprio deste nome(o sem ha-meforas), segundo Maimônides, consiste em que, àdiferença dos outros nomes que "não exprimem apenas uma es­sência, mas uma essência com atributos", ele designa "a ideia deuma existência necessária", ou seja, uma essência que coincidecom a sua existência (d. ibid., p. 147). O "nome" (o termo semna Bíblia muitas vezes é usado como sinônimo de Deus) é o ser

de Deus, e Deus é o ser que coincide com o seu nome.

~ No seu estudo sobre o Nome de Deus e a teoria cabalística

da linguagem, Gershom Scholem mostrou a função especialque o nome de Deus exerce na cabala, na qual ele constitui"a origem metafísicade toda língua" (Scholem, p. 10). O nomede Deus, sobre o qual os seres humanos juram, é, segundo oscabalistas, aquilo que produz e sustenta a linguagem humana,

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que nada mais é senão uma decomposição, uma recombinaçãoe um desdobramento das letras que compõem tal nome. Espe­cialmente a Torá "é inteiramente construída sobre um tetragrama

e tecida a partir dos nomes apelativos de Deus que dele podemser derivados, e enquanto cada um deles salienta um aspecto

específico do divino C ..) A Torá é, portanto, um tecido vivo, umentrelaçamento e um textus na mais própria acepção do termo,

em que a trama é composta pelo Tetragrama, que constitui, demaneira escondida ou manifesta, o motivo de fundo e o fio

condutor, que retorna em todas as metamorfoses e variaçõespossíveis" Cibid., p. 50).

Os teólogos cristãos falam de communicatio idiomatum paradefinir a comunicação entre as propriedades da natureza divina eas da natureza humana que são unidas hipostaticamente em Cris­to. Poderíamos falar, em sentido análogo, de uma communicatio

entre a língua de Deus e a língua dos homens, que acontece,segundo os cabalistas, no nome de Deus. Em Fílon (d. supra,

p. 18), a comunicação entre as línguas acontece no juramento,

no qual Deus jura sobre si, eOs homens sobre o nome de Deus.

No ensaio de Benjamin sobre a "Língua em geral e a língua doshomens", de que o citado estudo de Scholem é uma retomadae um desenvolvimento, o lugar da communicatio idiomatum

está no nome próprio, através do qual a língua dos homens secomunica com a palavra criadora de Deus (cf. Benjamin, p. 150).

~ Em Êx. 3,13, ]avé responde a Moisés, que lhe pergunta comodeverá responder aos hebreus que o interrogam sobre o nomede Deus: ehyé aser ehyé - "sou aquele que sou". A Septuaginta,elaborada em ambiente helenístico, portanto, em contato com

a filosofia grega, traduz este nome com egõ eimi ho õn, ou seja,com o termo técnico usado para o ser (ho õn). Maimônides, ao

comentar tal passagem, mostra-se totalmente consciente das im­

plicações filosóficas desse nome de Deus: "Deus lhes concedeuentão um conhecimento que lhes devia comunicar para afirmara existência de Deus, ou seja, ehyé aser ehyé. Trata-se de umnome derivado de haya, que designa a existência, pois haya

significa "tem sido" e a língua hebraica não distingue entre "ser"

e "existir". Todo o mistério reside na repetição, em forma de

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atributo, desse termo que significa a existência, pois a palavraaser (quem), sendo um nome incompleto C .. ) exige que seexpresse o atributo que lhe é acrescido. Ao expressar o primeirotermo, que é o sujeito, com ehyé, e o segundo termo, que lheserve como atributo, com o mesmo nome ehyé, afirma-se que osujeito é idêntico ao atributo. Esta é uma explicação da ideia deque "Deus existe, mas não por acrescentar a existência", o quese interpreta da seguinte maneira: "O ser que é o ser", a saber,o ser necessário" (Maimônides, 1, 63),

22. A vinculação do tema teológico do nome de Deus com

aquele filosófico, o do ser absoluto, no qual essência e existên­

cia coincidem, ocorre de maneira definitiva na teologia católica,

especialmente na forma do argumento que, a partir de Kant, se

costuma definir como ontológico. Assim como foi esclarecido pelos

intérpretes, a força da célebre argumentação de Anselmo no Pros­

logion não consiste numa dedução lógica da existência a partir da

noção de ser perfeitíssimo ou "aquilo de que não se pode pensar

nada maior"; trata-se, isso sim, da compreensão de id quo maius

cogitari non potest 20 como nome próprio de Deus. Pronunciar o

nome de Deus significa, por conseguinte, compreendê-Ia como

a experiência de linguagem na qual é impossível separar o nome

e o ser, as palavras e a coisa. Como escreve Anselmo, no final do

Liber apologeticus contra Gaunilonem (o único em que ele fala

de uma prova, ou melhor, de uma vis probationis), "o que é dito

[hoc ipsum quod dicitur], pelo fato mesmo que é entendido e

pensado [eo ipso quod intelligitur vel cogitatur] é provado existir

necessariamente". Trata-se, pois, sobretudo de uma experiência

de linguagem (de um "dizer": hoc ipsum quod dicitur), e tal expe­

riência é a da fé. Por isso, Anselmo faz questão de nos informar

que o título original do tratado era fides quaerens intellectum, e

que ele tinha sido escrito sub persona C ..) quaerentis intelligere

quod credit (em nome de alguém que quer compreender o que

crê). Compreender o objeto da fé significa compreender uma

experiência de linguagem em que, assim como no juramento,

20 Aquilo do qual não se pode pensar algo maior. (N.T.)

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o que se diz é necessariamente verdadeiro e existe. O nome deDeus expressa, portanto, o estatuto do logos na dimensão dafides-juramento, em que o ato de nomear realiza imediatamentea existência daquilo que nomeia.

Cinquenta anos mais tarde, Alão de Lille, nas suas Regulae

theologieae(P.L. 210,621-684),leva ainda mais longe este estatutoespecial do nome divino, escrevendo que todo nome, mesmoaquele que expressa um atributo, como iustus ou bonus, quandoreferido ao ser de Deus se transforma em pronome (pronomina­

tur), ou seja, deixa de indicar, como todo nome, uma substânciae um atributo e, esvaziando-se do seu significado, designa agora,assim como ocorre com os pronomes ou com os nomes próprios,uma pura existência (substantia sine qualitate, na tradição do pen­samento gramatical clássico). E mais ainda: também o pronome,sendo predicado de Deus, deixa de ser a demonstração sensívelou intelectual que o define (eadit a demonstratione) para realizaruma paradoxal demonstra tio adfidem, ou seja, para ser um puroato de palavra como tal (apudDeum, demonstratiofitadfidem).

Por esse motivo, Tomás, ao retomar a tese de Maimônidessobre o nome qui est, chega a escrever que ele "diz o ser absolutoe não determinado através de alguma especificação acrescida(...) não significa o que é Deus [quid est Deus], mas, por assimdizer, o mar infinito e quase indeterminado da existência (...),ficando então em nosso intelecto apenas o fato de que ele é[quia est] e nada mais, numa espécie de estupefação [sieut in

quadam eonfusione]" (super 1 Sent., d. 8, q.1, a.I). O significadodo nome de Deus não tem, pois, nenhum conteúdo semântico,ou melhor, suspende e põe entre parênteses todo significado, afim de afirmar, através de uma pura experiência de palavra, umapura e nua existência.

Podemos agora precisar melhor o sentido e a função do nomede Deus no juramento. Todo juramento jura sobre o nome porexcelência, a saber, sobre o nome de Deus, porque o juramentoé a experiência de linguagem que trata toda língua como umnome próprio. A pura existência - a existência do nome - não énem o resultado de uma constatação, nem sequer uma dedução

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lógica, mas é algo que não pode ser significado, mas unicamente

jurado, ou seja, afirmado como um nome. A certeza da fé é acerteza do nome (de Deus).

~ Ao final das anotações publicadas em 1969 sob o título Dacerteza, a fim de esclarecer o que é aquilo que chamamos de cer­

teza e que com frequência trocamos por um "saber", Wittgenstein

recorre ao exemplo do nome próprio e pergunta: "Sei que mechamo Ludwig Wittgenstein ou apenas o creio?" (Wittgenstein,n. 491). Assim, ele questiona a "segurança" particular que estáligada ao plano dos nomes. Trata-se de uma certeza, ou melhor,de uma "confiança" (Worauf kann ich mich verlassen? - "Em queposso depositar minha confiança?" - ibid., n. 508), da qual nãopodemos duvidar sem renunciar a toda possibilidade de juízo ede raciocínio (d. ibid., n. 494). "Se o meu nome não for L.W.,

como poderei confiar naquilo que se deve entender por 'verda­deiro' ou 'falso'?" (ibid., n. 515). A segurança que diz respeito àpropriedade dos nomes condiciona qualquer outra certeza. Sealguém põe em questão, na linguagem, o próprio momento da

nomeação sobre o qual se fundamenta todo jogo linguístico (senão estiver seguro que eu me chamo L.W, e que "cão" significacão), então se torna impossível falar e julgar. Contudo, Wittgens­tein mostra que aqui não se trata de uma certeza de tipo lógicoou empírico (como a certeza de nunca ter estado sobre a lua - d.ibid., n. 662), e sim de algo parecido com uma "regra" do jogoque é a linguagem.

É uma certeza, ou melhor, uma "fé", desse gênero que está em

jogo no juramento e no nome de Deus. O nome de Deus nomeia

o nome que é sempre e só verdadeiro, a saber, a experiência

da linguagem de que não podemos duvidar. Esta experiência é,

para o ser humano, o juramento. Nesse sentido, todo nome é um

juramento; em todo nome está em questão uma "fé", porque a

certeza do nome não é do tipo empírico-constatativo, nem lógico­

-epistêmico, mas cada vez põe em jogo o empenho e a prática dos

seres humanos. Falar é, antes de mais nada, jurar, crer no nome.

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23. É sob essa perspectiva que convém reler a teoria dosperformativos ou dos speech acts que, no pensamento do sé­culo XX, representa uma espécie de enigma, como se filósofose linguistas se confrontassem aqui com a sobrevivência deum estágio mágico da língua. O performativo é um enunciadolinguístico que não descreve um estado de coisas, mas produzimediatamente um fato, realiza o seu significado. "Eu juro" é,nesse sentido, o paradigma perfeito de um speech act, e chamaa atenção o fato de que Benveniste, que o cita como tal noseu estudo sobre os performativos CI, p. 270), nem mencioneessa sua particular natureza no capítulo sobre o juramento noVocabulaire. É precisamente o estatuto do juramento, que atéaqui procuramos reconstruir, que nos permite compreender sobuma nova luz a teoria dos performativos. Eles representam nalíngua o resíduo de um estágio (ou, então, a cooriginariedadede uma estrutura) no qual o nexo entre as palavras e as coisasnão é do tipo semântico-denotativo, mas performativo, enquan­to, assim como no juramento, o ato verbal efetiva o ser. Não setrata, conforme vimos, de um estádio mágico-religioso, porémde uma estrutura antecedente (ou contemporânea) à distinçãoentre sentido e denotação, que talvez não seja, como estamosacostumados a pensar, um caráter original e eterno da línguahumana, mas uma produção histórica (que, como tal, nem sempreexistiu e poderia um dia deixar de existir).

Como funciona realmente o performativo? O que permiteque um determinado sintagma adquira, através da sua simplespronúncia, a eficácia do ato, desmentindo a antiga máxima quesustenta que as palavras e as coisas estão separadas por umabismo? Nesse caso, é certamente essencial o caráter autorrefe­

rencial da expressão performativa. Tal autorreferencialidade nãose esgota simplesmente no fato de o performativo - conformeobserva Benveniste (ibid., p. 274)- tomar a si mesmo como refe­rente, na medida em que remete a uma realidade que ele próprioconstitui. O que importa salientar é que a autorreferencialidadedo performativo sempre se constitui através de uma suspensão docaráter denotativo normal da linguagem. O verbo performativo

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constrói-se necessariamente com um dictum que, consideradoem si, tem natureza puramente denotativa, e sem o qual elecontinuaria vazio ou ineficaz ("eu juro" não terá valor se não forseguido - ou precedido - por um dictum que o preenche). É talcaráter denotativo do dictum que acaba sendo suspenso e revoga­do no mesmo momento em que se torna objeto de um sintagmaperformativo. Dessa maneira, as expressões denotativas "ontemme encontrava em Atenas" ou "não combaterei contra os troia­

nos" deixam de ser tais se forem precedidas do performativo "eujuro". Assim, o performativo substitui a relação denotativa entrepalavra e coisa por uma relação autorreferencial que, excluindoa primeira, põe a si mesma como o fato decisivo. O modelo daverdade não é, nesse caso, o da adequação entre as palavras eas coisas, mas sim aquele performativo, no qual a palavra realizainevitavelmente o seu significado. Assim como, no estado de ex­ceção, a lei suspende a própria aplicação unicamente para fundar,desse modo, a sua vigência, assim também, no performativo, alinguagem suspende a sua denotação precisamente e apenas parafundar o seu nexo existentivo com as coisas.

Considerado nessa perspectiva, o argumento ontológico (ouonto-teo-Iógico) diz simplesmente que se existe a língua, entãoDeus existe, e o nome de Deus é a expressão dessa peiforman­

ce metafísica. Nela, sentido e denotação, essência e existênciacoincidem, e a existência de Deus e sua essência são uma coisa

única e idêntica. Existe pura e simplesmente (on haplõs) aquiloque resulta performativamente do puro dar-se da língua. (Para­fraseando uma tese de Wittgenstein, poderíamos afirmar que aexistência da linguagem é a expressão performativa da existênciado mundo). A ontoteologia é, portanto, uma prestação perfor­mativa da linguagem e está unida a uma certa experiência dalíngua (aquela que está em jogo no juramento), no sentido deque sua validez e seu declínio coincidem com o fato de valer oudeclinar esta experiência. A metafísica, a ciência do ser puro é,em tal sentido, ela própria histórica, coincidindo com a experi­ência do evento de linguagem ao qual o ser humano se entregoucom o juramento. Se o juramento declina, se o nome de Deus

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se retira da língua - é isso que aconteceu a partir do evento que

foi chamado de "morte de Deus" ou, como se deveria dizer mais

corretamente, de morte "do nome de Deus" - então também a

metafísica chega ao seu cumprimento.

Em todo caso, continua existindo a possibilidade do perjúrio e

da blasfêmia, em que aquilo que é dito não é realmente entendido

e o nome de Deus é pronunciado em vão. A cooriginariedade

entre estrutura performativa e estrutura denotativa da língua faz

com que o "flagelo indo-europeu" fique inscrito no próprio ato

de palavra, isto é, seja consubstancial com a própria condição

de ser falante. Com o logos dão-se ao mesmo tempo - coori­

ginariamente, mas de maneira tal que nunca possam coincidir

perfeitamente - nomes e discurso, verdade e mentira, juramento

e perjúrio, bem-dição e mal-dição, existência e não existênciado mundo, ser e nada.

~ Esse poder performativo do nome de Deus explica o fato, à

primeira vista surpreendente para nós, de que a polêmica dosapologistas cristãos contra os deuses pagãos não diz respeito àexistência ou não existência dos mesmos, mas somente ao seu

ser, nas palavras que Dante põe nos lábios de Virgílio, "falsose mentirosos" CInj. 1, 72). Os deuses pagãos existem, mas nãosão verdadeiros deuses; são demõnios (segundo Taciano) ou

seres humanos (para Tertuliano). Em correspondência à mul­

tiplicação potencialmente infinita dos seus nomes, os deuses

pagãos equivalem a juramentos falsos, sendo constitutivamenteperjúrios. Pelo contrário, a invocação do nome do verdadeiroDeus é a própria garantia de toda verdade mundana (Agostinhoescreve: "Te invoco, Deus veritas, in quo et a quo etper quem vera

sunt quae vera sunt omnia"), Quando o poder performativo da

linguagem estiver concentrado no nome do único Deus (que setornou, por isso, mais ou menos impronunciável), cada um dos

nomes divinos perde toda eficácia, ficando reduzido ao rol deescombro linguístico, em que só continua perceptível o significadodenotativo (nesse sentido, Tertuliano pode falar sarcasticamentede Sterculus cum indigitamentis suis - Apol. XXV, 10).

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24. Nessa perspectiva, a seca distinção entre juramento asser­tório e juramento promissório corresponde ao definhamento daexperiência da palavra que está em jogo no juramento. Esta não éuma asserção nem uma promessa, mas algo que, ao retomar umtermo foucaultiano, podemos chamar de "veridiçã021" e que en­contra na relação com o sujeito que a pronuncia o critério únicode sua eficácia performativa. Asserção e veridição definem assimos dois aspectos cooriginários do lagos. Enquanto a asserçãotem um valor essencialmente denotativo, cuja verdade, no mo­mento de sua formulação, é independente do sujeito e se medecom parâmetros lógicos e objetivos (condições de verdade, nãocontradição, adequação entre palavras e realidade), na veridiçãoo sujeito se constitui e se põe em jogo como tal, vinculando-seperformativamente à verdade da própria afirmação. Por isso,a verdade e a consistência do juramento coincidem com a suaprestação; por isso, a chamada para ser testemunha do Deus nãoimplica um testemunho efetivo, mas é realizada performativa­mente pela própria pronúncia do nome. O que chamamos hojede performativo em sentido restrito (os speech acts "eu juro","eu prometo", "eu declaro" etc., que devem, significativamente,ser proferidos sempre em primeira pessoa) é, na linguagem, arelíquia dessa experiência constitutiva da palavra - a veridição- que se esgota com a sua pronúncia, porque o sujeito locutornão preexiste nem se vincula sucessivamente a ela, mas coincideintegralmente com o ato de palavra.

Nesse caso, o juramento mostra a sua proximidade perfor­mativa com a profissão de fé (homologia, que em grego designatambém o juramento). Quando Paulo, em Rm. 10,6-10, define a"palavrada fé" (to rema tespisteõs) não através da correspondênciaentre palavra e realidade, mas pela vizinhança entre "boca" e "co­ração", ele tem em mente a experiência performativa da veridição."Perto de ti está a palavra, na tua boca e no teu coração; esta é apalavra da fé que anunciamos. Se professares [homologeseis] natua boca o senhor Jesus e creres [pisteuseis] no teu coração queDeus o ressuscitou dos mortos, serás salvo."

21 Preferimos traduzir diretamente o neologismo italiano usado pelo autor(veridizione) com um neologismo em português (veridiçào). (N.T.)

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Se quisermos formular como asserção uma veridição, como

expressão denotativa um juramento, e (conforme a Igreja começaa fazer a partir do século IV através dos símbolos conciliares)como dogma uma profissão de fé, então a experiência da pa­lavra se cinde e surgem irredutivelmente perjúrio e mentira. Eé na tentativa de refrear tal cisão da experiência da linguagem

que nascem o direito e a religião, que procuram ligar a palavraà coisa e vincular, através de maldições e anátemas, o sujeito

falante ao poder veritativo da sua palavra, ao seu "juramento"e à sua declaração de fé. A antiga fórmula das XII tábuas, que

exprime a potência performativa que no direito compete à pala­vra uti lingua nuncupassit, ita ius esto (assim com a língua disse- tomou o nome, nomen capere - assim também seja o direito),

não significa que aquilo que é dito seja constatativamente ver­dadeiro, mas apenas que o dictum é o próprio factum e que,como tal, obriga a pessoa que o proferiu. Nesse sentido, importainverter mais uma vez a opinião comum que explica a eficácia

do juramento remetendo-a às potências da religião e ao direitosagrado arcaico. Religião e direito não preexistem à experiênciaperformativa da linguagem que está em jogo no juramento; noentanto, eles é que foram inventados a fim de garantir a verdadee a confiabilidade do logos através de uma série de dispositivos,entre os quais a tecnicização do juramento em um "sacramentum"

específico - o "sacramento do poder" - ocupa um lugar central.

t-li A falta de compreensão do caráter performativo da experiên­cia de linguagem que está em jogo no juramento fica evidentenas análises filosóficas do perjúrio, de que já temos testemunhoem Aristóteles. A propósito do juramento dos troianos, em li. 3,

276 ss, Aristóteles observava que é necessário distinguir entreromper o juramento (blapsai ton horkon), que pode dizer res­

peito apenas a um juramento promissório, e epiorkesai, perjurar,que pode referir-se apenas a um juramento assertório (d. Arist.,fr. 143). No mesmo sentido, Crisipo faz uma distinção entre

alethorkein / pseudorkein, jurar o verdadeiro / jurar o falso,que estão em questão no juramento assertório, dependendo dofato de que a afirmação de quem jura seja verdadeira ou falsa,e euorkein / epiorkein, que se aplicam ao cumprimento ou aodescumprimento de um juramento promissório (Diog. Laert, 7,

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65-66; d. Hirzel, pp. 77-78; Plescia, p. 84-85). Aqui se vê como

o modelo da verdade lógica fundado sobre a adequação objetivaentre palavras e coisas não pode dar conta da experiência delinguagem implícita no juramento. Enquanto o juramento realiza

performativamente o dito, o epiorkos não é simplesmente um

juramento falso, mas implica o abandono da experiência perfor­mativa, que é própria do horkos.

A lógica, que se preocupa com o uso correto da linguagemenquanto asserção, nasce quando a verdade do juramento jáacabou. E se do cuidado com o aspecto assertório do logos nas­cem a lógica e as ciências, da veridição provêm - mesmo que

seja através de cruzamentos e sobreposições de todo tipo (queencontram precisamente no juramento o seu lugar mais importan­te) - o direito, a religião, a poesia e a literatura. O seu meio é a

filosofia, que, mantendo-se unida na verdade e no erro, procurasalvaguardar a experiência performativa da palavra sem renunciarà possibilidade da mentira e, em todo discurso assertório, antesde mais nada faz a experiência da veridição que nele tem lugar.

25. A eficácia performativa do juramento fica evidente no

processo arcaico que, tanto na Grécia quanto em Roma, tinhaa forma de um conflito entre dois juramentos. O processo civil

iniciava com o juramento das partes em causa: o juramento com

que o autor afirmava a verdade das suas reivindicações chamava­

-se proõmosia (etimologicamente, juramento pronunciado por

primeiro), enquanto o do citado se chamava antõmosia (a sa­

ber, juramento proferido em oposição ao primeiro) e a troca do

juramento se denominava amphiorkia. De maneira análoga, nodireito penal, "o acusador jura que o seu adversário cometeu ocrime, e o acusado, que não o cometeu" (Lisia, Con. Sim. 46;

d. Glotz, p. 762). O código de Gortina mostra que os gregos

procuravam limitar o juramento aos casos em que a prova

testemunhal era impossível, e estabelecer, consequentemen­

te, qual das duas partes (em geral, o acusado) tinha o direito

preferencial ao juramento. Em todo caso, o juiz decidia quem

havia "jurado bem" (poteros euorkei) (Plescia, p. 49), Com razão,

Glotz observou, contra a opinião de Rohde, que o juramento

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declaratório que está em questão no processo grego, "longede constringir ao perjúrio e de provar que o povo ateniensenão era um Rechtsvolk [povo de direito], e longe de ser umainstituição puramente religiosa destinada a substituir a justiçados deuses por aquela falível dos homens" (Glotz, p. 761), eraum procedimento propriamente jurídico no qual o juramentodeclarativo do litígio era claramente distinto daquele exigidocomo prova. Semelhante ao mesmo, no processo romano, erao procedimento chamado legis actio sacra menti, que Gaiodescreve no livro IV das suas lnstitutiones. Cada uma das duas

partes afirmava o seu direito - no caso, exemplificado por Gaio,a vindicatio da propriedade de um escravo, com a fórmula: Hunc

ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio, secundum suam

causam sicut dixi ecce tibi vindictam imposui,22 acompanhadapela imposição de uma varinha (vindicta) sobre a cabeça doescravo contendido. Depois, aquele que tinha pronunciado aprimeira declaração provocava o outro para o sacramentum deuma certa quantia de dinheiro (quando tu iniuria vindicavisti,

D aeris sacramento te provoco 23). Ao comentar, na passagemapenas citada, a palavra sacramentum, Festo explica tratar-sede um verdadeiro juramento que implica uma sacratio: sacra­

mentum dicitur quod iusiurandi sacratione intelposita factum

est(denomina-se sacramentum aquilo que é realizado através daconsagração de um juramento). Só nessa altura, o juiz proferiaa sua decisão: "O sacramentum era o ponto central, o nó doprocesso, que dá seu nome a todo o procedimento. A função dojuiz limita-se, assim, após ter examinado a causa, a declarar qualé o sacramentum iustum e qual o iniustum" (Noailles [1], p. 276).

Mais uma vez, os historiadores do direito, embora se dandoconta de que aqui está em jogo uma eficácia genuinamenteperformativa, tendem a explicar a função do juramento no pro­cesso recorrendo ao paradigma sacral: "É evidente que as formas

22 Eu digo que este homem é meu por direito dos Quirites, segundo sua situa­ção jurídica. Assim como disse, vê, tu, toquei-o com a varinha. [Os Quiritesrepresentam o conjunto dos cidadãos, enquanto o «direito dos Quirites"representa, em última instância, os direitos fundamentais, não as obrigações,(propriedade, poder paterno, liberdade, herança, tutela etc.). (N.T.)

23 Visto teres vindicado injustamente, desafio-te a um sacramentum de qui­nhentos asses. (N.T.)

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mais antigas do empenho realizam o empenho: elas provocam

uma mudança de estado nas partes em causa, e criam entre elas

algo que as transcende. Para o fazer, põem em jogo forças C ..);

trata-se das forças que chamamos religiosas" (Gernet, p. 61). O

que, assim, é pressuposto na forma da religiosidade nada mais

é senão a experiência da linguagem, que se efetua na veridição.

Nesse sentido, a contraposição entre fé e razão, tão importante

na cultura moderna, na realidade corresponde pontualmente à

oposição entre as duas características cooriginárias do lagos, que

são a veridição (de que provêm o direito e a religião positiva) e

a asserção (de que derivam a lógica e a ciência).

26. Procuremos compreender, na perspectiva da nossa in­vestigação, quais as "forças" que nesse caso estão realmenteem jogo. Um dos termos sobre cujo significado os historiadoresnão param de discutir é vindicta (e os termos conexos, comovindex, vindicere), que, no processo, parece designar a varinhacom que as partes tocavam o objeto reivindicado. Cabe a PierreNoailles o mérito de ter esclarecido o significado original dessetermo. Ele provém, segundo a etimologia tradicional, de vim di­cere, literalmente "dizer ou mostrar a força". Mas de que "força"se trata? Entre os estudiosos - observa Noailles - reina a esse

propósito a maior confusão.

Eles oscilam sem parar entre os dois sentidos possíveis da pala­vra: força ou violência, a saber, a força posta materialmente emato. Na realidade, eles não escolhem, mas cada vez propõemum ou outro significado. As vindicationes do sacramentumsão apresentadas ora como manifestações de força, ora comoatos de violência simbólicos ou simulados. A confusão é ainda

maior quando se trata do vindex. De fato, não é claro se aforça ou a violência expressa por ele é a sua própria, posta aserviço do direito, ou a violência do adversário, denunciadacomo contrária à justiça (Noailles [2],p. 57).

Contra tal confusão, Noailles mostra que a vis [força] em questão

não pode ser uma força ou uma violência material, mas unica­

mente a força do rito, ou seja, uma "força que obriga, mas que

não precisa ser aplicada materialmente em um ato de violência,

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mesmo que seja simulada" (ibid., p. 59). Noailles cita a essepropósito uma passagem de Aulo Gélio, em que a vis civilis(. ..)

quae verbo diceretur [a força civil, que se diz com a palavra] éoposta à vis quae manu fieret, cum vi bellica et cruenta [forçafeitacom a mão, com força bélica e cruenta]. Desenvolvendo a tesede Noailles, podemos usar como hipótese que a "força dita coma palavra", que está em jogo tanto na ação do vindex quanto nojuramento, seja a força da palavra eficaz, como força origináriado direito. A esfera do direito é, assim, a de uma palavra eficaz,de um "dizer" que é sempre indicere (proclamar, declarar sole­nemente), ius dicere (dizer aquilo que é conforme ao direito) evim dicere (dizer a palavra eficaz). A força da palavra que aquiestá em questão é, segundo Noailles, a mesma que é expressa nafórmula das XII Tábuas: uti lingua nuncupassit, ita ius esto (assimcomo disse a língua, assim seja o direito). Nuncupare explica-seetimologicamente como nomen capere, tomar o nome:

o caráter geral de todas as nuncupationes, tanto de direitodivino, como de direito civil, consistia em circunscrever edelimitar(...); o objetivo essencial do formulário consiste emdeterminar o objeto, em captá-Io. Dessa maneira percebe­-se a relação profunda existente entre o gesto e a palavra,a estreita correlação que os une. Rem manu capere, nomenverbis capere: estas são as duas pedras angulares dessatomada total. É conhecida a importância mística que osromanos atribuíamao nomen a fim de adquirirem o domíniosobre a coisa designada. A primeira condição para agir comeficácia sobre uma das forças misteriosas da natureza, sobreuma potência divina, era a de poder pronunciar o seu nome(Noailles [1],p. 306).

Basta pôr de lado o recurso às "potências divinas", que já setornou bem familiar, para que fiquem evidentes a natureza e afunção do juramento no processo. O "juramento justo" é aqueledo qual o iudex, que no processo se põe no lugar do vindex

arcaico, "diz e reconhece a força" (vim dicit); ou melhor, é aque­le que cumpriu da maneira mais correta e eficaz a perfomance

implícita no juramento. O ato da contraparte não é por isso,necessariamente, um epiorkos, um perjúrio, mas é simplesmente

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um ato cuja vis performativa é menos perfeita do que a do ven­cedor. A "força" que está em jogo é aquela quae verbo diceretur,

é a força da palavra. Deve-se, portanto, pressupor que no sacra­

mentum, assim como em todo juramento, estivesse implícita umaexperiência performativa da linguagem, na qual a pronúncia da

fórmula, o nomen capere da nuncupatio, tinha a força de realizar

o que dizia. Para explicar tal força, não há nenhuma necessidadede apelar para a religião, para o mito ou a magia; trata-se de algo

que ainda hoje se verifica toda vez que se pronuncia a fórmulade um ato jurídico verbal. Não é por efeito de um poder sagradoque os esposos, ao pronunciarem o seu sim frente ao oficial civil,resultam efetivamente unidos em matrimônio; nem é por magia

que a estipulação verbal de um ato de compra e venda transfere

imediatamente a propriedade de um bem móvel. O uti lingua

nuncupassit, ita ius esto não é uma fórmula mágico-sacral, masé, antes, a expressão performativa do nomen capere que o direitoconservou no seu centro, extraindo-a da experiência original do

ato de palavra que ocorre no juramento.

l-li Magdelain demonstrou que o modo verbal próprio do direito,tanto sagrado quanto civil, é o imperativo. Quer nas leges regiae,quer nas XII Tábuas, a fórmula imperativa (sacer esto,paricidasesto, aetema auctoritas esta etc. 24) constitui a norma. O mesmo

vale para os negócios jurídicos: emptar[comprador] esta na man­cipatio [contrato], heres [herdeiro] esta nos testamentos, tutar estaetc., assim como nas fórmulas dos livros pontificais: piaculumdata, exta parriciunta25 (Magdelain, pp. 33-35). O mesmo modoverbal encontra-se, como vimos antes (cf. supra, p. 45), nas fór­mulas do juramento.

Observe-se a fórmula imperativa das XII Tábuas acima referida:uti lingua nuncupassit, ita ius esto. Festo, que nos transmitiu o

texto, explica o termo nuncupata como nominata, certa, nomi­

nibus propriis pronuntiata [nomeada, certa, pronunciada com osnomes apropriados] (Riccobono, p. 43; Festo, 176, 3-4). A fórmulaexpressa a correspondência entre o ato de nomear corretamente

24 Seja sagrado, seja parricida, seja autoridade eterna. (N.T.)25 Dado o sacrifício, sejam jogadas fora as vísceras. (N.T.)

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proferido e o efeito jurídico. O mesmo deduz-se da fórmula dainauguratio dos templos sobre a arx capitolina: tempIa tescaque

me ita sunto, quoad ego ea rite lingua nuncupavero [os templos e

os lugares sagrados sejam para mim assim como os tiver nomeadocom a língua segundo o rito - Varrão, De ling. lato 7,8]; também

aqui, o imperativo expressa a conformidade entre palavras e coi­

sas, que deriva da correta nomeação. A nuncupatio, a tomada do

nome, é nesse sentido o ato jurídico originário, e o imperativo,

que Meillet define como a fórmula primitiva do verbo, é o modoverbal da nomeação no seu efeito jurídico performativo. Nomear,dar nome, é a forma originária do comando.

l-li A partir das fontes, sabemos que, no processo romano, o termo

sacramentum não designava imediatamente o juramento, mas aquantia de dinheiro (de 50 ou de 500 asses) que, de certa manei­ra, estava em jogo através do juramento. Quem não conseguisseprovar o seu direito perdia o dinheiro, que era depositado notesouro público. "A soma de dinheiro" - escreve Varrão - "que

está em juízo nos processos é denominada sacramentum poraquilo que é consagrado [sacro].O autor e o citado depositavam,

cada um, junto à ponte [ou, segundo alguns editores, junto aopontífice] para certas causas 500 asses, para outras, uma quantiafixada pela lei; quem vencia a causa retomava o seu sacramentum

pela consagração, o perdedor ficava com o erário" (De ling. lat.,

V, 180). A mesma etimologia encontra-se em Festo (468, 16-17):

Sacramentum aes significat quod poenae nomine pendetur

[sacramentum designa o dinheiro pago a título de pena].O objeto da sacra tio que ocorria no processo era, portanto, o

dinheiro. Sacer, consagrado aos deuses, nesse caso não era, assimcomo nas sanções das XII Tábuas, um ser vivo, mas uma quantia

de dinheiro. Cícero informa-nos de que, na sua origem, não era o

dinheiro o objeto da sacratioprocessual, mas o gado (d. Noailles,p. 280). Nasce daí a hipótese de alguns historiadores do direito,

segundo a qual era a parte que proferia o juramento que, dessamaneira, se tomava sacer, ou seja, matável e insacrificável. Em

todo caso, é essencial aqui que a sacralidade era inerente, paraalém de qualquer dúvida, ao dinheiro, que o dinheiro era literal e

não metaforicamente "sacro". A aura sacral que envolve o dinheiro

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na nossa cultura encontra assim, segundo toda verossimilhança, asua origem nessa consagração vicária de uma quantia de dinheiroem lugar de um ser vivo; como sacramentum, o dinheiro equivalerealmente à vida.

27. Façamos a tentativa de fixar numa série de teses a nova

situação do juramento que resulta das análises desenvolvidasaté aqui.

1. Os estudiosos frequentemente explicaram, de maneira mais oumenos explícita, o instituto do juramento remetendo-se à esferamágico-religiosa, a um poder divino ou a "forças religiosas"que intervêm para garantir a sua eficácia punindo o perjuro.Assim, com uma curiosa circularidade, o juramento era defato interpretado, como ocorre em Hesíodo, como aquilo queserve para impedir o perjúrio. Nossa hipótese é exatamenteinversa: a esfera mágico-religiosa não preexiste logicamenteao juramento, mas é o juramento, na qualidade de experiênciaperformativa originária da palavra, que pode explicar a religião(e o direito, que está estreitamente vinculado a ela). Por essemotivo, Horkos é, no mundo clássico, o ser mais antigo, aúnica potência a que os deuses estão penalmente submetidos.Por isso, no monoteísmo, Deus identifica-se com o juramento(é o ser cuja palavra é um juramento ou que coincide com asituação da palavra verdadeira e eficaz in principio).

2. O contexto próprio do juramento reside, por conseguinte, na­queles institutos, como, por exemplo, aJides, cuja função con­siste em afirmar performativamente a verdade e a credibilidadeda palavra. Os horkia são, por excelência, pista, confiáveis, eos deuses, no paganismo, são convocados performativamenteno juramento com o objetivo de, em última instância, daremtestemunho dessa confiabilidade. As religiões monoteístas,sobretudo o cristianismo, herdam do juramento a centralida­de da fé na palavra como conteúdo essencial da experiênciareligiosa. O cristianismo é, no sentido próprio do termo, umareligião e uma divinização do Logos. A tentativa de conciliara fé (como experiência performativa de uma veridição) coma crença em uma série de dogmas de tipo assertório é a con­tribuição e, ao mesmo tempo, a contradição central da Igreja,

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que a obriga, contra o nítido ditado evangélico, a tecnicizarjuramento e maldições em institutos jurídicos específicos.Por isso, a filosofia - que não procura fixar a veridição emum sistema de verdades codificadas, mas, em cada evento delinguagem, traz à palavra e explicita a veridição que o funda­menta - deve necessariamente colocar-se como vera religio.

3. É no mesmo sentido que deve ser entendida a proximidadeessencial entre juramento e sacratio (ou devotio). A inter­pretação da sacertas como contribuição originária do poderatravés da produção de uma vida nua matável e insacrificáveldeve ser integrada no sentido de que, antes mesmo de sersacramento do poder, o juramento é consagração do ser vivoà palavra através da palavra. O juramento pode servir comosacramento do poder na medida em que é, antes de maisnada, o sacramento da linguagem. Esta sacratio original queocorre no juramento assume a forma técnica da maldição, dapolitike ara que acompanha a proclamação de uma lei. Nessaperspectiva, o direito está, constitutivamente, vinculado à mal­dição, e só uma política que tenha rompido esse nexo originalcom a maldição poderá um dia, eventualmente, permitir outrouso da palavra e do direito.

28. Chegamos assim ao momento de situar arqueologica­mente o juramento na sua relação com a antropogênese. Nodecurso de nossa investigação, algumas vezes olhamos para ojuramento como se fosse o testemunho histórico da experiênciade linguagem através da qual o ser humano se constituiu comoser que fala. É com referência a tal evento que Lévi-Strauss, noestudo sobre Mauss que citamos antes, falou de uma inadequa­ção fundamental entre significante e significado que se produziuno momento em que, para o ser humano falante, o universo setornou improvisamente significativo.

Quando, improvisamente, o universo se tornou significativo,ele não passou por isso a ser conhecido melhor, embora sejaverdade que o aparecimento da linguagem devia acelerar oritmo do desenvolvimento do conhecimento. Há, pois, nahistória do espírito humano, uma oposição fundamental entreo simbolismo, que apresenta um caráter de descontinuidade,

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e o conhecimento, marcado pela continuidade. Disso resultaque as duas categorias do significante e do significado seconstituíram simultânea e solidamente, como dois blocoscomplementares; mas que o conhecimento, a saber, o processointelectual que permite a identificação, uns com respeito aosoutros, de determinados aspectos do significante e determina­dos aspectos do significado C..), se pôs em movimento commuita lentidão C. .. ) O universo tem significado muito antesque se começasse a saber o que ele significava (Lévi-Strauss,p. XLVII).

A consequência deste frustrado equilíbrio é que o homem "seencontrou dispondo, desde a origem, de uma integralidade designificante que não é para ele cômodo atribuir a um significado,

dado como tal, sem, por isso, ser conhecido. Sempre há entre osdois uma inadequação, a que só o intelecto divino pode suprir,e que resulta da existência de um excesso de significante comrelação aos significados aos quais pode estar vinculado. Em seuesforço de conhecer o mundo, o ser humano, portanto, sempredispõe de uma sobra de significação (que é repartida entre as

coisas segundo as leis do pensamento simbólico, cuja análisecabe aos etnólogos e aos linguistas" (ibid.) p. XLIX).

Vimos que é precisamente tal inadequação que, segundoLévi-Strauss, explica as noções mágico-religiosas de tipo mana,que representam o significante "flutuante" ou excedente e, em

última instância, vazio, que constitui "a escravidão de todo pen­samento finito" (ibid.). Assim como acontece em Max Müller com

a mitologia, assim também para Lévi-Strauss, embora em sentidocertamente diverso, as noções mágico-religiosas representem dealguma maneira uma doença da linguagem, a "sombra opaca"que a linguagem projeta sobre o pensamento e que impede du­radouramente a junção entre significação e conhecimento, entrelíngua e pensamento.

O predomínio do paradigma cognitivo faz com que, emLévi-Strauss, o evento da antropogênese seja visto apenas nosseus aspectos gnosiológicos, como se, ao tornar-se humano ohomem, não estivessem necessariamente, e nem sobretudo, em

questão implicações éticas (e, talvez, também políticas). O que

gostaríamos de sugerir nesse momento é que quando, após

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uma transformação cujo estudo não cabe às ciências humanas,a linguagem apareceu no ser humano, o que causou problemanão pode ter sido apenas, segundo a hipótese de Lévi-Strauss,oaspecto cognitivo da inadequação entre significante e significadoque constitui o limite do conhecimento humano. Além disso, e,talvez,mais decisivopara o ser vivo que se descobriu falante, deveter sido o problema da eficácia e da veridicidade da sua palavra,ou seja, do que poderia garantir o nexo original entre os nomese as coisas e entre o sujeito que se tornou falante - portanto,capaz de asserir e de prometer - e as suas ações. Devido a umpersistente preconceito, talvez ligado à sua profissão, os cientistassempre consideraram a antropogênese um problema de ordemexclusivamente cognitiva,como se o tomar-se humano do homemfosse apenas uma questão de inteligência e de volume cerebral,e não também de ethos; como se inteligência e linguagem nãoprovocassem também e sobretudo problemas de ordem ética epolítica; como se o homo sapiens não fosse, também, e talvezprecisamente por isso, um homo iustus.

Os linguistasprocuraram definir muitas vezes a diferença entrea linguagem humana e a animal. Nesse sentido, Benveniste opôsa linguagem das abelhas, código de sinais fixos e cujo conteúdoé definido de uma vez para sempre, à língua humana, que sedeixa analisar em morfemas e fonemas cuja combinação permiteuma potencialidade de comunicação virtualmente infinita (d.Benveniste [3], p. 62). Contudo, mais uma vez a especificida­de da linguagem humana em relação àquela animal não poderesidir apenas nas peculiaridades do instrumento, que análisesposteriores poderiam reencontrar - e, de fato, continuamentereencontrados - nessa ou naquela linguagem animal; ela consiste,isso sim, e em medida certamente não menos decisiva, no fatode que, único entre os seres vivos, o homem não se limitou aadquirir a linguagem como uma capacidade entre outras de queé dotado, mas fez dela a sua potência específica, ou seja, nalinguagem elepôs em jogo a sua própria natureza. Assim como,nas palavras de Foucault, o homem "é um animal em cuja políticaestá em questão sua vida de ser vivo", ele é também o ser vivo

em cuja língua está em questão a sua vida. Estas duas definições,aliás, são inseparáveis, e dependem constitutivamente uma da

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outra. No cruzamento de ambas situa-se o juramento, entendidocomo o operador antropogenético através do qual o ser vivo,que se descobriu falante, decidiu responder pelas suas palavrase, consagrando-se ao lagos, constituir-se como o "ser vivo quetem a linguagem". Para que algo como um juramento possa terlugar, é necessário, justamente, sobretudo poder distinguir e,ao mesmo tempo, articular de algum modo vida e linguagem,ações e palavras - e é isso precisamente o que o animal, paraquem a linguagem é ainda parte integrante da sua prática vital,não pode fazer. A primeira promessa, a primeira - e, por assimdizer, transcendental - sacratio produz-se através desta cisão, naqual o homem, opondo a sua língua às suas ações, pode pôr-seem questão, pode comprometer-se com o lagos.

De fato, algo como uma língua humana pôde ser produzidosó no momento em que o ser vivo, que se encontrou coorigina­riamente exposto tanto à possibilidade da verdade quanto à damentira, se empenhou em responder pelas suas palavras com suavida, em testemunhar por elas na primeira pessoa. Assim como,segundo Lévi-Strauss,o mana expressa a inadequação fundamen­tal entre significante e significado, que constitui" a escravidão detodo pensamento finito", assim também o juramento expressa aexigência, em todos os sentidos decisiva para o animal falante,de pôr em jogo na linguagem a sua natureza e de vincular entresi, ao mesmo tempo, em um nexo ético e político, as palavras,as coisas e as ações. Só por isso pôde ser produzido algo comouma história, distinta da natureza e, no entanto, inseparavelmenteentrelaçada com ela.

29. É nos rastros desta decisão, na fidelidade a este juramento,que a espécie humana, tanto pela sua desventura quanto pelasua ventura, ainda vive de alguma maneira. Toda nomeação édupla: é bênção [bem-diçãoJ ou maldição [mal-diçãol. Bênção,se a palavra for plena, se houver correspondência entre o signi­ficante e o significado, entre as palavras e as coisas; maldição,se a palavra for vã, se continuarem existindo, entre o semióticoe o semântico, um vazio e uma separação. Juramento e perjúrio,bem-dição e mal-dição correspondem a essa dupla possibilidade

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inscrita no lagos, na experiência mediante a qual o ser vivo seconstituiu como ser que fala. Religião e direito tecnicizam esta

experiência antropogenética da palavra no juramento e na mal­dição como instituições históricas, separando e opondo, ponto

por ponto, verdade e mentira, nome verdadeiro e nome falso,fórmula eficaz e fórmula incorreta. O que era "dito mal" torna­-se, dessa maneira, maldição em sentido técnico, a fidelidade à

palavra, cuidado obsessivo e escrupuloso com as fórmulas e comos ritos apropriados, ou seja, religio e ius. Assim, a experiência

performativa da palavra constitui-se e separa-se em um "sacra­mento da linguagem", e este, em um "sacramento do poder".A "força da lei" que rege as sociedades humanas, a ideia deenunciados linguísticos que impõem estavelmente obrigações

aos seres vivos, que podem ser observadas ou transgredidas,derivam dessa tentativa de fixar a originária força performativada experiência antropogenética, sendo, nesse sentido, um epi­fenômeno do juramento e da maldição que a acompanhava.

Prodi abria a sua história do "sacramento do poder" com a

constatação de que somos hoje as primeiras gerações que vivema própria vida coletiva sem o vínculo do juramento, e que talmudança não pode deixar de acarretar uma transformação dasmodalidades de associação política. Se, de alguma maneira, taldiagnóstico for correto, isso significa que a humanidade se en­

contra hoje frente a uma disjunção ou, pelo menos, frente a um

afrouxamento do vínculo que, através do juramento, unia o servivo à sua língua. Por um lado, o ser vivo agora está, cada vezmais reduzido a uma realidade puramente biológica e à vida nua,e, por outro, o ser que fala, separado artificiosamente dele, poruma multiplicidade de dispositivos técnico-midiáticos, em umaexperiência da palavra cada vez mais vã, pela qual é impossível

responder e na qual algo parecido com uma experiência política

se torna cada vez mais precário. Quando o nexo ético - e nãosimplesmente cognitivo - que une as palavras, as coisas e asações humanas se rompe, assiste-se realmente a uma proliferaçãoespetacular, sem precedentes, de palavras vãs de um lado, e, deoutro, de dispositivos legislativos que procuram obstinadamente

legiferar sobre todos os aspectos daquela vida sobre a qual jánão parecem ter nenhuma possibilidade de conquista. A idade do

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eclipse do juramento é também a idade da blasfêmia, em que onome de Deus foge da sua vinculação viva com a língua e podeapenas ser proferido "em vão".

Talvez tenha chegado a hora de questionar o prestígio de quea linguagem usufruiu e usufrui em nossa cultura, enquanto instru­mento de potência, eficácia e beleza incomparáveis. No entanto,considerado em si mesmo, ele não é mais belo que o canto dospássaros, nem é mais eficaz que os sinais trocados entre si pelosinsetos, nem sequer é mais poderoso que o rugido com que oleão afirma o seu senhorio. O elemento decisivo que confereà linguagem humana as suas virtudes peculiares não reside noinstrumento em si mesmo, mas sim no lugar que ele confere aoser que fala, enquanto disponibiliza dentro de si uma forma devazio que o locutor toda vez deve assumir para falar. Por outraspalavras, na relação ética que se estabelece entre o falante e asua língua. O homem é o ser vivo que, para falar, deve dizer "eu ",ou seja, deve "tomar a palavra ", assumi-Ia e torná-Ia própria.

A reflexão ocidental sobre a linguagem precisou de quase doismilênios para isolar, no aparato formal da língua, a função enun­ciativa, o conjunto dos indicadores ou shifters ("eu", "tu", "aqui","agora" etc.), através dos quais quem fala assume a língua em umato concreto de discurso. Contudo, o que a linguística certamentenão é capaz de descrever é o ethos que se produz neste gesto eque define a implicação especialíssima do sujeito na sua palavra.É nessa relação ética, cujo significado antropogenético tentamosdefinir, que acontece o "sacramento da linguagem". Exatamenteporque, diversamente dos outros seres vivos, o homem, parafalar, deve pôr-se em jogo na sua palavra, ele pode bendizer emaldizer, jurar e perjurar.

Nas origens da cultura ocidental, num pequeno território nosconfins orientais da Europa, havia surgido uma experiência depalavra que, ao manter o risco tanto da verdade quanto do erro,havia pronunciado com força, sem jurar nem maldizer, o seu simà língua, ao homem como animal falante e político. A filosofiacomeça no momento em que o falante, contra a religio da fórmula,coloca resolutamente em questão o primado dos nomes, quandoHeráclito opõe lagos a epea, o discurso às palavras incertas econtraditórias que o constituem, ou quando Platão, no Crátilo,

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renuncia à ideia de uma correspondência exata entre o nomee a coisa nomeada e, ao mesmo tempo, aproxima onomástica

e legislação, experiência do logos e política. Nessa perspectiva,a filosofia é constitutivamente crítica do juramento: ela põe emquestão o vínculo sacramental que liga o ser humano à lingua­gem, sem por isso, simplesmente, falar às tontas, e sem tornar

vã a palavra. Quando todas as línguas europeias parecem estar

condenadas a jurar em vão e quando a política não pode senãoassumir a forma de uma oikonomia, ou seja, de um governo dapalavra vazia sobre a vida nua, ainda é da filosofia que podeprovir - com a sóbria consciência da situação extrema que o servivo que tem a linguagem atingiu na sua história - a indicaçãode uma linha de resistência e de inversão de rota.

l'I\ No Opuspostumum, Kant usa a imagem mítica do juramentodos deuses para explicar um dos pontos mais árduos da suadoutrina, o esquematismo transcendental, que os intérpretesmodernos, ao desenvolverem uma intuição de Schelling, tendema vincular ao problema da linguagem. Kant escreve: "O esque~matismo dos conceitos do intelecto C ..) é um instante no qualmetafísica e física juntam suas margens Styx inteifusa" (XXII, p.487). A citação latina provém de uma passagem das Geórgicas(IV, 480), na qual Virgílio evoca, em termos foscos, a água dopântano do Estige, que remetem à sua função de "grande e terríveljuramento dos deuses": tardaque palus inamabilis unda/ aUigatet novies Styx inteifusa coercet.26 O esquematismo (a linguagem)une por um instante, em uma espécie de juramento, dois reinosque parecem ter de ficar para sempre divididos.

26 E o odioso pântano com suas águas estagnantes, além do Estige que os refreiapor nove vezes com sua sinuosidade. (N.T.)

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87

Page 84: Agamben, giorgio   o sacramento da linguagem

A

Agamben, Giorgio - 21,47

Agostinho - 51, 58, 67

Alão de Lille - 63

Alighieri, Dante - 67

Amônio - 41

Anselmo de Aosta - 62

Aristóteles - 27, 41, 53, 69

Aujoulat, Noel - 11

B

Benjamin, Walter - 61

Benveniste, Émile - 12-13, 18-22,34, 38-39, 41, 48, 54, 56, 57,65, 79

Bickermann, Elias - 21, 39

Bollack, Jean - 20

Bouché-Leclerq, Auguste - 46

Burnouf, Émile - 17

cCaronda - 46, 48

Cassirer, Erns - 57

César, Caio Júlio - 32

Cícero, Marco Túlio - 11, 31-34,41,43,75

Cleanto - 15

íNDICE ONOMÁSTICO

Codrington, Robert Henry - 22

Cota - 33

Crisipo - 15, 69

D

Danz, Heinrich - 58

Daremberg, Charles - 46

Demóstenes - 43

Dião de Prusa - 46

Dumézil, Georges - 14,17,18,24-26, 34-35

Durkheim, Émile - 22

E

Empédocles - 43

Ênio, Quinto - 34

Ésquilo - 30

F

Faraone, Christopher - 45, 46

Festo - 38, 50, 71, 74-75

Fílon- 12, 28-31, 42, 59, 61

Foucault, Michel - 79

Fowler, Willian - 47

Frankel, Eduard - 34

Freud, Sigmund - 22, 49

Page 85: Agamben, giorgio   o sacramento da linguagem

G

Gélio, Aulo - 73

Gemet, Louis - 19-20, 24, 44, 72

Glotz, Gustave - 26, 39, 41, 45,70-71

Graeo, Tibério - 32

Güntert, Hermann - 59

HHendrikson, George - 46

Herác1ito - 82

Hesíodo - 14, 16, 27, 53, 76

Hesíquio - 43

Hiéroc1es - 10-11

Hipóerates - 42

Hirzel, Rudolf - 11, 15, 34, 39-40,42-43,70

Hobbes, Thomas - 13

Homero - 16, 33

IImbert, Jean - 36

K

Kant, ImmanueI - 5, 62, 83

Kraus, Cyprian - 56

Kuhn, Adalbert - 17

L

Leeuw, Gerardus van der - 21

Leumann, Manu - 54

Lévi-Strauss, Claude - 22-23,77-80

Lévy-Bruhl, Lucien - 13

90

Licurgo - 10-11, 43

Lívio, Tito - 32

Loraux, Nicole - 13-16

Luerécio Caro, Tito - 53

Luther, Jorg - 54

Lydo, A. - 59

MMaeróbio - 58

Magdelain, André - 74

Maimônides - 60-63

Marret, Robert - 22

Mauss, MareeI - 22, 25, 33, 53, 77

Meillet, Antoine - 17, 21, 34, 75

Milner, Jean-Claude - 58

Müller, Max - 17, 22-23, 78

N

Noailles, Pierre - 38-39, 71-73, 75

oOtto, Rudolf - 22

Overbeek, Franz - 24

p

Paulo - 47, 68

Pauly, August Friedrich - 46

Píndaro - 42

Platão - 15-16, 37-38,51,82

Plescia, Joseph - 15, 37, 70

Plínio o Velho - 33, 59

Plutareo - 39

Page 86: Agamben, giorgio   o sacramento da linguagem

Prodi, Paolo - 9-11, 24,81

Pufendorf, Samuel - 12-13

R

RéguIo, Atílio - 30-31

Riccobono, SaIvatore - 74

Rohde, Erwin - 70

Rubírio - 36

Rudolf, Otto - 22

sSaglio, Edmond - 46

Schelling, Friedrich - 83

Scholem, Gershom - 60-61

Schrader, Eduard - 39

Sérvio - 13, 53

SóIon - 46

Suetônio Tranquilo, Caio - 36

T

Taciano - 67

Tácito, Públio Comélio - 36

TaIes - 27, 53

Tertuliano, Quinto SéptímioFIorêncio - 67

Thomas, Yan - 32

Tibério, imperador - 36-37

Tomás de Aquino - 63

Torricelli, P. - 13

Tucídides - 15

uUlpiano, E. Domício - 28, 37

Usener, Hermann - 5, 16, 54-56

vVarrão, Marco Terêncio - 75

Virgílio Marão, Públio - 67, 83

wWesseIy, Karl - 59

Wissowa, Georg - 58

Wittgenstein, Ludwig - 64, 66

zZiebarth, Erich - 44, 46-47

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