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Departamento de Direito 1 AGENCIAMENTO E EXPERIÊNCIA: UMA PONTE ENTRE A PSICOLOGIA MORAL E O DIREITO Aluno: Bruno Sant’Anna Fucci Orientador: Noel Struchiner Introdução Direito e filosofia são campos intimamente ligados. O direito tende a ser um campo predominantemente prescritivo, na medida em que estabelece normas e impõe condutas. Miguel Reale, ao explorar a temática e formular noção absolutamente introdutória, associava o direito a ordem e direção. 1 Reduzindo-se substancialmente a rica discussão, o direito parte de determinadas premissas, orienta-se por certos princípios e consubstancia-se em um ordenamento jurídico, que viabiliza (em tese) a coexistência social. Por sua vez, a filosofia tende a ser um campo predominantemente normativo. Preocupa-se com a elaboração de modelos, construídos através de indagações sistemáticas capazes de explicar racionalmente certos fenômenos, objeto de seu estudo. A título de exemplo, quando nos perguntamos se é correto manter chimpanzés em cativeiro, ou se é correto criar baleias em parques aquáticos de entretenimento, fazemos indagações essencialmente filosóficas. Em outros termos, buscamos constituir modelos de dever-ser, quais sejam, encaminhamentos morais orientados à melhor conduta, a uma atitude ideal. Como o direito (enquanto ciência ou enquanto fenômeno humano) lida diretamente com valores, partindo de premissas materiais e também orientando-se por elas, torna-se fundamental conhecer sua base axiológica, por consequência filosófica (em especial no que diz respeito à moralidade ou à ética). E, nesse intuito, é difícil separar qualquer experiência jurídica de estruturas lógicas, ou seja, de estruturas normativas. Tais noções, embora não sejam objeto direto deste trabalho, parecem estar há tempos consolidadas, tanto entre filósofos como entre aplicadores do direito. Para respaldar, veja-se que o direito é repleto de formulações normativas que contêm conceitos vagos e de elevada carga moral, o que, por si só, já justificaria o estudo aprofundado acerca da moralidade por parte dos profissionais do direito. Para além dessas normas jurídicas de conteúdo aberto, sabe-se da essência da atividade jurisdicional a valoração de fatos, fundamentos, circunstâncias, sanções o que, novamente, aproxima de forma inquestionável direito e filosofia. Portanto, atribuiu-se à filosofia (seja pela filosofia moral seja pela filosofia do direito) a missão de estudar as condições morais, lógicas e históricas de desenvolvimento do direito. 2 1 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27 a ed. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 2. 2 IDEM. P. 14.

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Departamento de Direito

1

AGENCIAMENTO E EXPERIÊNCIA: UMA PONTE ENTRE A

PSICOLOGIA MORAL E O DIREITO

Aluno: Bruno Sant’Anna Fucci

Orientador: Noel Struchiner

Introdução

Direito e filosofia são campos intimamente ligados.

O direito tende a ser um campo predominantemente prescritivo, na medida em

que estabelece normas e impõe condutas. Miguel Reale, ao explorar a temática e

formular noção absolutamente introdutória, associava o direito a “ordem e direção”.1

Reduzindo-se substancialmente a rica discussão, o direito parte de determinadas

premissas, orienta-se por certos princípios e consubstancia-se em um ordenamento

jurídico, que viabiliza (em tese) a coexistência social.

Por sua vez, a filosofia tende a ser um campo predominantemente normativo.

Preocupa-se com a elaboração de modelos, construídos através de indagações

sistemáticas capazes de explicar racionalmente certos fenômenos, objeto de seu estudo.

A título de exemplo, quando nos perguntamos se é correto manter chimpanzés em

cativeiro, ou se é correto criar baleias em parques aquáticos de entretenimento, fazemos

indagações essencialmente filosóficas. Em outros termos, buscamos constituir modelos

de dever-ser, quais sejam, encaminhamentos morais orientados à melhor conduta, a uma

atitude ideal.

Como o direito (enquanto ciência ou enquanto fenômeno humano) lida

diretamente com valores, partindo de premissas materiais e também orientando-se por

elas, torna-se fundamental conhecer sua base axiológica, por consequência filosófica

(em especial no que diz respeito à moralidade ou à ética). E, nesse intuito, é difícil

separar qualquer experiência jurídica de estruturas lógicas, ou seja, de estruturas

normativas. Tais noções, embora não sejam objeto direto deste trabalho, parecem estar

há tempos consolidadas, tanto entre filósofos como entre aplicadores do direito.

Para respaldar, veja-se que o direito é repleto de formulações normativas que

contêm conceitos vagos e de elevada carga moral, o que, por si só, já justificaria o

estudo aprofundado acerca da moralidade por parte dos profissionais do direito. Para

além dessas normas jurídicas de conteúdo aberto, sabe-se da essência da atividade

jurisdicional a valoração – de fatos, fundamentos, circunstâncias, sanções – o que,

novamente, aproxima de forma inquestionável direito e filosofia. Portanto, atribuiu-se à

filosofia (seja pela filosofia moral seja pela filosofia do direito) a missão de estudar as

condições morais, lógicas e históricas de desenvolvimento do direito.2

1 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27a ed. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 2. 2 IDEM. P. 14.

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Ocorre, contudo, que a filosofia é – por definição – racionalizante, e isso tende

em muitos casos a ser levado ao extremo. David Hume e posteriormente Hans Kelsen,

apenas para citar alguns autores, alertaram para essa questão. Kelsen, em sua Teoria

Pura do Direito, percebia uma dificuldade em se extrair um ser de um dever-ser,

temendo que, com isso, se criasse uma lacuna de inconsistências entre o reino dos fatos

e o reino das normas.3

E mesmo assim, o próprio Kelsen pontuou, já no século passado, que o direito

enquanto orientado por sua Teoria Pura deveria efetivamente preocupar-se em entender

como ele é, e não somente como deve ser. A literatura contemporânea, ao que parece,

direciona esforços nessa linha e busca elaborar um estudo interdisciplinar para melhor

explicar como o direito e suas questões se desenvolvem na prática.

O papel da psicologia moral

É precisamente diante dessa lacuna, buscando preenchê-la, que se coloca a

psicologia moral. Mark Alfano, estudioso da disciplina, em momento algum nega seu

teor filosófico. Facilmente se nota, através de sua própria conceituação, que a psicologia

moral é uma busca sistemática acerca do funcionamento da moralidade que

incorporaria, sem dúvidas, questões, conceitos, modelos e métodos filosóficos.4

Os estudos da psicologia moral contemporâneos mostram-se focados

principalmente em identificar quais seriam os fatores efetivamente invocados pelos

entes morais nos respectivos julgamentos morais. A psicologia moral cada vez mais

busca ser capaz de oferecer substrato fático a construções normativas. A partir do

material empiricamente coletado, pretende estudar as propriedades humanas

efetivamente utilizadas em valorações morais – e em muitos casos jurídicas.

É a partir dessa busca que emergem duas dimensões humanas, as quais se

revelam fundamentais para a psicologia moral: agenciamento e experiência.

Agenciamento e experiência são propriedades humanas. Agenciamento é, de um

lado, a propriedade humana de atuar nas mais diversas situações – e com isso trazer

resultados para o mundo. Experiência, de outro lado, seria a propriedade humana de

sofrer e aproveitar as coisas que lhe ocorrem. O agenciamento enfatiza a capacidade

humana de agir e atuar, ao passo que a experiência enfatiza a propriedade humana de

ser e sentir.

Agenciamento e experiência integram a essência das relações morais. Afinal,

qualquer análise de moralidade demanda, ao menos, dois sujeitos que se considerem

mutuamente em suas avaliações morais. Muitos autores já atentaram para este dado.

Sandel, apenas para citar um, fala da importância do outro para a reflexão moral. Diz

que qualquer reflexão moral requer um interlocutor – “um vizinho, um camarada, um

compatriota”.5 É insensato falar em moralidade se nos ativermos à pura introspecção,

3 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1985. Pp. 4-26. 4 ALFANO, Mark. Moral Psychology: An Introduction. Malden, MA, USA: Polity Press,

2016. P. 1. 5 SANDEL, Michael. Justiça. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2009. P. 26.

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uma vez que a moralidade não é uma busca individual. A moralidade pressupõe, então,

agenciamento e experiência.

Muito embora agenciamento e experiência tenham sido experimentalmente

constatados, é fácil perceber que seres humanos, por hipótese, que não dispusessem

dessas condições restariam descaracterizados. Imagine-se, por hipótese, um ser humano

insuscetível de gerar experiência, que fosse indiferente a qualquer situação que lhe

ocorresse. Certamente não seria um sujeito moral. Imagine-se, de outro lado, um ser

humano sem aptidão ao agenciamento, incapaz de agir e atuar e, com isso, produzir

resultados ao mundo. Seriam seres inteiramente passivos, completamente dominados

por forças externas, sem qualquer interesse filosófico, ao menos no plano da moralidade

ou da ética.

A constatação de agenciamento e experiência pela psicologia moral, condições

humanas relevantes para nosso esforço interdisciplinar, carrega consigo implicações,

sem dúvidas, no campo da filosofia e do direito. É fundamental entendê-las.

Objetivos

Neste trabalho, pretendo demonstrar, em síntese, que as novas constatações

empíricas supracitadas, acerca de agenciamento e experiência, têm implicações em

questões e problemas jurídicos, demandando novas avaliações e soluções por parte do

direito. Toda essa busca sistemática, se pretender alguma eficácia no mundo real, não

pode – e nem deve – estar alheia às constatações empíricas. É precisamente neste ponto

que se faz pertinente aprofundarmos os estudos de psicologia moral.

Em um primeiro momento, pretendo esmiuçar a recentíssima produção científica

de diversos autores sobre agenciamento e experiência e sobre a matéria – sobretudo da

academia norte-americana, seguindo a linha da filosofia experimental –, e com isso

lançar um olhar crítico e aprofundado sobre o fenômeno. Trabalharei as diferenças

conceituais e discordâncias entre Mark Alfano, Edouard Machery, Geoffrey Goodwin e

Kurt Gray,6 evidenciando os focos de dissenso e o que já foi solidificado neste escopo

de estudos. Posteriormente, fortalecida a base conceitual, pretendo demonstrar que o

surgimento de uma estrutura chamada bi-dimensional da consideração moral

(agenciamento e experiência) carrega consigo novos desafios para o direito, seja sob

perspectiva mais ampla, notadamente nas relações entre direito e moral, seja, mais

concretamente, em determinados institutos de distintas disciplinas jurídicas. Finalmente,

buscarei apresentar possíveis caminhos a serem explorados nessa esfera de estudos.

Metodologia

Para tanto, será feita uma análise comparativa das obras dos mencionados

autores, que passam a construir um arcabouço cada vez mais sólido sobre o tema. O

propósito fundamental é melhor explicar características, propriedades, diferenças e

relações existentes entre os conceitos de agenciamento e experiência, elucidando os

conceitos-chave.

6 Autores e obras especificados nas referências bibliográficas.

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A partir disso, pretendo lançar um olhar teórico sobre a produção científica em

agenciamento e experiência – que é sobretudo experimental – para constatar, no plano

normativo (aqui incluído o jurídico), de que maneira agenciamento e experiência

revelam-se, por hipótese, pertinentes enquanto fundamento para certos conceitos

jurídicos e para a constituição de direitos.

Consideração moral

Parece constituir etapa preliminar de qualquer estudo humano a identificação de

seus sujeitos e objetos. No nosso escopo de estudos, isso corresponde à identificação

dos seres que seriam dignos de terem sua moralidade considerada, ou seja, entes que

seriam, com efeito, sujeitos morais. Esse é o interesse científico dos estudos de

consideração moral.

Consideração moral é a condição de certos entes que os qualifica como sujeitos

ou pacientes morais.

Para partir de um ponto majoritariamente consensual, compreendam-se como

sendo dignos de consideração moral quaisquer entes que possam ser moralmente

violados. 7 Feinberg e Jaworska, por exemplo, entendem que podem ser moralmente

violados os seres que dispõem de interesses, ou seja, aqueles que têm desejos,

esperanças, perspectivas e metas.8

Para exemplificar de maneira clara, seres humanos revelam-se típicos sujeitos

morais, porquanto podem ter sua moralidade violada. Seres humanos podem ser

ofendidos, roubados, agredidos, apenas para citar violações claras. No extremo oposto,

tem-se que uma mesa, uma cadeira ou uma rocha não são sujeitos morais, simplesmente

porque não podem ser moralmente violados. Assim sendo, se um sujeito utiliza sua

cadeira conforme queira, ou se a quebra furiosamente, não estará cometendo qualquer

infração moral.9

De fato, parece ser de nenhum, ou ao menos de reduzido, sentido estudar seres

incapazes de sofrer violação moral, aqueles que, portanto, não dispõem de consideração

moral. Mas parece fundamental, por outro lado, conhecer quais entes dispõem de

consideração moral, porque isso indicará como concebemos o mundo moral e de que

forma trataremos diversos entes morais, tanto humanos como não-humanos.

Como conhecer então, e de maneira definitiva, quais seres são dignos de

consideração moral? Responder a esta pergunta demanda-nos, inevitavelmente, uma

busca nas fontes da consideração moral.

Historicamente, inúmeros filósofos e intelectuais já pensaram a questão, não

necessariamente de forma direcionada ou consciente, mas resultando efetivamente na

7 GOODWIN, Geoffrey. Experimental Approaches to Moral Standing. University of

Pennsylvania. P. 1 (914). 8 IDEM. P. 2 (915). 9 MACHERY, Edouard e SYTSMA, Justin. “The Two Sources of Moral Standing". Rev.

Phil. Psych. (2012) 3: 303. P. 2.

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criação de inúmeras teorias que buscam melhor explicar as fontes da consideração

moral.

A psicologia moral contribui, nessa busca, com uma categorização genérica de

tais teorias. Isso porque, notadamente, a consideração moral se vincula a duas tradições

distintas, ligadas, respectivamente, a duas condições humanas: agenciamento e

experiência.

Agenciamento e experiência: conceitos

Alfano, ao tratar do assunto, qualifica agenciamento e experiência como

conceitos-chave da psicologia moral. Essa classificação justifica-se, principalmente, por

se tratarem de condições necessariamente utilizadas por todos nós, seres humanos, em

nossas respectivas tomadas de decisões e em nossos julgamentos morais.

Caberia, então, à psicologia moral entender como agenciamento e experiência

figuram em nossa percepção moral. Busca-se, com efeito, determinar em que medida

agenciamento e experiência influem nos julgamentos que fazemos diariamente, assim

como em nossos comportamentos, em nossas personalidades, e assim por diante.10

Já se definiu experiência como sendo a propriedade humana e de outros animais,

de sofrer e aproveitar coisas que lhes ocorrem. Alfano acrescenta que a experiência se

afere nos pacientes morais a partir de suas respectivas capacidades de seres.

Agenciamento, de outro lado, seria a propriedade humana e de outros animais de

agir em maior ou menor medida e intencionalidade para trazer resultados ao mundo.

Alfano pontua que o agenciamento se afere nos sujeitos morais a partir de suas

respectivas capacidades de atores.

Para melhor elaborar esses conceitos, Alfano descreve uma situação-exemplo

por que passou para mostrar, em um caso concreto, como essas dimensões se fazem

inconscientemente presentes.11

A situação é a seguinte: A encontra-se em um trem de metrô, a caminho do

trabalho, quando observa que B está a assediar C. C, lendo uma revista, está claramente

desconfortável com a situação, porque não possui nenhum interesse em ter qualquer tipo

de interação com B. Diante desses fatos, A questiona-se: o que deve fazer perante B por

C?

Tomar uma decisão moral do que fazer pressupõe experiência. Pressupõe

experiência porque demanda a avaliação do que C está sentindo, em sua respectiva

capacidade de ser: estaria C sentindo ameaça, constrangimento, ou simples indiferença?

Além disso, pressupõe avaliação do que B está sentindo, porque também podem lhe

ocorrer coisas: B pode ser ignorado, pode sofrer rejeição, pode ser desafiado. E em

última análise, coisas também podem ocorrer a A. A pode sentir medo, pode se sentir

instigado, pode se sentir revoltado. Tudo isso é levado em consideração, em uma

situação de decisão moral aparentemente simplória.

10 ALFANO, Mark. Moral Psychology: An Introduction. Malden, MA, USA: Polity Press,

2016. Pp. 3-6. 11 IDEM. P. 2.

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Tomar uma decisão moral do que fazer também pressupõe agenciamento.

Pressupõe agenciamento porque demanda avaliação do que C potencialmente fará, em

sua respectiva capacidade de ator: será que C se levantará e se retirará, reagirá, lhe

agredirá? Além disso, pressupõe avaliação do que B poderá fazer: B pode decidir parar,

pode assediar outra pessoa, pode se desculpar. Em última análise, mais importante, A,

que faz a indagação moral, pode agir e trazer resultados ao mundo, em sua condição de

agente. Essa, a propósito, é a razão fundamental de sua reflexão moral. A pode

perguntar se C está desconfortável, pode intervir, pode simplesmente ignorar a

situação.12

Nessa simples narrativa fática, percebe-se claramente de que maneira as

dimensões humanas de agenciamento e experiência influem nos processos decisórios

corriqueiros e aparentemente simplórios. Ao se perguntar o que deve ser feito em dada

situação, pressupõe-se o que derivará de todas as manifestações de experiência, de todas

as manifestações de agenciamento, e de todas as interações daí decorrentes.

Observe-se a seguir, para ilustrar, uma representação gráfica do que seria a mais

simples relação moral analisada:13

Nessa figura, vemos que sujeitos morais podem ser simples pacientes, entes que,

em sua experiência, sofrem o agenciamento de um outro sujeito moral. A relação aqui

ilustrada, contudo, é extremamente simples. A maioria das relações sociais são muito

mais complexas.

Normalmente, agenciamento e experiência se manifestam concomitantemente. É

o que se vê ilustrado na figura abaixo:14

Nesse tipo de relação, entes morais são ao mesmo tempo agentes atuantes

(exercem agenciamento) e entes passivos (apresentam experiência). Aqui, como na

situação acima narrada, o agenciamento de um ente pode ser a causa (ou ter profundos

efeitos) na experiência de outro ente.

12 ALFANO, Mark. Moral Psychology: An Introduction. Malden, MA, USA: Polity Press,

2016. Pp. 2-3. 13 Ilustração 1. Retirada de IDEM. P. 8. 14 Ilustração 2. Retirada de IDEM. P. 8.

Ilustração 1

Ilustração 2

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Essa relação, em que agenciamento e experiência ocorrem concomitantemente,

denomina-se interatividade. Acontece que, com a complexidade das relações sociais

cotidianas, a reflexão moral à luz da psicologia moral pressupõe que analisemos

diversas relações mútuas de agenciamento e experiência, ou seja, diversas interações. É

isso que torna o estudo da psicologia moral tão complexo.

Adicione-se a isso que a vasta maioria das relações sociais evidenciam o

fenômeno da recursividade. Se subirmos outro degrau na análise das relações morais,

nota-se que uma interação x é capaz de influenciar outra interação y. Dessa forma, uma

ilustração mais próxima da realidade seria a seguinte:15

Fica claro, aqui, que qualquer indagação moral pressupõe o fenômeno da

recursividade. A recursividade é sucessivamente incorporada nos questionamentos

morais humanos. Trata-se, neste escopo de estudos, do processo em que objetos de

determinado tipo são moldados ou influenciados por outros objetos do mesmo tipo.16

Nesse caso, relações morais moldam e modificam outras relações morais.

De toda sorte, o ponto fundamental é que qualquer consideração moral que se

pretenda analisar deve considerar as faces de agenciamento e experiência de diferentes

relações e interações, resultando em elevado grau de complexidade. Agenciamento e

experiência, enquanto fatores relevantes para a consideração moral, constituem a

chamada estrutura bi-dimensional.

Relação com as tradições filosóficas

Muito embora agenciamento e experiência sejam propriedades humanas

constatadas através de estudos experimentais, sabe-se que estão na base dos estudos de

consideração moral. Logo se percebe que essas figuras têm relações com as tradições

filosóficas historicamente consagradas. Destaquem-se, para esta análise, a tradição

utilitarista e a ética kantiana.

Sob uma ótica utilitarista, a moralidade de certo ato seria determinada com base

em suas consequências, mais especificamente, na maximização do prazer em detrimento

15 Ilustração 3. Retirada de IDEM. P. 9. 16 IDEM. P. 8.

Ilustração 3

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da dor. A moralidade estaria vinculada à utilidade, que pode ser definida como qualquer

coisa que produza prazer ou felicidade e que evite dor ou sofrimento.

A própria ideia de experiência, enquanto conceito da psicologia moral, encontra-

se muito relacionada ao utilitarismo. Para um utilitarista, portanto, a ênfase está na

experiência, não no agenciamento. Para um utilitarista, importa menos se um ente é

incapaz de agir intencionalmente e trazer resultados racionais para o mundo, ou seja,

sua potência de agenciamento, do que se o ente pode sofrer, ou seja, se é sujeito

passível de suportar coisas que lhe causem dor ou sofrimento.

Com diversa perspectiva, Kant fundamenta a paciência moral na racionalidade

dos entes morais. Sujeito moral seria aquele que age racionalmente, ou seja, que é

agente capaz de atuar intencionalmente trazendo resultados para o mundo e

consequências para os demais entes morais, em suas experiências. Importa, sobreleva,

prepondera, aqui, o agenciamento, em detrimento da experiência.

É certo que Kant atribui considerável peso moral ao que é feito às pessoas, o que

aponta para a experiência. Contudo, a experiência para Kant tem valor meramente

colateral, na medida em que a experiência só é violada porque não se atribui, àquela

pessoa, sua devida condição racional de agente (agenciamento).

Sentimento e complexidade

Muito embora agenciamento e experiência sejam condições empiricamente

constatadas, os autores divergem em relação à sua conceituação e às implicações daí

provenientes.

Systma e Machery, embora entendam que a estrutura bi-dimensional de

agenciamento e experiência também seja condição primária para a existência de

consideração moral, conceituam tais propriedades de forma diversa.

Para Machery, a experiência seria, decerto, a capacidade de sentir dor e prazer,

estando ligada, portanto, a sentimento. Porém, o agenciamento se basearia na

complexidade da cognição e do estilo de vida do ente.

Prontamente se nota, a partir dessa conceituação, que pode ser sujeito moral

qualquer ser senciente, desde que considerado em sua experiência. De outro lado, em

relação ao agenciamento, podem ser sujeitos morais apenas algumas espécies (às vezes,

apenas seres humanos), a depender de apresentarem um nível mínimo de complexidade

em sua cognição. Tal complexidade corresponderia, para Machery, à capacidade de um

ente em considerar razões e julgá-las para agir, à sua racionalidade e à sua

complexidade em termos de estilo de vida (no sentido de não ter as ações amplamente

dominadas por instintos).17

Como o conceito de experiência de Machery é muito próximo ao de Alfano,

vemos implicações semelhantes nas relações com o utilitarismo, incluindo-se aí a

tradição filosófica desenvolvida por Bentham especificamente. Machery, igualmente,

entende que Bentham e os utilitaristas em geral põem ênfase na experiência, por

17 MACHERY, Edouard e SYTSMA, Justin. “The Two Sources of Moral Standing". Rev.

Phil. Psych. (2012) 3: 303. Pp. 3-5.

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considerarem a moralidade a partir de prazer e dor, ou seja, do que se sente enquanto

ente moral. A mesma semelhança não se vê em relação ao agenciamento, conceito sobre

o qual Machery e Alfano divergem.

Na ética kantiana, por sua vez, sujeito moral seria aquele ser dotado de

autonomia, notadamente, a pessoa. O próprio termo “pessoa” tem um sentido muito

particular para Kant. Machery, diante disso, é categórico ao afirmar que a moralidade

kantiana se baseia no agenciamento. Porém, o agenciamento aqui está associado à

autonomia. Machery entende que seres autônomos, como as pessoas humanas, são

capazes de refletir sobre seus desejos e decidir sobre agir ou não em função deles, o que

se deve ao agenciamento (no sentido de complexidade de cognição e estilo de vida).

Aqui, fala-se em agenciamento porque há autonomia, uma cognição dirigida a uma

vontade. Do contrário, teríamos seres irracionais, sem autonomia, que agem dirigidos

por seus meros desejos. Esses não seriam dignos de consideração moral.18

Para fortalecer essa visão, Machery utiliza a justificativa histórica dada para

fundamentar a opressão de certos grupos humanos. Ao longo dos tempos, certos grupos

tiveram sua racionalidade (por consequência, sua face de agenciamento) chancelada ou

negada, e isso teria sido causa direta de seu enquadramento ou não enquanto sujeitos

morais. Nessa linha, argumentava-se, exemplificativamente, que os índios da América

Espanhola eram seres “irracionais, dominados não por sua razão, mas sim, por suas

paixões”. Isso trazia prejuízo à sua condição de entes morais e justificaria a respectiva

escravização. A mesma lógica verificava-se, no século XIX, com outro exemplo de

teorias eugenistas que procuraram justificar a desqualificação moral de afro-

descendentes como efeito de sua alegada não-racionalidade.

Porém, não seria apenas o agenciamento relevante nessa perspectiva. A

experiência desses grupos também seria sub-valorada para que se justificassem tais

barbaridades. Ao alegar a ausência de racionalidade, estava-se indiretamente afirmando

que tais grupos eram incapazes de sentir dor. Negar-lhes a aptidão da experiência

também justificaria, segundo essa lógica utilizada, a escravização desse grupo humano.

19

A discussão não se restringe, contudo, a espécie humana. Frans de Waal, por

exemplo, observa em seus estudos que chimpanzés, por serem tão semelhantes a nós

(em termos de seu agenciamento), seriam merecedores de semelhante status de

consideração moral. Outros animais, quiçá com menor grau de semelhança genética

com os seres humanos, não seriam merecedores de tal status. 20 Isso sem prejuízo,

evidentemente, da pertinência da experiência. Boa parte das discussões de animais

como sendo (ou não) sujeitos morais partem desses fatores.

De toda sorte, em síntese, tem-se que agenciamento e experiência também

podem ser conceituados como complexidade e sentimento, respectivamente.

Fatores exógenos à estrutura bi-dimensional

18 IDEM. Pp. 3-5. 19 IDEM. Pp. 12-15. 20 DE WAAL, FRANS B. M. Research chimpanzees may get a break. PloS Biology (2012).

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10

Geoffrey Goodwin dá um passo atrás. Para ele, a consideração moral teria

influência não apenas dos dois fatores acima trabalhados (estrutura bi-dimensional),

mas sim de três. Importariam, nessa linha, agenciamento, experiência e a natureza da

predisposição de um ente (se ele é potencialmente nocivo ou amistoso, por exemplo).21

E mais ainda, Goodwin percebe como sendo essencial saber que todos esses fatores

podem variar, merecendo diferentes pesos nas avaliações de consideração moral.

Para Goodwin, de forma semelhante, o agenciamento estaria associado a

inteligência e autonomia; ao passo que a experiência, também, estaria ligada à

capacidade de sofrimento de um certo ente.

É certo que o agenciamento pode ser priorizado em detrimento da experiência,

como na teoria kantiana. A experiência também pode preponderar em detrimento do

agenciamento, como na teoria utilitarista. Pode haver também visões híbridas, em que

ambos os fatores merecem ponderação com pesos aproximadamente semelhantes.

Contudo, Goodwin entende que outros fatores desconsiderados na estrutura bi-

dimensional também têm influência indiscutível na avaliação da consideração moral.

Nessa linha, seria fundamental analisar se o ente em questão, ou seja, o sujeito moral,

apresenta-se perigoso ou pacífico.

Piazza et al. buscaram demonstrar, através de um experimento com animais, que

o aparente potencial nocivo de cada espécie influenciaria como se vislumbra a

respectiva condição de sujeito moral.22 Agenciamento, experiência e a predisposição

influenciariam de forma independente essa noção do quão imoral seria agredir aquele

animal ou do quão importante seria protegê-lo de extinção. A conclusão do estudo

demonstraria, então, que a predisposição do animal a agredir reduziria seu valor moral,

ao passo que uma predisposição pacífica elevaria seu valor moral.

Vale ressaltar que o próprio autor considera possível existirem, para além dos

três que propõe, outros fatores relevantes para os estudos de consideração moral.

Atratividade e nojo, por exemplo, também já foram cientificamente analisados em

outros experimentos e revelaram-se pertinentes na aferição de status moral. Isso porque,

cabe lembrar, todos estes estudos propõem-se a entender como a consideração moral é

percebida na prática.

De toda sorte, essa abordagem com base em três fatores não é consensual, pois

os fatores considerados exógenos já estão, ou poderiam estar, contemplados na estrutura

bi-dimensional.

Mente e percepção

Kurt Gray e Daniel Wegner seguem linha ligeiramente distinta. Utilizam

também o modelo bi-dimensional para seus estudos de consideração moral e analisam,

então, a partir desse esquema teórico, os fatores agenciamento e experiência. Porém, ao

analisarem a paciência moral (à luz da psicologia moral, naturalmente), Gray e Wegner

21 GOODWIN, Geoffrey. Experimental Approaches to Moral Standing. University of

Pennsylvania. P. 5 (918). 22 PIAZZA, J., LANDY, J. F. E GOODWIN, G. Cruel nature: harmfulness as an important,

overlooked dimension in judgements of moral standing. Cognition 108 (2014). P. 108-124.

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situam agenciamento e experiência dentro da mente. Segundo Gray, a mente constituiria

uma premissa para sujeitos morais, elevando-os a esta condição e garantindo-lhes

pensar e sentir. Em outros termos, a mente possibilitaria viver experiências conscientes.

Agenciamento e experiência estariam aí inseridos.

Para Gray e Wegner, então, revela-se fundamental traçar uma linha entre os

seres que têm mente e os que não têm, porque isso implica dizer quais entes são

merecedores de respeito, responsabilidades e status moral, em oposição aos entes que

podem ser desconsiderados moralmente (até mesmo ignorados), ou comprados e

vendidos como propriedades. Para Gray e Wegner, de maneira inclusive cômica, a

mente situaria o ente em um “clube”, cujos integrantes disporiam de status moral. 23

Uma noção fundamental de Gray, nessa linha, é a constatação de que a mente

não é uma condição objetivamente constatada, mas sim uma matéria de percepção.

Assim sendo, pouco importa para a psicologia moral – em termos de atribuição de status

moral – se um ente específico verdadeiramente possui uma mente, mas sim, se

aparentemente possui uma mente. E nessa linha, o que tem relevância em última análise

é a percepção de agenciamento e experiência.

Para Gray, o fator experiência significa a habilidade de ter uma “vida interior”,

conceito ligeiramente diferente dos já trabalhados. A experiência, enquanto etapa

preliminar para a vida, contemplaria capacidades como memória, orgulho e

comunicação. O agenciamento, de outro lado, revelaria como as experiências “se

revelam externamente”. Compreenderia, portanto, planejamento, comunicação,

pensamento, entre outros estados mentais, desde que se revelem externamente.24

Enquanto seres humanos, Gray entende que somos capazes de perceber, então,

seres com “maior ou menor grau de mente” (o que varia de uma absoluta ausência de

mente até um máximo grau de mente). A mente seria percebida como um continuum,

em cujos extremos estariam a ausência de mente (como seres inanimados) e a mente

completa (ser humano). Um ente moral pode ser percebido, segundo Gray, em qualquer

posição dentre os extremos.25

Cabe citar, para fins de esclarecimento, uma obra de Gray em que ele busca

oferecer explicação alternativa para o fenômeno da objetificação. A objetificação,

tradicionalmente, é compreendida como a descaracterização percebida dos traços

psicológicos de certa pessoa. Em muitos casos, estaria associada a uma sexualização.

Em todo caso, objetificação seria, segundo esse entendimento, uma redução da mente.

Contudo, a análise experimental de Gray, a partir das premissas de agenciamento

e experiência, compreende a objetificação em novos termos. Em vez de uma redução da

mente, a objetificação nos faria perceber um diferente tipo de mente, em termos de

23 WEGNER, Daniel e GRAY, Kurt. The Mind Club. New York, NY, USA: Penguin Books,

2017. P. 3. 24 IDEM. Pp. 4-6. 25 IDEM. Pp. 7-12.

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agenciamento e experiência. Um ente objetificado, segundo essa lógica, seria um ente

percebido como possuidor de menos agenciamento e de mais experiência.26

O que efetivamente ocorreria, nesse caso, é uma redistribuição de agenciamento

e experiência.

Adicionalmente, se somarmos essas noções ao “typecasting”, outro fenômeno

identificado por Gray, as implicações ganham ainda mais relevância. Observou-se que a

percepção de alguém enquanto ente moral (aquele que exerce, portanto, agenciamento

ou experiência) tende a se manter, do ponto de vista qualitativo. Isso equivale a dizer

que se um ente é visto enquanto agente, a tendência é que permaneça sendo visto como

agente e, dificilmente, como ser passivo (em sua respectiva experiência). Diversamente,

se um ente é visto enquanto ser passivo, a tendência é que assim se mantenha, sendo

difícil a mudança de percepção para a de agente (em seu respectivo agenciamento).27

Direitos e responsabilidades morais

Mas o que significaria, efetivamente, possuir maior ou menor grau de mente?

Mais ainda, qual a pertinência disso, sobretudo se a relacionarmos a agenciamento e

experiência?

Para responder ao ponto, cabe utilizar uma ilustração de Gray, representativa de

como seria a percepção da mente através da estrutura bi-dimensional: 28

26 GRAY, Kurt; KNOBE, Joshua; SHESKIN, Mark and BLOOM, Paul. More Than A Body:

Mind Perception and the Nature of Objetification. Journal of Personality and Social

Psychology. American Psychological Association (2011). University of Maryland and Yale

University. Pp. 1-3. 27 GRAY, Kurt. e WEGNER, Daniel. Moral Typecasting. Journal of Personality and Social

Psychology, 2009. American Psychological Association. Harvard University. P. 506. 28 Ilustração 4. Retirada de WEGNER, Daniel e GRAY, Kurt. The Mind Club. New York, NY,

USA: Penguin Books, 2017. Pp. 11.

Ilustração 4

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Cabe breve explanação acerca dessa imagem.

Toma-se como padrão de agenciamento e experiência o ser humano adulto

consciente, que se encontra no canto superior direito da representação. Conforme reduz-

se o agenciamento, chega-se à criança, ao bebê e ao animais em geral, seres que,

embora tenham reduzido agenciamento, têm o mesmo elevado grau de experiência. Ao

reduzir-se a experiência, tem-se o feto e o ser humano em estado vegetativo.

Interessante observar a representação da mulher morta com reduzido grau de

agenciamento e experiência, mas não zero. Por outro lado, com reduzida experiência e

agenciamento considerável, tem-se o robô, capaz de realizar inclusive ações complexas.

Deus, por fim, encontra-se representado com o maior grau de agenciamento e o menor

de experiência.29

Na realidade, ao analisar-se tal representação de forma criteriosa, constata-se que

a percepção de elevados graus de agenciamento e experiência não resultam diretamente

de uma maior percepção de mente e, por consequência, do maior status moral, na linha

de Gray; igualmente, a percepção de reduzidos graus de agenciamento e experiência

tampouco levam diretamente a uma menor percepção de mente e por consequência a um

menor status moral.

Muito frequentemente presume-se que a mente e, de forma correspondente, o

status moral, implica em um maior grau de consideração moral. Contudo, aqui se vê que

a mente por si só não pode corresponder a status moral, não enquanto conceito

indivisível.

O gráfico permite concluir a existência alternativa de diferentes tipos de status

moral, a depender, aqui sim, dos graus de agenciamento e experiência. Há entes

percebidos como detentores de maiores responsabilidades morais e há entes percebidos

como titulares de mais, ou maiores, direitos morais. Responsabilidades e direitos seriam

os dois tipos de status moral.

A percepção de agenciamento em graus elevados levaria a atribuir-se maior

responsabilidade moral, ao passo que a percepção de experiência em graus elevados

levaria a conferirem-se maiores direitos morais. Concluir-se-ia que há mentes (Gray)

que implicam atribuição de responsabilidades, aquelas que contêm agenciamento e uma

capacidade de planejamento e de atuação e apreciação dos resultados (e consequências)

dos atos, e há mentes que implicam atribuição de direitos, aquelas que contêm

experiência e uma vida interior repleta de sentimento e potencial de sofrimento. Há

mentes que carregam agenciamento e responsabilidades, assim como há mentes que

carregam experiência e direitos.

Essas constatações, de grande pertinência, podem ser facilmente mapeadas na

representação acima. Refletem a percepção, em última análise, de mentes como agentes

pensantes e de mentes como pacientes vulneráveis.

Observados em termos de experiência, por exemplo, bebês, animais, fetos e

seres humanos em estado vegetativo disporiam, sem dúvidas, de direitos, embora não se

lhes atribuam grandes responsabilidades. De outro lado, em termos de agenciamento,

29 IDEM. Pp. 14-18.

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um robô ou Deus mereceriam a atribuição de grandes responsabilidades, muito embora

não disponham de elevada potencialidade de experiência. Todas essas constatações,

cabe sempre recordar, estão ligadas à forma como tais entes são percebidos.

Conclusão

A partir da noção de que agenciamento e experiência, conceitos agora

esmiuçados, são essenciais para a percepção de diversos entes como sujeitos morais,

resta claro que a estrutura bi-dimensional de consideração moral está na base de várias

discussões jurídicas.

É fundamental entender a moralidade idealmente, sem dúvidas, assim como é

imprescindível estudar como se dão as relações morais na prática. A filosofia apresenta-

se como importante instrumento no entendimento do sentido das normas jurídicas. A

psicologia moral, por sua vez, auxilia a entender nossas próprias percepções e

comportamentos, passo essencial para que melhor se compreenda o direito, inclusive

para ajustá-lo aos seus objetivos e valores.

A noção de que agenciamento e experiência integram a base de institutos

jurídicos, ou constituem parâmetros para uma aferição axiológica destes, representa

importante contribuição ao direito.

Veja-se como a personalidade jurídica, notadamente a capacidade para a prática

de atos jurídicos, contém em sua base os conceitos de agenciamento e experiência.

Tome-se, a título de exemplo, o nascituro. Muito embora tal sujeito de direitos

seja juridicamente tutelado, na medida em que o ordenamento garante-lhe expectativa

de direitos, parece despropositado esperar do nascituro qualquer conduta jurídica, das

mais diversas naturezas. Pior ainda seria imputar-lhe responsabilidade jurídica por

qualquer ação ou omissão. Isso justifica-se perfeitamente pela lógica acima exposta:

embora o nascituro seja percebido como tendo reduzido grau de agenciamento, é, de

outro lado, percebido como capaz de elevada experiência. Isso garante-lhe, de maneira

correspondente, expectativa de direitos e inimputabilidade.

A mesma lógica se aplica ao incapaz. Os incapazes notadamente têm seu

agenciamento prejudicado, mas têm, na medida das pessoas humanas, sua experiência

plenamente considerada. Exatamente por isso, a ordem jurídica atribui-lhes

representantes, esses sim, passíveis de responsabilização jurídica.

As discussões desenvolvidas ao longo da história acerca dos direitos dos índios,

ou dos imigrantes, todas apontam para agenciamento e experiência, e de como tais

fatores eram efetivamente percebidos. A mesma lógica pode ser notada em relação aos

direitos dos animais.

Já se disse que, efetivamente, parece impossível separar a experiência jurídica de

estruturas normativas, mas é igualmente imprescindível saber aproximar o direito de

como ele se desenvolve na prática. Só assim seremos capazes de realmente

compreendê-lo, explicá-lo e com isso evoluir.

Afinal, reconhecer o valor moral de qualquer ente parece ser passo essencial

antes de garantir que tenha direitos e, em última análise, que esses direitos sejam

respeitados.

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3 – GRAY, Kurt; KNOBE, Joshua; SHESKIN, Mark and BLOOM, Paul. More Than

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5 – GRAY, Kurt. e WEGNER, Daniel. Moral Typecasting. Journal of Personality and

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