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    Agentes na rede

    Paulo Vaz

    1 Diagnstico: tecnologia e cultura

    H um consenso crescente em nossa cultura de que as novas tecnologias, especialmente asbiomdicas e as cognitivo-comunicacionais, esto transformando as experincias de corpo,pensamento, trabalho, espao e tempo. Os campos de saber que refletem sobre a relao entreestas tecnologias e a cultura encontram-se perplexos diante da mudana acelerada, mudananecessria de ser pensada, mas cujos contornos so difceis de precisar. No casual que surjam,na medicina e na biologia, o conceito de biotica e, na comunicao, as anlises concebidas em

    termos de impacto das tecnologias comunicacionais sobre o sujeito e a sociedade. Trata-se doesforo do pensamento em discernir o dinamismo de um movimento: apreende-se uma mudanaacelerada que desdobra mltiplos modos de ser aos homens, cabendo a eles intervir, direcionandoou limitando, sobre o que podem ser.1O campo da comunicao tem como uma de suas caractersticas pesquisar e refletir sobre aconexo entre tecnologias de comunicao e mudana cultural. Esta orientao delimita umaforma de pensar que pode ser denominada de diagnstico. Seus pesquisadores atentam ao queacontece para surpreender o que est mudando em relao s formas de dominao e ao potencialde liberdade. O diagnstico como modo de pensar no exclusividade da teoria da Comunicao.Afinal, as questes que quem diagnostica obrigado a se colocar podem ser tidas como prpriasdo pensamento desde o sculo XIX: o condicionamento histrico do que se pensa e faz e a

    relao entre o pensamento e a mudana que est ocorrendo, relao onde a mudana ,simultaneamente, a condio de possibilidade, o objeto e o objetivo do pensamento. Pensa-seporque muda, pensa-se o que muda e pensa-se para mudar.A singularidade do campo da Comunicao a de enquadrar estas questes do diagnstico sob aperspectiva das tecnologias da comunicao. As questes so precisadas: qual a singularidadeda nossa cultura e que lugar a ocupado por estas novas tecnologias? Que atitude manter com asmodificaes que as novas tecnologias provocam? Que relaes manter entre o que se pensa e acultura em que se vive quando se est na deriva? Que teoria utilizar e por que ela precisamente?Que problema permite encaminhar tais questes?Exploraremos aqui o potencial do conceito de transcendental tecnolgico2 para pensar a relaoentre novas tecnologias e cultura. A esperana a de evitar o determinismo tecnolgico, que tem

    1 Sobre este modo de pensar o presente gerado pelas novas tecnologias e suas diferenas para aquele da Culturamoderna, cf. Vaz, P., Globalizao e experincia de tempo In Menezes, P. (org.),Signos Plurais, So Paulo:Experimento, 1997 e A histria: da experincia de determinao abertura tecnolgica in Amaral, M. T.,Contemporaneidade e novas tecnologias, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.2 Cf Serres, M., Hermes IV La distribution, Paris: Minuit, 1977; Levy, P., As tecnologias da inteligncia, Rio deJaneiro: 34 Letras, 1993.

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    como princpio fundamental extrair a qualidade da mudana cultural da natureza do novomedium. Por exemplo, se o novo medium descentralizado e interativo, aposta-se que fortalece a

    democracia; se indicial, faz do corpo um modo novo de exercer o poder. O conceito detranscendental tecnolgico tambm historiciza a cultura considerando a mudana tecnolgica,mas abre o espao da ao estratgica sobre o que pode ser feito e pensado. A experincia recentede evoluo da tecnologia nos mostra a imprevisibilidade na criao, no uso e nas transformaesculturais que suscita. O aparecimento dos computadores pessoais, a criao da Internet a partir deestratgias de defesa para a possibilidade de uma guerra nuclear, a derivao da engenhariagentica a partir da descoberta do gene, justamente um conceito que vinha reafirmar a existnciade um substrato natural impossvel de ser transformado pela cultura, em todos estes casos, somosconvidados cautela diante de uma relao causal simples entre tecnologia e cultura, noimportando a direo da causalidade. O desafio conceber uma historicidade onde a tecnologiatransforma a experincia, acolhendo porm a imprevisibilidade do sentido da transformao e a

    possibilidade de nosso investimento no que podemos ser.Diferentemente da proposio original de Kant onde o transcendental condio da experinciapossvel e atributo de um sujeito a-histrico e do modo como foi trabalhado pelos pensadoresculturalistas modernos que historicizam o transcendental ao pensar que as regras culturais so oesquema conceitual aplicado ao diverso da intuio3 apostamos agora que o que podemos ser epensar depende do que somos capazes de fazer. A mudana tecnolgica opera uma transformaoontolgica. Alm de no haver mais um sujeito anterior a tcnica, as transformaes histricasderivam das relaes que os homens de uma dada cultura estabelecem consigo mesmo e com oseu mundo quando este se torna meio no apenas natural, mas tambm e, sobretudo,tecnolgico. Este transcendental objetivo tampouco define as condies da experincia possvelou da experincia presente; delimita, sim, o que poderemos ser e pensar: est afetado de futuro. Oque equivale a dizer que as novas tecnologias provocam um deslocamento da experincia semdeterminar o novo modo de experimentar. Instauram um limiar de irreversibilidade ao propornovas questes e prticas e ao restringir a credibilidade de certas respostas. Ao mesmo tempo, asnovas tecnologias deixam indefinido como pensar e experimentar o que instauram como podendoser pensado e experimentado. A tecnologia pode, assim, ser concebida como projeto. Transformaa cultura, certamente. Porm, sua forma negociada culturalmente tanto na concepo quanto nouso. Mudamos continuamente porque no cessamos de investir no que podemos ser.A simultaneidade entre saber que mudaremos, no saber o que ser a mudana e o desejo de nelainvestir acentua o compromisso de quem diagnostica. Precisamos encontrar as linhas de difusoatravs das quais as novas tecnologias modificam a cultura. De um lado, estima-se as prticasculturais que, embora distantes, sero afetadas pela inovao tecnolgica, apreendendo eestimulando experimentaes com as tecnologias que esto surgindo. De outro lado, apreende-sequais so os projetos tecnolgicos que acumulam grandes investimentos coletivos, pois soestratgicos na conformao da cultura. Entre a tecnologia e a cultura est o sujeito, indica-nos oconceito de transcendental. Estipular as linhas de difuso implica investigar como uma dada

    3 Cf Davidson, D., Inquiries into truth and interpretation, Oxford: Clarendon Press, 1984.

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    tecnologia pode transformar um modo prvio de ser e pensar. As conexes entre um novoprocesso tecnolgico e as experincia de tempo e espao so cruciais, pois nos orientam sobre as

    mudanas possveis no que pensamos ser. preciso cuidar, porm, para no pensar a mudananas experincias supondo a permanncia do sujeito na histria. Entrar em um novo mundoarmado, por exemplo, de um conceito de desejo vigente em outra experincia de tempo e espaoresulta em incmodo e decepo. Somos ento atrados pela facilidade do juzo. Mas pensar amudana inclui o risco de mudar o que se pensa ser. Deparamo-nos com o problema queencaminhar o diagnstico.O problema selecionado a transformao na experincia de espao gerada pelas novastecnologias. Escolha tradicional; afinal, desde o telgrafo, foi possvel dissociar a transmisso deinformaes dos modos de os homens se deslocarem. Na seqncia, o rdio, a televiso, ocomputador, a Internet e a realidade virtual, cada um a seu modo, alteram a distino entre oprximo e o longnquo e, deste modo, a separao entre o real e o imaginrio. Chegaremos assim

    ao nosso mundo, onde o simultneo no se define mais pela extenso perceptiva e motora docorpo; depende, sim, da velocidade e conexo na transmisso de informaes.O problema foi colocado com demasiada generalidade. Contorn-la implica restringir astecnologias que se investiga. A engenharia gentica e a interface grfica no esto apenasmudando a experincia de espao; esto mudando tambm o modo de conceb-lo. A engenhariagentica promove uma imensa transformao ontolgica ao traduzir o mundo como um problemade codificao e decodificao. Participa, portanto, de um movimento de provocao ereadestramento de tudo o que h, ao mesmo tempo em que promove uma ontologia materialistaque instabiliza as fronteiras modernas entre matria, vida, cultura e artifcio4: cada parcela domundo pode ser considerada como um sistema de processamento de informao, uma mensagemcodificada que, por isso mesmo, pode encodificar e decodificar informaes. Exploramos omundo como informao e consideramos a ns mesmos como sistemas de processamento deinformaes.O surgimento e a evoluo do pensamento podem ser repensados. Se a informao funciona parao controle da atividade, a evoluo dos seres vivos depender da velocidade com que ainformao circula internamente. Para que um animal possa se deslocar, no poder confiar nalentido do sangue; precisar dispor de um canal mais rpido, as fibras nervosas. Odeslocamento, por sua vez, visto como controle de um corpo em movimento pelo crebro queprocessa informaes. Se a histria evolutiva se orienta pela construo de sistemas de controlecada vez mais velozes, surge a possibilidade tanto de conflitos entre os diversos sistemas, quanto,mais profundamente, um movimento de paulatina perda de controle por parte do sistema deprocessamento primrio. O DNA abre mo do controle para a seiva ou o sangue, o sistemanervoso vegetativo para o sistema nervoso central, etc. Um exemplo tcnico explica o processo:quando se envia uma sonda a Marte, h a demora de alguns minutos no feedback entre a sonda eo centro de controle. O deslocamento requer dotar a sonda de uma relativa autonomia de deciso.

    4 Cf Haraway, D., Simians, cyborgs and women, Nova Iorque: Routledge, 1991; Vaz, P., O inconsciente artificial,So Paulo: Unimarco, 1997.

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    Quando o espao informao, o desafio de um processo material replicante reside na quantidadede informaes que capaz de processar, o que depende da velocidade de transmisso interna de

    informaes. Enfrentar o desafio encaixar mltiplos centros de controle em um nico ser vivo,nem sempre havendo harmonia.A interface grfica tambm promove o surgimento de um espao de informao5. Seu conceito o bitmap, aliando a cartografia e o cdigo binrio e permitindo, primeiro, atribuir uma localizaoespacial a um dado. A interface grfica requer, em segundo lugar, o princpio da manipulaodireta. No basta representar o texto com um cone, preciso dar controle ao usurio sobre estasimagens para tornar crvel a iluso. Ao invs de mandar o computador executar uma tarefaparticular, como na interface textual, parece aos usurios que eles prprios esto realizando umaao. Da o paradoxo da manipulao direta: na realidade, criou-se uma camada adicional entre ousurio e a mquina; a imediatez ttil da iluso propiciada pela nova camada, contudo, fazparecer que a informao est mais prxima. A terceira caracterstica importante da interface

    grfica a gerao de um representante do usurio neste espao de dados: o mouse, que prov amanipulao. O feedback visual d experincia sua sensao de presena, de imediatez. Move-se o mouse e a seta acompanha o movimento. O representante permite que o usurio entre nestemundo e manipule o que nele existe. Desde que se cria um espao de informao onde oindivduo pode estar presente por controlar seu representante, pode-se pensar que o espao forada tela tambm constitudo por informaes e que ns estamos controlando o deslocamento denossos corpos pelas informaes que processamos. Entre a vida e o videogame, as analogiasproliferam e a indagao recorrente a de quem est no controle.A interface grfica no s muda o modo como usamos nossas mquinas; modifica tambm nossaforma de conceb-las. Passamos da prtese ao espao de imerso. Quando a tecnologia prtese,estamos diante de um espao constitudo por objetos para um sujeito; quando espao deinformao a ser explorado, o prprio espao torna-se informao. A tecnologia no est maisvinculada ao corpo e funcionando ou para suprir uma ausncia prteses corretivas - ou ampliaruma capacidade. Graas interface, possvel pensar a tecnologia como um espao deinformao a ser explorado e como um modo de facilitar o deslocamento num espao que j informao. H a simultaneidade histrica entre pensar a tecnologia como uma dimensocognitiva e pens-la como espao de informao a ser explorado. E desde a apario da Internet,abriu-se a discusso sobre a necessidade ou no da perda de controle para haver movimento emum espao complexo. a discusso sobre os agentes inteligentes. Pela interface grfica e pelosagentes, a era digital prope a atrao e o risco de uma mquina onde vale a pena viver e que, sobcertos ngulos, pensa.Em suma, a engenharia gentica e a interface grfica esto constituindo a experincia e a teoriade um espao de informao. Convidam-nos ainda a repensar a distino entre matria, vida epensamento. As mquinas que construmos e a manipulao do vivo de que somos capazesdispem-nos a pensar que a matria j est quase viva e pensando. O inverso assustador

    5 A anlise da interface grfica repete a descrio de Steve Johnson. CfInterface Culture How new technologytransforms the way we create and communicate, So Francisco: Harper Collins, 1997.

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    pensvel: o quo maquinal seria o humano? Por fim, aparece como ncleo de nossos dilemasticos a temtica do controle: multiplicidade de opes, margens de manobra, vcio e perda de

    controle do que se faz a partir do que se faz.2 Mapa: excesso, acesso, processo e sucesso da informao

    Aps ter proposto o modo pelo qual as novas tecnologias podem se espraiar e transformar acultura, cabe cartografar a mudana na experincia. O mapa ser estranho. Na realidade, ser umgrafo, uma rede: no importa os acidentes entre dois lugares; o relevante a existncia deconexes entre ns e quantas conexes cada n possui. Este mapa no conecta lugares, distribuipercursos. No suficiente, porm, descrever nossa circulao; cabe ainda estimar nossodeslocamento em relao ao que ramos na cultura moderna.A rede ser limitada ao deslocamento do pensvel. Para cartografar, preciso se dispor questo:o que as novas tecnologias hoje propem como devendo ser pensado e como estas novas questes

    nos distanciam daquelas que o pensamento moderno se colocava? Quatro grandes ns serodestacados: o excesso, o acesso, o processo e o sucesso da informao. As conexes soconstrudas por dois percursos diferentes, mas que se sobrepem: o sujeito e a sociedade.O primeiro n est imediatamente vinculado mudana na experincia e na concepo de espao.Quando o mundo deixa de ser constitudo de objetos a serem representados e se torna informaoa ser processada, a quantidade da informao disponvel sempre maior do que aquela passvelde ser processada por um sistema na realizao de uma dada ao. Formulao terica geradapelo advento da gentica e do computador, este excesso tambm realidade provocada peladifuso das tecnologias de comunicao em nossa cultura.A cultura moderna articulou a constituio do espao pblico verdade e, portanto, aoquestionamento da falta de informaes dimensionada atravs do segredo e da mentira. Mesmo a

    suspeio do espetculo, usual aps o surgimento das tecnologias eletrnicas de informao,girava em torno da ausncia: o jogo e a seduo eram o suprfluo que nos fazia esquecer da falta.Hoje, porm, a partir do excesso e de suas figuras, a fragmentao e a acelerao quepensamos nossa singularidade e os perigos liberdade que comporta. A sensao de no sercontemporneo de si mesmo resulta no do desconhecimento da histria que nos faz ser, mas dadiferena de ritmo entre a veiculao de informaes e a capacidade de absoro dos indivduos6.Excesso e velocidade marcam nossa cultura.Quando percorremos este n segundo o ponto de vista do sujeito, o excesso de informaoimplica uma nova problematizao de como os homens decidem. O que importa, agora, processar informaes rapidamente, pois sempre estamos sob presso temporal. Excesso esimulao encontram uma outra articulao. A funo primordial do pensamento no maisdescobrir a verdade recndita do sujeito e realiz-la no tempo; , sim, a de produzir futuros,simular possveis para estar um passo frente do desastre7. No se pode demorar muito

    6 Cf Berardi, F., Cyberpunk e mutazione, Genova: Costa e Nolan, 1994; Rushkoff, D.,Playing the future, NovaIorque: Harper Collins, 1996.7 Cf Dennett, D., Consciousness explained, Boston: Little, Brown and Company, 1991.

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    estipulando todos os futuros possveis. Surge o problema do enquadramento frame problem que consiste na limitao dos cenrios pela seleo das informaes relevantes. No basta possuir

    regras lgicas; preciso construir clusulas de isolamento do que importante no mundo para atarefa. A comparao do enquadramento com o tema do perspectivismo na Modernidadeesclarece. O incmodo no perspectivismo a experincia de estar limitado no que se pensa e fazpela cultura em que se vive. Dar sentido ao incmodo implicava mudar de perspectiva etransgredir os limites. Quando a tarefa do pensamento enquadrar, o mundo se d como excessoe o que vale a atividade de saber limit-lo: psicologia do just in time. A referncia torna-setemporal, o tempo, para cada indivduo, experimentado como presso temporal e a ao se dcomo simulao e disponibilidade de margem de manobra. No perspectivismo, umdeslocamento espacial do pensamento que abre o tempo; no enquadramento, a qualidade daantecipao temporal que propicia diferentes complexidades ao espao de cada sistema deprocessamento.

    O segundo n, o acesso informao, imediatamente uma questo poltica. Percebemosfacilmente que o acesso informao uma questo de poder. Deste modo, tanto os que detm opoder poltico quanto aqueles que os questionam se esforam por gerar ou quebrar barreiras decdigos. Basta lembrarmos da guerrilha mexicana quanto da penalidade exacerbada aos hackers.A politizao da tecnologia tambm evidente quando articulamos os ns do excesso e doacesso. Em primeiro lugar, diante do excesso, torna-se importante encontrar mecanismos queorientem o acesso: como encontrar o que se procura, j que o excesso gera lentido, desinteressee competio entre produtores de informao? Uma estratgia a segmentao nas mdiastradicionais. O receptor no quer mais ser passivo diante da grade de programao; logo, os mdiacriam mecanismo que permitam a disponibilidade da informao segundo o desejo e o horrio doouvinte ou espectador: surgem os canais especializados.Desenvolvendo o n do acesso segundo o percurso do sujeito, somos conduzidos a considerar aindividualidade como resultante das informaes a que se acessa e absorve. A senha e o banco dedados, mais do que a identidade e a massa, tornam-se o lugar de problematizao do indivduo nacontemporaneidade8. O limite que o indivduo deve respeitar no mais a obrigao identitria ea normalidade de seus atos, mas a restrio ao nvel de informao que lhe caracteriza. O quedescobre de si tampouco a verdade recndita de seu desejo; , sim, a pertinncia at entoinsuspeitada a um certo grupo de risco ou de consumo: doenas que porta e preferncias que osingularizam na medida mesmo em que o aproximam de outros indivduos. O banco de dadosconstri um nexo causal e individualizante entre passado, presente e futuro diferente daqueleproposto pelo conceito de trauma, to importante no pensamento moderno. No se trata mais dosacontecimentos singulares na vida de um indivduo que simultaneamente restringem suaspossibilidades de ser e o conduzem a mudar o que . Graas ao banco de dados, o passado agesobre o futuro pela restrio do possvel. Exemplificando, de todas as doenas que podem ocorrera um indivduo, o mapeamento gentico e os hbitos de vida informaro sobre as mais provveis,permitindo ao indivduo modificar seu estilo de vida e, assim, quem sabe, evitar a emergncia.

    8 Cf Deleuze, G., Conversaes, Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992.

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    Esta a diferena crucial entre a subjetividade moderna e a contempornea: viver hoje dependeda restrio dos possveis e no da sua inveno. Sendo mais preciso, para continuar havendo

    novo, preciso restringir as possibilidades.O terceiro n, o processo da informao, desenvolve os modos materiais de estocagem e difusode informaes. preciso entender o termo processo tanto no sentido de procedimento quanto nosentido judicirio, pois este n condensa a discusso sobre os novos modos de transmisso dainformao. Pensa-se aqui a relao entre tecnologia e cultura e, portanto, avalia-se tambm atecnologia pela mudana de valores que promove. O que faz problema a distncia entre osvalores do presente e os do passado; em ltima anlise, est em jogo o valor da mudana.Trs processos materiais ocupam a frente da cena. Primeiro, a oposio entre o modelocentralizado e o modelo reticular, entre a relao um-muitos regida pelo princpio autoritrio epedaggico da informao que todos devem ter e a relao virtual muitos-muitos, cujo princpio o da informao a que se deseja acessar. nesta oposio que est inserida a discusso sobre a

    Internet e o hipertexto. O segundo processo diz respeito imagem. De um lado, a imagem torna-se quantidade de informao, neste esforo sempre renovado da tecnologia de reduzir a qualidade quantidade; de outro, investe-se na sua articulao com sensaes e com a ao para tornar asimulao to presente quanto o simulado. Aparecem aqui as discusses sobre a multimdia e arealidade virtual. Por fim, discute-se a mudana do analgico ao digital, transformao quecompreende e sustenta os dois processos anteriores.Quanto dimenso do sujeito, estas tecnologias proporcionam modos novos de se pensar o que a memria, a percepo, o desejo e a conscincia. Interessa aqui apenas o que articuladiretamente com a concepo de espao como informao. Primeiro, o prprio excesso conduz asupor que haveria mltiplos mdulos especializados em nosso crebro: nosso pensamentotambm deve ser multitarefa para podermos navegar em um espao complexo. Em segundo lugar,acompanhando a reduo da imagem quantidade de informao, no mais se identifica ocontedo do mental a imagens, o que possibilita dissociar a intencionalidade da conscincia econect-la exibio de comportamento inteligente. Por que supor ento que s o homem pensaou tem conscincia? E se a informao reduo de incerteza, todo conceito compresso dedados, descoberta de regularidades, de padres neste mundo. O contedo do mental pode serpensado pelos conceitos de algoritmo ou prottipo. Por fim, e para resolver o paradoxo daliberdade humana legado pela concepo cartesiana como o mental pode agir no mundo fsico? prope-se que crenas e desejos so informaes. O pensamento pode ser matria pois osignificado causa e causado.A ateno dimenso material da estocagem e transmisso de informao permite ainda repensaro estatuto de toda tcnica e do que pode ser tido como tcnica: por que no consider-las comocognitivas, se so um meio de estocar e transmitir informaes? Tecnologias intelectuais lanadasno meio para aliviar o trabalho do crebro de recursos limitados e sempre desafiado peloexcesso de informao simplificam as tarefas cognitivas e otimizam a performance do sistema.O limite da mente no coincide nem com o crebro nem com os limites da pele. Se um animallana aromas idiossincrticos no espao para marcar aquela parte do mundo em que maisinvestiu, transforma o que seria uma difcil tarefa de memria lembrar-se continuamente dos

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    limites de seu territrio em uma tarefa perceptiva simples. Pode-se traar assim umacontinuidade imprevista entre os feromnios, a urina, a linguagem, a escrita e o computador.

    O ltimo n o sucesso da informao, entendido, na trilha da sociedade, como as condiespelas quais uma mensagem, competindo com diversas outras, consegue aparecer nos mdia e sedisseminar. Deslocamento profundo, pois a questo no a das condies epistemolgicas quegarantem um enunciado verdadeiro, estatuto que assegurava a naturalidade da difuso; , sim, oda sua publicitao. Da a escolha do termo sucesso: estamos assistindo ao predomnio de umaconcepo pragmtica e subjetiva da verdade. A ateno se dirige para as formas com que umamensagem consegue se difundir, questo de existncia e persuaso.Que a comunicao seja prioritariamente pensada como jogo estratgico, tal acontece tambmpela crescente mediao tecnolgica9. A interao face a face traz consigo ndices que permitemao receptor certificar-se das intenes do emissor e a este saber se houve apreenso da mensagempelo receptor. Quando a distncia se instala, quem fala deve se contentar com um receptor

    simulado e ter uma imagem que garanta a confiana dos receptores

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    . J o receptor da informaono conseguir nunca certificar-se das intenes do emissor, o que o obriga a uma atitudeconstante de interpretao.Se desdobramos o n do sucesso da informao na dimenso do sujeito, aparecem os temas daseleo de informaes e da interatividade. O que interessa aqui que a combinao entre osnovos processos, o individualismo crescente de nossa sociedade e o espao como informaoproduz uma singular reduo da tarefa de sair em busca da verdade. O homem a medida de todaa informao, apregoa um site de divulgao de um mecanismo de busca11. Retomamosdiferencialmente Protgoras porque nosso lote e nosso esforo consumam-se no encontro dasinformaes que desejamos.

    3 O deslocamento: agentes e controle

    Um mapa vale se no apenas mostra como circulamos, mas tambm para onde poderemos ir.Mais precisamente, vale se permitir localizar a tecnologia que hoje porta futuro, orientandonossos investimentos no que podemos ser. Uma tal tecnologia ainda deve estar sendo elaborada,pois o que est em jogo no s a criatividade no uso, mas o que a prpria tecnologia pode ser.Uma tecnologia em estado de projeto torna seus formuladores sensveis ao que est acontecendoe aos desdobramentos que a comunidade antev. Cabe ainda pensar o que ela pode ser e muitosesboos so apresentados; neste caso, h espao para mltiplos investimentos sociais.Deve ser uma tecnologia dinmica. Prope-se a lidar com um problema que se reconhece comocrucial para um dado estado de coisas. Sua forma estabilizada, porm, decidir sobre uma sriede caractersticas futuras do sujeito e da sociedade. Aposta-se, pelo mapa, nos agentes, uma nova

    9 As hipteses hoje sobre origem do pensamento e da linguagem apostam na inteligncia maquiavlica dosanimais, os comportamentos de enagano e dissimulao. Ao mesmo tempo, propem que a linguagem, umatecnologia cognitiva, permite esconder seus pensamentos, evitar sua transparncia no comportamento. Ver Dennett,D., Tipos de mente, Rio de Janeiro: Rocco, 1998.10 Cf, por exemplo, Boltanski, L., La Souffrance distance, Paris: Metailli, 1994.11 Cf http://www.umap.com.

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    forma de interface que se pretende personalizada, adaptativa e funcionando, contrariamente aoprincpio de base da interface grfica, segundo a manipulao indireta. A razo da aposta

    imediata; os agentes so uma tecnologia de acesso informao, um modo de lidar com oexcesso por capacitar um indivduo a acessar aquelas informaes que o interessam. A discussosobre seus desdobramentos para a cultura se situa aqum e alm do problema em torno aopotencial democrtico da Internet. Mesmo que se concorde que a Internet transformar a cultura,o modo de transformao depende, agora, da soluo dada ao excesso de informao.A teorizao sobre a relao entre Internet, sociedade e sujeito est mudando de patamar. Noincio, as anlises se limitavam a diferenciar o seu modo de funcionamento daquele das outrasmdia e, pela diferena, antever e valorar o efeito que promoveria. O sucesso da Internet comomedium alertou para um problema que lhe inerente: cresce exponencialmente no s aquelesque querem participar, cresce tambm a massa de informaes disponveis. Comea-se ento apensar nos agentes, pois a questo agora se deslocar neste meio tornado extremamente

    complexo.Lembremo-nos da histria recente das ferramentas de busca. Surgidas no incio da dcada de 90,tiveram que rapidamente se aperfeioar, incluindo, por exemplo, mecanismos de refinamento dabusca (o e excludente e o ou inclusivo, que so os mais simples) dado o excessivo nmero depginas para uma pesquisa com uma nica palavra-chave. No ano de 1998, foi proposta umacamada adicional entre o usurio e estes mecanismos. Um destes softwares o umap, que nos pesquisa em todas as ferramentas de busca reconhecidas o que agiliza o acesso - mas quetambm visa auxiliar o usurio a encontrar o que procura e a saber melhor o que est procurando.Acrescentando, por freqncia, outras palavras s palavras-chave iniciais, constri um mapa queestimula a continuar navegando e orienta a navegao.Vrios tericos apostam que muito est em jogo na elaborao dos agentes. Sua forma finalpoder decidir sobre o que ser a privacidade e a segurana na rede, pois a condio de seufuncionamento o registro dos movimentos dos usurios na rede: e quem dispor destasinformaes? Alm disso, pode-se qualificar esta nova de tecnologia push, pois um agenteempurra, recomenda, informaes que ele cr ser de nosso interesse dado o que registrou denosso comportamento. Esta caracterstica desperta mltiplos temores. Assistiramos, graas aosagentes, a mercantilizao to temida da Internet? Seriam eles um modo solerte de as empresasde informao dominarem este meio anrquico de produo e recepo de informaes?Desponta no horizonte a vingana do procedimento um-todos? Voltaramos a ser espectadores deteleviso, passivos, sem criatividade e iniciativa para buscar aquilo que queremos saber?Acredito, porm, com Steve Johnson e outros, que estes temores so infundados e que amodificao cultural decisiva dir respeito ao modo como experimentaremos nossos desejos epreferncias. Esta tecnologia dota a matria de inteligncia para que ela nos revele nossaspreferncias e nos ajude a encontrar o que preferimos. Sentiremos novamente a atrao de sepensar e experimentar o que o nosso pensamento e quais so os seus poderes na construo denossa autonomia. Uma das inventoras da tecnologia dos agentes Pattie Maes desenvolveu o

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    padres resultam das aes aleatrias de vrios usurios. Uma segunda caracterstica desta formade agente um mecanismo de feedback que permite ao programa aprender a partir das recusas e

    aceitaes pelo usurio das recomendaes que props. O agente constri assim um perfilpersonalizado de preferncias de seu chefe. Pattie Maes argumenta que este agente revela aidentidade: seria um espelho que nos permite intuies sobre ns mesmos e um modo deapreender nossa distncia para os outros usurios15.O funcionamento dos agentes, genericamente, requer a deteco de padres por um procedimentoestatstico. Define a individualidade atravs da construo de banco de dados. Deste modo, umindivduo tanto pode pertencer a vrios grupos num mesmo momento, quanto variar seu grau deindividualizao no interior de um nico banco de dados dependendo da pergunta e da amostra.Seus defensores partem da complexidade do mundo que habitamos, dos recursos limitados denosso crebro de percepo, memria e capacidade de processamento e da presso temporalque todos vivemos. Um agente pode tomar a seu encargo as tarefas repetitivas e servir como um

    crebro adicional para as tarefas complexas. Informaes relevantes que passariamdesapercebidas, informaes que no sabamos que procurvamos, despreocupao com tarefasbanais; em todos estes casos, o agente exemplar como tecnologia cognitiva.Os crticos dos agentes acentuam que a interface supe a manipulao indireta, que transferimosinteligncia para matria ao invs de aumentar a nossa e que o agente simplifica nossaspreferncias16. Dotamos os agentes de uma autonomia relativa para agir em nosso nome; contudo,no que h representao, h a possibilidade de traio. E ser que realmente aprenderemos maissobre nossos desejos, se devemos nos tornar estpidos para nos comunicarmos com os agentes,perdendo as nuanas de nossas preferncias? Esta segunda crtica s vale para os agentes queesperam instrues de seus usurios, agentes que funcionam segundo o princpio top-down. Acrtica aos agentes sociais indaga se o nosso desejo pode ser reduzido a padres ou se queremos onovo e nos esforamos por conquist-lo. Posto deste modo, no h hesitao possvel: os agentesso uma estupidez.Esta crtica ao agente social est deslocada porque anacrnica. Opera-se ainda no interior dapolaridade, moderna, entre o novo e a repetio. Na realidade, estamos diante de um novo modode se conceber o desejo. Como j foi repetido diversas vezes, o que nos atrai e assusta estarlanado num oceano de possveis: o que fazer diante de tudo o que podemos acessar, temer ecomprar, em outras palavras, ser? Nada to desejvel quanto um mapa neste horizonte semprerenovado de inumerveis possibilidades. Se o desejo informao, deseja-se saber. O ponto dedivergncia entre os crticos e os adeptos a deciso sobre o que so os nossos ideais deautonomia e experimentao e o quo podemos acolher de perda de controle e dedesconhecimento de si mesmo. Navegar hoje implica admitir que no se sabe o que vai encontrare que os mapas precisam ser refeitos na medida em que se avana. No h territrio prvioquando o espao informao.

    15 Um timo debate sobre a relevncia do agente ocorreu no braintennis no site da hotwiredentre Jason Lanier,criador do termo realidade virtual, e Pattie Ms. Foi na defesa de Pattie que extrai esta frase. Cfhttp://www.hotwired.com/braintennis/96/29/.16 Ver as crticas de Lanier na Hotwired.

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    A experincia com um agente pode esclarecer o que est em jogo. Analisemos a AmazonBooks17. Livraria virtual criada em 1996, oferece aproximadamente 2 milhes e 500 mil livros e

    conta com mais de 1 milho e seiscentos mil compradores espalhados por nosso planeta.Intermedirio entre as editoras de lngua inglesa e os leitores, concentra esta pletora de livros emum lugar virtual. Ao identificar o suporte com o transporte da informao, no gasta com estoquee pode estar em todos os computadores do mundo conectados Internet18.Inicialmente, a Amazon atrai pela oferta desmesurada. No tem tudo, certamente; contudo, se acomparamos s livrarias tradicionais, com estoque variando de 5 a 10.000 livros, ou com asmegalivrarias, que chegam a possuir 200.000 livros, o diferencial de oferta evidente. Ela noprecisa selecionar pois no acumula matria. A Amazon permite a seus clientes transpor oobstculo da distncia; se estiver disposto a gastar, um consumidor no Japo pode obter um livroem menos de uma semana. Supera tambm a restrio s publicaes recentes; se estiver emcatlogo na editora ou em alguma livraria recndita, ser possvel obter o livro. A Amazon pode

    ainda dotar seus clientes de uma maior autonomia por no trabalhar com o esquema pedaggicoum-todos; podemos abandonar a dependncia para com a sabedoria do livreiro que escolhe. Noimporta o quo atento ele seja demanda ou que ele seja um sbio leitor; de qualquer modo, suaescolha limitada e seus limites no incluem tudo o que desejamos ou podemos desejar. Emsuma, o acesso aos livros no mais restringido pelo custo do estoque, pela distncia, pelo tempoou pela perspectiva do livreiro. Reencontramos, nesta descrio admirada, tudo o que nos atrai naInternet: a imaterialidade, o global e a experincia de espao e tempo ordenada pela conexo.No surpreende que as megalivrarias tenham entrado em crise aps seu surgimento e que aslivrarias tradicionais estejam apostando no que tem de presencial: algumas tornam-se tambmcafs ou bares.O que a torna atraente coloca dificuldades para suas vendas. Uma livraria quer sempre vendermais do que o livro procurado. Da a disposio espacial prpria das livrarias tradicionais: mesascom novidades, aproveitamento da capa e do ttulo como modos de chamar a ateno, aclassificao por gneros, a possibilidade de folhear, a orelha e a contracapa, etc. impossvel,porm, transitar descuidadamente por milhes de livros. Foi no desenvolvimento da interface quea Amazon encontrou a forma de estimular a compra.Embora tenha uma interface grfica elaborada, no ela quem seduz. Tanto assim quedisponibiliza, para o usurio que no quer esperar o computador carregar imagens, a opo de svisualizar textos e botes. Iniciemos um passeio pelo site. Logo na pgina inicial, descobrimosque a Amazon seduz por disponibilizar informaes. A pgina contm as resenhas que saram emdiversas mdias impressas jornais e revistas especializadas algumas listas de bestsellers, duasou trs indicaes e, principalmente, diversos mecanismos de busca. Supe, portanto, que seusclientes so ativos. No esperam a informao chegar; ao contrrio, buscam uma informao edesejam boas informaes sobre que outras informaes procurar.

    17 O site da Amazon : http://www.amazon.com.18 A modificao anexperincia de espao, onde um ponto concentra todo o mundo e o mundo est em cada ponto darede, derivada da identidade entre suporte e transporte foi proposta por Serres emAtlas., op. cit.

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    Acessemos em seguida a pgina de um livro. Agora, sim, comeou o trabalho de seduo dainterface. O visitante logo pode saber a posio deste livro no ranking de vendas da Amazon:

    muitos outros desejaram ou no esta informao? O olhar desce e encontramos o agente social,pronto a nos informar que os compradores deste livro tambm compraram outros trs; no provvel que, pela transitividade do gosto, voc tambm queira comprar algum ou todos? Noest satisfeito com as indicaes? Ento clique no link e v para uma outra pgina com mais trsrecomendaes. Da atrao pelo gosto da maioria, comea a delinear-se a individualizao.Passagem do desejo que quer o que todos querem por querer que todos o queiram ao desejo de seacessar mais informaes que se pode desejar.Se o livro acessado teve repercusso, o navegante poder ler, abaixo dos livros recomendadospelo agente, algumas sinopses das resenhas que saram na imprensa. A Amazon, porm,democrtica, ciosa de que um mecanismo bottom-up valora opinio dos seres humanosordinrios, h menos de dois anos convida cada leitor a fazer sua resenha e a dar uma nota entre

    uma e cinco estrelas. Sustenta, implicitamente: no confie s no especialista; forme sua opinioconsiderando tambm aquela dos que so iguais a voc. No final das sinopses da mdia, aparecea cotao mdia do livro e algumas resenhas (se quiser, podemos acessar todas por um link). Se olivro desperta polmicas, a leitura pode ser divertida: os resenhistas trocam insultos polidamente.Se ainda queremos mais informaes, nosso olhar, graas ao mouse, continua sua descida ereencontra o agente social nos esperando, informando desta vez que os compradores deste livrotambm compraram livros de outros cinco autores. No final da pgina, proposto um mecanismode busca top-down. Apresenta-se os temas do livro e prope a busca. A preciso depender donmero de temas selecionados: quanto mais temas incluir, menor ser o conjunto acessado. AAmazon faz a seleo; pode ocorrer ou que sua seleo no corresponda do visitante ou que lheseja apresentada uma lista restrita, por vezes com um nico item.Se o visitante torna-se um cliente, a Amazon passa a lhe fornecer um mecanismo de feedback emseu agente social. Entrando no site, ver um link para a sua pgina de recomendaes. Naprimeira, cinco; com tempo a perder e insatisfeito ou curioso, pede mais e recebe uma lista comvinte e cinco livros recomendados. O feedback pode ocorrer de dois modos. Num, o usurioavalia um nmero varivel de livros. No outro, ele refina suas recomendaes seja por informarque possui algum dos livros recomendados, seja por afirmar que no deseja comprar estes livros.A cada interao do usurio com o agente ou comprando ou recusando a recomendao pordesinteresse ou posse a lista de recomendados se modifica imediatamente.A Amazon vende o acesso informao: seu patrimnio um copyright. Embora acumuleprejuzos, suas aes na bolsa continuam subindo. Afinal, constituiu j um capital valioso: umbanco de dados com informaes sobre todos os seus consumidores. No se trata apenas daqualidade das informaes que pode prestar a seus clientes. Quanto vale as informaes contidasem seu banco de dados para a indstria editorial? Pela transitividade do gosto e por comear avender discos e vdeos, qual o valor para o cinema e a msica? Que dinmica se apreende namovimentao dos consumidores?Embora venha sendo um consumidor voraz, resolvi restringir a compra de livros quelesvinculados minha pesquisa. Cabe ento narrar como este hbito afetou o rumo de meus estudos.

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    Pela dimenso da oferta, a Amazon facilitou o acesso a livros de difcil aquisio por se trataremde publicaes antigas. Permitiu tambm conhecer e adquirir a bibliografia relevante de campos

    de estudo que ainda no tinham conquistado espao nas Universidades Brasileiras. Para estesefeitos, porm, bastava o fato de ser uma livraria virtual. J a interao com o agente social,creio, infletiu diversas vezes o rumo de minhas pesquisas. Num mundo onde a diviso disciplinarest em crise, este agente especialmente eficaz, pois no respeita fronteiras e aproveita-se dasabedoria de outros. Ao comprar um livro sobre teoria da evoluo, posso ser convidado acomprar um livro de teoria econmica. Os resultados surpreendem.O agente social tambm eficaz na pesquisa de campos de conhecimento dinmicos, ondeningum pode saber tudo o que est sendo publicado de interessante. Capta rapidamente anovidade pois opera com padres de grupos restritos; no precisa esperar que um livro ganhe umreconhecimento maior para recomendar. Embora continuasse comprando livros sobre a Internet,estava particularmente entediado com a repetio de argumentos. No havia muita coisa nova

    desde os livros do Rheingold, da Sherry Turkle e do Lvy e que no se encontrasse com maisprofundidade em algumas poucas pginas que o Serres dedicara ao assunto. Eis que meu agenteindica o Interface Culture, do Steve Johnson. No estava diante apenas de algum argumentonovo; consegui conectar uma srie de estudos que ainda se apresentavam dispersos: a reflexocontnua sobre como as novas tecnologias transformam nossa cultura, os estudos de filosofia damente, psicologia cognitiva e teoria da evoluo. Este artigo sobre os agentes resultou do denododo meu agente social. A descrio algo apologtica de seu trabalho deve ser gratido.Nem todas as recomendaes foram interessantes. Tampouco o agente social elimina o modohabitual de pesquisar: obter recomendaes de pesquisadores e amigos, arriscar nas refernciasbibliogrficas e notas de p de pgina de livros que se considerou interessantes, ler revistasespecializadas, etc. Alis, o bom funcionamento do agente requer que o usurio j saiba o quequer encontrar. O agente apenas mapeia caminhos possveis de continuidade da pesquisa a partirdos padres que detectou. Ser que conseguiu traar um perfil individual apropriado? Emboraainda no tenha comprado nenhum CD, apenas pelas compras de livros que fiz e pelo fato dealguns de meus colegas pesquisadores desconhecidos j terem comprado, a Amazon recomendaque compre discos de Bob Dylan, Laurie Anderson, Van Morrison, Tom Waits, Miles Davis,Thelonious Monk e B. B. King. Indicaes bastante pertinentes, confesso.A contrapartida de tantas descobertas a sensao subjetiva de que no somos to singulares eoriginais quanto desejamos. Irritar-se com a limitao dos livreiros a outra face de umsentimento de orgulho por trabalhar com temas que, acredita-se, os outros desconhecem.Comprando na Amazon, descobri que pertencia a um grupo a uma tribo, por que no? depesquisa global. Quanto a conseguir maior clareza sobre o que sustenta a multiplicidade deleituras disparatadas, lamento ter pensado sobre o funcionamento dos agentes h bem poucotempo; se soubesse, teria arquivado os livros que comprei e as variaes na lista derecomendados. Conquistei maior clareza sobre o que ando pesquisando pela leitura dos livros eno pela interao com os agentes.Pelo modo como consegue vender, a Amazon pode tambm ser um valioso instrumento depesquisa. Imaginemos um estudante interessado em pesquisar a Internet e que s conhea os

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    livros do Pierre Lvy, do Nicholas Negroponte, do Howard Rheingold e da Sherry Turkle. Se nohouver congestionamento, munido apenas do agente social que lhe recomenda sempre mais seis

    livros e cinco autores, em menos de duas horas poder construir um mapa com mais de 100 livrospara estudar. Se for atento, discernir alinhamentos tericos e tipos diferentes de pesquisapossvel: sociolgica, antropolgica, psicolgica, filosfica, artstica, estudos prospectivos, etc.Experimentem, ainda gratuito!

    Bibliografia

    Berardi, F. Cyberpunk e mutazione, Genova: Costa e Nolan, 1994.Boltanski, L. La Souffrance distance, Paris: Metailli, 1994.

    Davidson, D., - Inquiries into truth and interpretation, Oxford: Clarendon Press, 1984.Deleuze, G., - Conversaes, Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992.Dennett, D. Elbow room, Cambridge, MA: Bradford Books, 1984.

    - Consciousness explained, Boston: Little, Brown and Company, 1991.- Tipos de mente, Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

    Haraway, D. Simians, cyborgs and women, Nova Iorque: Routledge, 1991.Johnson, S. Interface culture How new tecnhnology transforms the way we create andcommmunicate, Nova Iorque: Harper Collins, 1996.Levy, P. As tecnologias da inteligncia, Rio de Janeiro: 34 Letras, 1993.Pinker, S. Como a mente funciona, So Paulo: Cia das Letras, 1998.Poster, M. The second media age, Cambridge, MA: Polity Press, 1995.

    Rosnay, J. Lhomme symbiotique, Paris: Seuil, 1995.Serres, M La distribution, Paris: Minuit, 1987.- Atlas, Paris: ditions Julliard, 1994.

    Vaz, P. A histria: da experincia de determinao abertura tecnolgica, in Amaral, M. T.,Contemporaneidade e novas tecnologias, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

    - Globalizao e experincia de tempo, in Menezes, P., Signos Plurais Mdia,cotidiano e arte na Globalizao, So Paulo: Experimento, 1997.

    O inconsciente artificial, So Paulo: Unimarco, 1997.

    Paulo VazVice-Diretor e Diretor-Adjunto de Graduao da ECO/UFRJProfessor do Programa de ps-graduao da ECO/UFRJAutor de Um pensamento infame (Imago, 1992) e O inconsciente artificial (Unimarco, 1997).