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    Cadernos de Cincia & Tecnologia, Braslia, v.13, n.3, p.383-404, 1996 383

    DEBATES

    AGRICULTURA FAMILIAR E SUSTENTABILIDADE

    Jos Eli da Veiga1

    Para discutir a relao entre agricultura familiar e sustentabilidade, estacomunicao est organizada em trs tpicos. O primeiro, apresenta uma

    viso panormica do processo de afirmao da agricultura familiar duranteos dois ltimos ciclos sistmicos de acumulao capitalista. O segundoaborda a prpria natureza da emergente transio agroambiental. E oterceiro aponta as vantagens da empresa familiar para a sustentabilidade daagricultura.

    A CONSOLIDAO DA AGRICULTURA FAMILIAR

    Durante a primeira forte expanso do capitalismo industrial, ocorrida entre1848-73, ningum ousava duvidar da superioridade do high farming. Otermo era usado para indicar a nova onda tecnolgica, dominada peladebulhadora a vapor e pela colhetadeira mecnica, ambas adotadas em larga

    escala no sul da Inglaterra. Mas acabou servindo para identificar osurgimento de uma agricultura de tipo patronal, na qual o processoprodutivo era organizado por um capitalista (que, em geral, arrendava a terrade um nobre) e executado por multides de assalariados. Durante esseseufricos vinte anos tudo levava a crer que a agricultura praticada em outrasregies da Gr-Bretanha e da Europa continental estava apenas atrasada.Cedo ou tarde elas acabariam por adotar o modelo fabril de organizaoprodutiva, como j acontecia em suas indstrias.

    O fascnio pelo high farming foi to forte que at os sbios dirigentesda Revoluo Meiji (1868) resolveram imitar o exemplo ingls. Mas eraimpraticvel tentar converter uma economia to profundamente camponesaem grandes fazendas cultivadas por pees e administradas por patresarrendatrios. Mesmo os entusiastas consultores estrangeiros tiveram quedesaconselhar a adoo do modelo ingls, a no ser como forma deocupao de Hokkaido, onde ex-samurais receberam grandes glebas, nas1 Professor Associado, USP, Departamento de Economia/FEA e Programa de Ps-Graduao

    em Cincia Ambiental (PROCAM). E-mail: [email protected]

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    quais deveriam ter implantado o high farming. Todavia, no demorou paraque eles passassem a arrendar pequenos lotes a agricultores familiares. E navirada do sculo o governo japons acabou assumindo as teses da correnteque sempre se ops agricultura patronal (shno-shugi).

    Na verdade, o high farming foi um fenmeno passageiro, favorecidopor circunstncias excepcionais. Durante esse primeiro forte surto docapitalismo industrial os salrios urbanos aumentaram 40% em 20 anos,mantendo a demanda alimentar acima da oferta. Os altos preos dosalimentos garantiam bons salrios aos labourers, lucros razoveis aos

    yeomen e altas rendas aos landlords. Mas nos vinte e dois anos queficaram conhecidos como a grande depresso tudo se inverteu. Houve umasignificativa diminuio dos custos de transporte, devido navegao avapor, ao aumento da capacidade dos navios (que passaram a ser de ferro elogo depois de ao) e expanso ferroviria. O preo do trigo americanocolocado em Liverpool caiu 57% em vinte anos. Durante essa grandedepresso as exportaes americanas de trigo mais que triplicaram e asrussas mais que dobraram. O Canad e a ndia tambm expandiram suasvendas externas de cereais. Tudo isso fez com que o preo do trigo casse aum nvel inferior metade da cotao do final dos anos dourados.

    Assim, a invejada cerealicultura patronal inglesa sofreu um golpe mortalcom a excepcional opo britnica pelo liberalismo econmico. Entre 1870e 1900 a produo de trigo caiu pela metade e o valor dessa produodiminuiu 77%. Despencou o preo da terra, passando a corresponder aarrendamentos de 20-25 anos, enquanto a norma do perodo anterior haviasido de 30-40 anos. Mas a linda trindade landlord-farmer-labourer s foimesmo liquidada pelo fato dos salrios agrcolas no terem acompanhado omovimento descendente dos arrendamentos e dos lucros. Entre 1880 e 1900o salrio real dos trabalhadores agrcolas chegou a aumentar 40%!

    No de se estranhar, portanto, que muitos especialistas britnicos emassuntos agrcolas tenham sido acometidos, na passagem do sculo, de umasbita admirao pelo campesinato francs; e que tenham passado a pregaruma poltica fundiria que fomentasse a agricultura familiar. O mais

    conhecido slogan dessa corrente reformista trs acres e uma vaca,referente questo irlandesa acabou tendo importantes repercusses naGr-Bretanha em 1892, e, de maneira mais significativa, no incio do sculo XX.

    pouco lembrada a importncia que teve a questo da terra na Gr-Bretanha no segundo surto do capitalismo industrial, que marcou o incio doquinto ciclo sistmico de acumulao, o americano. bem verdade que os

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    conflitos foram mais numerosos na Esccia, Pas de Gales e, sobretudo, naIrlanda, onde os protestos chegaram beira de um movimento de guerrilhas,que ficou conhecido por Land War. Na Inglaterra o movimento pr-reforma agrria resultou muito mais da vontade de um grupo de intelectuaisurbanos de reduzir o poder dos landlords. Recebeu um grande reforo com olanamento do Radical Programme de Chamberlain, cuja parte agrcolahavia sido redigida por Jesse Collings, um dos principais entusiastas daagricultura familiar. E obteve vrias vitrias legislativas, entre as quais deveser destacada uma lei de 1891 que autorizou os County Councils a criarem

    estabelecimentos agrcolas familiares com rea de 50 acres.A presso pela reforma agrria ganhou novo impulso, em 1906, com avitria do Partido Liberal, ferrenho anti-landlordista. Um de seus principaislderes, Lloyd George, havia sido justamente o advogado dos sem-terra doPas de Gales. Criou-se um fosso entre a Cmara dos Comuns e a dosLordes; e essa disputa s terminou com a reforma constitucional de 1911,que reduziu substancialmente os poderes da House of Lords. Mas averdadeira virada s ocorreu alguns anos depois, com a Grande Guerra de1914-19. Sem protestos ou choradeiras, a maior parte dos landlords sedesfez de suas terras, como se no valesse mais a pena brigar. O fenmenoque Newby (1987) chamou de aristocratic diaspora from the landengendrou uma mudana decisiva na estrutura de classes da sociedade rural.E durante o breve sculo XX foi a forma familiar de produzir que seconsolidou no bero do high farming.

    Na nao hegemnica do quinto ciclo sistmico de acumulao, osEstados Unidos, a vitria da agricultura familiar foi anterior. Durante aprimeira metade do sculo XIX havia prevalecido a opinio conservadora,segundo a qual as terras pblicas deveriam ser vendidas em grandes glebas,a preos altos e pagas a vista. Imensos domnios foram comprados emleiles por muitos especuladores. Mas, aos poucos, o sistema de atribuiodas terras foi sendo liberalizado, num processo doloroso e cheio de idas evindas. E durante a Guerra Civil, quando a rebelio do sul deu maioriaparlamentar ao jovem partido Republicano, surgiu a famosa Homestead

    Law, que visava distribuio de lotes de 160 acres a famlias de colonos.Na dcada de 1870 houve um verdadeiro boom colonizador na linha

    Minnesota-Dakota-Nebraska-Kansas. Nos anos de 1890, os assentamentospioneiros j cobriam grande parte do oeste de Nebraska e do leste doColorado, assim como o oeste do Kansas. Na luta contra a grilagem dosbares de gado, pipocaram conflitos entre cowboys e sod-busters,

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    mundialmente popularizados pelos westerns. Mas nada poderia seguraraquela multido de sem-terra europeus que atravessou o Atlntico.Estabeleceram-se no noroeste, em algumas reas do oeste texano e at naCalifrnia, onde ficaram com os piores solos, pois os melhores j haviamsido apropriadas nos anos de 1850. Entre 1866 e 1900, a produo de trigofoi quase quadruplicada, a de milho aumentou 3,5 vezes, a de cevada 6,5vezes e a de algodo 5 vezes. Nesses 34 anos o rebanho bovino dobrou e ode sunos aumentou 50%.

    O carter essencialmente familiar da agricultura americana no parou de

    se afirmar. Contrariamente ao que muitos pensam, as corporaes patronaiscontinuam a ser exceo. O ltimo Censo Agropecurio indica que suaparticipao nas vendas do setor declinante, representando apenas 6% em1992 (US$9,8 bilhes). As vendas das sociedades de tipo familiaraumentaram, chegando a 21% (US$34,4 bilhes). A tradicional agriculturafamiliar foi responsvel por 54% da produo comercializada (US$87,9bilhes). E os restantes 19% (US$30,5 bilhes) referem-se a outras formassocietrias que no podem ser rigorosamente classificadas como familiaresou patronais (Hoppe, 1996). Ou seja, mesmo a tremenda evoluoorganizacional da agricultura americana neste sculo no chegou a alterarsignificativamente seu carter essencialmente familiar.

    A predominncia da agricultura familiar durante o quinto ciclo sistmicodo capitalismo tambm pode ser constatada em todos os pases consideradosdesenvolvidos. No leste asitico essa afirmao s se consolidou com asradicais reformas agrrias do ps-guerra. A japonesa, por exemplo, consistiuno quase-confisco de um tero da rea agrcola e sua transferncia quase-gratuita a quatro milhes de famlias em apenas 21 meses: de abril de 1947 adezembro de 1948. Mas em quase toda a Europa do Oeste, no Canad, naAustrlia, ou na Nova Zelndia, as elites dirigentes no demoraram tantopara perceber os absurdos prejuzos causados pelas oligarquias fundirias eas enormes desvantagens econmicas e sociais da agricultura patronal.Contrariamente ao que ocorreu na Europa do Leste e, com raras excees,no vasto capitalismo perifrico, todos os governos do chamado primeiro

    mundo adotaram, desde o incio do sculo 20, polticas agrcolas efundirias que favoreceram a progressiva afirmao da agricultura familiar einibiram o desenvolvimento da agricultura patronal.

    O Brasil um dos exemplos mais chocantes da opo inversa, isto , deenorme tolerncia com a oligarquia fundiria e claro favorecimento daagricultura patronal. Com a exceo do fluxo colonizador que partiu do

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    extremo sul e permitiu a afirmao da agricultura familiar at o sudoeste doParan, o padro agrrio das demais regies teve caractersticas semelhantess que predominaram no Leste europeu durante o quarto ciclo sistmico deacumulao (britnico).

    Com exceo dos junkers prussianos, que foram beneficiados por umexcepcional regime protecionista, e do caso especial da Bomia, todo o restodo Leste europeu mergulhou num processo de subdesenvolvimento cujasrazes estavam na onipotncia de uma nobreza arqui-reacionria. Aocontrrio da aristocracia britnica, que acabou se livrando de seus domnios

    durante a Primeira Guerra Mundial, os senhores do Leste preferiram impedirque suas populaes rurais tivessem acesso propriedade da terra. E foiexatamente essa crnica crise agrria que alavancou a vitria bolchevique naRssia e o fracasso dos partidos agrrios que optaram pela via pacfica pararesolver a questo. A soluo, que acabou sendo imposta pela URSS em1945, durou pouco mais de quarenta anos. E neste final de sculo estamosassistindo a um verdadeiro renascimento da agricultura familiar em todos ospases do Leste europeu.

    Em rigor, o sistema agrcola brasileiro comeou a surgir com o complexocafeeiro, no final do ciclo britnico. Antes, as atividades agropecurias nohaviam chegado a formar qualquer nexo sistmico. E a maneira como aselites dirigentes aboliram a escravido e importaram colonos para aslavouras de caf teve o mesmo sentido histrico da segunda servido doLeste europeu. Houve um grande pacto para impedir que os negros e osimigrantes europeus e japoneses tivessem acesso terra. Foi preciso esperara crise de 29 e a longa depresso que se seguiu para que uma parte docolonato pudesse comprar os lotes colocados venda por fazendeirosfalidos. Paralelamente havia se formado um imenso excedente populacionalque logo passou a exercer forte presso para ter acesso terra. E, no incioda dcada de 60, as ligas camponesas nordestinas, junto com os movimentosde sem-terra sulistas, quase levaram o governo de Joo Goulart a optar pelaagricultura familiar.

    Durante os 20 anos de ditadura militar a sada encontrada pela populao

    rural excedentria foi o movimento migratrio, principalmente para asregies de fronteira, onde procuravam se fixar como posseiros. No entanto, apoltica de ocupao do oeste, por meio de incentivos fiscais, reduziu oalcance dessa vlvula de escape. E a escolha da cana-de-acar como nicacultura do Prolcool ajudou os grandes fazendeiros a avanarem ainda maissobre as terras da jovem agricultura familiar do Sudeste. Assim, em meados

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    dos anos 80, quando se iniciou a redemocratizao, o sistema agropecuriobrasileiro tinha um carter essencialmente patronal, em flagrante contrastecom a experincia dos pases que conseguiram se desenvolver durante oquinto ciclo sistmico do capitalismo.

    A TRANSIO AGROAMBIENTAL

    Atualmente, tanto a agricultura como a produo alimentar tendem a sercada vez mais influenciadas por um conjunto de presses que emanam deseu relacionamento com o meio ambiente. Nos pases mais desenvolvidos hum movimento social em ascenso que ataca em trs frentes: combate adegradao dos agroecossistemas provocada pelo processo modernizador dosculo XX; exige novas regras disciplinares para o sistema agroalimentar; epromove prticas mais adequadas preservao dos recursos naturais e aofornecimento de alimentos mais sadios. Essa a tripla misso dascampanhas pela agricultura sustentvel.

    Seus principais opositores dizem que uma populao mundial de dez ouonze bilhes de habitantes em meados do sculo XXI s poder se manter sea engenharia gentica engendrar um novo salto de produtividade nas zonasnobres da agricultura moderna. Afirmam que o uso mais intensivo dasmelhores terras disponveis com tecnologias j consolidadas que

    minimizaria os custos econmicos e ambientais, pois incrementaria abiodiversidade nas terras menos aptas, que deixariam de ser cultivadas porfora da globalizao. Por isso, mudanas estratgicas motivadas porpreocupaes ambientais s agravariam a insegurana alimentar do globo. Omelhor seria que os pases perifricos desistissem definitivamente da auto-suficincia e importassem cada vez mais alimentos das naes que podemfacilmente aumentar a oferta.

    Este o dilema que provoca tanta hesitao entre as elites dirigentessobre o futuro da agricultura. As do Norte sentem a crescente exignciasocial pela salubridade dos alimentos e pela preservao dos recursosnaturais necessrios agricultura, mas tambm so muito influenciadas pelolobby dos que pretendem tirar vantagem do aumento do consumo de grosna periferia. As elites do Sul, por sua vez, debatem-se entre pressesdomsticas pela segurana alimentar e presses ambientais mais externas doque internas.

    Por isso combinam-se dois cenrios que freqentemente so apresen-tados com se fossem as proposies de uma alternativa: um punhado de

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    pases industrializados continuar a produzir excedentes alimentaresexportveis ao mundo subdesenvolvido, enquanto parte dessa imensaperiferia tentar aumentar seu grau de auto-abastecimento alimentarpriorizando investimentos no desenvolvimento agrcola. Em tal contexto, osistema internacional de pesquisa agropecuria pergunta-se o que fazer.Deve manter sua preferncia inercial pela intensificao dos nichos de altopotencial produtivo, ou se voltar para as reas menos favorecidas, onde seconcentram a pobreza rural e a degradao ambiental a ela associada ?Ultimamente, influentes formuladores da poltica cientfica para o setor tm

    apoiado o segundo caminho. Querem que a pesquisa se oriente para asegurana alimentar sustentvel do Sul. Dizem que o atual desafio fazeruma revoluo super ou duplamente verde (Doubly-green or SuperGreen Revolution). Isto , uma revoluo ainda mais produtiva que averde e que consiga, ao mesmo tempo, preservar os recursos naturais e omeio ambiente.

    Trata-se de uma nobre e generosa inteno que, infelizmente, assemelha-se quadratura do crculo. Principalmente porque uma agricultura quepreserve os recursos naturais e o ambiente no resultar da difuso dequalquer nova tecnologia genrica de fcil adoo. As atuais soluessustentveis no so facilmente multiplicveis. So bem especficas aoecossistema e muito exigentes em conhecimento agroecolgico, alm depouco competitivas, tanto do ponto de vista econmico, como do ponto devista poltico.

    Nada impede que essa situao venha a se alterar sob as presses sociaispor alimentos saudveis e respeito natureza. Tais presses certamenteincentivaro muitos agricultores e pesquisadores a complementarem osesforos dos movimentos de agricultura alternativa (orgnico, biodinmico,natural e biolgico) na busca de solues mais sustentveis.

    Mas esse processo no poder ter a rapidez embutida na idia derevoluo super ou duplamente verde. Foram necessrios quase doissculos para que a agronomia gerasse as milagrosas variedades de altorendimento. Por mais rpido que seja o sucesso da campanha pela

    agricultura sustentvel e a conseqente converso ideolgica dos sistemasde pesquisa e extenso, ilusrio imaginar que a biologia molecularcombinada emergente agroecologia revolucionem a produo de alimentosem apenas 30 anos.

    Em suma, a legitimao das propostas alternativas tende a ser paralela aum oscilante declnio do padro atual da agricultura moderna. Estamos no

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    incio de uma longa transio agroambiental e no de uma fase de mudanasaceleradas que caracteriza as revolues.

    A transio talvez possa at caminhar com rapidez em ecossistemasmenos permeveis aos milagres das variedades de alto rendimento,engendrando uma diversidade de sistemas agrrios comparvel queprevalecia at o incio do sculo XX. A varivel-chave que determinar oritmo desses processos certamente ser a dinmica social. Particularmente,as possibilidades concretas de isolar as foras mais conservadoras (como osgrupos de interesse ligados ao fornecimento de energia fssil) e superar a

    enorme inrcia poltica da segunda revoluo agrcola.Mas no se pode ter a iluso de que esteja em curso uma revoluoagroambiental. Essa idia tem sido muito alimentada por uma interpretaosociolgica inspirada nas idias de Thomas Kuhn sobre o conflito deparadigmas gerador das revolues cientficas. Segundo essa viso, osmovimentos rebeldes (orgnico, biodinmico, biolgico e natural) seriamportadores de um novo paradigma, conflitante com o paradigma dominante,isto , a cincia agronmica normal. Essa idia tem sido muito explorada porBeus & Dunlap (1990, 1991, 1992, 1994). Eles tendem a ver todos os sinaisde legitimao de propostas mais sustentveis como o avano de um novoparadigma. Segundo Kuhn, se o novo paradigma estiver destinado avencer, o nmero e a fora dos argumentos persuasivos em seu favorcrescero, e um grande nmero de cientistas acabar por se converter,garantindo o seu desenvolvimento (Kuhn,1970: p.159).

    O primeiro reparo que deve ser feito sobre tal interpretao que Beus &Dunlap nem sempre so fiis s idias de Kuhn. Dizem, por exemplo, que aanlise de Kuhn sobre a histria da cincia pode ser estendida a outrosfenmenos (Beus & Dunlap, 1990: p.592). No entanto, no posfcio dasegunda edio de sua obra, o prprio Kuhn faz questo de frisar exatamenteo inverso: que sua originalidade foi abordar a cincia sob uma tica muitocomum em outros campos (Kuhn, 1970: p.208). Outra idia confusa dizrespeito importncia da racionalidade dos paradigmas em conflito.Referindo-se ao debate agroambiental, os dois socilogos rurais dizem que

    o que racional e razovel sob uma perspectiva irracional sob outra(Beus & Dunlap, 1990: p.592). Entretanto, segundo Kuhn, no se devepensar que o processo de afirmao de um novo paradigma demonstrequalquer tipo de irracionalidade do anterior. O que estimula odesenvolvimento de um novo paradigma muito mais a percepo de quepode haver algo de errado com o paradigma dominante do que a possibi-

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    lidade de que a resistncia ao novo paradigma venha a parecer ilgica(McMullin, 1993: p.56).

    Mas nenhum desses enganos seria muito grave se a prpria abordagem deKuhn sobre o progresso cientfico fosse clara e satisfatria. Mas no ocaso. No j citado posfcio da segunda edio, Kuhn (1970: p.181)reconheceu ter usado a palavra paradigma em 22 sentidos diferentes.Acrescentou que, depois de uma boa reviso editorial, eles poderiam serreduzidos a apenas dois. Chama o primeiro de matriz disciplinar(disciplinary matrix) e o segundo de exemplos compartilhados (shared

    examples). A ambgua matriz disciplinar composta de paradigmas,partes de paradigma ou paradigmatics , que formam um todo e funcionamjuntos. Os exemplos compartilhados (menos ambguos) so os quepermitem o desenvolvimento de uma linguagem cientfica comum e umaabordagem comum para problemas similares.

    Mesmo reduzida a apenas dois sentidos, a noo de paradigma est longede ser clara. Fica-se sem saber se essa teoria sobre as revolues cientficasse aplica apenas aos grandes sistemas de pensamento, ou se vale tambmpara vrias teorias ou modelos internos a um mesmo sistema de pensamento.Parece que a segunda opo corresponde melhor viso de Kuhn, emboraele nunca o diga (Katouzian, 1980: p.96). Assim, no caso de cinciasimaturas, como as cincias sociais, impossvel usar o texto de Kuhn paradecidir se um mesmo paradigma abrigaria, por exemplo, Marx eSchumpeter, ou se criaram diferentes paradigmas.

    Se a confuso j to grande quando se trata da histria da cincia, o quedizer do uso da palavra paradigma no campo da histria econmica, comofazem os evolucionistas-neoschumpeterianos? O que seriam, por exemplo,os tais paradigmas tcnico-econmicos de Freeman & Perez (1988)? Elesmesmos respondem que enxergam os ciclos longos de Schumpeter e suasvagas de destruio criativa, como uma sucesso desses tais paradigmastcnico-econmicos, associados a esquemas institucionais especficos que,contudo, s emergem depois de um doloroso processo de mudanaestrutural (Freeman & Perez, 1988: p.47). Nada dizem sobre a natureza do

    processo formador desses paradigmas tcnico-econmicos; enquantoSchumpeter pelo menos associou vagamente iniciativa da vanguardaempresarial o processo formador das suas creative gales of destruction(Schumpeter, 1939).

    Para Schumpeter, pacotes de inovaes so gerados por peridicasrevoadas de empresrios hericos. S que esse fenmeno no explicado

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    por qualquer processo scio-econmico. Despenca na teoria como um deoex machina. No h um tratamento terico para a idia de que as inovaesno surgem de forma aleatria, mas concentram-se em certos perodos,como se fossem desovas. Numa excelente abordagem dessa questo,Kleinknecht (1987) procurou resposta seguinte pergunta: qual aexplicao para as vagas schumpeterianas de hericas inovaes? Em suasconcluses no h nada que possa ser visto como uma boa resposta a talpergunta. No chega a qualquer interpretao convincente para a relao decausa e efeito estabelecida por Schumpeter, segundo a qual as expanses e

    as depresses seriam determinadas, em ltima instncia, pelo potencialinovador da vanguarda empresarial. E uma lmpida constatao dessemesmo vcuo terico j havia sido apontada por Rosenberg & Frischtak(1986: p.7-8).

    O mnimo que se pode dizer que o uso da idia de paradigma tonebuloso entre os economistas neoschumpeterianos quanto entre socilogoscomo Beus & Dunlap. E tudo indica que a origem desse espesso nevoeiroesteja na prpria interpretao de Thomas Kuhn. Afinal, a obra de Kuhnajuda muito o entendimento do processo lgico do avano da cincia, masquase nada no entendimento desse avano enquanto processo social. Apesarde se referir muito comunidade cientfica, no chega realmente a analis-la, como fizeram, por exemplo, Katouzian (1980) e Latour (1995). Enfim,no em Kuhn que se pode encontrar qualquer esclarecimento para acomplexa relao entre as mudanas tecnolgicas e as mudanasinstitucionais.

    Essa procura das ligaes tericas entre inovaes e conflitos conduziuos regulacionistas franceses Docks & Rosier (1992) a duas hipteses e auma pergunta:> Inovao sua complexidade, suas origens, sua difuso no pode sercompletamente entendida a no ser como parte da estrutura social.> Em qualquer sociedade dividida a arena social determinada pormltiplos conflitos internos que refletem profundos interesses divergentes.> Dado que as sociedades que nos interessam so cheias de conflitos

    inerentes a seus modos de interao social e recorrentes devido inovao,pode-se estudar separadamente as inovaes e os conflitos?

    Tendo como base um conjunto de pesquisas em histria econmica(Docks,1979; Docks & Rosier,1988), eles respondem com um categricono, pois enxergam uma relao dialtica entre conflitos e grandes

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    inovaes. No somente os conflitos esto na prpria origem das inovaes,como as inovaes, principalmente as maiores, engendram ou deslocamconflitos. Por isso, o que est em questo no so apenas os ritmos dasinovaes e a velocidade com que elas penetram o tecido social, mas,sobretudo, o seu prprio contedo. Grandes inovaes podem emergir tantocomo objeto e locus de muitos conflitos, quanto como resultantes(outcomes) dessas lutas. Elas sero, portanto, profundamente afetadas poressas lutas. Por isso, Docks & Rosier chamam esse processo de marcasocial nas tecnologias (social imprint on technologies).

    Os conflitos que engendram inovaes no ocorrem necessariamente narea em que elas emergem. Uma das principais caractersticas dodesenvolvimento do Ocidente, dizem os autores, tem sido sua capacidadede transformar conflito social em inovaes tcnicas. Enfim, toda a teiade relaes conflituosas que deve ser levada em conta. A criao de umnovo paradigma scio-econmico deve ser vista, portanto, como uma vastainovao que surge no interior de conjunturas conflitivas, pela emergnciade diversas sries de inovaes (tcnicas, sociais, polticas e culturais)(Docks & Rosier, 1992: p.305-306).

    Trata-se, portanto, de um processo social de produo de inovaes sobvrios pontos de vista. Em primeiro lugar, preciso distinguir a demanda(econmica) por inovaes da necessidade social de inovaes. Em segundo, preciso entender o papel de cada grupo no processo social que gera ainovao, isto , o processo que d a marca social da inovao.Finalmente, preciso perceber que as modalidades de regulao dosconflitos so cruciais, tanto para a fora das tendncias inovadoras, quantopara os tipos de inovao. A regulao social da inovao uma parteessencial do processo de tolerncia dos conflitos. E justamente a relaodialtica entre inovao e conflito que permite distinguir longos perodoshistricos nos quais h uma certa ordem (que os autores chamam de ordemprodutiva) e perodos de desordem, isto , de profundas mudanas nasformas de operao do sistema econmico (que os autores chamam decrises de transformao) (Docks & Rosier, 1992: p.306-307).

    A abordagem Docks-Rosier contraria frontalmente duas tendnciasmuitos comuns: a) a que enfatiza as mudanas tecnolgicas como se osfatores sociais e polticos tivessem um papel apenas secundrio; b) a queapenas troca o sinal dessa operao, enfatizando os aspectos sociais epolticos, como se eles pudessem estar desligados das mudanastecnolgicas. Ou seja, mostra tambm o equvoco de interpretaes que

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    tendem a desqualificar o papel do movimento pela agricultura sustentvel nacriao de alternativas tecnolgicas s prticas agrcolas da segundarevoluo agrcola.2

    O mais importante, contudo, perceber a implicao que o esquemaDocks-Rosier pode ter sobre os prognsticos mais freqentes na prximaonda longa do capitalismo. A presena das idias de Schumpeter to fortenesse debate, que as anlises no s diferem na forma como tambmilustram o papel da informtica, enfatizando mais o papel da microeletrnicanas telecomunicaes ou na robtica. Em alguns casos adiciona-se, claro,

    o potencial das biotecnologias, ou da biogentica. Mas no sai disso. Hunanimidade de que o novo paradigma a information technology (IT).E as diferenas ficam por conta dos setores em que esse novo paradigmaj mais aparente.

    Enxergar uma relao dialtica entre inovao e conflito implicanecessariamente levantar dvidas sobre essa unanimidade schumpeteriana.No em negar o papel da IT como o instrumento crucial de uma possvel (eprovvel) nova expanso capitalista. Mas em trabalhar com a hiptese deque as grandes mudanas no ocorram precisamente nos setores industriaismencionados, e sim em reas socialmente muito mais conflituosas, como asesferas energtica, agroalimentar, ambiental e, sobretudo, do desemprego.Ou seja, no proibido pensar que o verdadeiro ponto de mutao somenteser reconhecido quando os grandes problemas de nossa poca comearem aser superados pela aplicao da informtica. E o que estamos chamando detransio agroambiental um processo diretamente relacionado s quatroesferas anteriormente mencionadas.3

    A AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA TEM FUTURO?

    Nos pases em que as polticas pblicas j vm reagindo nova exignciasocial, comea a ficar clara a complexidade dessa transio. O processo estbem mais atrasado na Amrica Latina, mas j entrou nas prioridades deinstituies regionais, tornando perceptveis alguns avanos. Fica cada vez2 Este um equvoco bem freqente nas importantes contribuies dadas ao debate sobre a

    agricultura sustentvel no Brasil por Jos Francisco Graziano da Silva (Silva, 1987, 1993,1994).

    3 So rarssimos os prognsticos que enfatizam essas quatro esferas (energia, alimento, meioambiente e desemprego). Uma brilhante exceo o artigo Inovation and long-termgrowth, de Ray (1983).

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    mais claro que, neste aspecto, so imensas as vantagens comparativas daagricultura familiar, pois sua principal caracterstica a diversificao.

    A agricultura patronal, com suas levas de bias-frias e alguns poucostrabalhadores residentes vigiados por fiscais e dirigidos por gerentes, engendraforte concentrao de renda e excluso social, enquanto a agricultura familiar,ao contrrio, apresenta um perfil essencialmente distributivo, alm de serincomparavelmente melhor em termos scio-culturais. Sob o prisma dasustentabilidade (estabilidade, resilincia e eqidade), so muitas as vantagensapresentadas pela organizao familiar na produo agropecuria, devido sua

    nfase na diversificao e na maleabilidade de seu processo decisrio. Aversatilidade da agricultura familiar se ope especializao cada vez maisfragmentada da agricultura patronal.

    As caractersticas essenciais das duas principais formas de produoagropecuria podem ser resumidas no quadro apresentado a seguir.

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    Modelo Patronal Modelo Familiar

    completa separao entre gesto e trabalho trabalho e gesto intimamenterelacionados

    organizao centralizadadireo do processo produtivoassegurada diretamente pelosproprietrios

    nfase na especializao nfase na diversificao

    nfase em prticas agrcolas padronizveis nfase na durabilidade dos recursosnaturais e na qualidade da vida

    trabalho assalariado predominante trabalho assalariado complementartecnologias dirigidas eliminao dasdecises de terreno e de momento

    decises imediatas, adequadas ao altograu de imprevisibilidade do processoprodutivo

    tecnologias voltadas principalmente reduodas necessidades de mo-de-obra

    tomada de decises in loco,condicionada pelas especificidades doprocesso produtivo

    pesada dependncia de insumos comprados nfase no uso de insumos internos

    Mas ser que existe no Brasil um agricultura familiar que possa vir a sefortalecer caso a sociedade venha mesmo a optar por essa via dedesenvolvimento rural ? No estaria atrofiada a frgil agricultura familiarque se formou nas reas menos cobiadas pelos grandes fazendeiros?

    O ltimo instantneo da agricultura brasileira, tirado em 1985, indicouque a agricultura familiar resistiu, apesar da opo das elites dirigentes pelaagricultura patronal. verdade que 54% da rea ocupada pertenciam s 110mil fazendas de mais de 500 hectares (Tabela 1, no Apndice). Considerando-se que as unidades de tamanho gigantesco raramente tm aproveitamentoagrcola adequado, a excluso dos 2125 estabelecimentos com rea superior a10 mil hectares permite melhor aproximao do padro de uso da terra queprevalecia na agricultura patronal. Ou seja, considera-se, aqui, que osestabelecimentos do estrato de rea 500 a 10 mil hectares formavam uma

    amostra mais representativa da agricultura patronal brasileira.Mesmo com esse cuidado, confirma-se a natureza essencialmente pecuria

    das fazendas. Menos de um dcimo de sua rea era consagrada s lavouras,enquanto mais da metade era ocupada por pastagens. Na verdade, a readedicada s lavouras era menor nas fazendas do que nos stios, como indica a

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    comparao com uma amostra representativa da agricultura familiar formadapelos estabelecimentos do estrato de 20 a 100 ha (Tabela 2, no Apndice).

    Sob o prisma da modernizao, isto , do uso de insumos industriais noprocesso produtivo, a agricultura praticada nos estabelecimentos de grandeporte s superava com nitidez a agricultura familiar no que diz respeito motomecanizao, energia eltrica e defensivos animais. No que se refere aosdefensivos vegetais, fertilizantes, corretivos, prticas de conservao de solo,ou irrigao, as diferenas entre os dois tipos de agricultura no eramsignificativas (Tabela 3, no Apndice). Mas os contrastes apareciam nos

    efeitos da modernizao para cada atividade. Em algumas culturas, osrendimentos fsicos obtidos pela agricultura patronal eram bem superiores aosda agricultura familiar (Tabela 4, no Apndice). E para alguns dessesprodutos, como a cana-de-acar, o arroz e a soja, essa maior eficincia setraduzia tambm em maior peso relativo na oferta (Tabela 5, no Apndice).

    Todavia, a estratificao dos estabelecimentos segundo a rea forneceum retrato muito desfocado da situao da agricultura familiar brasileira em1985. Por isso, em trabalho realizado para a FAO, Veiga (1995a) procurouchegar a uma descrio menos grosseira por meio da sinopse apresentada naTabela 6, no Apndice. O que permitiu propor uma diferenciao entre aagricultura familiar e a massa de estabelecimentos perifricos, assim comouma separao de dois segmentos bsicos consolidado e de transio foia estratificao da renda monetria bruta gerada no estabelecimento. Osprincipais resultados dessas estimativas esto na Tabela 7, no Apndice. Oestrato A rene os estabelecimentos no patronais que tinham uma rendamonetria bruta superior mdia da microrregio geogrfica. O estrato Cjunta os que tinham essa mesma renda abaixo da mediana. E o estrato B formado pelos estabelecimentos com renda intermediria, entre a mediana ea mdia microrregional. A pior situao estava evidentemente na regioNordeste, onde a distino entre os estratos B e C era pouco significativa.Nos dois casos a renda monetria bruta era muito prxima, como mostra aTabela 8, no Apndice.

    EPLOGOA promoo da agricultura familiar como linha estratgica de desenvol-vimento rural est finalmente entrando na agenda poltica do Brasil. Comum sculo de atraso, as elites dirigentes comeam a se dar conta dasvantagens de uma agricultura organizada primordialmente por empresas de

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    carter familiar. Mas essa converso insere uma grande ambigidade, poistende a valorizar apenas as virtudes sociais da agricultura familiar, semromper com o mito da superioridade econmica da agricultura patronal.Alm de chamar a ateno para tal incongruncia, esta comunicaoprocurou rebater, tambm, dois fatalismos muito comuns entre os quecultivam o mito da superioridade da agricultura patronal: a agriculturafamiliar brasileira j estaria atrofiada e o pouco que restou seria liquidadopela prxima onda de inovao tecnolgica.

    REFERNCIAS

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    APNDICE

    Tabela 1. Nmero de estabelecimentos e rea segundo grupos de rea total, Brasil,1985

    Grupos de rea (ha) N de estab. % rea

    (mil ha)

    %

    Menos de 20 3.879.851 67 21.297 6De 20 a 100 1.345.311 23 58.255 16

    De 100 a 500 457.762 8 90.474 24De 500 a 10 mil 107.955 2 150.584 40Mais de 10 mil 2.125 - 54.314 14Total 5.793.004 100 374.925 100

    Fonte: IBGE (1985).

    Tabela 2. Utilizao das terras nos estabelecimentos de estratos de reaselecionados, Brasil, 1985 (milhes ha e porcentagens).

    Estrato(milhes ha)

    20-100(%)

    Estrato(milhes ha)

    500-10.000(%)

    Total 58,0 100,0 151,0 100,0c/lav.permanentes 3,2 5,5 1,5 1,0c/lav.temporrias 11,3 19,5 10,2 6,8Subtotal Lavouras 14,5 25,0 11,7 7,7c/pastag.naturais 13,7 23,6 47,6 31,5c/pastag.plantadas 8,1 14,0 38,2 25,3Subtotal Pastagens 21,8 37,6 85,8 56,8Outras 21,7 37,4 53,5 35,4

    Fonte: IBGE (1985).

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    Tabela 3. Indicadores do grau de modernizao dos estabelecimentos de estratosde rea selecionados, Brasil 1985.

    Estabelecimentos que: Participaono estrato 20-100

    (%)

    Participaono estrato 500-10.000

    (%)

    Tinham alguma assistncia tcnica 16 35Tinham energia eltrica 24 34Usavam trao mecnica 31 56

    Tinham trator 13 48Tinham veculos de trao mecnica 17 53Usavam defensivos animais 58 81Usavam defensivos vegetais 40 42Usavam fertilizantes qumicos 36 37Usavam fertilizantes orgnicos 41 41Usavam calcrio e outros corretivos 10 15Com prticas de conservao do solo 19 25Usavam algum tipo de irrigao 5 8Obtiveram crdito de custeio 17 15Obtiveram crdito de investimento 2 3

    Fonte: IBGE (1985).

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    Tabela 4. Rendimentos fsicos nos estabelecimentos de estratos de reaselecionados, Brasil, 1985

    Estrato 20-100 Estrato 500-10000 Unidades

    Algodo 1,1 1,0 t/haFeijo 0,4 0,4 Mandioca 8,0 6,9 Soja 1,8 1,8 Trigo 1,6 1,4

    Cacau 0,6 0,5 Banana 918 890 cachos/haLeite 997 841 l/vaca ord.Arroz 1,6 2,0 t/haBatata Inglesa 9,4 13,1 Cana-de-acar 53 65 Milho 1,5 1,8 Tomate 19 21 Caf 1,3 1,8 Laranja 91 102 mil frutas/ha

    Fonte: IBGE (1985).

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    Tabela 5. Participao dos estabelecimentos de estratos de rea selecionados naoferta agrcola, Brasil, 1985 (em porcentagens).

    Estrato 20-100 Estrato 500-10000

    rea Produo rea Produo

    Batata-inglesa 42 42 6 8Trigo 41 42 14 13Cacau 39 40 10 9

    Banana 36 35 7 7Caf 35 32 11 14Milho 33 34 11 13Feijo (1a safra) 33 34 5 6Algodo 33 35 11 11Tomate 32 30 7 8Laranja 32 31 21 22Mandioca 31 33 4 4Soja 26 26 29 30Arroz 23 21 27 32Cana-de-acar 13 11 48 52

    Leite vendido - 32 - 17Ovos. p/consumo - 35 - 8

    Fonte: IBGE (1985).

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    Tabela 6. Proposta de sinopse indicativa da estrutura da agropecuria brasileira,1985.

    Estabelecimentos Nmero(milhares)

    %

    Patronais 580 10Familiares:

    - consolidados 1.160 20- de transio 1.740 30

    Franja perifrica 2.320 40Total 5.800 100

    Fonte: Veiga (1995b).

    Tabela 7. Nmero de Estabelecimentos No-Patronais e Renda Monetria Bruta(RMB) mdia eper capita, em salrios mnimos por ano (sm/a), segundoo estrato, Brasil, 1985 (agregaes).

    Estrato Nmero deestabelecimentos

    % RMB mdia(sm/a)

    RMBper capita(sm/a)*

    A 1.030.700 26 52,7 13,8

    B 958.213 24 11,5 3,5C 1.985.723 50 0,9 0,3Total 3.974.636 100 17,2 5,4

    *Do pessoal ocupado nos estabelecimentos. Fonte: IBGE (1985).

    Tabela 8. Renda Monetria Bruta mdia (RMBm), em salrios mnimos por ano(sm/a), dos estratos de estabelecimentos no patronais segundo asgrandes regies, Brasil, 1985.

    Regies RMBm

    A B C TodosNorte 55 17 4 22

    Nordeste 25 5 0 8Sudeste 119 17 -3 30Sul 91 22 2 31Centro Oeste 68 13 -6 19

    Fonte: IBGE (1985).