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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
AGROINDÚSTRIA FAMILIAR E A RECONFIGURAÇÃO DE ESPAÇOS NO MEIO
RURAL: O CASO DAS MULHERES DA AGROINDÚSTRIA FAMILIAR SÃO ROQUE
Renata Borges Kempf1
Josiane Carine Wedig2
Juliane Preslak3
Resumo: O artigo perpassa pelos conceitos de gênero e agricultura familiar em busca da
compreensão das estratégias de resistência de mulheres camponesas, tanto em relação ao sistema
sócio-econômico e político no qual estão inseridas quanto em relação à própria família. A
discriminação das mulheres no interior das famílias de agricultores está fortemente relacionada com
sua aparente subjugação financeira em relação ao marido (ou pai), pois este é comumente
considerado o “responsável” pela atividade principal da unidade de produção e pela administração
financeira do estabelecimento. Dessa forma, a independência financeira assume uma grande
importância para a emancipação social das agricultoras, assim como o contato com o ambiente
externo ao domicilio na agroindústria e nas atividades de comercialização. O estudo de caso da
agroindústria rural São Roque em Pranchita-PR, organizada e gerida unicamente por mulheres
camponesas, possibilita uma análise dos efeitos da renda própria em um contexto de rendas
indivisíveis e permite perceber como são criados espaços de autonomia e é possibilitada uma
reconfiguração dos espaços cotidianos, produzindo mudanças nas relações de poder e de opressão
de gênero.
Palavras-Chave: Mulheres camponesas; Gênero; Agroindústria Familiar; Agricultura Familiar.
Introdução
As mulheres camponesas passam por dificuldades singulares, que as diferenciam tanto das
mulheres urbanas, quanto dos homens camponeses. O sistema mundo moderno (WALLERSTEIN,
2001) classifica o rural como local de atraso em comparação com o urbano moderno e
desenvolvido, dessa forma o agricultor vive uma contínua luta por emancipação em relação a esse
ambiente que o explora e subjulga. Da mesma forma a mulher exerce um contínuo processo de
resistência em relação à violência da dominação colonial que caracterizou a mulher em posição de
inferioridade em relação ao homem (LUGONES, 2014).
O processo de dominação colonial criou uma série de dicotomias e a hierarquização dos
sujeitos, que em grande medida, permanecem e se atualizam ainda hoje. O lugar ocupado pelas
1 UTFPR-Campus Pato Branco, Paraná-BR 2 UTFPR-Campus Pato Branco, Paraná-BR 3 UTFPR-Campus Pato Branco, Paraná-BR
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mulheres em suas famílias assim como na sociedade foi “estereotipado junto com o resto dos
corpos” (QUIJANO, 2005, p. 118). E dessa forma classificam-se as coisas de mulher, o lugar de
mulher e o trabalho de mulher. Sair desse “lugar de mulher” é, portanto, uma forma de resistência a
essa submissão que lhes é imposta.
No meio rural, ao falar sobre igualdade de gênero, três temas podem ser considerados
fundamentais “herança, casamento e acesso a terra” e estes estão sempre ligados a um elemento
fundador: o trabalho (PAULILO, 2005, p.2). Falar em trabalho quando se trata de gênero é falar
sobre a divisão sexual do trabalho. O sistema mundo moderno criou uma divisão entre trabalho
produtivo e reprodutivo, sendo que o primeiro é aquele pelo qual se recebe remuneração (salário),
realizado, geralmente, fora da unidade domiciliar e efetuado pelo pai/adulto. Já o trabalho
reprodutivo constitui a atividade de “subsistência”, dentro da unidade domiciliar, realizado pela
mulher/mãe (WALLERSTEIN, 2001). Essa divisão produziu uma desvalorização do trabalho das
mulheres, produzindo um sexismo institucionalizado.
Entre as mulheres camponesas, a divisão sexual do trabalho tem especial efeito devido à
indivisibilidade das rendas no meio rural (CHAYANOV, 1974) o que torna ainda mais difícil
mensurar o real valor da mão de obra feminina dentro da família. Dessa forma a diversificação dos
meios de vida (ELLIS, 2000) surge como uma alternativa que gera segurança financeira e redução
da dependência externa para as famílias camponesas assim como a emancipação econômica das
mulheres camponesas (WANDERLEY, 2003). As estratégias de diversificação podem representar
ainda uma saída da mulher do ambiente doméstico e estabelecer uma relação com o exterior da
unidade de produção familiar, criando assim espaços de autonomia para essas mulheres ao passar a
exercer atividades consideradas produtivas.
Nesse sentido o presente trabalho procura demonstrar como o processo de diversificação dos
meios de vida caracteriza não apenas uma atividade de emancipação da família camponesa em
relação à dependência externa, como também permite a emancipação financeira da mulher e traz a
possibilidade de criação de espaços de autonomia, os quais possibilitam uma reconfiguração dos
espaços cotidianos, produzindo mudanças nas relações de poder e de opressão de gênero.
As discussões que seguem no artigo partem de um estudo de caso em uma Agroindústria
Familiar Rural (AGF) no município de Pranchita – PR, coordenada por um grupo de sete mulheres
que há mais de 14 anos trabalham juntas, realizando todas as etapas de produção e comercialização
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de seus produtos. O fato de a AGF ser composta unicamente por mulheres nos possibilita um lócus
privilegiado de observação, de emancipação financeira, e de construção de autonomia social e
política. Além disso, podemos observar as relações que se estabelecem no espaço público de
socialização, comercialização, troca e participação em organizações camponesas diversas, como
sindicatos dos trabalhadores rurais, cooperativas de agricultura familiar etc.
O trabalho se divide em três partes além desta introdução, sendo a primeira sobre agricultura
familiar e diversificação dos meios de vida, a segunda sobre o feminismo descolonial e a mulher
camponesa e por ultimo o estudo de caso na AGF.
Os processos de resistência da família camponesa
O conceito de agricultura familiar utilizado no decorrer deste trabalho é baseado no proposto
por Wanderley (1996), qual trata agricultura familiar como um conceito genérico qual abrange o
campesinato. Nesse sentido, no decorrer do texto, poderão ser encontrados ambos os termos com o
objetivo de descrever o grupo pesquisado.
Para compreender as características da agricultura familiar na sociedade moderna se faz
necessário considerar o processo de colonização/modernização, o qual impôs uma narrativa de
desenvolvimento que classificava o meio rural e as comunidades tradicionais como o lugar do
“atraso” enquanto o espaço urbano industrial se caracteriza como modelo de desenvolvimento e
evolução. Neste contexto, os camponeses foram classificados como “atrasados” e eram tidos como
incapazes de construir suas próprias formas de protagonismo e resistência.
Um ponto essencial no modo de vida das famílias camponesas é a indivisibilidade das rendas,
para elas a renda familiar é um todo indivisível, pois a família se conforma como um organismo
econômico único (CHAYANOV, 1986). Este fator tem especial influencia na questão de gênero no
mundo rural, pois a indivisibilidade da renda familiar rural dificulta a mensuração econômica da
mão de obra feminina. Nesse sentido a valorização do trabalho das mulheres no contexto rural
remete a dois problemas, a desvalorização do trabalho reprodutivo e a dificuldade de mensuração
do trabalho feminino produtivo.
A “condição camponesa” descrita por Ploeg (2009) é caracterizada pela constante luta do
agricultor por autonomia em relação ao ambiente hostil em que se encontra. A família camponesa se
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caracteriza assim pelo constante processo de resistência às externalidades negativas das quais não
tem controle, às pressões do mercado dominado pelas grandes empresas, aos preconceitos de classe
social, ao abandono político, e ao sistema que ainda insiste em pressionar a classe ao
desaparecimento.
Para Ellis (2000), a estratégia reprodutiva do agricultor familiar e a capacidade de diversificar
os meios de vida são definidas como “o processo pelo qual a família rural constrói e cada vez mais
diversifica o portfólio de atividades e ativos para sobreviver e para melhorar seu padrão de vida”
(ELLIS, 2000, p. 15). Hass (2008) aponta que a diversificação tem uma tendência a afastar os
agricultores da produção de commodities agrícolas e dessa forma se mostra benéfica para o meio
ambiente assim como para a estabilidade econômica dos agricultores.
A diversificação das rendas4 é uma estratégia empregada pelas famílias camponesas para
reduzir o risco produtivo ou de renda, mas para as mulheres agricultoras ela acaba desencadeando
alguns outros efeitos além da segurança de renda familiar. Wanderley (2003, p.53), afirma que no
caso da mulher o trabalho externo à unidade produtiva pode representar o caminho pelo qual ela
adquire uma maior capacidade de participar dos ganhos da família (contribuindo com o dinheiro
que ela mesma ganhou). Da mesma forma esse trabalho externo pode representar uma autonomia
para a mulher “semelhante à individualização dos jovens. É como se ela tivesse sua própria
profissão e não fosse apenas à esposa do agricultor” criando um distanciamento dessa mulher em
relação ao estabelecimento familiar.
Dessa forma a diversificação dos meios de vida é responsável por trazer uma maior segurança
financeira para as famílias, gerando um maior controle sobre o estabelecimento, desvinculando-o de
diversos fatores exógenos ligados à atividade agrícola, e possibilitando uma menor dependência de
apenas uma fonte de renda. Ao mesmo tempo em que pode representar uma emancipação financeira
e a criação de espaços de autonomia para as mulheres camponesas.
Lutas por emancipação das mulheres camponesas
4 Os termos diversificação das rendas, diversificação da produção e pluriatividade quando usados no trabalho
não representam sinônimos de diversificação dos meios de vida, conceito muito mais abrangente. Esses são usados
como parte integrante dessas estratégias de diversificação dos meios de vida.
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Sendo na luta por igualdade salarial das mulheres urbanas ou na constante luta por
emancipação das mulheres rurais, falar sobre gênero é condição primordial para o desenvolvimento
da sociedade em geral. É comum referir-se ao feminismo como um movimento de luta pela
emancipação da mulher, no entanto, é importante questionar: “quem é essa mulher?”, afinal o
movimento feminista nasce no berço da colonização e trata da emancipação pelo olhar da mulher
branca, deixando inúmeras pautas caras às demais mulheres (ou as mulheres que foram
“colonizadas”) fora desse processo de libertação.
O movimento feminista em sua origem foi criado por e para um grupo de mulheres específico
que acabou deixando os demais grupos a margem de sua luta. Isso, porém não significa que esses
grupos não “sejam feministas”. É possível observar sinais de resistência nos mais diversos
contextos, que apresentam processos de resistência peculiares por se diferenciarem do meio urbano
em diversos aspectos, como nos processos de sucessão, herança e divisão sexual do trabalho.
Os processos de resistência, para Lugones (2014, p. 943), surgem como contraponto à
violência da dominação colonial e ocorrem pela “presença que resiste”, pela “subjetividade ativa
dos/as colonizados/as contra a invasão colonial de si próprios/as na comunidade desde o habitar-se a
si mesmos/as”. A autora destaca a necessidade de olhar para mulheres de grupos periféricos através
da intersecção entre gênero, classe e raça.
Da violência colonial surge a divisão sexual e racial do trabalho, justificada por esse sistema
hierárquico, em que as mulheres ficaram condicionas ao espaço doméstico e privado, enquanto aos
homens foi atribuído o espaço público das relações políticas e econômicas institucionalizadas.
A divisão sexual do trabalho, segundo Hirata e Kergoat (2007, p. 599), não só designa o
trabalho masculino à esfera produtiva e o feminino à esfera reprodutiva como também “caracteriza
a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos,
militares etc.)”. Paulilo (2007, p.2) faz referencia a uma divisão sexual do trabalho dentro do grupo
doméstico que “atribui ao marido-pai e aos homens, em geral, o papel de provedor de renda e à
esposa-mãe o da prestação de serviços”. Na agricultura essa visão de que as atividades femininas
não são econômicas é, no entanto ilusória, pois essas mulheres também produzem bens, mesmo
quando em atividades “reprodutivas”. Elas produzem bens e serviços que tanto são consumidos
pelos membros da unidade doméstica, quanto comercializados. As tarefas não remuneradas,
realizadas pelas mulheres são fundamentais para a reprodução da família camponesa, pois não
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haveria a manutenção e reprodução familiar sem seu trabalho. Dessa forma nota-se que o que é
classificado como trabalho produtivo ou trabalho reprodutivo não se relaciona a produção e, sim, a
caracterização capitalista do que é definido como mercadoria.
As mulheres camponesas não apenas tem seu trabalho classificado como doméstico e não
econômico quanto ainda precisam lidar com uma dupla jornada de trabalho quando passam a
executar atividades consideradas econômicas, pois não deixam de ser responsáveis pelas atividades
reprodutivas e acabam acumulando ambas as funções. Na atividade rural é clara a divisão
hierárquica, onde os homens são os responsáveis pelas atividades consideradas produtivas e as
mulheres pelas atividades domésticas. Mesmo quando ambos excutam a mesma atividade na roça
ou lavoura, o trabalho das mulheres é considerado “ajuda”. No caso das atividades domésticas essa
ajuda raramente é recíproca (BRUMER, 2004; DEERE & LÉON, 2003; SILVA & SCHNEIDER,
2010).
Às mulheres camponesas são atribuídos papéis ligados a casa e a esfera dos cuidados dos
filhos, dos idosos, da família em geral, além do cuidado de pequenos animais, horta e lavoura para
uso doméstico (BONI, 2012), sendo a comercialização (e o contato com o exterior da UP, em geral)
uma tarefa considerada masculina.
Em muitos casos, mesmo quando parte do processo de produção do estabelecimento, ou
quando elas são as principais responsáveis pela produção das mercadorias, as mulheres não são
responsáveis pela venda e pela administração dos recursos originados da produção, sendo
pertencente aos homens o contato com o exterior do domicílio (BRUMER, 2004; DEERE &
LÉON, 2003; KEMPF, 2014).
Com base nessa exposição é possível compreender a posição ocupada pela mulher na
agricultura, quais são os trabalhos de mulher e qual a classificação de suas atividades e seu lugar.
Dessa forma, se torna perceptível como a atividade executada na AGF tira essas mulheres do lugar
que lhe é reservado, executando “as tarefas de homem5”, sendo responsáveis por uma atividade
considerada produtiva e dessa forma contribuindo financeiramente na renda familiar e questionando
5 Citação retirada de entrevista onde uma das mulheres da AGF explica que não utiliza de mão de obra
masculina em nenhuma etapa da produção, executando sozinhas até “as tarefas de homem” como trocar o botijão de gás
ou o pneu do carro.
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o papel de mulher dentro da família e da agricultura família, conforme se verifica no tópico a
seguir.
Criação de espaços de autonomia: a AGF São Roque
A agroindústria familiar existe desde 2001, tendo inicio com uma proposta da prefeitura
apresentada em uma reunião com os moradores da comunidade, parte do programa Paraná 12
meses, o programa é executado em parceria com o Banco mundial e tem como objetivo contribuir
para a melhoria das condições sociais dos pequenos agricultores. A prefeitura cedeu um espaço para
a organização da agroindústria a ser criada e o projeto se iniciou com 13 mulheres, diminuindo para
7 no terceiro ano e se mantendo nesse numero desde então.
Para as famílias camponesas as relações de parentesco e vizinhança são fundamentais, pois
através delas se estabelecem trocas, práticas de reciprocidade, confiança e ajuda mútua. Mauss
(2003, p.191) afirma que as “prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma, sobretudo
voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam no fundo rigorosamente obrigatórias
[...]”. As gerações passadas o faziam especialmente em detrimento da falta de capacidade de
armazenamento dos alimentos por longos períodos de tempo e dessa forma quando uma família
“carneava” um boi, por exemplo, ela distribuía carne para os vizinhos, como presentes e quando
esses vizinhos tinham uma boa colheita ou carneada estes tinham a obrigação moral de retribuir
essas dádivas.
Nas comunidades rurais hoje em dia muitos traços desses antigos hábitos permanecem. Na
AGF se verifica hábito de comprar produtos dos vizinhos enquanto estes compram produtos da
fábrica6. Além de uma escolha econômica, devido aos bons preços e menores custos de transporte,
essa relação envolve ainda uma obrigação moral com a comunidade. Muitas vezes essas trocas,
representadas no caderno de controle7 por um nome rasurado, não envolvem movimentações
6 “Fábrica de bolachas” é forma utilizada pelo grupo para se referir à AGF 7 O grupo organiza suas atividades em três cadernos de controle, sendo um para controle da jornada de trabalho,
onde são anotados os horários de entrada e saída de cada uma delas; outro para a organização das entradas e saídas de
dinheiro, mais especificamente para as compras de matéria-prima na cidade, rendimentos com as vendas e as sobras
divididas entre elas; e um terceiro caderno onde são anotadas pequenas transações do dia a dia, incluindo compras de
matéria prima na comunidade e vendas para familiares e vizinhos.
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financeiras, sendo os produtos “comprados” na AGF pagamento para os bens que elas “compraram”
dos vizinhos.
Da mesma forma que nas famílias de cada uma delas, dentro da AGF as estratégias de
compra, venda e troca ocorrem em um âmbito de relações de proximidade, nas quais as mulheres
procuram adquirir seus insumos na vizinhança, levar “de casa” ou comprar de pequenas
agroindústrias da comunidade rural sempre que possível (ou viável). As mulheres da fábrica
afirmam que essas relações são centrais na organização da AGF, pois são estes laços que
possibilitam a continuidade de sua agroindústria. As relações de troca, reciprocidade, confiança e
ajuda mútua permeiam essas relações, sendo fatores explicativos para o sucesso desse
empreendimento por mais de 15 anos. O forte capital social dentro do grupo e deste com a
comunidade e município é extremamente importante para explicar como essas mulheres driblaram
os fatores que limitam seus acessos a ativos devido a seu gênero e classe social (ELLIS, 2000).
As relações com o meio urbano e os contatos estabelecidos por elas com os agentes externos é
outro fator que se destaca no grupo. O fato de ter unicamente mulheres como responsáveis por todas
as etapas de organização, produção e comercialização, acaba “forçando” as mulheres a exercer
atividades que não seriam de seu domínio normalmente, como é o caso da comercialização.
Dessa forma elas realizam um enfrentamento não só em relação à família, mas também em
relação ao meio econômico, social e institucional no qual se encontram. O contato com o exterior da
UP possibilita a estas mulheres um conjunto relações com as entidades locais, como por exemplo,
ao fato do grupo ter sido convidado a participar do CMDR (Conselho Municipal de
Desenvolvimento Rural) representando as demais agroindústrias do município. Elas também tem
um contato direto com a prefeitura, com cooperativas de crédito, associações, dentre outros. A nível
individual todas elas são sócias de cooperativas, a maioria participa de sindicatos, sendo algumas
até parte da administração e conselhos dessas cooperativas. Nota-se que esses contatos
estabelecidos através da AGF acabam se estendendo a nível familiar e individual, provocando
significativas mudanças nas vidas dessas mulheres.
A dupla jornada de trabalho é característica de todas as famílias entrevistadas, as mulheres
acumulam essa nova função, considerada produtiva, com todas suas obrigações “domésticas”
anteriores. No entanto, é digno de nota a pequena inserção dos homens em algumas atividades
domésticas, como o preparo do almoço, por exemplo. Nos dias de venda, quando as mulheres
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seguem horários de trabalho mais intensos, fica sob responsabilidade do marido o preparo do
alimento, não sem certa relutância. Em um dos casos, quando questionada, a mulher fala sobre as
principais mudanças com a participação dela na fábrica, prontamente e com certo rancor, o marido
responde: “agora eu que tenho que fazer o almoço”. Ela explica que como condição para exercer
essa nova função ele exigiu que fosse instalado um fogão do lado de fora de casa demonstrando a
relutância em se apropriar da cozinha, esse espaço considerado feminino.
Percebe-se que tanto em Silva (2008) e Wedig (2009) quando em Mior (2008) a saída de casa
e da cozinha é o fator que pode representar uma quebra de paradigmas nessas situações. No caso
estudado as atividades executadas giram em torno de produção de alimentos, limpeza e manutenção
das instalações e as vendas na cidade, sendo todas, com exceção das vendas, executadas em uma
cozinha que fica a poucos metros das casas delas. É uma atividade que todas sempre executaram em
suas casas e que era, até então, considerada doméstica, e, dessa forma, sem valor. No momento que
elas saem de suas casas e trocam de cozinha a atividade passa a ser produtiva, e, como tal,
respeitada. Em um contexto capitalista onde apenas o trabalho produtivo é valorizado, a execução
de uma atividade considerada produtiva pode gerar uma mudança significativa na vida dessas
mulheres.
A importância da renda para as famílias varia em cada caso. Nos casos 01 e 07 as mulheres
utilizaram as frases “ajudar em casa/ajudar a família” e “complementar a renda” para justificar a
participação na atividade da fábrica. No caso 06 ela fala que participa da fábrica para ter um
“dinheirinho a mais para ajudar a família” e “para comprar presentes para os netos”. Já no caso 03 a
agricultora afirma que “não dá pra viver sem o dinheiro da fábrica” - durante nossa visita a casa
dela, ela mostra com orgulho os móveis e eletrodomésticos comprados com o dinheiro recebido na
fábrica.
A emancipação financeira é notada em todos os casos analisados, sendo mais relevante em
relação à renda total familiar em alguns casos e menos em outros (variando de pouco mais de 5%
em alguns casos a mais de 75% em outros). As relações de poder nas famílias sofrem alterações
especialmente nesses casos onde a relevância financeira é maior, mas características de
empoderamento são notadas em todas as mulheres, as quais demonstram alterações na autoestima
em relação ao trabalho realizado – principalmente pela percepção da fábrica ser importante na
comunidade e na cidade de Pranchita. O conhecimento e contatos adquiridos nos cursos, eventos e
saídas para venda são ainda características importantes para entender o processo de emancipação
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social dessas mulheres. Os contatos com bancos, cooperativas de produção e órgãos públicos que se
fizeram necessários devido a atividade na AGF trouxe um expressivo número de experiências e
conhecimentos os quais comumente não teriam sido possíveis se realizassem o trabalho apenas em
suas respectivas unidades de produção.
Todas afirmam não haver separação do dinheiro da família, no entanto, é possível ouvir falas
fazendo referencia ao “dinheiro dele” e ao “meu dinheiro”. Ao separar o dinheiro em “meu ou
dele” elas passam a mensurar o real valor da sua participação financeira dentro do grupo doméstico
e isso é algo capaz de alterar as dinâmicas dos espaços em que residem. Diversificar é, portanto,
uma forma de resistência, mas de resistência sem confronto direto. Nesse sentido pode ser
caracterizada como subjetividade ativa dessas mulheres que resistem ao sistema econômico que as
desvaloriza, as famílias que as invisibilizam e as instituições que corroboram com essa opressão,
fraturando, assim, o lócus em que se encontram.
Perceber estes fatores nos mostra o quanto é imprescindível olhar para a Agroindústria
Familiar Rural de forma mais ampla do que o pensamento estritamente econômico para que seja
possível realmente compreender seu processo de formação e tomadas de decisão, pois o modo como
as decisões são tomadas dentro da AGF envolvem além das estratégias de mercado, inúmeras ações
e relações específicas do contexto no qual se encontram, como é o caso desse sistema de troca de
favores e dádivas típico do meio rural.
Conclusões
O grupo procura utilizar seus meios pessoais para produzir em conjunto bens
comercializáveis, para que assim possam ajudar ou manter suas famílias e para isso utilizam da
colaboração de uma série de pessoas e instituições que acabam criando uma rede de apoiadores que
mantém a agroindústria familiar em funcionamento.
Ao usar uma estratégia de diversificação dos meios de vida, feita com o intuito de ajudar
financeiramente a família, as mulheres da fábrica de bolachas de Pranchita conseguem uma maior
autonomia financeira e social, se afastam do ambiente doméstico, das atividades reprodutivas e das
atividades produtivas, mas desvalorizadas. A participação em uma atividade produtiva e o contato
com o exterior da unidade de produção geram melhorias na autoestima do grupo e todos esses
fatores em conjunto provocam alterações nas dinâmicas das famílias envolvidas.
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Conclui-se que a subjetividade ativa desse grupo de mulheres transformou seus espaços
cotidianos através de uma atividade executada com o objetivo de “ajudar a família” e que permitiu
processos de resistência e autonomia mais amplos.
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Family Agroindustry and the Reconfiguration of Spaces in the Rural Environment: The Case
of the Women of the Family Agroindustry São Roque
Astract: The article goes through the concepts of gender and family agriculture looking to
understand the women farmer’s strategies of resistance, in relation to the socioeconomic and
political system in which they are inserted and in relation to the family itself. Discrimination against
women within farmer families is strongly related to their apparent financial subjugation regarding
the husband (or father), who is commonly considered the "responsible" for the main activity of the
production unit and the financial management of the establishment. Thus, financial independence is
of great importance for the social emancipation of women farmers, as well as the contact with the
environment outside the house in the agroindustry and marketing activities. he case study of rural
agroindustry in Pranchita-PR, organized and managed solely by women farmers, allows an analysis
of the effects of own income in a context of indivisible incomes and allows to understand how the
organization of agribusiness created spaces of autonomy and made possible a reconfiguration of
everyday spaces, producing changes in the relations of power and of oppression of gender.
Keywords: Women farmers; Genre; Family farming; Agroindústria familiar; Rural agroindustry.