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Universidade Federal do Rio de Janeiro AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL NA OBRA DE RUBEM FONSECA Luis Cláudio de Menezes 2008

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AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL NA OBRA DE RUBEM FONSECA

Luis Cláudio de Menezes

2008

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL NA OBRA DE RUBEM FONSECA

Luis Cláudio de Menezes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Doutor. Wellington de Almeida Santos.

Rio de Janeiro Agosto de 2008

AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL NA OBRA DE

RUBEM FONSECA

Luis Cláudio de Menezes

Orientador: Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos.

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Examinada por: ___________________________________________________ Presidente Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos ___________________________________________________ Prof. Doutor Alcmeno Bastos – UFRJ ___________________________________________________ Prof. Doutor Francisco Venceslau dos Santos – UERJ ___________________________________________________ Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto – PPG Letras Vernáculas – UFRJ, Suplente ___________________________________________________ Prof. Doutor Luis Alberto Nogueira Alves – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro Agosto de 2008

A Gilvan e Francisca, meus pais;

A Rosana, Giselle, Thiago e Fernando, minha irmã, meus sobrinhos e cunhado;

A Raquel, minha Musa;

A Luciano e Fábio, meus amigos.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho não seria possível sem a preciosa orientação do professor Wellington de

Almeida Santos. Tampouco sem a bolsa oferecida pelo CAPES. Muito menos sem o apoio,

opiniões, sugestões e idéias de Luciano Lanzillotti de Menezes, Lívia Fróes, Margarethe

Cerva, Elaina Carla, Gláucia Souza, Ricardo Riso, Fernanda Barboza, Ana Regina Couto,

Maurício Martins do Carmo, Claudius Waddington, Ruth Luz, Érico Braga, Cláudia Barbeito,

Rogério Saturnino e Marcelo McCord. Agradeço ainda aos meus colegas de estudo,

companheiros de aprendizagem, aos professores, instigadores do saber, e aos funcionários do

Departamento de Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Minha gratidão especial aos professores

Francisco Venceslau e Alcmeno Bastos pela participação na banca examinadora.

Tomar a atividade de escrever como uma profissão da vida inteira deveria razoavelmente ser considerado uma espécie de loucura.

Friedrich Nietzsche “Por que você se tornou escritor?” “Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido.”

Rubem Fonseca

RESUMO

MENEZES, Luis Cláudio. Agruras de escritor: as vicissitudes da vida autoral na obra de Rubem Fonseca. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras, 2008.

A dissertação tem como objetivo investigar a representação da figura do escritor na obra de Rubem Fonseca, tanto nos romances quanto nos contos, e que são marcados por uma visão irônica do ofício das letras. Três tópicos principais serão pesquisados. O primeiro deles será a ambivalente relação entre autor e mercado, buscando-se analisar a inserção do escritor e da obra literária no âmbito dos meios de massa, além de se refletir sobre o papel do público-leitor em tal contexto. O segundo se voltará para as vicissitudes da vida literária, seus altos e baixos, júbilos e misérias, ilusões, desilusões e dilemas. Por fim, se abordará o erotismo e sua relevância para a caracterização dos personagens e de suas histórias.

Palavras-chave: Rubem Fonseca;

Meios de massa;

Vida literária;

Erotismo.

ABSTRACT

MENEZES, Luis Cláudio. Agruras de escritor: as vicissitudes da vida autoral na obra de Rubem Fonseca. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras, 2008.

The dissertation has as main objective to investigate the representation of the character of the writer in Rubem Fonseca’s work, his novels and short-stories, which are marked by an ironic perspective about literary craft. Three main topics will be researched. The first one is the ambivalent relation between the author and the market, analyzing the insertion of the writer and the literary work into the mass media and reflect on the role of the readers in that context. The second one is about the vicissitudes of literary life and its ups and downs, delights and suffers, illusions, disillusions and dilemmas. Finally, the eroticism and how relevant that is for the characterization of the characters and his stories.

Key-words:

Rubem Fonseca;

Mass media;

Literary life;

Eroticism.

SIGLAS

AAR – “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”

AJE – “Agruras de um jovem escritor”

AO – “Artes e ofícios”

AST – “*** (Asteriscos)”

BF – Bufo e Spallanzani

CE – “A Confraria dos Espadas”

CM – O caso Morel

CS – “Corações solitários”

DF – Diário de um fescenino

DM – O Doente Molière

GA – A grande arte

HMS – “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”

IG – “Intestino grosso”

LT – “Labaredas nas trevas”

MMP – E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto

NP – “Natureza Podre ou Fanz Potocki e o mundo”

PC – “Pierrô da caverna”

RN – “Romance negro”

VEPI – Vastas emoções e pensamentos imperfeitos

SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................. 11

2.Artes e ofícios: o preço das palavras .................................................................................................................. 16

2.1.Das artes às letras........................................................................................................................................ 16

2.2.A arte da fome e a fome de arte .................................................................................................................. 16

2.3.A ambigüidade de Asteriscos e a estética visceral......................................................................................18

2.4.Dos fatos às ficções ........................................................................................................................ ............21

2.5.Ditos interditos................................................................................................................................ ............27

2.6.Escrever é contar palavras .............................................................................................................. ............31

2.7.Ocasiões e edições .......................................................................................................................... ............35

3.Labaredas nas trevas: júbilos públicos e misérias privadas ................................................................................ 41

3.1.Ver e Pensar................................................................................................................................................ 41

3.2.Debalde demanda........................................................................................................................................ 42

3.3.Os artifícios de "Artes e ofícios" ................................................................................................................ 45

3.4.Agruras de um jovem e de um velho escritor..............................................................................................51

3.4.1.A distância da superfície ao fundo. ................................................................................................... 51

3.4.2.Pensamento polifásico ou vastas emoções e pensamentos imperfeitos. ............................................ 52

3.4.3.Mal secreto........................................................................................................................................ 57

3.5.De criadores a criaturas................................................................................................................................63

3.5.1.O manuscrito ..................................................................................................................................... 64

3.5.2.O envenenamento.............................................................................................................................. 67

3.5.3.O labirinto da imaginação. ................................................................................................................ 71

4.A confraria dos espadas: Eros e Tânatos ........................................................................................................... 76

4.1. Espadas e Fesceninos................................................................................................................................ 76

4.2. Eros e Tânatos............................................................................................................................................ 78

4.3. Em busca de Sofia ..................................................................................................................................... 79

5.CONCLUSÃO.................................................................................................................................................... 85

6.REFERÊNCIAS ................................................................................................................................................. 88

1. INTRODUÇÃO

Em uma crônica intitulada O romance morreu, publicada no livro homônimo (2007),

Rubem Fonseca se questiona sobre a anunciada morte da literatura de ficção. Desde o final do

século XIX, passando por todo o século XX e pelo início deste novo século, a literatura tem

sido alvo de contínuas sentenças capitais, condenando definitivamente seu desaparecimento.

As razões de sua finitude seriam o progressivo surgimento e propagação de novas tecnologias,

como o automóvel, o cinema, o rádio, a televisão, o computador e a internet. Todos esses

recursos afastariam o público das obras literárias, relegando à literatura de ficção um papel

praticamente irrelevante, o que significaria simplesmente o seu fim.

Todavia, como o próprio autor enfaticamente informa em sua crônica, enumerando

nomes de escritores que, mesmo a cada nova descoberta tecnológica continuaram a escrever e

publicar, a literatura seguiu – e segue – viva e instigante. Sendo assim, o que parece estar

acabando não é a literatura, mas sim o leitor. E Fonseca se questiona: “Poderá vir a ocorrer

esse paradoxo, o leitor acaba, mas não o escritor?” (FONSECA, 2007, p.9). A resposta dele

para esta pergunta é de que talvez os leitores acabem, mas não os escritores. Estes

continuarão, irão resistir.

“Adianta escrever, se ninguém vai ler?”, indaga o protagonista de O caso Morel

(1973), primeiro romance de Fonseca. “Adianta, sempre” (FONSECA, 1995, p.8), responde-

lhe um outro personagem, seu amigo e também escritor. Na crônica, essa insistência na

criação literária é chamada de síndrome de Camões. Diz-se que o poeta português teria,

durante um naufrágio, escolhido salvar o manuscrito de Os lusíadas em lugar de resgatar a

amada. E “para quem ler?”, pergunta Fonseca, “estávamos no século XVI e muito pouca

gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que

Camões escrevia, não importava quantos fossem.” Mesmo o ofício das letras sendo repleto de

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agruras e implicando em vicissitudes tanto na vida privada quanto na pública, os autores

seguem resistindo, escrevendo e publicando.

O objetivo desta dissertação será investigar a representação da figura do escritor na

obra de Rubem Fonseca. Dada a relevância que este tema possui em seus livros, fazendo-se

presente na maioria dos romances e em inúmeros contos, é possível destacar de que maneira

os escritores são representados e sobre o que suas histórias dizem respeito. Apesar da

variedade de abordagens, um elemento se sobressai: a perspectiva irônica que é lançada por

Fonseca sobre a vida literária, uma ironia às vezes cáustica, às vezes amarga, que busca

desmistificar um ofício, paradoxalmente, ainda muito idealizado, mas também bastante

menosprezado nos dias atuais.

A maior parte dos personagens escritores fonsequianos a serem analisados são

profissionais. Vivem do que escrevem. Há alguns diletantes, como Lima Prado e seu avô,

personagens do romance A grande arte (1983), ambos escritores frustrados. Já o Cobrador,

protagonista do conto publicado na coletânea homônima (1979), é poeta, ou pelo menos assim

se considera. Todavia, o que se privilegiará, na primeira parte do estudo, serão aqueles

personagens que mantêm uma relação profissional com a atividade literária.

No âmbito público, os profissionais das letras possuem uma ambivalente relação com

o mercado editorial. A base teórica adotada pelo presente estudo buscará refletir tal

ambivalência. Umberto Eco, em Apocalípticos e integrados, considera que a fórmula contida

no título de seu livro não sugeriria necessariamente “a oposição entre duas atitudes (e os dois

termos não teriam valor de substantivo), mas a predicação de adjetivos complementares”

(ECO, 2001, p.9); expressaria, na verdade, um relacionamento dialético com os novos meios

de produção cultural. Segundo ele, “colocar-se em relação dialética, ativa e consciente com os

condicionamentos da indústria cultural tornou-se para o operador de cultura o único caminho

para cumprir sua função” (ECO, 2001, p.16). Com efeito, observa-se na ficção fonsequiana

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um posicionamento crítico, via ironia, diante dos meios de massa – como prefere nomear Eco,

em lugar de indústria cultural – e de sua influência sobre o âmbito literário, especialmente

quanto ao ofício do escritor. No entanto, o autor não repudia radicalmente tal influência, pelo

contrário, amiúde utiliza-se de alguns de seus procedimentos e gêneros típicos, não

submetendo-se a eles, e sim submetendo-os – e subvertendo-os – aos seus interesses criativos.

Analisar essa dinâmica, ativa e consciente, será o objetivo do primeiro capítulo. Gustavo

Flávio, do romance Bufo e Spallanzani, (1985), e de E do meio do mundo prostituto só

amores guardei ao meu charuto (1997); o anônimo escritor que concede a entrevista fictícia

contida no conto Intestino grosso, do livro Feliz ano novo (1975); além de Rufus,

protagonista de Diário de um fescenino (2003), são os personagens que melhor refletem sobre

essa situação.

Deve-se ressaltar ainda que, no elenco de personagens-escritores, encontram-se alguns

que são de lavra exclusiva de Rubem Fonseca. Já outros, de existência empírica, têm suas

vidas ficcionalizadas, passando de criadores a criaturas literárias. É o caso de Isaak Bábel, no

romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988); de Álvares de Azevedo, no conto

“H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, do livro O Cobrador; de Moliére, na novela O doente

Molière (2000); e de Joseph Conrad, autor do célebre O coração das trevas (1902) – e

Stephen Crane, autor do não tão célebre, embora notável, O emblema rubro da coragem

(1897) –, em “Labaredas nas trevas”, conto presente em Romance negro e outras histórias

(1992).

Aliás, o título deste conto poderia perfeitamente simbolizar os sentimentos privados

dos personagens-escritores de Rubem Fonseca, pois é na intimidade que eles experimentam as

mais diversas emoções: alegrias, angústias, júbilos, misérias, ilusões, desapontamentos,

dilemas, altos e baixos, enfim, as vicissitudes – palavra tomada aqui tanto no sentido de

mudanças quanto no de reveses – da vida autoral. Como fundamentação para o estudo feito

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no segundo capítulo, se partirá do que Célia Pedrosa chamou de estratégia da visibilidade,

caracterizado pelo intento “de resgatar o conhecimento intelectual e as palavras de seu exílio,

trazendo-as de volta ao reino da visão – o olhar” (PEDROSA, 1998, p.195). Olhar

perscrutador e crítico, em que Rubem Fonseca busca não apenas fazer ver, mas também fazer

pensar sobre a vida literária, desconstruindo idealizações que se criaram sobre ela, revelando

e refletindo sobre os demasiadamente humanos anseios do solitário, e pouco solidário, ofício

da escrita.

Outro fator que se faz presente na vida e na obra desses personagens é o erotismo.

Fesceninos talvez fosse o adjetivo que melhor os definisse. Com efeito, os escritores

fonsequianos não seguem o conselho de Flaubert – “Foutre ton encrier” (FLAUBERT apud

FONSECA, 1985, p.8), fornique teu tinteiro, querendo significar que, segundo o autor de

Madame Bovary, o escritor deve abster-se do sexo para concentrar energias no trabalho de

escrever –, ao contrário, eles fornicam com todas aquelas que se dispõem, e são muitas. Em

alguns textos, particularmente, como no conto “Pierrô da caverna”, de O cobrador, em que se

aborda a pedofilia; e em O caso Morel, em que, entre outras questões, se narra uma relação

sadomasoquista, a sexualidade dos escritores ficcionais ganha maior relevância. Contudo, na

maioria das narrativas fonsequianas, e não apenas as que têm escritores como personagens, o

sexo se faz presente, além de ser fonte das mais inesperadas vicissitudes. A análise efetuada

no capítulo baseou-se no estudo de Jean-Marie Goulemot – Esses livros que se lêem com uma

só mão (2000).

A idéia para o presente estudo surgiu da leitura do ensaio “A sabedoria do bobo da

aldeia”, contida no livro O lugar do outro (1999), de José Paulo Paes, em que se analisam os

contos do livro Romance negro. Dois outros livros, que analisam especificamente a obra

fonsequiana, foram indispensáveis para elaboração deste trabalho. Os crimes do texto: Rubem

Fonseca e a ficção contemporânea (2003), de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, sem dúvida

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uma das melhores exegetas, senão a melhor, do autor. E Literatura e consumo: o caso Rubem

Fonseca (2002), de Ana Cristina Coutinho Viegas, uma das mais instigantes análises sobre a

ficção de Fonseca.

Por fim, cabe ressaltar que, em uma vasta obra como a de Fonseca, marcada, em parte,

por uma representação hiper-realista da violência urbana, revelou-se também significativa

atenção para um tipo de violência (simbólica e, por vezes, também física) da qual uma figura,

paradoxalmente incluída e ao mesmo tempo marginalizada, da sociedade contemporânea –

mas também de outras épocas – é agente e vítima: o escritor. E que camonianamente resiste,

embora à custa de muito esforço, a todas as agruras e vicissitudes da vida autoral.

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2. Artes e ofícios: o preço das palavras

2.1 Das artes às letras

Já em seus primeiros livros, Rubem Fonseca aborda de maneira irônica a relação

entre o mercado e a arte. À medida que sua obra se desenvolve o foco vai se fixar mais

especificamente sobre o ofício literário. Mas, seja qual for a atividade artística, a

perspectiva adotada para tratar desse relacionamento será sempre crítica e não raro

irreverente. Vale a pena analisar, antes de enfocar os textos que se voltam sobre o âmbito

editorial, duas narrativas curtas da fase inicial do escritor em que, essencialmente,

delimitam-se os fundamentos de seu olhar crítico sobre os meios de massa.

2.2 A arte da fome e a fome de arte

Em “Natureza-podre ou o Franz Potocki e o mundo”, contido na primeira obra do

autor, Os prisioneiros (1963), efetua-se uma releitura do conto de Kafka, “Um artista da

fome”, em que se segue, nas linhas gerais, o enredo criado pelo autor tcheco, mas com

alterações significativas de desenvolvimento. Ambas as narrativas se iniciam indicando o

atual desinteresse por seus respectivos artistas e o pretérito interesse que despertavam. Daí

em diante, porém, cada autor enfocará aspectos diferentes, de acordo com os meios

artísticos utilizados pelos personagens e que são essenciais para a distinção de cada

abordagem.

No conto de Kafka, o corpo do protagonista é o próprio objeto de sua arte. É em si

mesmo que se dá o espetáculo da fome, resultado de um prolongado jejum, expondo-se ao

público em uma jaula. No conto de Fonseca, os objetos artísticos são os quadros que o

personagem pinta. Para ser mais preciso, o que atrairá interesse será o estilo peculiar de

sua pintura: a Natureza-podre. Não uma Natureza-morta, em que se pintam seres e objetos

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inanimados, e sim uma podre, em que se os pintam em decomposição. No lugar de

inanição, podridão.

Os dois autores enfocam os interesses comerciais despertados pela atividade de

seus artistas, além da ambígua relação com o público. Da parte deste, fica evidente que

sua fascinação, por um lado, é atraente, uma vez que os dois personagens não querem

abrir mão da audiência; no caso de Potocki, fruindo, em particular, as reações diante de

sua arte: “não era o dinheiro que recebia que o emocionava; ele gostava de estudar os

olhares que o comprador lançava sobre o quadro que acabara de adquirir” 1. Por outro

lado, a desconfiança do público em relação à integral e genuína inanição do artista da

fome, colocando em xeque a veracidade de suas intenções, e a incompreensão despertada

pelas pinturas – cujo objetivo ao criá-los nem mesmo o personagem tinha certeza –,

resumindo, a lacuna de comunicação surgida entre produtor e receptor quanto ao propósito

da atividade artística acaba tornando o relacionamento difícil.

Mas é no foco da exploração comercial que as narrativas se diferenciam

profundamente. Em Kafka, o empresário doma os impulsos radicais do artista da fome,

tendo em vista a manutenção do interesse do público por um determinado período de

tempo – quarenta dias – para poder, repetidamente, obter lucro em diversas localidades, o

que é frustrante para o artista, pois deseja levar o jejum ao extremo, revelando assim sua

capacidade e talento ímpar. Entretanto, tal desejo só se realizará quando cessar

completamente o interesse da audiência por ele.

No conto de Fonseca, as telas com a Natureza-podre tornam-se, literalmente,

objetos de consumo: “não ter um Potocki em casa, um pelo menos, passou a ser algo

deselegante, mesmo vergonhoso” (NP, p.45). Os marchands buscam tirar o máximo de

proveito financeiro do sucesso do pintor –“os quadros de Potocki eram vendidos a peso de

1 FONSECA, Rubem. “Natureza Podre ou Franz Potocki e o mundo” in Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Doravante, todos os excertos do autor serão referenciados no corpo do texto, de acordo com as siglas estabelecidas na lista de obras, seguidas pelo(s) número da(s) página(s).

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ouro. As pessoas faziam fila na porta de seu estúdio” (NP, p.44) –, comercializando os

quadros até em parcelas àqueles cujos recursos eram insuficientes para comprá-los à vista.

E aí está a grande diferença de perspectiva entre Kafka e Fonseca: este lança um

olhar irônico sobre o consumismo desenfreado que, após a segunda-guerra mundial,

arrebatou a sociedade capitalista, inclusive, e especialmente, no âmbito cultural. No caso

de Kafka, o foco se fixa mais na ânsia do artista em levar sua atividade rumo ao

paroxismo, embora a atração do público e, em seguida, seu desinteresse súbito, já

indiquem a volubilidade moderna em relação à cultura.

As duas narrativas seguem um caminho similar em suas conclusões. Em lugar do

jejuador, na mesma jaula se coloca uma pantera jovem que, de imediato, atrai o interesse

de todos, fascinados com sua espetacular pujança. Sai a ascética inanição e entra a

selvagem voracidade:

Nada lhe faltava. A comida, que lhe agradava, traziam-lhe sem longas cavilações seus guardas. Nem sequer parecia lamentar a liberdade. Aquele nobre corpo, provido de todo o necessário para rasgar o que se pusesse diante, parecia levar com ele a própria liberdade; parecia estar escondida em qualquer canto de sua dentadura. E a alegria de viver brotava com tão forte ardor de suas fauces, que não era fácil aos espectadores poder fazer-lhe frente. Mas venciam o próprio temor, apertavam-se contra a jaula e de modo algum queriam afastar-se dali. (KAFKA, s.d., p.164).

No caso de Fonseca, remove-se o painel com a natureza-podre e em seu lugar se

coloca a imagem de um cavalo “vermelho-rutilante” cujo “corpo brilhava e sua respiração,

sentia-se, era profunda, como se ele tivesse acabado de correr ou estivesse no cio” (NP, p.47).

Indicando que não mais a decomposição, a obscenidade da morte, atrai a atenção do público –

o que lhes interessa agora é o espetáculo, também obsceno, da vida.

2.3 A ambigüidade de Asteriscos e a estética visceral

Em seu posfácio à edição dos contos reunidos de Fonseca, Boris Schnaiderman

analisa a presença do dialogismo em seus textos, nos quais se alternariam vozes da cultura

e da barbárie. Sobre o conto “*** (Asteriscos)”, do livro Lúcia McCartney (1967), ele

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indica a intervenção da barbárie na esfera da cultura. Um diretor teatral leva ao extremo

de violência aquilo que Antonin Artaud propôs como teatro da crueldade. O que se

destaca nessa narrativa é a cáustica crítica do personagem-artista contra o público, os

críticos e a censura, buscando não propriamente a transgressão da linguagem

dramatúrgica, mas sim a agressão através da dramaturgia. Todavia, como afirma Boris, é

evidente a ironia do narrador, “o que torna tudo completamente ambíguo”

(SCHNAIDERMAN, 1994, p.775).

Com efeito, ao forte sarcasmo do personagem José Henrique àquilo que considera

como domesticação e mercantilização do teatro de sua época, contrapõem-se o seu próprio

radicalismo, sua pretensão e arrogância, seu flerte com a mídia, pois boa parte da narrativa

se organiza por meio de excertos fictícios de entrevistas para a TV e jornais. Ele espinafra

a ânsia do público por entretenimento e sua estreiteza intelectual –“todo espectador teatral

é um débil mental” (AST, p.300) –, a incompreensão da crítica e dos censores – “sujeitos

que têm horror à vida e à arte” (AST, p.300). Decide, então, montar o Guia de Telefones

“por ele ser uma peça (conjunto de informações sobre o mundo) da maior importância,

constantemente renovado, pós-atual, onde o contexto predomina sobre o texto e a analogia

sobre as relações de quantidade” (AST, p.298), concentrando-se na seção Endereços

devido à razões comerciais, uma vez que a encenação integral, que incluiria Assinantes e

Páginas Amarelas, demoraria seis horas. No palco vê-se o seguinte:

A luz se acende. O imenso palco está dividido em três níveis. Cada nível está dividido em linhas verticais. Dentro de cada linha acontecem, entre outras, as seguintes coisas: um homem nu espanca uma mulher nua com um chicote de sete tiras, em cujas pontas estão pedaços de metal, enquanto a mulher solta gritos horripilantes; um velho sem dentes, numa velha cozinha, coloca com mãos trêmulas enormes pedaços de goiabada na boca, como se estivesse se matando; um homem gordo, sentado numa privada lê o Jornal do Brasil, levanta-se, vira as nádegas para a platéia e limpa o ânus laboriosamente com pedaços do jornal; três jovens bem vestidas espancam furiosamente com martelos e barras de ferro um homem caído de cujo corpo saem borbotões de sangue. No plano de cima, enquanto isso, um menino fabrica um papagaio ou pipa, com folhas de seda verde e em seguida empina a pipa que se engancha nos fios que saem de um poste, o menino tenta arrancar a pipa, o fio é rompido, bate no chão com uma explosão, e o plano superior fica às escuras; no plano médio, simultaneamente, uma medalha é colocada no peito de um general, uma mitra na cabeça de um bispo, um bebê na mão de uma mãe do ano, uma caixa

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de ferramentas é ofertada ao operário-padrão, um protetor escrotal é colocado no atleta do ano etc. etc. Este é apenas o prólogo. (AST, p.303).

O conto ironiza tanto a criação quanto a recepção, além da mediação artística,

seguindo a perspectiva presente em “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” – e

depois nas narrativas sobre a vida literária. Aliás, em ambas as histórias há uma inclinação

pela estética do choque da parte dos protagonistas. “Intestino grosso”, como o próprio

título já evidencia, vem ao encontro dessas concepções, sendo o correspondente literário

às propostas pictóricas e teatrais dos textos anteriores. As três narrativas plasmam o que se

poderia chamar de uma estética visceral. Figurada e literalmente. Afinal, consignam

elementos escatológicos e violentos, revelando a emergência do corpo, especialmente de

seus fluidos e resíduos, mas também suas mais profundas angústias e sofrimentos, que

ainda se faz – e desde o início sempre se fez – presente na obra de Fonseca.

A convergência estética dos três contos permite indicar alguns aspectos relevantes

sobre a relação entre arte e mercado. Seja qual for o meio, plástico, cênico ou escrito, o

objeto artístico converteu-se em objeto de consumo e/ou de entretenimento. Assim sendo,

há uma forte pressão por parte dos “intermediários” – “como os editores, os marchands de

tableaux, os exibidores e demais exploradores dos artistas e intelectuais” (AST, p.298),

segundo o personagem José Henrique – para domar e explorar as obras artísticas, tendo

em vista atingir um público mais amplo e, claro, mais lucro.

As narrativas revelam o desconforto e a insatisfação dos artistas com esse

panorama, dando-lhes voz para que lamentem e critiquem o que se passa, notadamente em

relação ao público, alvo preferido, que se transformou, com o advento dos meios de

massa, em consumidor. Franz Potocki nada diz, sofre em silêncio com a incompreensão

de sua obra, e é só através do narrador que se sabe de seu incômodo. José Henrique, por

sua vez, repete à exaustão, sarcasticamente, o desprezo nutrido pelos espectadores,

culminando na realização de sua peça, concretização desse desdém e que serve como meio

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de agressão a eles. O personagem entrevistado em “Intestino grosso” também não poupa

críticas, no entanto é mais comedido, se comparado com o diretor teatral, embora não

menos contundente.

Seria interessante ressaltar que, em seu primeiro romance, O caso Morel (1973), o

protagonista realiza uma ponte entre as artes plásticas e a literatura, pois, o personagem,

artista plástico profissional, acusado de assassinar a amante, escreve na prisão, com

supervisão de um outro escritor, ex-policial, a narrativa do crime que o levou a ser preso.

Ao final do livro, ele demonstra um profundo ceticismo em relação à literatura, à arte e ao

papel do artista:

Não quero escrever mais. Quando era artista, eu vivia preocupado com o efeito, nas outras pessoas, daquilo que eu fazia, preocupado em saber se ia vender, ganhar prêmio, ser elogiado pela crítica – era como se eu fosse um cachorro ensinado, um desses animais de circo que executa os seus pobres truques para ganhar um pouco de açúcar. Mesmo como artista de vanguarda, supostamente destrutivo, eu continuava fazendo o que os outros queriam e esperavam que eu fizesse. Ao escrever, mudei apenas de linguagem, continuei querendo aplauso, coroa de louros, admiração. Medalhinhas e torrões de açúcar. Logo que fui preso eu me sentia culpado (pois não estava preso?) e cheguei a considerar justas as torturas que sofri. Agora que quero ser eu mesmo, não quero aprovação ou estima ou respeito, de ninguém, de nada. (CM, p.159).

Em comum entre “Natureza podre ou Franz Potocki e o mundo”, “Intestino

grosso” e “*** (Asteriscos)” há a (oni)presença da mídia, indispensável recurso

contemporâneo para a divulgação e vulgarização – nos dois sentidos – das obras de arte.

Não é gratuito que os meios de comunicação desempenhem um papel fundamental para o

desenvolvimento dessas narrativas.

2.4 Dos fatos às ficções

E é no âmago de um veículo de comunicação que se abordará, pela primeira vez, a

relação ambivalente entre literatura e mercado. Trata-se do conto “Corações solitários”, de

Feliz ano novo (1975). Nele se narra a experiência de um ex-repórter de polícia que é

contratado para ocupar o cargo de consultor sentimental em um jornal popular voltado

para o público feminino, intitulado Mulher. O que seria, a princípio, uma atividade

22

exclusivamente jornalística, centrada na referência factual do cotidiano, acaba por se

revelar um exercício ficcional diário, uma vez que faltam à seção de consultório

sentimental por correspondência justamente as cartas escritas pelas leitoras. Cabe ao

jornalista inventá-las e respondê-las. Para isso, adota o pseudônimo Nathanael Lessa.

Como o próprio personagem afirma, é uma dupla homenagem. Ambas repercutem

significativamente na estrutura da história. Tirando de uma os elementos básicos da trama

e da outra o modo, inicialmente, iconoclasta do personagem agir, acaba por combiná-las

de maneira original.

A primeira homenagem é feita ao norte-americano Nathanael West, autor de Miss

corações solitários (1933), inspiração manifesta para a releitura efetuada pelo conto de

Fonseca. Ambas as narrativas contam histórias similares, mas seguem caminhos diversos,

tanto de desenvolvimento quanto de conduta dos personagens2. Miss corações solitários é

profundamente amargo na descrição do ambiente sórdido e desesperançado dos EUA nos

anos 30 do século passado, década que ficou marcada literariamente como a da “geração

perdida” (Lost generation). O tom é sombrio e a atmosfera, pesada. Nele se acompanha o

cotidiano de um jornalista que, como conselheiro sentimental, gradativamente se angustia

com o sofrimento presente nas correspondências recebidas, a ponto de tornarem-se-lhe

insuportáveis não apenas a sua leitura, mas principalmente a composição de respostas

conformistas e otimistas. O personagem anseia por deixar essa atividade, porém, isso só

ocorre, ironicamente, quando ele é assassinado pelo marido de uma consulente com a qual

se envolvera.

A segunda homenagem é a Ivan Lessa, jornalista e cronista brasileiro, um dos

fundadores de O Pasquim, irreverente jornal carioca que revolucionou a imprensa

2 Maria Luíza de Castro Polessa, em sua dissertação de mestrado, Rubem Fonseca: retratos e conversas (1986), realiza um minucioso e instigante estudo comparativo entre os livros de Fonseca e West, cuja leitura foi importante para este estudo, embora aqui se tenha escolhido outros aspectos do diálogo intertextual para serem analisados.

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nacional durante o auge da ditadura militar, do qual Rubem Fonseca chegou a ser

colaborador, publicando, inclusive, um extenso artigo sobre pornografia, em 1969, no qual

se esboçam concepções depois inseridas no conto “Intestino grosso”. Entre outras

atividades na publicação, Lessa notabilizou-se por criar um personagem, Edélsio Tavares,

que respondia com impiedosas defenestrações às – muitas –cartas dos leitores, quando não

as inventava, o que era freqüente.

Conforme já se assinalou, o jornal em que o protagonista de “Corações solitários”

trabalha não recebe cartas, à significativa exceção de algumas que surgirão no decorrer da

narrativa. “Você acha que mulher da classe C escreve cartas?” (CS, p.374), é o que lhe

respondem quando procura pela correspondência. Não lhe resta alternativa senão ele

próprio redigi-las. Inicialmente, ele escreve missivas com questionamentos que se supõem

típicos de leitores de baixa-renda, adotando uma linha edelsiana para as respostas,

demolindo ilusões e clichês confortantes e conformistas, tão freqüentes nesse tipo de

atividade – e que, com o tempo, se tornaria um gênero próprio, muito rentável, aliás, o de

auto-ajuda. Eis alguns exemplos das criações do personagem:

Prezado dr. Nathanael Lessa. Sou baixinha, gordinha e tímida. Sempre que vou na feira, no armazém, na quitanda, eles me passam pra trás. Me enganam no peso, no troco, o feijão está bichado, o fubá bolorento, coisas assim. Eu costumava sofrer muito mas agora estou resignada. Deus está de olho neles e no juízo final eles vão pagar. Doméstica Resignada. Penha. Resposta: Deus não está de olho em ninguém. Quem tem que se defender é você mesma. Sugiro que você grite, ponha a boca no mundo, faça escândalo. Você não tem nenhum parente na polícia? Bandido também serve. Te vira, gordinha. (CS, p.375). Prezado dr. Nathanael Lessa. Tenho vinte e cinco anos, sou datilógrafa e virgem. Encontrei esse rapaz que disse que me ama muito. Ele trabalha no Ministério dos Transportes e disse que quer casar comigo, mas que primeiro quer experimentar. O que achas? Virgem Louca. Parada de Lucas. Resposta: Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pro cara o que ele vai fazer se não gostar da experiência. Se ele disser que te chuta, dá pra ele, pois é um homem sincero. Tu não é groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada, mas homens sinceros existem poucos, vale a pena tentar. Fé e pé na tábua. (CS, p.375)

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Todavia, o editor recusa-se a publicar esse tipo de respostas: “Ah! Meu Deus! A

idéia que as pessoas fazem da classe C” (CS, p.375), exclama. Ele afirma que o público-

leitor do jornal deseja ser reconfortado, estimulado, alegrado (iludido?). “Quem gosta de

ser tratada a palavrões e pontapés são as mulheres da classe A” (CS, p.375). Relembra,

então, a máxima em que se diz que, para ter sucesso com as mulheres, devia-se tratar

ladies como putas e putas como ladies. O protagonista escreve novas cartas e respostas,

insuflando nelas tamanho otimismo e resignação, que se tornam ainda mais cômicas do

que as anteriores:

Dr. Nathanael Lessa. Meu marido morreu e me deixou uma pensão muito pequena, mas o que me preocupa é estar só, aos cinqüenta e cinco anos de idade. Pobre, feia, velha e morando longe, tenho medo do que me espera. Solitária de Santa Cruz. Reposta: Grave isto no seu coração, Solitária de Santa Cruz, nem dinheiro, nem beleza, nem mocidade, nem um bom endereço dão felicidade. Quantos jovens ricos e belos se matam ou se perdem nos horrores do vício? A felicidade está dentro de nós, em nossos corações. Se formos justos e bons, encontraremos a felicidade. Seja boa, seja justa, ame o próximo como a si mesma, sorria para o tesoureiro do INPS, quando for receber a sua pensão. (CS, p.375-376).

Querido Nathanael. Eu não posso ler o que você escreve. Minha avozinha adorada lê para mim. Mas não pense que eu sou analfabeta. Eu sou é ceguinha. Minha querida avozinha está escrevendo a carta para mim, mas as palavras são minhas. Quero enviar uma palavra de conforto aos seus leitores, para que eles, que sofrem tanto com pequenas desgraças, se mirem no meu espelho. Sou cega mas sou feliz, estou em paz, com Deus e com os meus semelhantes. Felicidades para todos. Viva o Brasil e o seu povo. Ceguinha Feliz. Estrada do Unicórnio [Endereço com o qual o editor implica porque “soa falso”, sugerindo colocar algo como estrada do Catavento ou congênere.] Nova Iguaçu. P.S.: Esqueci de dizer que também sou paralítica. Resposta: Ceguinha Feliz, parabéns, por sua força moral, por sua fé inquebrantável na felicidade, no bem, no povo e no Brasil. As almas daqueles que se desesperam na adversidade deviam se nutrir do seu edificante exemplo um facho de luz nas noites de tormenta. (CS., p.380).

Em seguida, outra atividade criativa é atribuída ao personagem: a redação de roteiros

para as fotonovelas publicadas pelo jornal. Desafiado a escrever uma trama em quinze

minutos, ele se arroga de um sólido conhecimento literário –“li todos os clássicos gregos, os

ibsens, os o’neals, os beckets, os tchekhovs, os shakespeares, as four hundread best television

plays. Era só chupar uma idéia aqui, outra ali, e pronto” (CS, p.376) –, o que lhe possibilitaria

executar com facilidade o encargo. E o faz:

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Um menino rico é roubado pelos ciganos e dado como morto. O menino cresce pensando que é um cigano verdadeiro. Um dia ele encontra uma moça riquíssima e os dois se apaixonam. Ela mora numa rica mansão e tem muitos automóveis. O ciganinho mora numa carroça. As duas famílias não querem que eles se casem. Surgem conflitos. Os milionários mandam a polícia prender os ciganos. Um dos ciganos é morto pela polícia. Um primo rico da moça é assassinado pelos ciganos. Mas o amor dos dois jovens apaixonados é maior do que todas essas vicissitudes. Eles resolvem fugir, romper com as famílias. Na fuga encontram um monge piedoso e sábio que sacramenta a união dos dois em um antigo, pitoresco e romântico convento no meio de um bosque florido. Os dois jovens se retiram para a câmara nupcial. Eles são lindos, esbeltos, louros de olhos azuis. Tiram a roupa. Oh, diz a moça, que cordão de ouro com medalha cravejada de brilhantes é esse que tens no peito? Ela tem uma medalha igual! Eles são irmãos! Tu és o meu irmão desaparecido!, grita a moça. Os dois se abraçam. (Atenção Mônica Tutsi [o fotógrafo]: que tal um final ambíguo? Fazendo aparecer na cara dos dois um êxtase não fraternal, hein? Posso também mudar o final e torná-lo mais sofocliano: os dois só descobrem que são irmãos depois do fato consumado; desesperada a moça pula da janela do convento lá embaixo). (CS, p.376-77).

Entretanto, sua rocambolesca história é descartada por causa dos precários recursos de

que o fotógrafo dispõe: “onde vou arranjar a mansão rica? Os automóveis? O convento

pitoresco? O bosque florido? [...] os dois jovens louros esbeltos de olhos azuis? Nossos

artistas são todos meio para o mulato” (CS, p.377). Outro roteiro é escrito e, desta feita, com

as devidas adequações orçamentárias, produzido:

Roberto e Betty estão noivos e vão se casar. Roberto, que é muito trabalhador, economizou dinheiro para comprar um apartamento e mobiliá-lo, com televisão em cores, aparelho de som, geladeira, maquina de lavar roupa, enceradeira, liquidificador, batedeira, máquina de lavar pratos, torradeira, ferro elétrico e secador de cabelos. Betty também trabalha. Ambos são castos. O casamento é marcado. Um amigo de Roberto, Tiago, pergunta a ele, vais casar virgem? Precisas ser iniciado nos mistérios do sexo. Tiago, então, leva Roberto na casa da Superputa Betatron. (Atenção, Mônica Tutsi, o nome é uma pitada de ficção científica.) quando chega lá verifica que a Superputa Betatron é Betty, sua noivinha. Oh! Céus! Surpresa terrível! Alguém dirá, talvez um porteiro, crescer é sofrer! Fim da novela. (CS, p.377.)

Surge, então, o boato de que o dramalhão foi “chupado” de um filme italiano, suspeita

que enfurece o personagem:

Canalhas, súcia de babões, só porque fui repórter de polícia estão me chamando de plagiário. Calma, Virgínia. Virgínia? Meu nome é Clarice Simone, eu disse. Que coisa mais idiota é essa de pensar que só as noivas dos italianos são putas? Pois, olha, eu já conheci uma noiva daquelas sérias mesmo, era até freira de caridade, e foram ver, também era puta. (CS, p.378).

E complementa, mais adiante, ao redigir outra fotonovela, “chupada”, dessa vez, do

Hipólito euripidiano: “Cito os clássicos apenas para mostrar o meu conhecimento. Como fui

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repórter de policia, se não fizer isso os cretinos não me respeitam. Li milhares de livros” (CS,

p.380). Afirmação que soa como ironia de Fonseca em relação a sua própria experiência

criativa.

O público-alvo de Mulher é posto em xeque quando um pesquisador estatístico

informa ao editor do jornal que, na verdade, são leitores da classe B, e não leitoras da classe

C, aqueles que assiduamente lêem a publicação... Ironicamente, isso vem ao encontro da

revelação que encerra o conto: a de que Peçanha, o editor, era o autor das únicas cartas

enviadas ao periódico, e que narravam os dilemas de um perturbado homossexual.

Desalentado, Peçanha diz, sem muita convicção, que tudo fora uma brincadeira, mas o

protagonista afirma que para ele tanto fazia se fora a sério ou por troça. E após garantir que o

episódio ficaria entre eles, não se comove com o suspiro do editor, “um suspiro que cortaria o

coração de qualquer outro que não fosse um ex-repórter de polícia” (CS, 385).

Trata-se, na obra de Fonseca, do primeiro profissional da escrita que, para poder

exercer seu ofício, adapta-se aos pressupostos do mercado editorial. O jornalista se vê

obrigado a se fazer de ficcionista, a tornar-se escrevinhador de textos que repisam clichês,

seja de cartas lamurientas e de suas respostas conformistas, seja de roteiros para fotonovelas,

verdadeiras colchas de retalhos de chavões, tornando ambígua a fronteira entre o factual, base

do jornalismo, e o ficcional, base da literatura.

Nada é o que parece. Em um jornal chamado Mulher, toda a equipe é formada por

homens, cada um tendo seu próprio pseudônimo feminino. “Aqui, ninguém, nem mesmo eu,

usa pseudônimo masculino. Meu nome é Maria de Lourdes!” (CS, p.373), esbraveja Peçanha

ao novato, que só consegue impor seu ponto de vista –“Você não acha que um nome

masculino dá mais credibilidade às respostas? Pai, marido, médico, sacerdote, patrão: só tem

homem dizendo o que elas devem fazer” (CS, p.373) –, devido à carta de apresentação de um

parente, gerente do banco do qual o periódico é devedor. Mas, depois, até ele adotará o

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pseudônimo feminino para escrever as fotonovelas, prestando duas outras homenagens:

Clarice Simone. Por fim, nem o público-alvo, segundo as pesquisas, é de fato composto por

mulheres da classe C, e sim por homens como o próprio editor, verdadeiro autor das

tresloucadas cartas recebidas pelo jornal. O conto é uma sátira incisiva, pois, como observa

Malcolm Silverman “engloba direitos femininos, a indústria editorial e a pesquisa de opinião

pública” (SILVERMAN, 1981, p.269), revelando que onde só parecia haver fatos definitivos,

se descobrem inesperadas ficções.

2.5 Ditos interditos

Seguir fórmulas e impor padrões parecem ser características recorrentes do mercado

editorial. A busca por um sucesso de vendas, e sua conseqüente manutenção, pode implicar

em estabelecimento de formas e conteúdos, que costumam ser explorados até a exaustão,

chegando ao ponto de transformarem-se em estereótipos. Umberto Eco enumera, em

Apocalípticos e integrados, várias críticas aos meios de massa, e dentre elas, duas são

relevantes para a presente análise:

Os mass media, colocados dentro de um circuito comercial, estão sujeitos à “lei de oferta e procura”. Dão ao público, portanto, somente o que ele quer, ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar. [...] Mesmo quando difundem os produtos da cultura superior, difundem-nos nivelados e “condensados” a fim de não provocarem nenhum esforço por parte do fruidor; o pensamento é reduzido em “fórmulas”; os produtos da arte são antologizados e comunicados em pequenas doses. (ECO, 2001, p.40-41).

Ser exceção a tal regra acaba ou provocando marginalidade, ou conduzindo à

adaptação, uma vez que nem todos se dispõem a arriscar a lançar produtos que se desviem dos

padrões instituídos. Podem não ser a maioria, mas existem aqueles que correm tal risco.

Editores como Gumercindo Rocha Dória, que publicou o primeiro livro de Rubem Fonseca,

além de inúmeros autores estreantes, na década de 1960, e a equipe da Cosac & Naïfy, nos

dias de hoje, que investe em novos autores e em requintadas reedições de obras clássicas,

demonstram ter menos interesse em lucrar do que em fomentar a cultura. Novamente,

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Umberto Eco pondera sobre os contras, mas também sobre os prós dos meios de massa,

particularmente sobre o mercado editorial:

A fabricação de livros tornou-se um fato industrial, submetido a todas as regras da produção e do consumo; daí uma série de fenômenos negativos, como a produção de encomenda, o consumo provocado artificialmente, o mercado sustentado com a criação publicitária de valores fictícios. Mas a indústria editorial distingue-se da dos de dentifrícios pelo seguinte: nela se acham inseridos homens de cultura, para os quais o fim primeiro (nos melhores casos) não é a produção de um livro para vender, mas sim a produção de valores para cuja difusão o livro surge como o instrumento mais cômodo. Isso significa que, segundo uma distribuição percentual que eu não saberia precisar, ao lado de “produtores de objetos de consumo cultural”, agem “produtores de cultura”, que aceitam o sistema da indústria do livro para fins que dele exorbitam. (ECO, 2001, p.50).

Mesmo assim, iniciar uma carreira literária não é tarefa fácil. Ainda mais se o

estreante procura trilhar novos caminhos, perscrutar diferentes possibilidades, que não aquelas

há muito consagradas. Em “Intestino grosso”, o protagonista relata as dificuldades pelas quais

passou, em especial, a demora para que seu primeiro livro fosse publicado. “Eles queriam que

eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu não queria, e não sabia” (IG, p.461), afirma.

Mas quem seriam eles? “Os caras que editavam os livros, os suplementos literários, os

jornalistas de letras. Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida”,

e conclui: “Eu morava num edifício de apartamentos no centro da cidade e da janela do meu

quarto via anúncios coloridos em gás de néon e ouvia barulho de automóveis” (IG, 461).

Neste trecho, o personagem-escritor define os fundamentos que norteiam sua obra, além de

deixar claro o quanto se diferencia da tradição literária nacional. O que vai ao encontro das

concepções de seu próprio criador, Rubem Fonseca, embora tudo se realize através de um

(con)texto ficcional.

Em lugar de se filiar aos paradigmas estéticos consagrados, cujos exemplos definitivos

são os autores citados – Machado, Alencar, Lopes Neto, Euclides –, busca-se uma literatura

que adote um novo referencial tanto de espaço quanto de tempo, ou seja, urbano e

contemporâneo. Implicando, também, na escolha de uma linguagem e um estilo capaz de

apreender e expressar tal visão de mundo. Brevidade, crueza e, não raro, crueldade, tornam-se

29

elementos imprescindíveis para esse tipo de escrita, que não condiz com os paradigmas

literários tradicionais. A violência do enunciado e da enunciação causa estranheza por se

inserir em um âmbito restrito usualmente ao sublime e sofisticado. O estilo é considerado,

então, vulgar, obsceno, pornográfico. Assim, não é difícil imaginar, à época, as dificuldades

para se publicar um livro que suscite juízos dessa natureza.

Outro personagem, Rufus, de Diário de um fescenino (2003), uma obra bem posterior

a “Intestino grosso”, narra a tentativa frustrada de publicar seu primeiro livro, além da severa

repreensão que recebeu por sua forma de escrever, ao deixar uma coletânea de contos com um

editor que se interessava em publicar novos autores. O manuscrito é entregue com a promessa

de que haveria uma resposta em quinze dias. Seis meses depois, o personagem volta à editora

em busca de notícias. Descobre que seu livro desapareceu. Embora o editor se recorde da

obra:

“Olha”, ele disse, “Zuleide não está achando o seu livro, mas eu me lembro perfeitamente dele, não tem um conto em que um...”, o velho pigarreou, “um personagem diz ao outro vá ‘prá puta que pariu?’”. “Acho que sim”, disse eu, intrigado, será que o meu livro era o único em que alguém mandava outra pessoa para a puta que pariu?, isso era tão raro assim? “Quais são os seus autores, os seus contistas prediletos?”, perguntou o editor. “Tchekhov, Maupassant, Machado de Assis...”, na verdade eu não gostava dos contos do Machado de Assis, mas como sabia que todo mundo gostava, incluí-o na minha lista, e do Maupassant eu já não gosto tanto. Então o editor colocou carinhosamente a mão no meu ombro e disse: “Meu filho, você já viu algum conto do Tchekhov, do Maupassant, do Machado de Assis um personagem mandar o outro para a puta que pariu?” “Não senhor”, respondi. “A literatura meu filho”, ele continuou, “é a mais nobre das artes e tem como principal objetivo elevar, enriquecer e aprimorar a mente e o espírito das pessoas. Pense nisso, quando for escrever”. (DF, p.181).

O episódio tem inspiração verídica, pois algo similar ocorrera com o próprio Rubem

Fonseca. Inclusive a perda do manuscrito3, além das restrições ao seu estilo, como informa

Deonísio da Silva:

3 Segundo a reportagem de Mauro Ventura: “Aos 18 anos, levou os originais de seu primeiro livro para uma pequena editora que ficava num sobrado da Rua das Marrecas, no Centro. Quando voltou, algum tempo depois, ouviu do editor uma lição de moral: pessoas que escrevem literatura de primeira não usam nomes feios, nem criam esses tipos de personagens. Fonseca pediu de volta o livro, o homem disse que ia procurar e nunca mais se achou o manuscrito. O escritor contou a um amigo: ‘O dono da editora, que era pequena e durou pouco, ficou muito consternado, jurando que nunca havia perdido um original, e eu tentei consolá-lo, dizendo que ele não se preocupasse, que eu escreveria outro. Demorei 20 anos para isso. Durante esse tempo, fiquei apenas lendo com enorme furor.’” (VENTURA, 2005).

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Em conversas que mantive com o escritor, contou-me ele as dificuldades que encontrou para publicar suas primeiras produções, as absurdas exigências que lhe faziam muitos editores, reclamando uma terraplanagem que erradicasse alguns outeiros e preenchesse vales ofensivos à paisagem literária tida por padrão às diversas épocas que procurou edição para seus contos. Outros, mais desavergonhados, não se vexaram de recomendar-lhe alguns estilos como modelo e, nesse caso, os autores indicados iam de José de Alencar a João Guimarães Rosa. (SILVA, 1983. p.21).

A adequação ao discurso corrente e consagrado surge como uma imposição a alguns

personagens-escritores fonsequianos, refletindo a faceta de uma parte do mercado editorial, de

uma época pretérita, pouco tolerante com dissonâncias estilísticas, notadamente em relação à

utilização de uma linguagem sem eufemismos, e que por muito tempo foi considerada

obscena, pornográfica mesmo. Sobre isso, o personagem entrevistado em “Intestino grosso” é

categórico:

“Quando os defensores da decência acusam alguma coisa de pornográfica é porque ela descreve ou representa funções sexuais ou funções excretoras, com ou sem o uso de nomes vulgares comumente referidos como palavrões. O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.” “E as palavras são influenciadas por isso?” “É claro. A metáfora surgiu por isso, para os nossos avós não terem de dizer – foder. Eles dormiam com, faziam o amor (às vezes em francês), praticavam relações, congresso sexual, conjunção carnal, coito, cópula, faziam tudo, só não fodiam. [...] Os filólogos e lingüistas também são pessoas presas ao tabu. Gostaria que algum filólogo, um dia, escrevesse um livro intitulado: Foder” (IG, p.463).

Curiosamente, não será um filólogo, mas sim um fictício ficcionista quem “escreverá”

um livro com esse título: o personagem Gustavo Flávio, protagonista de Bufo & Spallanzani

(1986) e da novela E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997),

na qual relata o abandono do gênero romanesco, após publicar vinte deles, passando a

escrever apenas ensaios, “um gênero que não exigia talento nem imaginação” (MMP, p.12.).

Por ironia, ao lançar o livro, os tempos eram outros, muito mais liberais, a ponto de o título

não produzir o impacto esperado:

Meu livro Foder foi um fracasso, Doutor Mandrake, quando pensei em escrever um livro com esse título eu tinha dezoito anos, ainda não havia publicado livro algum, e a palavra foder possuía um certo esplendor abrasivo. Era uma época em que eufemismos parnasianos e metáforas filistinas eram empregados quando se falava de sexo. Mas demorei trinta anos para escrever o Foder, e quando o livro surgiu, o título parecia um arroubo de roqueiro juvenil. A palavra perdera o fausto, fora

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despojada da sua inquietante e suntuosa escabrosidade, desgastara-se no atrito da propagação excessiva” (MMP, p.49).

Novamente se lança um olhar sardônico sobre parte do mercado editorial, cujos

fundamentos se pautariam, supostamente, em valores morais da sociedade. Mas,

ironicamente, os valores mudam. O mercado, também. Outrora se recusavam obras que

expressassem algo considerado ofensivo – através, basicamente, de uma linguagem que

empregasse termos chulos ou de referências à sexualidade e à violência –, reputando-as como

impublicáveis (inclusive pela censura, como, de fato, ocorreu com Feliz ano novo, em 1975),

pois, além disso, destoavam do que então se escrevia. Nos dias correntes, porém, a discussão,

tão acalorada décadas atrás, sobre a pertinência do uso do calão em textos literários, tornou-se

obsoleta. Assim como uma abordagem nua e crua da sexualidade e da brutalidade já não

causa mais repulsa. Pelo contrário. Os ditos interditos – tanto do enunciado quanto da

enunciação – acabaram por perder a força de sua obscenidade, a ponto de serem corriqueiros

na literatura contemporânea, podendo-se até dizer que tenham quase se tornado regra,

inaugurando um novo, e lucrativo, filão. Segundo Walnice Nogueira Galvão, a ascensão de

um estilo sem eufemismos nas letras nacionais deve-se ao autor de A grande arte, cuja

influência seria seminal e patriarcal para as novas gerações de escritores:

Na ficção atual, marcada por diversas tendências, destaca-se Rubem Fonseca como uma das mais ilustres vozes. Em percurso marcado por altos e baixos, tornou-se prezado como contista e como romancista. Tendendo ao despojamento, anunciou tanto o desprezo pela retórica quanto a vontade de depuração, vindo em boa hora enxugar nossa prosa. Devotou-se a escrever sucinto, direto, elíptico, e como que impôs um modelo de literatura metropolitana aos leitores – que, assim afinados, passaram a achar outro tipo de prosa indulgente, derramado, beletrista – e a seus numerosos seguidores. Essas opções passaram a ser a tônica no panorama literário. (GALVÃO, 2005, p.41).

2.6 Escrever é contar palavras

Um dos personagens que melhor reflete a (e sobre a) relação entre o escritor e o

mercado é, sem dúvida, Gustavo Flávio. Em Bufo e Spallanzani (1985), especialmente, a

questão da profissionalização do ofício literário torna-se essencial. O misterioso assassinato

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de uma socialite e a tentativa, por fim frustrada, de escrever um novo livro desencadeiam uma

série de situações que enredam o protagonista, mesclando trama policial à reflexão literária,

entrelaçando crítica e ficção. “Em mais de um sentido o crítico é o investigador e o escritor o

criminoso. Pode-se pensar que o romance policial é a forma ficcional da crítica literária”,

afirma Ricardo Piglia (PIGLIA, 1994, p.72). No caso deste romance – mas também de outros

– de Fonseca, detetive-crítico e criminoso-escritor formam uma só figura.

As observações do personagem sobre o âmbito literário espelham os valores de sua

época, fundamentados, cada vez mais, em bases monetárias. Gustavo está plenamente cônscio

desse panorama, adotando até mesmo uma postura cínica em relação a ele, cujo lema poderia

ser sintetizado na frase: “A necessidade de dinheiro, aliás, é uma grande incentivadora das

artes” (BS, p.8). Tal necessidade, pode-se dizer, não é nova no ambiente artístico, em geral,

nem no literário, em particular. Novidade, ao menos, era o surgimento de um sólido e

lucrativo mercado editorial no cenário nacional, como ocorreu na década de 1980. A nova

situação se refletiu na obra dos diferentes autores em atividade, sendo absorvido e expressado

das mais diversas maneiras, mas de forma alguma ignorado. Conforme analisa Therezinha

Barbieri:

Leio a ficção brasileira dos 80 e 90 na rede de novas relações estabelecidas a partir do contexto da sociedade de massa. Sabendo que o comércio se move meramente pelo valor de troca das mercadorias e os compradores valem como números que incrementam o volume das vendas, o número de leitores potenciais não pode deixar de freqüentar a mente do autor quando vai escrever um texto destinado à publicação. Embora a quantidade de compradores de um livro, em si, não diga nada quanto ao valor literário da obra, por outro lado escrever para um grande público não é em si nenhum mal. O sucesso de público é assim um dado a mais a considerar, que não merece nem pode ser exclusivo. (BARBIERI, 2003, p.38).

Rubem Fonseca se revela peculiar por aliar qualidade literária à popularidade. Por

isso, irônico não será apenas o fato de ser “um dos autores com livros de maior vendagem,

quem vem tematizando de modo mais explícito o mercado”, segundo Flora Süssekind

(SÜSSEKIND, 1993, p.269). Irônico também será o olhar que lançará sobre a mercantilização

da literatura.

33

Em Bufo e Spallanzani, a ironia maior estará no fato de que um escritor absolutamente

consciente da nova configuração mercantil de seu ofício, que lhe exige uma produção

prolífica, ser acometido por uma crise de esterilidade criativa, cujas causas vão sendo

paulatinamente reveladas.

De acordo com a análise exemplar de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, da qual se

baseiam as observações seguintes, o terceiro romance de Fonseca

coloca em cena o medo da impotência criativa, [...] trazendo para o espaço ficcional os impasses vividos pelo escritor, pressionado pelas exigências do mercado editorial e que, ao mesmo tempo já não acredita na arte pela arte como refúgio diante do desencantamento do mundo político e social, nem tampouco na arte engajada como instrumento para mudar esse mundo. (FIGUEIREDO, 2003, p.90-91).

As referências à arte pela arte, o pseudônimo escolhido pelo protagonista e os nomes

do casal de personagens Delamere, Delfina e Eugênio, remetem a Gustave Flaubert e a seu

romance, Madame Bovary. O autor francês teria se inspirado nos eventos ocorridos na vida

dos Delamare para escrever sua obra: o médico Eugéne, viúvo, se casara novamente com a

jovem Delphine, que tivera várias aventuras amorosas e, por fim, se suicidara4.

À sua maneira, Fonseca reconta essa história, propõe-se a reescrever Madame Bovary.

Para isso, são efetuados contrastes que contrapõem o comportamento de Gustave Flaubert ao

de Gustavo Flávio. O primeiro devotava uma profunda crença, praticamente religiosa, em

relação à arte – repudiando o mundo burguês e, consequentemente, o mercado –, adotava uma

conduta ascética, dedicando-se exclusiva e disciplinadamente para a criação literária,

chegando até a pregar a sublimação dos desejos em prol de uma melhor performance criativa.

O segundo, por sua vez, lhe é em tudo oposto. Hedonista, dedica-se a uma intensa vida

amorosa. Mostra-se, a principio, cético e francamente cínico quanto ao papel da arte, acatando

a mercantilização da literatura:

Para um escritor como eu, que precisava de dinheiro para sustentar o seu vício barregão, cada maldita palavra, um oh entre cem mil vocábulos, valia algum dinheirinho. Escrever é cortar palavras, disse um escritor, que não devia ter amantes.

4 Sobre a influência da história dos Delamare para a obra de Flaubert conferir: LLOSA, Mário Vargas. A orgia perpétua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.74-75.

34

Escrever é contar palavras, quanto mais melhor, disse outro que, como eu, precisava escrever um Bufo e Spallanzani a cada dois anos. (BS, p. 188).

Não obstante aparentar cinismo, o personagem demonstra uma postura ambivalente

em relação a sua condição de profissional das letras, tecendo comentários inesperadamente

contestadores:

O escritor deve ser essencialmente um subversivo e a sua linguagem não pode ser nem a mistificatória do político (e do educador), nem a repressiva, do governante. A nossa linguagem deve ser a do não-conformismo, da não-falsidade, da não-opressão. Não queremos dar ordem ao caos, como supõem alguns teóricos. E nem mesmo tornar o caos compreensível. Duvidamos de tudo sempre, inclusive da lógica. Escritor tem que ser cético. Tem que ser contra a moral e os bons costumes. Propércio pode ter tido o pudor de contar certas coisas que seus olhos viram, mas sabia que a poesia busca a sua melhor matéria nos “maus costumes” (V. Veyne). A poesia, a arte enfim, transcende os critérios de utilidade e nocividade, até mesmo o da compreensibilidade. Toda linguagem muito inteligível é mentirosa. (BS, p.147-148).

O que não o impede de, logo a seguir, acrescentar que se faz tal afirmação em um dia,

nada garante que continue acreditando nela, ou em qualquer outra idéia, um mês depois. Diz

ter “a boa qualidade da incoerência” (BS, p.148).

O livro escrito pelo protagonista está atolado. Ele começara a escrevê-lo quando

conhecera a amante, porém, ao conhecê-la, sua maneira de produzir fora alterada, e confessa

que “pela primeira vez na minha vida uma relação amorosa interferiu no meu trabalho. Estar

apaixonado, ou até mesmo interessado numa mulher, sempre me estimulou muito a escrever.

[...] Mas eu passei a ficar desligado” (BS, p.55), chegando à conclusão de que, na verdade,

desde que a conhecera, nunca mais escrevera coisa alguma. Segundo Vera Lúcia, o

personagem se revela “dividido entre os paradigmas da alta cultura”, que surgem, além da

emulação com Flaubert, através de pesadelos, em que Tolstoi lhe exige que escreva, “e os

apelos do sentimentalismo romântico tão ao gosto da cultura de massa” (FIGUEIREDO,

2003, p.95), representados pela figura de Delfina. Essa divisão íntima causará sua

esterilização como ficcionista.

Crise das mais inoportunas, pois o personagem se encontrava em situação financeira

difícil: “fiquei sem um tostão, mas, como Balzac, não mudei o meu padrão de vida” (BS,

35

p.54), passando a pedir adiantamentos cada vez mais altos aos seus editores pelo livro a ser

publicado. Para piorar, seu último romance, “conquanto tenha tido uma excelente repercussão

crítica, foi um fracasso de vendas” (BS, p.54). Ele se esforça, então, para escrever a nova

obra. Inutilmente, pois o assassinato da amante, e suas conseqüências, o atingirão

profundamente.

Há duas vítimas fatais em Bufo e Spallanzani. Ambas são mortas pelo protagonista. A

primeira é Delfina Delamare, doente terminal de leucemia, que pede ao amante, em um gesto

de amor e misericórdia, para livrá-la do sofrimento futuro, matando-a. A segunda vítima é o

romance histórico que o personagem tentava escrever, cujo título é homônimo ao livro de

Fonseca, enfocando um cientista e suas experiências com sapos, e que lhe restituiria o

equilíbrio financeiro, mas acaba “assassinado”, via o comando Kill do computador,

definitivamente excluído pelo personagem-escritor.

Escritor-criminoso e detetive-crítico se mesclam nessa narrativa, adequadamente

chamado por Follain de romance-ensaio, que une reflexão sobre a literatura em tempos de

império da indústria cultural à intriga enigmática do romance policial, esgarçando habilmente

as fronteiras entre alta cultura e cultura de massa, entre crítica e ficção.

2.7 Ocasiões e edições

“Eu acho que isso tudo vai ajudar a vender os teus livros”, opina Minolta, amante e

confidente de Gustavo Flávio, após ele sobreviver à tortura e emasculação que lhe foi

infligida pelo marido de Delfina, Eugênio Delamare. Afirmação similar faz o editor de outro

escritor criado por Fonseca, em Diário de um fescenino (2003). “Há males que vem para

bem”, diz ele a Rufus, referindo-se ao processo pelo qual este é acusado de um crime sexual.

A reação ao comentário é de indignação: “O safado só pensa em dinheiro. Eu que me fodesse,

o importante era vender mais livros” (DF, p.187). O que, aliás, chega a ocorrer, mas não se

36

mantém: “As vendas dos meus livros melhoraram no início do escândalo e depois

despencaram como um balão apagado” (DF, p.224).

A atitude dos personagens-escritores fonsequianas são ambivalentes em relação a seus

editores. Por vezes estes são considerados oportunistas que visualizam apenas o lucro a ser

conseguido a partir de qualquer situação, inclusive, e talvez em especial, das escandalosas,

conforme reclama Rufus, acima. São freqüentemente referidos através de algumas concepções

que ecoam basicamente durante o processo criativo:

Meu editor queria que eu escrevesse outro policial como Trápola. “Não inventa, por favor. Você tem leitores fiéis, dê a eles o que eles querem”, dizia o meu editor. A coisa mais difícil para o escritor é dar o que o leitor quer, pela razão muito simples de que o leitor não sabe o que quer, sabe o que não quer, como todo mundo; e o que ele não quer, de fato, são coisas muito novas, diferentes do que está acostumado a consumir. Poder-se-ia dizer que, se o leitor sabe que não quer o novo, sabe, contrario sensu, que quer, sim, o velho, o conhecido, que lhe permite fruir, menos ansiosamente, o texto. (BS, p.170).

Obras extensas e, por isso, de preço potencialmente mais alto, também surgem como

uma das requisições mais freqüentes:

Meu editor queria um livro grosso, o livreiro queria um livro grosso, o leitor queria um livro grosso (um bom pretexto para comprar e não ler) as coisas grandes impressionam, a torre Eiffel é um horror mas é grande, as pirâmides não passam de um monte de pedra que a estupidez faraônica conseguiu empilhar, mas são grandes (BS, p.209).

Atender às demandas do mercado editorial, tendo-se em consideração que a obra

literária também é objeto de consumo, parece ser uma agrura, embora, como afirmou Eco

anteriormente, ela não se trate de um produto qualquer. Os artistas sempre conviveram com

pressões externas para produzir suas obras, seja da parte dos ancestrais mecenas – que

também faziam suas imposições –, seja dos mecenas modernos, o público-leitor, e

consumidor, contemporâneo. Sobre a condição do autor nos dias atuais e no passado, comenta

Gustavo Flávio:

“O escritor é vítima de muitas maldições [...] mas a pior de todas é ter de ser lido. Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo de consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado Shakespeare é bom porque escrevia de olho no shilling que cobrava de cada espectador. (V.Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a coragem de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake.” (BS, p.177).

37

Como afirma Flora Süssekind, não há espaço para ingenuidades na prosa de Rubem

Fonseca. A consciência das implicações do ofício literário se faz presente a cada momento

para os personagens-escritores, como se pode depreender pelos comentários acima.

Cientes de sua condição, Gustavo Flávio e Rufus, aliás, possuem semelhanças

relevantes. Não só por serem escritores, mas também por terem suas carreiras afetadas,

positiva e negativamente, pelas mulheres com que se evolvem – sobre o qual se falará com

mais atenção no capítulo 4 –, além da intervenção recorrente do mercado em seus trabalhos. O

mais interessante é que os dois deixam de escrever o livro de que falam tanto em suas

narrativas. Gustavo Flávio, como já se mencionou, “mata” Bufo e Spallanzani. Rufus, por sua

vez, desiste de redigir o romance de formação que planejara, concluindo a sua narrativa com a

seguinte afirmação: “Bildungsroman: que coisa mais boba.” (DF, p.253). Em lugar de

escreverem o que deles se espera, escrevem sobre o que eles esperam e sentem. E se Gustavo

Flávio “reescreve” Madame Bovary, o protagonista de Diário de um fescenino, por sua vez,

tenta escrever a sua Educação sentimental. O romance de formação de Rufus é a experiência

por ele narrada em seu diário, resultando no que se poderia chamar de seu ano de

aprendizagem – o que seria outra ironia da parte do autor, pois o romance de aprendizagem,

ou de formação, canônico narra experiências de uma vida inteira de um personagem, da

infância à maturidade, e não de um ano apenas.

Outro fator que incomoda alguns dos personagens que escrevem são as dificuldades

para se conseguir publicar o primeiro livro. O poder dos editores para se escolher o que deve

e, principalmente, o que não deve ser editado, não apenas incomoda-os, como também pode

levá-los a guardar rancor e despertar desejos vingativos, quando têm seus originais recusados.

Nesse aspecto, a relação entre os personagens Clotilde Farouche e Peter Winner, de

“Romance negro”, presente na coletânea de contos homônima (1992), é singular, pois, revela,

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com ironia, certas dissonâncias, surpreendentes, entre os interesses editoriais e os anseios dos

autores.

Farouche é a editora responsável pela publicação das obras dele. Mas há muitos

segredos nessa relação. Na verdade, Peter não é quem todos, inclusive a esposa, supõem que

seja. Chama-se John Landers, assassinou e assumiu a identidade de Winner, autor recluso,

conhecido apenas pelo amante, e que, por isso, também acaba sendo morto. O impostor era

um obscuro professor de inglês na França, também ele escritor policial, cujo livro fora

recusado por diversas editoras, até mesmo a da atual mulher. A princípio, o alvo de seu plano

era ela: “O champanha e o veneno eram para matar você, Clotilde, a editora que recusara meu

livro, o de John Landers” (RN, p.713). Entretanto, ao conhecê-la, ele se apaixona e os dois se

casam. Assumindo o lugar de Winner, o protagonista, então, entrega os originais de seu novo

livro como se estes fossem os do defunto autor. Antes de entregá-los e conhecer Clotilde, ele

observa os passageiros do trem negro, escritores e críticos ligados ao gênero policial, e faz os

seguintes comentários, cheios de muita amargura e nem um pouco humildes:

Como esses cretinos e essas cretinas haviam conseguido publicar os seus livros enquanto ele continuava um escritor inédito? A Grasset, que publicava um monte de mediocridades, não queria publicar o seu romance. Na verdade, não havia mais editoras independentes, todas integravam grandes conglomerados financeiros controlados por estúpidos self made men que haviam ganho dinheiro de maneira selvagem e inescrupulosa e encaravam o livro como uma mercadoria qualquer. Naqueles dias, mesmo com a irresistível força do ressentimento que o dominava, Kafka não conseguiria ser publicado, nem Poe, nem Baudelaire, nem nenhum autor novo realmente significativo, como ele, Landers, por exemplo. (RN, p.719).

Com a publicação da obra, intitulada Romance Negro, o sucesso é imediato, tanto de

crítica quanto de público, que saúdam o surgimento de um novo Winner. Com efeito, o

personagem vai, gradativamente, se dando conta de que para conquistar o reconhecimento que

imodestamente considera merecido tem que fazê-lo através do nome do outro. Tudo o que

escrever, todos os louros que conseguir, seriam atribuídos não a ele, Landers, mas àquele de

quem tomou o lugar. Acaba se questionando: afinal, quem fora a maior vítima nessa história?

Pela primeira vez cogita da hipótese de que, ao matar Winner e apossar-se do seu nome, na verdade ele matou Landers; deixou que Winner se apoderasse dele.

39

Winner, o grande escritor decadente, ficou mais vivo depois de morto. Landers escreve para Winner. Quem se apoderou de quem? O vivo do morto, ou o morto do vivo? (RN, p.724-725).

A princípio perturbada, Clotilde, não demora a tomar providências, ao saber da

verdade. Não para que esta seja revelada, mas sim para que permaneça oculta. Previne as

autoridades de que o marido anda tendo acessos de loucura, afirmando ser outro. Percebendo

a situação em que se enredara, Landers deseja livrar-se de Winner, porém, é tarde demais.

Está definitivamente preso à identidade do outro, que, aliás, era seu irmão gêmeo, de quem

fora separado ainda criança, só tomando conhecimento disso, trágica e sofoclianamente,

depois de tudo consumado. As decisões e as palavras da esposa só realçam “a cilada dos

deuses” na qual caíra: “As pessoas mudam. Você mudou. Quem morreu foi John Landers.

Você é Winner, aceite isso como uma imposição do destino.” (RN, p.732).

Curiosamente, para a editora e mulher do escritor, não importa quem foi, ou

realmente é, o homem com quem vive. Para ela, ele sempre foi o escritor renomado, autor do

livro cujos originais lera no trem: “Fui para a cama com você por causa do Romance negro.

Casei-me com você por causa do Romance negro.” (RN, p. 721). Casara-se com Winner, não

com Landers. Lamenta, então, ao saber que este queimara o livro recusado, reconhecendo sua

conduta preconceituosa em relação a textos inéditos: “não devo tê-lo lido com atenção. Mas

na suposição de que Romance Negro era de Winner tive paciência para superar as estranhezas,

as rupturas, as anormalidades, os desusos, as singularidades. Me apaixonei pelo livro. E,

depois, o mesmo aconteceu com os críticos e o público.” (RN, p.721).

Recordando-se de Calvino, “quem comanda a narrativa não é voz, é o ouvido”,

Landers reconhece que Clotilde entendera o que contara de maneira pessoal e única. Entre a

verdade e a lenda, sua esposa acaba por preferir a lenda, perpetuando-a, mesmo à revelia dos

questionamentos éticos e metafísicos do marido. No fim das contas, o que interessa é a letra

impressa do texto de Winner – de reconhecida fama –, não tendo importância que a voz seja,

na verdade, de outro.

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Landers/Winner é movido pela sede de reconhecimento, algo que, como escritor

anônimo e inédito, almejava, mas não alcançava. Quando finalmente o alcança, por meio de

um tortuoso plano, com conseqüências ainda mais tortuosas, vê-se frustrado, não por

consegui-lo, mas pelo quão alto lhe custou – a própria identidade:

Pensa na fama, essa puta cadela. [...] Existe uma fama legítima? Ou são todas espúrias? Quando seu livro foi publicado com o nome de Winner pela Grasset e recebido com aclamações, estava ele acrescentando algo à fama de Winner, ou à dele, Landers? Quem é William Shakespeare: Francis Bacon, Christopher Marlowe ou o zé-ninguém William Stanley? Isso interessa a alguém, a não ser a meia dúzia de professores que não tem o que fazer? Homero existiu? Isso tem importância ou é uma questão bizantina? Quem é Winner? Agora é ele. Enquanto for vivo isso poderá ter alguma solerte relevância, ele poderá regozijar-se com a glória. Depois de morto, a imortalidade? Esse ideal doentio? (RN, p.724).

A busca pela fama irá nortear outros personagens-escritores de Fonseca. Alguns a

alcançarão, outros sofrerão por não atingi-la, mas essa será apenas uma das inúmeras agruras

que o solitário, e pouco solidário, ofício da literatura lhes trará.

41

3. Labaredas nas trevas: júbilos públicos e misérias privadas

3.1. Ver e Pensar

Uma das citações mais recorrentes e relevantes na obra de Rubem Fonseca, referida,

com destaque, em pelo menos três de seus livros – Vastas emoções e pensamentos

imperfeitos, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto e Diário de

um fescenino, onde foi integralmente traduzida pelo próprio escritor –, é a seguinte frase de

Joseph Conrad, contida no prefácio de seu livro O negro do Narciso (1897): “Minha tarefa,

que estou tentando agora realizar, é, através do poder da palavra escrita, fazer você ouvir,

fazer você sentir, é, antes de tudo, fazer você ver. Isso, nada mais – e é tudo” (DF, p.157).

Passagem que, conforme assinala José Paulo Paes, “vale por uma profissão de fé de

romancista” (PAES, 2007, p.501). Profissão de fé à qual se poderia perfeitamente incluir a

obra de Fonseca como um todo, tanto os romances quantos os contos.

Com efeito, a ficção fonsequiana, segundo Célia Pedrosa, é marcada por uma

estratégia de visibilidade, o que revela “uma vontade de resgatar o saber intelectual e as

palavras de seu exílio, trazendo-as de volta ao reino da experiência da visão – o olhar”

(PEDROSA, 1998, p.194-195). E é através deste olhar que se perscruta as mais diferentes

personagens, dentre elas, os escritores. Convém ressaltar, no entanto, que tal olhar não se

limita a transformar o leitor em mero espectador. Não incita apenas seus sentidos, mas

também suas idéias.

Em Vastas emoções, a frase de Conrad é mencionada pelo protagonista para o seu

amigo, Gurian. Este, por sua vez, demonstra não muito apreço pelas introduções conradianas

– “O problema do Conrad foi querer explicar sua obra em prefácios longos e chatos, como

este que você citou. O artista não tem que explicar sua obra” (VEPI, p.69) –, além de externar

uma interpretação particular e instigante sobre a citação: “Conrad devia ter terminado sua

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frase assim:... and above all to make you think [e antes de tudo, fazer você pensar]. É isto que

é tudo, realmente” (VEPI, p.69).

Ao transformar escritores em personagens de sua obra, Rubem Fonseca demonstra que

a sua tarefa é, através do poder da palavra escrita, fazer o leitor ouvir, fazê-lo sentir, e, antes

de tudo, fazê-lo ver e pensar sobre a vida autoral, sobre seus altos e baixos, dilemas,

desapontamentos, ilusões e desilusões. Através da estratégia da visibilidade, ele lança um

olhar irônico sobre o solitário ofício das letras, devassando o mínimo e o escondido,

revelando tanto os júbilos públicos quanto as misérias privadas por que passam autores

neófitos e consagrados, diletantes e profissionais, fictícios e reais.

3.2. Debalde demanda

Gustavo Flávio considera a necessidade de ser lido uma das maiores maldições dos

escritores. Atingir este objetivo será a pretensão dos personagens-autores de Rubem Fonseca.

Aliás, mais que serem lidos, ambicionam serem reconhecidos, laureados, admirados, enfim,

conquistarem a fama através da literatura. Não serão poucas as vicissitudes pelas quais

passarão para consegui-la. E haverá situações em que, apesar dos esforços, alguns

simplesmente não a conseguirão.

É o caso dos diletantes, cuja maioria ambiciona justamente deixar de sê-los. Esses

personagens merecem destaque porque revelam a agrura de ansiarem o sucesso, dedicando-se

com afinco ao ofício literário, mas sem lograrem jamais atingi-lo, o que lhes causam

profundas amarguras e frustrações. Despidos de talento, parecem ver a literatura mais como

um meio para satisfazer a vaidade do que como um fim propriamente estético. Tornam-se,

assim, o que se poderia chamar de tântalos da glória literária, padecendo de fome e sede de

sucesso, sendo, porém, sempre tolhidos de saciar esses desejos.

Em A grande arte (1985), o personagem José Joaquim de Barros Lima carrega consigo

a frustração de não ter obtido o reconhecimento que julgava merecer nas letras. De origem

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humilde, filho de emigrantes, que se sacrificaram para oferecer-lhe uma educação

privilegiada, ele conseguira ascender socialmente graças a sua tenacidade e aptidão para a

jurisprudência. Estabelecera também ótimas relações com figuras poderosas de sua época

como, por exemplo, o Barão do Rio Branco, de quem fora amigo próximo. Por tudo isso,

parecia ser um homem realizado. Todavia, não o fora. Sem dúvida, a poesia lhe causara

grandes desapontamentos. A publicação de seu primeiro livro, apesar de contar com um

generoso prefácio de Machado de Assis, fora friamente recebido, e seus versos foram

considerados medíocres. Para piorar, na mesma época a repercussão da poesia de Castro

Alves eclipsou totalmente sua estréia. Quando se fundou a Academia Brasileira de Letras, o

sonho do personagem passou a ser o de participar dela. Acreditou que não teria dificuldades

para se eleger. Era amigo do presidente da instituição, recebera várias promessas de votos de

outros acadêmicos e até mesmo conseguira para a Academia, que então não tinha sede nem

lugar certo para suas reuniões, um local onde se instalasse. Todo esse esforço foi debalde,

pois acabou derrotado no pleito. Sentira-se traído. Amargurado, abandonou definitivamente a

literatura.

O bisneto de Barros Lima, Thales Lima Prado, não chegou a padecer de tamanhos

desgostos literários, porém, devido à decadência econômica de sua família – somente

revertida quando passou a comandar um poderoso conglomerado empresarial, que servia de

fachada para atividades criminosas –, ele nunca pôde dedicar-se a sua “verdadeira vocação de

pensador, de homem de letras” (GA, p.177). Mandrake ratifica a opinião de Thales, quando

tem acesso a suas anotações, acreditando que “ele teria sido um escritor muito interessante

[...] se tivesse tido tempo, afinal, de dedicar-se a esse penoso ofício” (GA, p.181).

É interessante observar como Fonseca aborda nesse romance a frustração literária de

dois membros de uma mesma família, e que se manifestam em épocas diferentes e de

maneiras peculiares. Se o ancestral ambicionava a glória, possuindo quase tudo o que era

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necessário para conquistá-la, exceto talento, seu descendente, por sua vez, não obstante

tivesse potencial artístico, se viu impedido, por causa de suas obrigações com o crime, de

dedicar-se integralmente às letras. Ambos, cada um a seu modo, cobiçaram a literatura, mas

esta sempre se esquivou deles. Sobre o personagem Thales, evocando o trecho em “Intestino

grosso” no qual o protagonista, ao ser perguntado por que se tornara escritor, afirma que

ficara entre escritor e bandido, pode-se dizer que ele pendeu mais para a segunda do que para

a primeira atividade. Sua grande arte se revelou através do crime.

Em E do meio do mundo do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto

(1997), um desafeto de Gustavo Flávio, chamado Reinaldo, também possuía grandes

ambições literárias, mas que, por fim, se revelaram vãs. Diferentemente do protagonista da

novela, que conquistara o sucesso de imediato:

Você quer saber por que Reinaldo me odiava? Durante os dez anos em que sumi, após ter tido uma passagem turbulenta pela Panamericana de Seguros, antes de ser escritor consagrado, fiz o vestibular para a faculdade de Direito, onde conheci Reinaldo. Ele queria ser escritor, só falava nisso na faculdade; participava de todos esses concursos de contos e romances que se realizam anualmente no país, sem nunca ser premiado. Não vou ser um advogadinho de merda, ele dizia, você – você era eu – você vai ser um advogadinho de merda, eu vou ser um grande escritor. Na verdade, o curso de Direito, com exceção das matérias de direito penal, não me interessava, eu gostava de escrever, mas não comentava isso com ninguém. Reinaldo publicou, às suas próprias custas, dois romances que foram ignorados pelo mundo. só lhe restou o Direito e ele, que era muito astuto, se tornou um grande advogado e ganhou uma fortuna, mas a frustração e o rancor de ser um escritor fracassado nunca o abandonaram. Enquanto isso publiquei o meu primeiro livro e fiquei logo famoso. (MMP, p.42-43).

Mais adiante, Gustavo Flávio, dissertando sobre o que levaria alguém a se tornar

escritor, afirma que, dentre várias motivações:

O importante é que a vontade seja muito forte. Mas basta isso? O Reinaldo tinha uma vontade pervicacíssima de ser escritor e no entanto seus dois livros eram uma merda. Todos esses escritores cus-de-ferro e medíocres se caracterizam pela sua determinação extremada. Motivação é importante, mas o aspirante precisa ter outras virtudes. (MMP, p.62-63).

Dedicação extrema, empenho que não esmorece diante das mais árduas dificuldades

eram atributos que o personagem João, amigo de Epifânio, de “A arte de andar pelas ruas do

Rio de Janeiro”, inegável e orgulhosamente possuía. Tendo publicado um livro de poesia e

um de contos, ele dedicava seu tempo vago à redação de um extenso romance, sem se

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descuidar de suas responsabilidades cotidianas, pois “era casado com uma mulher que sofria

dos rins, pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim

cumpria suas obrigações com a literatura” (AAR, p.593). Não apenas se impunha como

também professava um rígido princípio em relação ofício das letras, acreditando que “o

verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e

Mammon ao mesmo tempo” (AAR, p.593). Conforme assinala Renato Cordeiro Gomes, para

este personagem, “literatura era diletantismo e não profissão, retomando o mito romântico do

artista sofredor que a tudo se sacrifica em nome da arte” (GOMES, 1994, p.152). João dizia

ainda que “havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio

dos tolos, solidão, fracasso” (AAR, p.594). E a prova de que tinha razão surge quando ele

morre, “de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de

seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos” (AAR, p.594).

O personagem não almejava necessariamente a glória, não considerava a literatura um meio

para a fama, como Reinaldo e Barros Lima, pelo contrário, via-a como um fim em si, como

um ideal a ser duramente atingido, e que, por fim, se revela inatingível. Ideal esse que, por

amarga ironia, sua esposa ignora, ao simplesmente descartar o fruto de tantos esforços do

marido. Este acreditava que a literatura não tinha preço, mas, para sua mulher, ela não tinha

nenhum valor.

Todavia, há igualmente um ônus a ser pago por aqueles que conquistam a glória

literária. E que não é muito diferente daquele que se paga pelos que demandam conquistá-la.

O sucesso também será fonte de várias vicissitudes.

3.3 Os artifícios de “Artes e ofícios”

As veleidades literárias de alguns personagens-escritores fonsequianos os levam a

dedicarem-se ao penoso oficio das letras. Todo esse esforço, no entanto, acaba por redundar

em fracasso. Como em um jogo, apostam todas as fichas para ganhar o tão sonhado

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reconhecimento, mas fatalmente acabam perdendo. Deve-se ressaltar que eles seguem

escrupulosamente as regras, empenhando-se com seriedade à criação literária. São os

verdadeiros autores das obras com as quais anseiam conquistar a fama. Todavia, há quem,

ironicamente, alcance a glória literária burlando o jogo, tornando-se escritor famoso sem ter,

na verdade, escrito uma linha sequer. É o caso do protagonista do conto “Artes e ofícios”, de

O buraco na parede (1995).

Para ele, as letras são meramente um meio para conquistar prestígio, e não um fim em

si, um ideal a ser duramente conquistado. Homem de origem muito pobre, que enriqueceu

rapidamente, graças a sua astúcia para os negócios, ele guarda forte rancor por não ter sua

capacidade intelectual respeitada, pois não possui curso superior nem médio, na verdade,

tampouco o básico:

Isso tem sido uma preocupação para mim, a única que o dinheiro não solucionou. Se você é rico e não tem diploma as pessoas acham que você é burro. Se você é pobre e também não tem diploma as pessoas dizem ele não freqüentou a escola, não tem o curso primário, mas aprendeu a ler sozinho os melhores autores, é um cara muito inteligente. Diziam isso de mim, quando eu era pobre. Quando fiquei rico começaram a espalhar que eu era uma cavalgadura, que eu comprava os livros a metro, tudo mentira. Eu devia ter comprado um diploma de economista logo que comecei a ganhar dinheiro. Agora não posso mais fazer isso, as pessoas saberiam, nós os ricos somos muito vigiados. Oportunidade, eu entendo disso. (AO, p.87-88).

A narrativa, aliás, é pontuada por afirmações como esta última, variando apenas o

tópico sobre o qual ele se jacta de entender, tornando-se não um mero divertido bordão, mas

sim um verdadeiro leitmotiv. O primeiro surge ao final do parágrafo que inicia a história, e

que define a visão de mundo monetarista do personagem:

Você estraga os dentes quando é um garoto miserável, mas se depois ganha bastante dinheiro encontra um dentista que conserta a sua arcada dentária. Isso aconteceu comigo, implantei todos os dentes da minha boca, um prodígio de engenharia odontológica. Estou cheio de dentes que não caem nem ficam cariados, mas quando dou uma gargalhada na frente do espelho sinto saudade da minha boca antiga, agora meus lábios se abrem de um modo que eu não gosto. De qualquer forma, não me faltam dentes e posso morder com força mulheres e contra-filés. Antes eu morava num conjunto habitacional miserável e andava de trem, espremido que nem sardinha em lata. Hoje moro numa bela mansão num condomínio fechado na Barra, tenho dois automóveis e dois motoristas. Eu tinha uma perna mais comprida do que a outra e nem sabia. Andava com operárias, balconistas de lanchonetes, empregadas domésticas, algumas analfabetas. O dinheiro me deu pernas do mesmo tamanho, me deu uma esposa de boa família, arruinada e cheia de diplomas, me deu uma amante,

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sem diploma mas que sabe vestir uma roupa elegante e atravessar fazendo pose o salão de festas. Dinheiro, eu entendo disso. (AO, p.87).

O “prodígio da engenharia odontológica” retoma um elemento recorrente na obra de

Fonseca, o da “metáfora dos dentes como símbolos das diferenças sociais” (FIGUEIREDO,

2003, p.61). E que se faz presente, por exemplo, em “Intestino grosso” –“Meus livros estão

cheios de miseráveis sem dentes” (IG, p.461) –, “O cobrador” – no fatídico episódio inicial –,

e em “Corações solitários” – no trecho em que um rapaz é abandonado pela noiva, após

revelar-lhe não possuir um dente sequer, quando coloca sua dentadura diante dela –, entre

vários outros. O dinheiro que dera ao protagonista de “Artes e ofícios” dentes, permitindo-lhe

morder com força mulheres e contra-filés, também lhe possibilitará abocanhar prestígio

literário. Entretanto, a obra com a qual conquistará a glória será tão postiça quanto os seus

dentes.

Como sua habilidade é o comércio, decide contratar alguém para escrever-lhe um

livro, ao invés de escrevê-lo ele mesmo. Encontrar quem o faça não será tarefa difícil,

bastando folhear o jornal, lê um anúncio: “Seja um escritor respeitado e admirado pelos seus

amigos, seus vizinhos, sua família, sua namorada. Eu escrevo para você o livro que você

quiser. Poesias, romances, contos, ensaios, biografias. Sigilo absoluto. Cartas para

Ghostwriter” (AO, p.88). Enquanto isso, ele finge para a esposa e para a amante que vai

começar a escrever um romance. Resolve não ter contato com o escritor que estava alugando,

comunicando-se apenas via caixa postal. Prefere também aguardar os textos iniciais para

avaliar a qualidade do livro. Se fosse bom, publicava-o, caso contrário, o descartaria. A carta

que envia para encomendar a obra estabelece, de maneira contratual, o que deseja:

Ghostwriter. Li o seu anúncio. Estou interessado. Quero um romance de duzentas páginas no mínimo, à maneira de Machado de Assis. Pago o que for preciso, informe qual o banco e número da conta para eu depositar a primeira parcela, dez por cento do total. Pagarei o restante em parcelas de trinta por cento, mediante a entrega de setenta páginas, ou mais, de cada vez. Resposta para Tomás Antônio, Caixa Postal 432 521. (AO, p.88).

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O baixo preço estipulado pelo autor de aluguel deixa o personagem em dúvida sobre a

qualidade do produto: “Dez mil reais, o preço de um Volkswagen ordinário. Meu livro ia ser

uma merda. Mas depositei dez por cento na conta do Ghostwriter” (AO, p.89). À leitura dos

primeiros capítulos do livro, intitulado O falsário, ele considera a obra um tanto confusa,

embora não mal escrita. Estranha também o estilo, que não parece com o de Machado,

conforme requisitara. Os esclarecimentos às suas dúvidas vêm na carta seguinte do

Ghostwriter:

Tomás Antônio. O falsário está forjando uma autobiografia de Machado de Assis. Assim como você não notou, o leitor também só perceberá isso quando já estiver adiantado na leitura do romance. O texto está me dando muito trabalho. Tive que pesquisar os processos técnicos de envelhecimento de papel, estou tendo que ler todas as biografias de Machado de Assis. A história da falsificação e a autobiografia, apócrifa, mas que será de grande acurácia nas referências à vida de Machado, servem de moldura uma para outra. Processo de encaixilhamento, entendeu? Vou ter um trabalho maior do que eu pensava. Poderíamos aumentar meus honorários para vinte mil? Ghostwriter. (AO, p.93).

Mesmo sem se impressionar com o que chama de “baboseiras teóricas” dadas pelo

escritor, o protagonista, por intuição, aceita aumentar os honorários. Três meses depois, o

livro fica pronto, resultando em um romance de seiscentas páginas, cujo resumo era o

seguinte:

O falsário, a pedido de um editor desonesto, forja um livro de memórias como se fossem do Machado de Assis; as memórias são publicadas, todo mundo acredita que elas são verídicas, os críticos ficam enlouquecidos, o livro vira um best-seller, não se fala em outra coisa. Mas no fim o falsário, não se sabe se por arrependimento ou por querer se vingar do editor, dos leitores e da crítica, denuncia a manobra, deixando todo mundo com cara de besta. (AO, p.94).

A história, como se vê, ironicamente sintetiza, em linhas gerais, a trama do próprio

conto. Com a diferença de que, ao final, o embuste não é revelado publicamente. Não é a

primeira vez que Fonseca se utiliza do processo de encaixilhamento, inserindo uma obra

ficcional dentro de outra, fazendo uso, inclusive, de um título semelhante ao do livro escrito

pelo Ghostwriter. Em “Romance negro”, por exemplo, o último trabalho de Peter Winner se

chama O farsante, e embora não se faça um resumo de seu conteúdo, como em “Artes e

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ofícios”, o título do romance fictício obviamente remete a história de John Landers, o farsante

que assume o lugar de Winner.

O protagonista, já com o livro nas mãos, segue o caminho comum aos autores inéditos,

enviando sua obra para diversas editoras. Mas não se sai bem nessa primeira tentativa:

Terei seis cópias e mandei para seis editores. Apenas um respondeu, perguntando se não podia cortar os trechos do livro que falavam da vida de Machado de Assis, que era desnecessário e o corte não prejudicaria o livro, que seiscentas páginas era muito, que as editoras em geral atravessavam uma fase difícil devido à crise econômica etc. Os caras não queriam investir num tijolão de autor desconhecido. Pretextos, eu entendo disso. (AO, p.94).

Resolve, então, pagar ele mesmo a edição. Para isso, não poupa dinheiro. “Paguei a

um cobra para escrever a orelha, minha foto para o livro foi feita pelo melhor profissional da

praça, a capa foi elaborada pelo melhor capista do país” (AO, p.94). Mil exemplares são

impressos e apenas quinhentos distribuídos. Eis o que lhe ocorre quando o livro fica pronto:

“Pensei, ao receber o primeiro exemplar com o meu nome na capa colorida, essa merda vale

tanto quanto os meus dentes implantados. Ver as coisas como elas são, eu entendo disso”

(AO, p.94-95). Livro e dentes são produtos cujos preços garantem-lhe o valor social que lhe

fora antes negado. Ambos são postiços, mas cumprem perfeitamente a função para a qual

foram adquiridos: a de serem amplamente expostos. Conforme afirma o protagonista, de que

adianta possuir tantos bens “se não for para mostrar para os outros?” (AO, p.89). Sua vaidade,

finalmente, estava satisfeita. Mas a história lhe (e nos) reserva surpresas:

Durante um mês, nada aconteceu. Mas o crítico de uma revista semanal me descobriu, disse que eu era a maior revelação literária dos últimos anos, e os quinhentos exemplares que estavam nas estantes dos fundos das livrarias se esgotaram num dia. O editor publicou uma nova edição de dez mil exemplares, e outra, e mais outra. Eu estava famoso, da noite para o dia. Dei entrevistas para todos os jornais. Dei entrevistas na televisão. As pessoas me pediam autógrafos. Gisela [a amante] me pediu autógrafo. Esmeralda [a secretária] me pediu autógrafo. Nos jantares falavam do meu livro. Onde estava a cavalgadura? Vingança, eu entendo disso. (AO, p.95).

Com o sucesso, o Ghostwriter novamente entra em contato. Descobre-se que é uma

escritora, Maria José, e que O falsário fora sua primeira encomenda. Ela requisita mais

dinheiro, com o pretexto de que precisa fazer uma cirurgia. Ele concorda em pagar a quantia

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pedida e ainda promete repassar-lhe todo o lucro obtido pelo livro. Fechado o negócio,

oferece a ela carona. Observa que durante o trajeto:

As casas foram rareando e andávamos por uma estrada deserta e escura. Fiquei imaginando uma maneira de solucionar as minhas perplexidades de uma vez por todas, em caso de dúvida não hesite, é assim que se ganha dinheiro. Eu podia agarrá-la pelo pescoço, esganá-la e jogar o corpo na praia. Mas esse não era o meu negócio. Compra e venda, eu entendo disso. (AO, p.95).

Para que sua história pudesse ter um bom final, ele corteja, seduz e propõe a Maria

José uma parceria “amorosa”, literária e econômica. Surpresa e lisonjeada, ela, afirmando que

nunca despertara a atenção masculina, acaba aceitando. Plenamente satisfeito, o personagem

conclui assim a narrativa: “O novo livro está quase todo escrito. Ele vai ser ainda melhor do

que o primeiro. Sucesso, eu entendo disso” (AO, p.98).

A glória para o protagonista do conto é resultado não das agruras do ofício literário,

mas sim dos artifícios mercantis de que se utiliza para atingir o seu objetivo. Conforme

analisa Vera Lúcia Foullain de Figueiredo:

Em “Artes e ofícios”, um narrador cínico e calculista compra o romance escrito pela mulher desconhecida. A partir daí, o capitalista, que entende de compra e venda, passa a ter de administrar a relação “amorosa” que oferece à Ghostwriter para se apoderar definitivamente de sua obra: para ele, a autora de um texto, tanto quanto o caso amoroso, é um produto, um bem, que se adquire mediante dinheiro, ou seja, inscreve-se no âmbito da propriedade. (FIGUEIREDO, 2003, p.60).

Quem padece, em silêncio, pois a narrativa quase não lhe dá voz, é Maria José, a

verdadeira autora de O falsário. Em apenas um trecho se vislumbra as vicissitudes do labor

literário: quando ela explica o processo de encaixilhamento ao protagonista, e reclama que a

escrita do romance tem-lhe dado muito trabalho, envolvendo amplas pesquisas técnicas e

biográficas, além do presumível esforço necessário para a composição de uma obra de

seiscentas páginas. Aos júbilos públicos do personagem principal contrapõem-se as misérias

privadas da escritora, que por ser ghostwriter, tornam-se, por assim dizer, evanescentes.

O ônus pago – literalmente – pelo protagonista de “Artes e ofícios” não é nada alto.

Muito pelo contrário, seu logro só lhe traz lucros – financeiros, literários e “amorosos”. O seu

sucesso, porém, seria fonte de vicissitudes apenas para Maria José, que de fato exerce o ofício

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das letras – muito embora ela tenha aderido entusiasticamente às investidas do patrão-amante.

Se nesse conto, as agruras da vida autoral ocupem um espaço periférico, em outros textos,

elas serão as matérias-primas das narrativas.

3.4 Agruras de um jovem e de um velho escritor

3.4.1 A distância da superfície ao fundo

A glória parece ser a meta que a maior parte dos personagens-escritores de Rubem

Fonseca tanto deseja atingir. É também o combustível que os move, levando-os a se empenhar

no ofício das letras. Todavia, mais do que consumi-la, parecem ser, na verdade, por ela

consumidos. A ambição pela fama os inflama, transformando, por vezes, algumas débeis

flamas em labaredas; e estas, não raro, depois de atingirem o auge do fulgor, se vêem

rapidamente reduzidas a cinzas.

Duas narrativas, em particular, “Agruras de um jovem escritor”, de Feliz ano novo

(1975), e “Labaredas nas trevas”, de Romance negro (1992), voltam-se, cada uma de maneira

peculiar, para a busca pela glória, contrapondo, com ironia – ora cáustica, ora amarga – as

agruras de um aspirante às de um decano da literatura.

Convém, antes de analisar as histórias, especificar mais detalhadamente a meta por

eles almejada, e que acaba por se tornar fonte de tantas vicissitudes: a glória. De acordo com

Renato Janine Ribeiro:

Glória, honra, fama e reputação apontam o renome que tenho, a imagem que os outros vêem em mim. A imagem, pública, assim se opõe à intenção: quando os outros me valorizam ou depreciam pelo que de mim é visível, não importa o que eu esteja sentindo no mais íntimo. O universo das intenções, a consciência, não pode ser devassado pelo outro. Desta forma, a honra, a reputação, a fama se afastam do campo propriamente moral ou ético, no qual conta, justamente, a intenção que me move a agir. Um ato pode ser admirado, pode dar relevo social a uma pessoa, e no entanto dever-se a motivos vis; ou o inverso.[...] Não conta a verdade, a intenção – apenas o aspecto público, fama ou infâmia. O que importa não é o que sou, é o que pareço ser [...] As aparências não bastam, mas sem elas de nada vale a verdade íntima. (RIBEIRO, 1987, p.107-108.)

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Aos júbilos públicos trazidos pela glória literária pouco importa as misérias privadas

por que passam os escritores. Nas narrativas aqui em questão, no entanto, tais sentimentos se

revelam não apenas indissociáveis como também indispensáveis para as tramas.

“A ilusão”, afirma Roland Barthes, “não é mais que a distância da superfície ao fundo”

(BARTHES, 2000, p.100). No caso do personagem de “Agruras de um jovem escritor”, como

se vai ver, a fama revelará que a distância da superfície – a ambição do protagonista – ao

fundo – seu real talento –, na verdade, não passa de uma ilusão. No entanto, essa constatação

não o impedirá de, mesmo assim, ainda ser capaz de devanear com o sucesso. Quanto ao

fictício Joseph Conrad, em “Labaredas nas trevas”, no decorrer da narrativa, tal distância irá

se desfazer completamente, levando-o a considerar os esplendores da glória literária ilusórios.

3.4.2 Pensamento polifásico ou vastas emoções e pensamentos imperfeitos

O conto “Agruras de um jovem escritor” narra os qüiproquós nos quais se envolve o

protagonista enquanto escreve, ou melhor, dita seu primeiro romance. Todavia, o que mais lhe

preocupa não é, definitivamente, o processo criativo de sua obra. É a fama literária o que

continuamente o obceca. Além disso, a namorada possessiva, porém devotada, torna-se um

grande inconveniente. Desvencilhar-se desta e conquistar aquela serão as causas de suas

agruras.

A história poderia ser definida como uma tragicomédia de erros, pois está repleta de

situações nas quais equívocos, mal-entendidos, enganos e precipitações resultam em

conseqüências cômicas, mas que se revelam, no fundo, também trágicas. É um dos textos em

que melhor se expressam o humor idiossincrático e a ironia – aqui mais cáustica que amarga –

de Rubem Fonseca, lançando um olhar implacável sobre o âmbito literário.

As confusões nas quais o protagonista – e narrador, algo freqüente não só às narrativas

em que escritores são personagens, mas também à obra fonsequiana como um todo – se

envolve têm início quando ele ganha um prêmio de poesia da Academia e seu retrato é

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publicado nos jornais. É o suficiente para que acredite que “ficaria instantaneamente famoso,

com mulheres se atirando nos meus braços. O tempo foi passando e nada disso acontecia. [...]

Minha fama durara vinte e quatro horas” (AJE, p.416). Surge, então, Lígia:

Ela entrou pelo meu apartamento adentro alvoroçada e anelante dizendo, não sabes das dificuldades que tive de vencer para descobrir o teu endereço, oh! Meu ídolo, faz de mim o que quiseres, e eu fiquei comovido, o mundo ignorava as minhas realizações e surge essa moça vinda lá de longe para se prostrar aos meus pés. Antes de irmos para a cama ela disse, dramaticamente, guardei o tesouro da minha pureza e da minha juventude para ti e estou feliz. Enfim, ela não tinha para onde ir e se instalou no meu apartamento, cozinhava para mim e costurava para fora, apesar de ser má costureira, arrumava a casa, batia à máquina o longo romance que eu estava escrevendo, fazia as compras no supermercado com o dinheiro dela. (AJE, p.416).

O relacionamento foi considerado um bom arranjo, embora ela o obrigasse “a

trabalhar oito horas por dia no romance – vai falando, dizia ela, enquanto batia

apressadamente na máquina” (AJE, p.416). Além disso, controlava-lhe a bebida, apesar de ele

dizer que todo escritor bebia, o que não a convencia, redargüindo que Machado de Assis, por

exemplo, não bebia; e que era graças aos cuidados dela que ele não se tornara já um pobre e

infeliz alcoólatra. Tamanha devoção acaba sendo fonte de ciúmes, cada vez mais ameaçadores

e violentos, mas não infundados. Pego em flagrante durante uma sessão de cinema com outra

mulher, o protagonista é agredido por Lígia “ali mesmo, enquanto o filme estava passando

[...], um escândalo, levei vinte pontos na cabeça” (AJE, p.416). Exibindo-lhe as feridas, ele

argumenta que depois disso os dois não poderiam mais ficar juntos. Como resposta, ela abre a

bolsa e mostra-lhe um revólver, acrescentando: “Se me enganares com outra mulher eu te

mato” (AJE, p.416). O estratagema escolhido por ele para livrar-se da possessiva amante é

algo que, segundo afirma, “nenhum brasileiro faz, nem mesmo para salvar a própria pele”

(AJE, p.416): fingir-se de broxa. Mas seu desespero era tanto que estava disposto a “correr o

risco de passar na rua e Lígia dizer para as pessoas, me apontando, com aquele dedo grande e

ossudo, lá vai ele, premiado pela Academia mas broxa” (AJE, p.416-417). Entretanto o plano

não é bem-sucedido, pois, ao dizer que estava naquela situação, ela o leva imediatamente ao

médico, duvidando que alguém ainda tão jovem fosse impotente. Por ironia do destino, o

temor de que seu suposto problema sexual fosse relacionado com o seu “renome” se

concretiza, em parte, não como imaginara, com Lígia apontando-o nas ruas, mas através do

doutor que o atende, e que ao olhá-lo, pergunta-lhe se não fora premiado pela Academia.

A narrativa se compõe de episódios que, a princípio isolados, acabam se entrelaçando

e voltando-se contra o protagonista. “Nada temos a temer exceto as palavras”, repetidamente

se afirma em O caso Morel (1973). Em “Agruras”, o temerário jovem escritor padece com a

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veracidade de tal vaticínio. Não apenas por suas palavras, mas também por seus atos, que não

mesuram as possíveis conseqüências, ele se enredará fatalmente na trama cujos eventos

interfere ou inventa.

O primeiro deles dá início ao conto e envolve um equívoco visual. Ao supor que o

encapuzado que insistentemente toca a campainha de seu apartamento é um ladrão, o

personagem, apavorado, decide reagir ameaçando-o com um facão. Descobre, então, se tratar

de uma freira, que ao vê-lo, nu e armado, foge aos gritos. Recebe, por isso, uma intimação da

polícia para depor sobre a queixa de ameaça de morte que a religiosa havia feito. Após o

episódio no cinema e da intimidação de Lígia, enquanto esta dorme, ele tenta, sorrateiramente,

se desfazer do revólver que ela lhe mostrara. Decide jogá-lo em um bueiro, mas quando vai

fazer isso um assaltante o aborda com um canivete. Aponta a arma e atira no criminoso, que

cai no chão. Volta para casa acreditando que matou o bandido – mas não matou; depois o

reencontrará e este até lhe auxiliará em um momento de grande dificuldade. Coloca a arma de

volta na bolsa da namorada, que permanece dormindo, e no dia seguinte rompe a relação. Ela

se ajoelha aos seus pés e diz: “não me abandone, [...] serás explorado pelas outras mulheres,

fomos feitos um para o outro, sem mim nunca acabarás o romance, se me deixares eu me

mato, deixando uma terrível carta de despedida” (AJE, p.417). Ele pára e percebe que Lígia

falava “a mais absoluta verdade”, ficando em dúvida sobre “o que era melhor para um jovem

escritor, um prêmio da Academia ou uma mulher que se mata por ele, deixando uma carta de

despedida, culpando-o desse gesto de amor desesperado? Para mim o romance já acabou”

(AJE, p.417), eis a sua resposta definitiva. Nem sequer imagina a exatidão de tal frase.

Lígia cumpre sua palavra e comete suicídio. Depois de ir a um bar e flertar com uma

jovem, que gostava de literatura, mas, para sua frustração, nunca tinha ouvida falar dele, volta

a casa e, acreditando que a namorada dormia, encontra um bilhete de despedida, junto ao

vidro vazio de pílulas tranqüilizantes: “José, adeus, sem ti não posso viver, não te culpo de

nada, te perdôo; queira Deus que te tornes um dia um bom escritor, mas acho difícil; eu

viveria contigo, mesmo impotente, mas também disso não tens culpa, pobre infeliz. Lígia

Castelo Branco” (AJE, p.418). Ele tenta socorrê-la, mas já é tarde demais. Enquanto aguarda a

chegada da polícia, incomodado com o teor da carta, “Impotente e mau escritor – merda! O

que foi que eu fiz para ela me tratar assim?” (AJE, p.419), senta à máquina de escrever para

redigir uma outra versão:

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José, meu grande amor, adeus. Não posso obrigá-lo a me amar com o mesmo fervor que lhe dedico. Tenho ciúmes de todas as lindas mulheres que vivem à sua volta tentando seduzi-lo; tenho ciúmes das horas que você passa escrevendo o seu importante romance. Oh, sim, amor da minha vida, sei que o escritor precisa de solidão para criar, mas esta minh’alma mesquinha de mulher apaixonada não se conforma em partilhar você com outra pessoa ou coisa. Meu querido amante, foram momentos maravilhosos os que passamos juntos! Sinto tanto não poder ver terminado esse livro que será sem dúvida uma obra-prima. Adeus, adeus! Queira-me bem, lembre-se de mim, perdoa-me, ponha uma rosa na minha sepultura, no Dia de Finados. Sua Lígia Castelo Branco. Assinei, fazendo a letra redondinha de Lígia, e coloquei a carta na mesinha de cabeceira, depois peguei a carta que ela havia escrito, rasguei, botei fogo nos pedacinhos, e joguei fora as cinzas no vaso de sanitário. (AJE, p.419).

A polícia chega, efetua-se a perícia no local e o cadáver é levado. Sozinho, o

protagonista sente necessidade de afogar as mágoas. Vai novamente a um bar, encontra-se

com duas outras jovens, a quem, ao ser perguntado sobre o que fazia, afirma, já bêbado, ser

assassino de mulheres, matando-as com “veneno, o lento veneno da indiferença” (AJE,

p.421). A repercussão do suicídio de Lígia é pífia, apenas uma breve nota sobre uma

costureira que se matara em Copacabana. Após prestar depoimento na delegacia, ele encontra

um jornalista que, enfim, vai ao encontro de suas ambições, fotografando-o várias vezes

enquanto ele dizia: “Sou escritor, premiado pela Academia, estou escrevendo um romance

definitivo, a literatura brasileira está em crise, uma grande merda, onde estão os temas de

amor e morte?” (AJE, p.422). Vai dormir ansioso pelo jornal do dia seguinte, onde tudo o que

dissera saiu com destaque, além de publicarem o seu retrato, no qual surgia:

Magro, romântico, pensativo e misterioso e embaixo a legenda aspas amor e morte não se encontram nos livros aspas. A manchete era, Figurinista do Society se Mata Pelo Amor de Conhecido Escritor. Lígia Castelo Branco, a bela e conhecida figurinista da high society, matou-se ontem, após romper com seu amante, renomado romancista brasileiro. Meu coração batia de satisfação, a carta tinha sido transcrita na íntegra e embaixo do retrato de Lígia estava escrito aspas bela jovem se mata mas mundo não se importa aspas. A notícia falava ainda do meu livro, mencionava minhas palavras na delegacia, inventava uma vida elegante para Lígia, felizmente o jornalista era mentiroso. (AJE, p.422).

Diante tal inesperado estímulo, sente-se motivado a escrever novamente. “Mas não

saía uma única palavra, uma sequer, eu olhava para o papel branco, torcia as mãos, mordia os

lábios, bufava e suspirava mas não saía nada” (AJE, p.422). Tenta reproduzir o processo que

usualmente praticava, levanta-se, dita uma frase, corre para datilografá-la, mas não dá certo;

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tenta redigir livremente tudo o que lhe vem à cabeça, no entanto todo esforço se revela inútil.

É então que, horrorizado, percebe tudo:

Com as mãos trêmulas e o coração gelado, apanhei as folhas datilografadas por Lígia e li o que estava escrito e a verdade se revelou brutal e sem apelação, quem escrevia o meu romance era Lígia, a costureira, a escrava do grande escritorzinho de merda, não havia ali uma só palavra que fosse verdadeiramente minha, ela é quem tinha escrito tudo e aquele ia ser mesmo um grande romance e eu, o jovem alcoólatra, nem ao menos percebera o que estava acontecendo. Deitei-me com vontade de morrer, sim, sim, como disse aquele russo, a vida me ensinara a pensar, mas pensar não me ensinara a viver (AJE, p.422).

Com efeito, sua particularidade está definitivamente relacionada com o tipo de

pensamento que possui, ao qual chama de polifásico. Este se caracteriza, inicialmente, pelo

surgimento de imagens insólitas relacionadas a grandes escritores da literatura universal,

como, por exemplo, Proust – “só me vinha à cabeça a imagem de Marcel Proust, de bigodinho

e flor na lapela, brandindo o guarda-chuva para as nuvens, exclamando zut!zut!zut!” (AJE,

p.417) –, ou James Joyce – “na minha cabeça polifásica Joyce perguntava para a irmã dele,

pode um padre se enterrado de batina? Podem ser realizadas eleições municipais em Dublin

durante o mês de outubro?” (AJE, p.417) –, no entanto, o pensamento polifásico se revela

mesmo como veículo para os devaneios do protagonista, marcando uma profunda dissonância

entre suas vastas emoções e seus pensamentos imperfeitos. Além de distanciá-lo da realidade

imediata, fazendo com que não perceba corretamente o que ocorre ao seu redor. Exceto aquilo

que lhe diga respeito, no caso, ele próprio e a glória literária. Seu pensamento pode ser

polifásico, mas é principalmente egoísta e monomaníaco. Assim, por exemplo, ao levarem o

corpo de Lígia, ele fantasia o que poderia acontecer:

Imaginei os jornais do dia seguinte, Linda Mulher se mata por Jovem Escritor – não tenho culpa do que aconteceu, disse o Jovem e Renomado Escritor ao ser entrevistado por esta folha, lamento muito a morte desta pobre e tresloucada criatura, é tudo o que posso dizer – a reportagem desta folha descobriu que não é a primeira vez que uma mulher se mata de amor pelo Jovem Escritor, há dois anos, em Minas Gerais – não, Minas Gerais não; melhor no Rio mesmo – há dois anos, no Rio de Janeiro, uma francesa estudante de antropologia – chega de pensamento polifásico, pensei (AJE, 1994, p.420-421).

Fulminado pela revelação de que a autoria de seu romance pertencia à Lígia, ele nem

se dá conta de que “um homem calvo, barrocamente vestido” (AJE, p.422), entra em seu

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apartamento, se apresenta como detetive Jacó e pede que escreva o nome da falecida em um

papel. Passado algum tempo, o policial retorna, afirmando:

Você está em maus lençóis, meu filho, a Técnica provou que a assinatura da morta foi forjada por você e as pílulas forma compradas com uma receita em seu nome e além disso você já quis matar uma freira sem nenhum motivo a não ser satisfazer seu gênio violento. Protestei, violento? Eu sou uma alma gentil e doce, o senhor não me conhece [...] Finalmente, [diz Jacó] apareceram duas garotas na delegacia que disseram ter ouvido você dizer num bar que já havia envenenado algumas mulheres, vamos embora meu filho. Eu posso explicar tudo, eu disse – mas Jacó me cortou, explica na delegacia, vamos embora. Peguei o livro e descemos juntos, entrei no carro de polícia, meu pensamento polifásico – romancista famoso acusado de crime de morte – editores em fila batendo nas grades do xadrez – consagr (AJE, p.423).

O radical da palavra com o qual a narrativa se encerra indica a consagração tão

almejada pelo protagonista, meta que se deseja atingir seja através da fama ou, como parece

ser o caso aqui, da infâmia. Trata-se de um termo incompleto, semelhante ao que o jovem

escritor de fato representa: alguém ainda em busca de completude, mas que ironicamente

parece fadado à condição de eterna lacuna. Um autor de pouco talento para a literatura, mas

que, mesmo assim, ainda alimenta ilusões de alcançar os esplendores da glória.

3.4.3 Mal secreto

Em “Labaredas nas trevas”, de Romance negro (1992), quando a história se inicia, seu

protagonista, o escritor Joseph Conrad (1857-1924), já é um autor renomado, e no decorrer da

narrativa a glória só faz aumentar, chegando ao ponto de ele poder afirmar, a certa altura,

corretamente, aliás, que é “reconhecido como o maior escritor vivo da língua inglesa” (LT,

p.631). Mas há algo oculto no coração de suas trevas, um mal secreto, que percorre todo o

conto, sendo fonte de agruras que o atormentam intimamente por anos a fio e que o

perseguem até o fim de seus dias.

O texto de Fonseca tem como subtítulo “fragmentos do diário secreto de Teodor

Nalecz Korzeniowski”, indicando o nome verdadeiro de seu personagem principal e a suposta

origem do que em seguida se lerá. Estruturado em forma de entradas de um diário, a narrativa

acompanha os supostamente turbulentos sentimentos de Conrad em relação a outro escritor e

a seu trabalho, o norte-americano Stephen Crane, falecido ainda jovem (1871-1900). De fato,

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ambos os autores se conheceram e travaram estreito contato, embora brevemente, o que serve

de base verídica para o surgimento da narrativa. No entanto, as afirmações anotadas pelo

narrador são ficcionais, conquanto estejam habilmente entretecidas a escritos genuínos do

autor de Nostromo. O resultado é uma trama onde os fatos são sutilmente manipulados a

serviço dos interesses da ficção.

Na primeira entrada do diário, define-se o pensamento de Conrad quanto a Crane: ao

saber de sua morte, registra que “uma inesperada felicidade tomou conta de mim o resto do

dia” (LT, p.628). Não obstante, confessa em seguida que sempre fora um melancólico,

rememorando o fato de ter sido a vida inteira um exilado, “do meu país e da minha língua”

(LT, p.628). Contribuíram para esse estado de espírito padecimentos amorosos do passado e

até uma tentativa de suicídio na juventude. Seja como for, para esse melancólico o dia da

morte de Crane é um dia feliz.

Recorda-se, então, como tomara conhecimento da existência do jovem escritor: lendo

o seu romance O emblema rubro da coragem (1895), que lhe causara profunda impressão:

Como um sujeito com uma idade tão ridícula (Crane tinha vinte e três anos ao escrever o livro) conseguira fazer uma obra tão perfeita? Nela havia a tragédia pura, não como nos gregos, uma capricho dos deuses, mas como uma criação exclusiva dos homens. Ali estava tudo o que me interessava: o fracasso, o medo, a solidão, o desgosto, a corrupção, a covardia, o horror. O horror. O livro era tão bom, pensei, que certamente não seria reconhecido, nem pelos críticos, nem público – por ninguém. Era mais um grande autor que morreria desconhecido. (LT, p.629).

Ao raiar do dia senta-se para escrever o seu novo livro, afirmando que “estava

dominado por uma exaltação – a euforia dos descobridores, a urgência dos ladrões – e não

sentia fome nem cansaço. Não sei quantos dias fiquei trancado, sentado naquela mesa,

escrevendo compulsivamente” (LT, p.629).

Ao contrário do que esperava, Crane será reconhecido tanto pela crítica – cujos

hiperbólicos elogios o protagonista ressaltará – quanto pelo público. As comparações entre o

seu quarto romance, O negro do Narciso (1897), o livro escrito no período em que fora

dominado pela exaltação, e O emblema rubro da coragem não demoram a surgir, causando-

59

lhe profundo pesar. A crítica que indicava a influência do jovem escritor norte-americano

sobre o livro de Conrad é verídica, foi escrita por W.L. Courtney para o jornal Daily

Telegraph, quando do lançamento da obra conradiana, como se faz referência no conto,

embora a peremptória afirmação “entre o original e a cópia, eu prefiro o original”, não conste

no trecho citado em Joseph Conrad: a critical biography, de Jocelyn Baines. Infelizmente não

se teve acesso ao texto integral da resenha, mas tal afirmação, levando-se em consideração o

teor dos excertos, se não foi de fato efetuada, dá impressão de que poderia ter sido feita.

Baines escreve que a comparação entre os livros de Crane e Conrad deve ter irritado este

último, pois ele sem dúvida estava convencido de que seu livro era de longe uma obra mais

substancial que a do outro. Entretanto, reconhece ser bem possível que a leitura de O emblema

rubro da coragem tenha dado ímpeto a Conrad adotar um tema semelhante5 (BAINES, 1960,

p.205). Ou, conforme as palavras do crítico W.L. Coutney, o autor de O negro do Narciso

escolhera Crane como exemplo e “estava determinado a fazer pelo mar e o marinheiro o que

seu predecessor fizera pela guerra e os combatentes”6 (BAINES, 1960, p.205).

Na entrada seguinte do diário, o personagem relê, embevecido, as críticas positivas

sobre Lord Jim (1900), que também fora bem recebido pelo público. Uma breve remissão a

Crane em uma das resenhas é o suficiente para perturbá-lo. Nova comparação surge em uma

análise de Tufão (1902). Conrad desabafa:

Tenho certeza de que ninguém, no mundo inteiro, crítico ou leitor, dirá hoje que eu, algum dia, fui influenciado por Crane. Mesmo assim, sinto um aperto no peito, como se tivesse no coração uma ferida não cicatrizada. Como pode um morto assombrar assim a minha vida? (LT, p.630).

O trecho acima parece sintetizar a essência da narrativa. Com efeito, o talento do autor

precocemente falecido é uma assombração que fustiga intimamente o narrador. Além disso,

indicia o propósito do verdadeiro autor dessas linhas, não Conrad, claro, mas Fonseca. É ele o

5 Tradução livre do original: “This must have galled Conrad because he was undoubtedly convinced that The Nigger was a far more substancial piece of work than The Red Badge […] but it is quite possible that Conrad’s reading of The Red Badge gave him the impetus to undertake a similar subject”. 6 Tradução livre do original: “Mr. Joseph Conrad has chosen Mr. Stephen Crane for his example, and has determined to do for the sea and the sailor what his predecessor had done for war and warriors”.

60

leitor/crítico que lê na obra do escritor anglo-polonês a influência de Crane, algo

empiricamente até possível, como acima se sugeriu, e que serviria de fundamento suficiente

para se imaginar uma angústia da influência, parecendo evocar o conceito de Harold Bloom.

No entanto, o conto parece dar mais relevância aos sentimentos privados do personagem, cuja

admiração inicial não demora a transformar-se em profunda inveja, mal secreto assim

definido por Renato Mezan:

A inveja tem parentesco com o desejo, a agressividade, a astúcia e a sagacidade, o roubo e a rapina; há algo nela que tem a ver com os olhos; seu objeto é indeterminado, variando do “qualquer coisa” ao “tudo”; ela não é um sentimento simples, mas envolve algo como uma oscilação entre a distância e a coincidência, bem como fatores ligados à intensidade, à rapidez, ao involuntário; remete a um certo conflito, do qual resulta essa impressão de movimento esboçado e inconcluso. [...] A inveja se alegra com a dor de outrem, e a realização de seus propósitos tampouco a deixa feliz – ao dilacerar os felizes, ela dilacera a si própria. [...] A inveja contém desejo, mas não se reduz a ele; o desejo de privar outrem de sua felicidade é nela mais decisivo do que o de obter a posse da coisa invejada. (MEZAN, 1987, p.119-125)

Este sentimento perpassa toda a trama, mas não é sequer mencionado. A inveja

dificilmente é externada abertamente, permanece oculta nas trevas, consumindo-se

secretamente como ardentes labaredas. No caso do protagonista, passada a “euforia dos

descobridores” e a “urgência dos ladrões”, além da inesperada satisfação com a notícia do

falecimento do êmulo, restará ainda o contentamento ocasionado pelas oportunidades para se

denegrir o legado do invejado, tentando mantê-lo esquecido. Em 1919, é pedido a Conrad que

escreva um artigo sobre Crane:

Eis o que escrevi: “Como todo mundo, li The red badge of courage quando foi publicado. Mas à medida que eu virava as páginas desse pequeno livro que conseguira, naquele momento, uma recepção tão barulhenta, eu estava interessado na personalidade do jovem escritor, tão festejado pela imprensa por sua juventude e outros atributos não literários. Sua morte prematura pode ter sido uma grande perda para os seus amigos, mas não para a literatura. Creio que ele deu tudo o que tinha que dar nos livros que escreveu; e que procurou ser sincero ao descrever suas impressões. Fui vê-lo na clínica em que estava para se curar, mas um simples olhar bastou para me dizer que aquela era uma esperança vã. As últimas palavras que soprou para mim foram ‘estou cansado’. Ao sair, parei à porta, para olhá-lo novamente, e notei que ele havia virado a cabeça no travesseiro e olhava pensativamente as velas de um barco que deslizava lentamente pela moldura da janela, como uma sombra indistinta contra o céu cinzento. Aqueles que leram suas pequenas narrativas Horses e The boat sabem que ele amava os cavalos e o mar. E sua passagem nesta terra foi como a de um cavaleiro veloz na madrugada de um dia fadado a ser curto e sem sol”.

61

O senhor Thompson do Mercury, perguntou-me se eu não havia sido muito rigoroso no meu julgamento de Crane. Disse a ele que, ao contrário, eu fora até excessivamente generoso ao perder meu tempo escrevendo sobre um autor medíocre.

Há coisas que não se perdoam, nem mesmo aos inocentes. (LT, p.632).

A longa citação se justifica por ser verdadeira. Conrad de fato redigiu as palavras que

estão entre aspas no excerto acima. Todavia, há trechos reveladores e significativos que foram

omitidos, alterando profundamente o sentido do texto original. Intitulado “Stephen Crane – a

note without dates” e contida no livro Notes on life and letters (1920), o artigo anteriormente

publicado no The London Mercury, sofreu a apropriação e montagem astuta por parte de

Fonseca, que mescla frases e parágrafos – por exemplo, parte do primeiro parágrafo original é

logo seguido, no conto, por uma frase presente no sétimo, daí para fragmentos do oitavo e

nono parágrafos –, efetuando a reordenação em favor de seus objetivos ficcionais. Dessa

forma, à aparentemente dura afirmação, “Sua morte prematura pode ter sido uma grande

perda para os seus amigos, mas não para a literatura. Creio que ele deu tudo o que tinha a dar

nos poucos livros que escreveu”, é seguida pelas seguintes considerações:

Que eu não seja mal entendido: a perda foi grande, mas foi a perda do prazer que sua arte poderia dar, não a perda de qualquer possível revelação posterior. Da parte dele, quem poderá dizer o quanto ganhou ou perdeu por sair tão cedo deste mundo dos vivos, ao qual ele saberia como colocar diante de nós em termos de sua própria visão artística?7 (CONRAD, 1949, p. 50-51).

O comentário altera completamente o sentido das frases anteriores no conto. Não se

trata se uma observação severa sobre um autor medíocre, mas sim o reconhecimento dos

méritos de alguém cujo talento se revelou plenamente ainda na juventude. Não se perdeu um

escritor cujo potencial viria a se concretizar; sua literatura já havia atingido todas as

potencialidades. O Joseph Conrad empírico admirava Crane, fora seu amigo próximo,

enquanto este viveu na Inglaterra, mas, segundo sua opinião, tinha consciência das limitações

7 Tradução livre do original: “Let me not be misunderstood: the loss was great, but it was the loss of the delight his art could give, not the loss of any further possible revelation. As to himself, who can say how much he gained or lost by quitting so early this world of the living, which he knew how to set before us in the terms of his own artistic vision?”

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do trabalho do autor norte-americano. Em cartas a amigos, faz as seguintes afirmações sobre

Crane:

Seu olhar é muito individual e sua expressão me satisfaz artisticamente. Ele certamente é o impressionista e seu temperamento é curiosamente singular. Seu pensamento é conciso, coeso, nunca muito profundo – embora não raro surpreendente. Ele é o único impressionista e unicamente um impressionista... Eu não poderia explicar por que ele me decepciona – por que meu entusiasmo declina assim que fecho o livro. [...] O homem vê o exterior de muitas coisas e o interior de algumas8. (BAINES, 1960, p.205).

Voltando à ficção, Fonseca consegue, por sua vez, atingir o objetivo oposto ao

mencionado na última frase acima, ou seja, sem deixar de perceber o exterior, apreende o

interior de muitas coisas. Por exemplo, as vicissitudes da vida autoral, padecidos por diversos

de seus personagens, e aqui, em particular, o sofrido ocaso de alguém que dedicou a vida

inteira às letras:

A consciência da verdade contida no aforismo de Chaucer, “the lyf so short, the craft so long to lerne”[A vida tão breve, o ofício tão demorado para se aprender] , em vez de dissuadir-me, deu-me ainda mais forças para dedicar-me obsessivamente ao aprendizado do mais solitário dos ofícios. Mas exauri-me nessa tarefa horrenda. Escrever foi a mais agoniante de todas as lutas que enfrentei. Ninguém pagou mais caro do que eu pelas linhas que escreveu. Ah, os esplendores ilusórios da glória! (LT, p.632).

À beira da morte, o Conrad fictício se acerca da lareira para jogar sobre as brasas o

diário no qual expurgou toda a inveja e rancor que o talento de Crane – alguém que conseguiu

ainda tão jovem o domínio técnico que ele levou uma vida inteira para atingir – lhe causavam.

Logo as labaredas que destruirão os registros de seus tormentos, de seus males secretos, irão

se amainar e se converterão, assim como a vaidade do agonizante autor, meramente em

cinzas.

8 Tradução livre de: “His eye is very individual and his expression satisfies me artistically. He certainly is the impressionist and his temperament is curiously unique. His thought is concise, connect, never very deep – yet often startling. He is the only impressionist and only an impressionist… I could not explain why he disappoints me – why my enthusiasm withers as soon as I close the book. […] The man sees the outside of many things and the inside of some”.

63

3.5 De criadores a criaturas

Joseph Conrad não é o único autor empírico9 a se tornar matéria-prima para a ficção

de Rubem Fonseca. O escritor russo Isaak Bábel, no romance Vastas emoções e pensamentos

imperfeitos (1989), o comediógrafo francês Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como

Molière, na novela O doente Molière (2000), e o poeta brasileiro Álvares de Azevedo, no

conto “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, contido no livro O Cobrador (1979), são outros

exemplos de criadores literários que se converteram em criaturas ficcionais. Ou, conforme

distingue Ana Cristina Coutinho Viegas em seu estudo, “o personagem-escritor se transforma

no escritor-personagem” (VIEGAS, 2002, p.33). Todavia, a abordagem a ser aplicada nessas

narrativas em que famosos escritores são personagens seguirá basicamente dois caminhos. No

primeiro, se enfocará preferencialmente a vida e a obra do autor-personagem, transformando-

o não apenas no protagonista, mas também no narrador da trama. É assim que ocorre em

“Labaredas nas trevas” e em “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”. No segundo tipo de

abordagem, o escritor-personagem ocupa um papel secundário, no entanto é o catalisador da

história – ou um dos catalisadores –, pois, a partir de algo ligado a sua obra ou vida, ou a

ambas, a narrativa se desencadeará. É o caso de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos e

de O doente Molière.

Serão analisados inicialmente os do segundo caso, uma vez que tanto Bábel quanto

Molière, tendo ambos a vida pessoal e a obra literária ricas de agruras e vicissitudes, poderiam

render, apenas neste aspecto, nas mãos de Fonseca, notáveis narrativas, como as de Conrad e

Azevedo. Contudo, a opção por tomá-los como catalisadores de seus livros resulta, por sua

vez, em narrativas não menos notáveis.

9 Utilizam-se aqui os conceitos de Umberto Eco que distinguem autor-empírico de autor-modelo (ECO, 1999, p.21).

64

3.5.1 O manuscrito

O enredo de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos gira em torno de dois eixos

centrais: o primeiro é policial, envolvendo o contrabando de pedras preciosas; o segundo,

literário, referente à descoberta do manuscrito de um romance supostamente perdido de Isaak

Bábel (1894-1941). O anônimo protagonista se vê envolvido no primeiro eixo da trama por

acaso. Uma mulher desconhecida, que estava sendo perseguida, entrega-lhe um envelope e

desaparece, descobrindo-se depois que fora assassinada. Dentro do envelope havia inúmeras

pedras de alto valor. De posse delas, não demora para que ele seja também perseguido,

particularmente por um soturno homem de capa. Entrementes, sendo diretor de cinema,

recebe o convite para dirigir a adaptação de um dos livros de contos de Bábel, A Cavalaria

vermelha, a ser produzida na Alemanha. Diante o assédio cada vez mais ameaçador dos

verdadeiros donos das pedras, ele decide ir a Berlim – então Ocidental –, para livrar-se dos

seus perseguidores, além de negociar a realização do filme, passando a se interessar

profundamente pela obra do escritor russo. No entanto, ao chegar lá, descobre que o interesse

do produtor que o contratou é, na verdade, usá-lo como intermediário para adquirir o

manuscrito inédito de Bábel, que não fora destruído, como se afirmava, e ficara arquivado em

uma biblioteca de Moscou, sendo surrupiado e indo cair nas mãos de um diplomata soviético,

interessado em vendê-lo. Como se vê, ao policial e literário acrescenta-se, então, o suspense

típico dos livros de espionagem, ou a paródia deles. Segundo Wilson Martins:

Rubem Fonseca escreveu propositalmente a paródia daquela literatura “empolgante” de espiões e policiais de capa impermeável, de agentes internacionais tão enigmáticos quanto poderosos, de desenvolvimentos surpreendentes e acasos providenciais. Nesse tipo de literatura, a inverossimilhança deve ser verossímil, o que Rubem Fonseca obtém com a segurança dos grandes mestres. (MARTINS, 1996, p.346).

65

A paródia efetuada por Fonseca ao gênero policial e, particularmente, ao de

espionagem10 torna-se evidente na conclusão da história, surpreendendo por subverter as

usuais expectativas dos leitores para com esse tipo de literatura. Dessa forma, após um tenso

encontro com o portador do manuscrito, cercado de suspense, dentro da antiga Alemanha

Oriental, o protagonista se apossa do livro, foge de volta ao Brasil, ignorando o produtor que

o contratara, mas acaba seqüestrado, ao chegar, pelos contrabandistas, antes que seu amigo e

literato russo Boris Gurian possa traduzir o texto. Sendo levado ao interior de Minas Gerais, o

homem soturno de capa que o perseguia – chamado Alcobaça –, conta-lhe o porquê de estar

envolvido com o contrabando de pedras preciosas: devido a uma misteriosa doença, à qual

nenhuma terapêutica surtia efeito, descobrira que a ingestão do pó de diamantes pulverizados

o curaria, só não poderia interromper o tratamento – conhecido como Litoterapia –, precisaria

continuamente ingerir diamantes de alta qualidade, para manter-se vivo. Ele acrescenta:

“Depois de algum tempo gastei toda a fortuna da família. Só me restou esta casa, perdida no meio de lugar nenhum, como dizem os americanos”, continuou Alcobaça. “Um dia, meu fornecedor de pedras preciosas, após se recusar a ceder-me mais uma só que fosse, se eu não pagasse antes o que lhe devia, sugeriu-me que fizesse contrabando para ele. Aceitei a proposta. Eu contrabandeava as pedras e ele me pagava com diamantes incolores, uma coisa parecida com o que acontece com alguns toxicômanos, que trabalham para traficantes recebendo drogas em pagamento. No princípio eu mesmo levava as pedras comigo para o exterior. Depois tive a idéia de contrabandear as pedras nas fantasias carnavalescas. Necessito de uma quantidade cada vez maior de pó para manter-me vivo. Preciso daqueles rubis, safiras, esmeraldas que a Gorda [a mulher desconhecida que fora assassinada] me roubou e que estão com você, para pagar ao meu fornecedor. É a minha vida que está em jogo, entendeu? Eu tenho ainda um diamante, uma pedra de grande pureza e inexcedível beleza, uma herança da família, mas não quero destruir, só farei isto em último caso” (VEPI, p.214).

Inesperadamente, a fazenda onde estavam é invadida por um bando, que mata

Alcobaça e seus comparsas, poupando, porém, a vida do diretor de cinema. Livre, ele retorna

ao Rio de Janeiro e outra surpresa o aguarda. O manuscrito não era de Bábel:

10 Sobre o romance de espionagem, José Paulo Paes comenta: “Tanto o espião quanto o agente de contra-espionagem [...] estão sempre a serviço de uma potência em guerra declarada ou virtual com outra e são por ela estipendiados. A radicalização ideológica conseqüente à Guerra Fria só faz aumentar a tendência maniqueísta do romance de espionagem, onde tudo é lícito na luta entre o Bem (nosso) e o Mal (deles), muito embora comecem a surgir tentativas de superar o maniqueísmo por via de uma visão as mais das vezes niilistas das ideologias e dos que as servem profissionalmente” (PAES, 1990, p.22-23).

66

Gurian disse que o livro era de um escritor iniciante, A. Kuliakov, uma amigo de Bábel, mais jovem do que ele, e que provavelmente teria entregue o livro a Bábel para que este lhe desse uma opinião de escritor consagrado. No fim do livro havia a assinatura de Kulikov e um bilhete em que pedia a “opinião do grande mestre autor da Cavalaria Vermelha”. (VEPI, p.254).

Antes, descobrira que Maurício, um amigo seu que trabalhava com pedras preciosas e

lhe comprara algumas para que pudesse viajar à Europa, estava envolvido tanto no

contrabando quanto nos assassinatos de Alcobaça e da mulher que deixara as pedras em seu

apartamento. Obcecado com um diamante chamado “Florentino” – o diamante que o enfermo

recebera de herança –, o joalheiro confessa que o executara porque a pedra preciosa acabaria

sendo pulverizada, acrescentando: “Ninguém pode destruir uma obra-prima da Natureza para

salvar sua própria pele nojenta” (VEPI, p.253). Como arremate do livro, o protagonista

entrega as pedras à costureira de um carnavalesco que conhecera – amigo da mulher que

morrera no início da trama, também ela carnavalesca –, mas sem mencionar o quão valiosas

eram e que acaba misturando-as a outras sem valor nenhum.

Ao contrário dos típicos motivos que movimentam os enredos das tramas policiais –

cobiça, vingança etc. – e das de espionagem – amplos jogos de intrigas internacionais, como

os da Guerra Fria, que estava nos seus estertores quando da publicação do livro –, Fonseca

subverte clichês ao encaminhar seu romance rumo a um desenlace surpreendente, embora não

pelos motivos corriqueiros nesses tipos de narrativas. A insólita razão que transforma

Alcobaça em criminoso, dando origem a toda as complicações policiais, além da intriga

internacional, causando todo o suspense e os percalços de parte da história, para se conseguir

o manuscrito de Bábel, que por fim se revela apócrifo, e também as instigantes reflexões

sobre a correlação entre cinema e literatura, demonstram a grande arte do romancista que é

Rubem Fonseca.

As inúmeras agruras vividas pelo escritor russo são breve e paulatinamente

mencionadas, não sendo muito desenvolvidas, ocupando espaço periférico, não obstante

essencial, para a narrativa. O protagonista afirma, a certa altura, que “nenhum episódio da

67

vida de Bábel, nem sua morte” (VEPI, p.110) teria importância comparável à do romance que

supostamente deixara inédito. Plessner, o rico produtor cinematográfico alemão, obcecado

pelo manuscrito de Isaak Bábel, concorda e faz um comentário que, aliás, pode ser estendida

ao sentido deste romance como um todo, sintetizando talvez os seus propósitos quanto à

representação da figura do escritor e suas opções ficcionais: “É verdade”, diz ele. “A obra é

mais importante que o homem” (VEPI, p.111).

2.5.2 O envenenamento

Publicado como integrante da coleção “Literatura ou morte”, da editora Companhia

das Letras, em que se encomendou a vários autores uma narrativa policial que tivesse algum

escritor famoso em sua trama, O doente Molière (2000) revela desde o título o autor escolhido

por Rubem Fonseca para sua novela. Nela, o comediógrafo francês é vítima fatal de um

envenenamento, segundo sussurra, antes de falecer, a seu amigo, e narrador da história, o

Marquês Anônimo.

O ponto de partida é verídico. Durante a apresentação de sua última peça,

ironicamente intitulada O doente imaginário (1673), Molière passa mal e morre logo em

seguida, no dia dezessete de fevereiro de 1673. Já os desdobramentos da narrativa, embora

fictícios, apontam para possibilidades muito interessantes. As críticas implacáveis que

plasmou em suas comédias se direcionavam a tão distintos – nos dois sentidos – setores da

sociedade francesa de sua época que, levando-se em conta as polêmicas que causaram, as

reprovações que provocaram, as proibições que sofreram, além das acusações, calúnias e

injúrias que despertaram, não seria nem um pouco inimaginável que Jean-Baptiste tivesse

mesmo sido envenenado por algum de seus inúmeros inimigos. Do clero aos burgueses, das

damas eruditas aos médicos, dos nobres aos membros da classe artística, enfim, suspeitos do

suposto crime não faltariam.

68

Decidido a descobrir o assassino do amigo, o narrador – um escritor frustrado cujas

tentativas de composição teatral foram rechaçadas tanto por Molière quanto por Racine, de

quem também era amigo – inicia a investigação do crime visitando os ambientes freqüentados

por aqueles que eram achincalhados nas peças do comediógrafo. Começa pelos salões das

“preciosas”, por Molière, em uma de suas mais famosas peças, chamadas de ridículas:

Afirmavam os defensores das preciosas que elas realizavam um trabalho importante de estímulo às artes, que amavam as letras e o bom gosto, e censurar alguém por esse motivo, da maneira que Molière fizera, era uma vileza. O próprio Molière, prevendo a objeção que ocorreria, advertiu, num artifício retórico, que as “verdadeiras preciosas” não deviam se ofender, ele retratava na peça as “ridículas” que as imitavam. (DM, p.57).

Os próximos possíveis suspeitos tinham motivos de sobra para querer vingança.

Tratavam-se dos dissimulados que assumiam aparências cândidas e devotas, sendo

representadas pela figura de Tartufo, que segundo as palavras do Marquês anônimo era: “um

charlatão, um libertino, um hipócrita que com suas tiradas santimônias retrata a beatice, o

fanatismo e a intolerância que preponderam no meio religioso” (DM, p.70). A peça Tartufo

(1664), inicialmente proibida, fora depois liberada pelo Rei Luís XIV, patrocinador da trupe

de Jean-Baptiste, e que, em conflito com o poder clerical, apreciara as alterações realizadas na

nova versão do texto, francamente subservientes à sua figura.

Com Don Juan (1665) o autor francês incomodara profundamente os puritanos de sua

época. “Assim, não foi surpresa a mobilização de moralistas de todos os cantos, clérigos,

médicos, beatos, burgueses bem ou mal casados, para conseguir a proibição da peça” (DM,

p.83). E que, aliás, nunca mais fora encenada enquanto o autor viveu. O narrador comenta:

D.Juan como Tartufo, é uma peça sobre a hipocrisia. Na verdade, somos todos hipócritas, e a falsa devoção é uma das formas mais comuns. Levamos uma vida corrupta e egoísta, membros da nobreza, da burguesia, da magistratura, do clero, das profissões, do comércio, até mesmo os camponeses, mas não deixamos de praticar a nossa religião, de confessar, com falsa contrição, os nossos pecados, para depois poder praticá-los, em segredo, novamente. (DM, p.83-84).

Por último, havia os médicos, a quem Molière impiedosamente satirizava em várias de

suas peças, reprochando-lhes a falta de escrúpulos e incompetência. Em O amor médico

69

(1665), surgem cinco médicos charlatães para tratar de uma jovem, que se finge de doente,

para evitar um pretendente imposto pelo pai. Tais personagens seriam inspirados em alguns

dos mais famosos doutores da França da época. E dentre eles estava, inclusive, o médico do

Rei, d’Aquin. Diante do ódio despertado pela poderosa e influente classe médica ao perceber-

se representada nos palcos, o Marquês Anônimo se questiona: “Por que não um médico? Eles

são responsáveis por tantas mortes que mais uma não pesaria em suas consciências” (DM,

p.90).

E a suspeita, no desenlace da novela, se revela acertada. O médico do Rei fora o

mandante do assassinato, mas quem executara a ação fora alguém muito próximo ao escritor –

sua empregada, chamada La Forest. Ela recebera uma alta quantia de dinheiro para envenenar

Molière, além de ser tranqüilizada por quem a aliciou a nada temer, pois ninguém, segundo

d’Aquin, se interessaria “pela morte de um autor de farsas ordinárias” (DM, p.138),

acrescentando também a cumplicidade de outros médicos afamados do país, que estavam

profundamente interessados no assassínio. O narrador, ao descobrir a intriga, faz as seguintes

considerações: “Os médicos eram sem dúvida os mandantes do envenenamento de Molière.

Mas como prender e condenar os doutores mais importantes de Paris sem aumentar mais o

escândalo que o rei queira abafar? E de qualquer forma, a morte de um comediante não era

tão importante assim”. (DM, p.139).

O crime é esclarecido a partir da prisão de Madame Voisin, célebre por produzir filtros

de amor, feitiços e venenos os mais variados, que confessara ter vendido para a empregada de

Molière o veneno que o matara. La Forest acaba sendo, então, presa, condenada e esquecida

em uma masmorra qualquer.

Dois elementos da narrativa chamam a atenção. O primeiro se refere, novamente, à

maneira subversiva como Fonseca maneja o gênero policial. Se, no geral, ele segue aqui as

regras clássicas das tramas de detetive – crime enigmático, investigação e descoberta do

70

criminoso –, é no detalhe que se percebe a sua ironia, ao inserir, intencionalmente, em sua

novela um dos mais conhecidos chavões sobre os possíveis culpados de assassinatos nos

romances policiais. No caso, quem matou não foi nem o mordomo, mas uma reles serviçal...11

Constatação que decepciona o Marquês: “Quem envenenara Molière fora La Forest, a

empregada dele. Não consegui esconder meu desapontamento, a assassina ser uma cozinheira

tirava a paixão, a grandeza, até mesmo o horror que aquele crime devia conter. Um homem

como Molière merecia ter como assassino o próprio rei.” (DM, p.134).

O segundo elemento surge a partir da escolha do escritor francês como tema para sua

novela policial e direciona-se não necessariamente para uma possível influência de Molière

sobre Rubem Fonseca, mas permite estabelecer entre ambos um paralelo quanto ao que se

refere à postura dos dois em relação à sociedade, levando-se em conta, claro, as devidas

diferenças. Tanto um quanto o outro foram perseguidos, mas também consagrados, pela

sociedade na qual estavam inseridos, às quais criticaram profundamente em suas obras. Eles

poderiam ser considerados “moralistas”, não no sentido usual do termo, o de defensor ranheta

– e não raro hipócrita, como Tartufo – de valores supostamente adequados à conduta alheia,

mas sim no do moralista francês do século XVII – como François de La Rochefoucauld e Jean

de La Bruyère –, que, na verdade, pretende revelar “a dramatização dos verdadeiros

problemas humanos, sociais e políticos de uma sociedade, dramatização esta que acaba por

deixar a descoberto o esqueleto da natureza humana, das relações sociais e da dominação

política”, conforme define Silviano Santiago em “Errata” (SANTIAGO, 1982, p.57),

analisando a obra de Fonseca, mas que bem poderia se aplicar à obra de Molière12.

11 Na verdade, a origem do clichê está nas vinte regras enunciadas por Van Dinne, das quais a de número onze assevera: “O autor nunca deve escolher o criminoso entre o pessoal doméstico, tais como criado, lacaio, crupiê, cozinheiro ou outros. Há nisso uma objeção de princípio, pois é uma solução fácil demais. O culpado deve se alguém que valha a pena” (BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p.39). 12 Sobre o autor francês, escreve Otto Maria Carpeaux: “O moralismo de Molière nas ‘altas comédias’ não difere da psicologia típica dos ‘moralistes’, nos quais também podia aprender o elemento essencial da sua arte: criação de caracteres, de personagens completas.” (CARPEAUX, 1980, p.767).

71

Mais uma vez, no entanto, o escritor-personagem ganha uma função secundária, sendo

o catalisador da narrativa, cuja presença se revela mais a partir de sua ausência. O que,

todavia, não tira nem um pouco os méritos da novela, pelo contrário, demonstra, uma vez

mais, a exímio talento do autor para escrever suas histórias. Em uma resenha sobre o livro,

Wilson Martins comenta:

Tendo feito com exemplar aplicação escolar a lição de casa, Rubem Fonseca demonstra haver lido a biblioteca essencial sobre a matéria, escrevendo uma pequena história cortesiana francesa no século XVII, na qual, por paradoxo, Molière comparece como figurante secundário e efêmero numa peça movimentada e surpreendente, participante apagado, fazendo apenas uma pequena ponta, como se diz no vocabulário de teatro. E in extremis, se assim me posso exprimir, porque só aparece para morrer. [...] Molière, doente real, morreu enquanto representava o papel de doente imaginário, o que parece uma cena inventada por ele mesmo. (MARTINS, 2005, p.118-119).

3.5.3 O labirinto da imaginação

Se o Joseph Conrad (re)criado por Rubem Fonseca era assombrado pelo espectro do

talento juvenil de Stephen Crane, o Álvares de Azevedo do conto “H.M.S. Cormorant em

Paranaguá”, de O Cobrador (1979), será rondado não só pelo fantasma do poeta inglês

George Gordon Byron, mas também pelos seus próprios fantasmas íntimos. Nesta narrativa,

há um aspecto diferencial em relação ao conto “Labaredas nas trevas”. Se em ambas se faz

uso da técnica do pasticho, adotando-se os estilos de cada escritor, além de se incorporar, via

apropriação, excertos de suas obras, inserindo-as em novo texto e contexto, o que produz uma

significativa alteração de sentido, no caso do conto a ser aqui analisado, o questionamento

com que se inicia a narrativa – “Quem sou?” (HMS, p.573) – ganha amplos desdobramentos.

Não há duvidas de que a trama remete à vida e obra de Manuel Antônio Álvares de

Azevedo, grande nome do romantismo brasileiro, falecido antes de completar vinte e um

anos, mas deixando, apesar de tão jovem, um inestimável legado poético. A princípio, a

interrogação inicial do conto se dirige ao poeta-personagem, que se vê refletido no espelho,

vestido de mulher – remissão a um episódio no qual ele teria trajado tais vestimentas para

ultrajar um pretendente de sua irmã, Luísa, por quem nutria intensa (quiçá incestuosa,

72

segundo a narrativa) afeição –, oscilante entre a companhia de uma prostituta, Teresa, e de

Luísa. É quando surge o fantasma de Byron, com quem estabelece um diálogo ora sardônico,

ora tenso. De acordo com João Luiz Lafetá, em sua concisa e precisa análise:

É neste nível que a pergunta inicial ganha mais intensidade. Quem é o rapazola brasileiro diante do lorde inglês que, do alto da força de seu Império, de suas Aventuras, de sua Poesia, olha com indiferença complacente aquele filho indeciso de um país de escravos, que tenta imitá-lo o tempo todo? Colocados face a face, o autor de Lira dos vinte anos e o autor de Child Harold conversam sobre a vida e a morte, o amor e a literatura – e sobre política. O centro do conto, que no começo parecia fixado sobre a personalidade íntima de Álvares de Azevedo (amor e medo), desloca-se com firmeza para outro ponto e põe em relevo uma dimensão mais geral: a relação do poeta com seu país. O incidente do navio inglês Cormorant, que em 1850 invadira o porto de Paranaguá e apresara dois navios negreiros de bandeira brasileira, é o episódio que permite a Rubem Fonseca o deslocamento da questão básica. (LAFETÁ, 2004, p.196).

O incidente exalta o patriotismo daqueles que se encontram na taverna para onde vão

Byron, Teresa e o protagonista. Este se junta aos que defendem a soberania brasileira,

afrontada pelos ingleses, conclamando discursos inflamados contra a Inglaterra, afirmando

que “a Pátria ao Bretão ajoelhou-se, beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se. Eles a

prostituíram! Malditos!” (HMS, p.580). Diante tamanha demonstração de brio patriótico

ofendido, Byron mofa, dizendo que se trata de uma soberania de traficantes de escravos. A

discussão recrudesce quando Azevedo afirma que o povo brasileiro é explorado em nome do

Comércio e da Indústria, que os trabalhadores se vêem mergulhados na pobreza, sendo

chamados de turba, de uma besta de muitas cabeças que devem ser cortadas, e que seria esta a

solução dos detentores do poder para o problema da existência de um povo explorado e

desesperado. Ao que refuta o poeta inglês: “Tu falas dos brancos, diz Byron, e os negros?

Enfim, quem sou eu para falar sobre isto, se aqui estou, [...] esquecendo o meu povo e sendo

esquecido por ele” (HMS, p.580). Resposta que leva Álvares de Azevedo a se questionar:

O povo esquecerá, a nós poetas? Depois de rolarem as cabeças, depois de passar o odor de sangue derramado e da carne carbonizada, de serem esquecidos o tropel e os gritos, voltaremos a ser necessários?

Byron dá de ombros, olhando o papel à sua frente. Uma cortesã chamou minha letra de garranchos de uma lavadeira... Byron é apenas um scribbler, e eu um poeta alienado, e aqui estamos nós, vis-à-vis, esquecidas nossas diferenças, diluídas as condescendências de um e os rancores de outro. Byron não precisa de mim, nem a Inglaterra do Brasil, ele é o meu paragon e o Brasil uma colônia da pérfida Albion. Ser fraco custa um preço alto, chego às vezes a pensar que o inglês é uma língua

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mais bonita do que a nossa. Cormorant só invadiu Paranaguá porque Byron, Keats, Shelley invadiram antes a minha mente. A colonização se faz em nome de Deus, da Lógica, da Razão, da Estética e da Civilização. Os imperialistas levam o nosso ouro e corrompem a nossa alma. Byron e Schomberg [Comandante do Cormorant] eram iguais – a Poesia e o Canhão a serviço da Dominação.

Nonsense, diz Byron e desaparece. (HMS, p.580-581).

O conflito privado, a influência literária inglesa sobre o poeta brasileiro, soma-se ao

conflito público, a influência político-econômica bretã sobre o país. A angústia da influência

irmana-se com o colonialismo. A identidade individual equipara-se à identidade nacional. A

discussão extrapola limites históricos, pois tem ressonância ainda nos dias atuais,

curiosamente mantendo a língua inglesa como o idioma da nação dominadora, embora esta

não mais seja a Inglaterra imperialista do século XIX, mas o “imperialismo” norte-americano

contemporâneo. Sobre a questão, Lafetá comenta:

A maneira de colocar o problema, encontrada por Rubem Fonseca é fascinante porque consegue conciliar o exame da personalidade íntima e da face pública, dos amores e da política. Ao que põe em jogo a função da poesia, toca tanto na identidade pessoal do poeta como no seu papel social, sendo abrangente assim, afasta a dicotomia entre indivíduo e sociedade, pois mostra-nos os dois lados como devem ser vistos, isto é, solidariamente unidos, interdependentes. (LAFETÁ, 2004, p.197-198)

O crítico considera curioso que Fonseca tenha escolhido Álvares de Azevedo como

protagonista do conto, considerado o “intimista”, acusado em seu tempo de imitar os autores

estrangeiros, pouco contribuindo para a formação da literatura nacional. “Um poeta que não

cedia aos apelos da realidade”, segundo as palavras de Maria Luiza Castro Polessa, “um poeta

que transferia para a ficção um espaço onde poderia caber a vida” (POLESSA, 1986, p.80).

Entretanto, ainda de acordo com Maria Luiza:

Neste conto [...], revela-se a importância de Álvares de Azevedo, porém sob uma perspectiva crítica. Seguidor de modelos e ele mesmo um modelo, reforça um processo de dependência cultural, o que não quer dizer que não tenha méritos literários. O que Rubem Fonseca rejeita é a sujeição a modismos que fatalmente refletem uma realidade que não corresponde àquela vivida pelo autor. Entre viver o imaginário e expressar imaginariamente a vida, a opção do contista é muito clara. (POLESSA, 1986, p.83).

Lafetá, por sua vez, acredita que a escolha de Azevedo como personagem ocorreu por

ser preciso um verdadeiro poeta, “no espírito de quem as contradições se cruzassem com

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força, para delinear este pequeno quadro poderoso, de dúvidas e hesitações, que mostrassem a

condição de nosso escritor” (LAFETÁ, 2004, p.198). E complementa que, no desenlace da

narrativa, ao focalizar a morte do protagonista, “muda a cronologia, deslocando as

contradições para o presente. Quem se debate diante da miséria, no meio do imperialismo e da

escravidão, não é o moço romântico, mas o pobre narrador” (Idem).

Com efeito, em certos momentos da narrativa, especialmente ao final, surgem breves

ocorrências que, vistas em retrospecto, parecem problematizar a relação entre o narrador e a

matéria narrada. A primeira ocorrência surge no nono parágrafo, quando se repete a pergunta

inicial, que, aliás, ecoa o episódio de um dos contos de Noite na taverna, “Bertram”, onde se

efetua a mesma pergunta, à qual, no entanto, Azevedo somente conseguiu, em vida, adequar-

se à primeira das três caracterizações da resposta: “Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte

anos, um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta”

(AZEVEDO, 1998, p.36). Embora tudo ainda sugira que o narrador seja, de fato, Álvares,

agonizante no hospital, às voltas com típicos anseios ultra-românticos, sutilmente se indicia a

possível dissociação entre a voz que narra daquilo que se está narrando:

Quem sou eu? O Dr. Bustamante no Hospital tem respostas: um poeta que apenas tem para provar seu valor o aplauso dos estudantes e dos bêbados. Mas pro inferno Bustamante, tenho o talento que apregôo, sou quem eu penso que sou [Grifo nosso] e ainda terei tempo de alcançar a glória e morrer cedo, como Byron, aos trinta e seis, gritando coragem, entre espasmos de dor, calafrios, sezões, delírios; como Shelley, trinta anos; Keats, vinte e seis. A vida, diz Bustamante, é apenas um círculo de funções que resiste à morte, e minha doença resulta menos dos bacilos do que uma condição patológica a que seus colegas alemães denominam Wille zur Krankheit. (HMS, p.573-574).

A segunda ocorrência surge quando o protagonista ensina a irmã, Luísa, a dançar, e

revela que os limites entre memória, invenção e imaginação são tênues para o narrador:

Ficamos na posição de dançarinos, o schottisch tara tata tata tata Busta tata tatamante, o hospital, a freira com terço na mão. O que estás esperando, sonhas de olhos abertos? [Grifo nosso] Danço, tara tata tata tata a invenção vem da imaginação e a imaginação é um labirinto em que o difícil não é a saída, é a entrada. (HMS, p.574).

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A terceira e última se dá no desfecho do conto, enquanto o personagem agoniza,

colocando em xeque a identidade do narrador:

Bustamante diz que Byron era incestuoso, fanfarrão, pederasta, sedutor de mulheres, que o Cormorant foi embora, que eu não sou Álvares de Azevedo [Grifo nosso], que o schottisch virou chorinho, que tudo mudou, outros navios de guerra, novos escravos, outros poetas, minha vida se esvai, chamai meu pai. (HMS, p.584)

Quem, afinal, narra “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”? O próprio Álvares de

Azevedo, em seu leito de morte, entrelaçando memória e invenção? Ou será um outro

personagem, Manoel, jovem poeta enfermo, que revive episódios de sua vida, referenciando-

se e ao mesmo tempo apropriando-se da biografia do autor de Macário, como sugere Maria

Luiza Polessa (POLESSA, 1986, p.69)? Seja como – e quem – for, Rubem Fonseca, ao

adentrar o labirinto da imaginação, estabelece neste conto uma instigante dinâmica entre o

papel individual e social do escritor, enfocando o passado literário nacional, mas sem excluir

de sua reflexão o presente.

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4. A Confraria dos Espadas: Eros e Tânatos

4.1. Espadas e Fesceninos

Em “A confraria dos Espadas”, presente na coletânea de contos homônima (1998),

narra-se a fundação de uma irmandade de homens que conseguiram descobrir um meio de

atingir o prazer sexual sem que o líquido seminal seja expelido. Trata-se do que chamam de

Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, ou MOSE, conseguido através de “elaborados e penosos

exercícios físicos e espirituais” (CE, p.126). A história é narrada por um dos participantes, um

poeta, que conta, inicialmente, as discussões sobre o nome mais adequado para a Confraria.

São sugeridos títulos desde Confraria da Boa cama – “descartado por parecer uma associação

de dorminhocos” (CE, p.124) – até Confraria dos Apreciadores da Beleza Feminina,

considerado longo demais, além de reducionista e esteticista, pois eles não se viam como

estetas, o que lhes interessava era o sexo: “Nossa Confraria era de Fodedores” (CE, p.124).

Acabam adotando o nome de Espada, um termo de origem popular que simboliza virilidade e

poder fálico. “Espada fura e agride”, comenta o narrador, que não apreciava o título,

argumentando que “assim é o pênis tal como o vêem, erroneamente, bandidos e ignorantes em

geral.” (CE, p.124). Escolhida a denominação, revela-se, em seguida, a filosofia da

irmandade: “Como membro da Confraria dos Espadas eu acreditava, e acredito ainda, que a

cópula é a única coisa que importa para o ser humano. Foder é viver, não existe mais nada,

como os poetas sabem muito bem.” (CE, p.125). Afirmação esta que remete ao poema de T.S.

Eliot, “Sweeney Agonista” – “Nascer, copular e morrer./ nada mais, nada mais [Tradução

Ivan Junqueira]” (ELIOT, 1981, p.152), e que é recorrentemente citado na obra fonsequiana.

Os personagens-escritores do autor poderiam perfeitamente se incluir nessa Confraria,

tamanha é a dedicação deles à atividade erótica. E também por parecerem acreditar que, além

do sexo – e talvez da literatura –, não há mais nada. Fesceninos, licenciosos, lúbricos,

mulherengos, eis alguns adjetivos que lhes são atribuídos – e aos quais realmente fazem jus.

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No entanto, da mesma forma que a sexualidade é fonte de prazeres, será também de agruras.

Devido ao priapismo que lhes é característico, irão se envolver em situações complexas e

perigosas, cujas conseqüências podem ser surpreendentes e até fatais.

No caso de “A Confraria dos Espadas”, as conseqüências do gozo sem ejaculação não

são funestas, mas inesperadas. Ironicamente, as (supostas) beneficiárias, embora inicialmente

apreciem os resultados da nova técnica, acabam insatisfeitas por sentirem falta do sêmen

como marca da consumação do coito. Para piorar, os confrades se empenharam tanto nos

exercícios do MOSE que já não conseguem mais, mesmo que queiram, ejacular. “Acho que

me tornei um monstro”, diz um deles, chegando à conclusão de que os ganhos trazidos pelo

orgasmo sem esperma resultaram em perdas irreparáveis para suas vidas amorosas:

Continuamos tendo uma mulher à nossa espera, mas essa mulher tem de ser trocada constantemente, antes de descobrir que somos diferentes, estranhos, capazes de gozar com infinita energia sem derramamento de sêmen. Não podemos nos apaixonar, pois nossas relações são efêmeras. (CE, p.128).

Algo similar ocorre com os outros personagens-escritores fonsequianos. Muito embora

eles possam se apaixonar, e estão sempre se apaixonando, suas relações são efêmeras.

Envolvem-se com inúmeras mulheres, quase sempre com várias simultaneamente, mas o

envolvimento se limita à conjunção carnal. Segundo Vera Lúcia Follain de Figueiredo:

Na ficção de Rubem Fonseca, o individualismo exacerbado cria um abismo entre os personagens que, desprovidos de qualquer referencial transcendente, enredados num profundo narcisismo, acabam por concluir que, “entre o nascimento e a morte, só o amor, o amor de orgasmos e órgãos existe” [CM, p.105] [...] Evidentemente que o amor a que os personagens se referem nada tem a ver com o ideal romântico do amor. Trata-se do gozo do corpo através de relações efêmeras, porque o sexo acaba se configurando como a única espécie de troca possível entre as pessoas – “virou comunicação”, como dirá o personagem do romance Bufo e Spallanzani. O corpo funciona, então, como lugar de resistência às abstrações que dessubstancializam o mundo ao nosso redor, constituindo-se no último reduto de materialidade e, nesse sentido, na atividade sexual, desde que não seja virtual ou realizada com uma boneca inflável, residiria a última possibilidade de interação entre os indivíduos. (FIGUEIREDO, 2003, p.116).

Fornicar é viver, diz o narrador-poeta de “A Confraria dos Espadas”, complementando

que, além disso, não há mais nada. No poema de Eliot, inspiração para tal idéia, o ciclo da

existência humana é composto por apenas três elementos: nascimento, cópula e morte. Estes

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dois últimos se entrelaçarão na maioria das histórias em que escritores se tornam personagens

de Rubem Fonseca. O amor, de orgasmos, e a morte, muitas vezes violenta, serão

praticamente indissociáveis em suas narrativas.

4.2 Eros e Tânatos

Como afirma o personagem de “Intestino grosso”: “sempre achei que uma boa história

tem que terminar com alguém morto.” (IG, p.460). Se afirmação fosse “sempre achei que uma

boa história de amor tem que terminar com alguém morto”, seria também deveras adequada.

De acordo com Ana Cristina Coutinho Viegas: “amar e escrever, assim como matar,

constituem palavras fundamentais na obra de Rubem Fonseca e representam três ofícios

realizados com refinamento pelos narradores de modo geral” (VIEGAS, 2002, p.38). Uma

breve retrospectiva dos enredos das histórias fonsequianas protagonizadas por escritores é o

suficiente para se perceber a recorrência do tema do amor e morte.

Em “Agruras de um jovem escritor”, Lígia comete suicídio, após ser abandonada pelo

narrador, que logo se enreda em suas próprias artimanhas ao falsificar o breve e implacável

bilhete de despedida deixado por ela, reescrevendo-o para obliterar as restrições a ele feitas,

sonhando, com isso, alcançar finalmente a fama. No entanto, acaba sendo preso sob a

acusação de tê-la assassinado, sendo a principal prova do crime justamente o bilhete

falsificado que fizera. Já em “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, amor e morte ganham

matizes típicos do Romantismo coetâneo ao seu personagem principal: Álvares de Azevedo.

O amor, físico, é fonte de medo. A morte, todavia se revela atraente, levando-o a ansiar por

um óbito precoce, que por fim se realiza.

No caso de Bufo e Spallanzani, o assassinato cometido por Gustavo Flávio, que matara

a amante, Delfina – a pedido dela –, acometida por uma doença incurável, demonstra como

um homicídio pode ser considerado um ato não meramente criminoso, mas uma ação de

piedade e até mesmo de amor. Na novela E do meio do mundo prostituto só amores guardei

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ao meu charuto, também protagonizado por Gustavo Flávio, o ciúme doentio de Luíza, sua

nova companheira, ocasiona a morte de várias mulheres com as quais ele se envolvera, além

do suicídio da própria, que atira no infiel parceiro – que sobrevive –, antes de se matar.

Em Diário de um fescenino, Rufus se envolve simultaneamente com duas mulheres,

mãe e filha. Quando a verdade vem à tona, Virna, a mãe, que apreciava certa brutalidade

durante o sexo, rompe com o namorado e o acusa formalmente de estupro, alegando que as

feridas em seu corpo foram feitas sob coação, e não como de fato ocorrera, ou seja, a pedido

dela. Para agravar a situação, ela mata um ex-amante, que a extorquia, com a arma de Rufus.

Ele acaba sendo preso supostamente acusado como assassino e estuprador. Só conseguindo

ser libertado graças ao empenho de seu advogado, que desembaralha a trama na qual seu

cliente se enredara.

Não se pretende aqui, como talvez possa sugerir o título desta seção, efetuar uma

análise psicanalítica sobre a freqüência com que o tema do amor e morte se apresenta na obra

fonsequiana, embora tal interpretação pudesse ser bem instigante. Busca-se apenas ressaltar

neste estudo a relevância que o amor – carnal – e a morte possuem para a representação da

figura do escritor nos livros de Rubem Fonseca.

Um caso em particular entrelaça erotismo e morte de maneira sutil e singular. Em

“Pierrô da caverna”, de O Cobrador (1979), os caminhos do desejo seguem desvios

complexos e ambíguos, abordando-se um caso de pedofilia. Fonseca constrói o conto

repelindo qualquer moralismo, evidenciando, assim, mais uma vez, sua habilidade narrativa

no tratamento de um tema tão polêmico.

4.3 Em busca de Sofia

O narrador e protagonista de “O Pierrô da caverna” é um escritor de meia-idade,

recém-separado da esposa, com quem mantêm poucos e desagradáveis contatos. Está

envolvido com uma mulher casada, que o visita esporadicamente. Ele vive isolado em um

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apartamento, sua caverna, ocupando seu tempo entre leituras e a escrita de novos trabalhos

ficcionais. Até conhecer, se apaixonar e se tornar amante de uma menina de doze anos, sua

vizinha, Sofia.

O conto se estrutura como um monólogo em fluxo-contínuo, sem paragrafação,

representando a oralidade do narrador, que registra em um gravador os acontecimentos por

que passa. Solitário, melancólico, mas também altivo, o protagonista, já nas linhas iniciais da

narrativa, demonstra não temer os apelos do desejo: “Existem pessoas que não se entregam à

paixão, sua apatia as leva a escolher uma vida de rotina, onde vegetam como abacaxis numa

estufa, como dizia meu pai. Quanto a mim, o que me mantém vivo é o risco iminente da

paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo, misericórdia.” (PC, p.477).

Ambos se conhecem em breves encontros pelos corredores do edifício onde moram.

Ele fica fascinado com a pulseira que a menina usava no tornozelo e tenta balbuciar algumas

perguntais banais sobre o cotidiano dela. Um dia, Sofia, inesperadamente bate à sua porta,

afirmando que sempre quisera conhecer o apartamento dele, e entra: “Tudo aconteceu

rapidamente, sem eu perceber bem de maneira lógica e lúcida a transação que ocorreu, como

se eu estivesse fortemente dopado, e de fato eu estava, pela assombrosa proximidade dela.

Depois ela se retirou, levando discos e livros.” (PC, p.480).

No decorrer da trama, o personagem menciona vários casos de pedofilia e as reações

que causaram. Diz que em Londres organizou-se uma associação de pedófilos e que seus

membros foram agredidos “por uma multidão de cidadãos irados, mulheres na maioria” (PC,

p.477). Relata mais dois outros casos. O primeiro ocorrido em uma favela brasileira, na qual

um carpinteiro, que possuía boa reputação na comunidade, é linchado por ter se envolvido

com uma criança: “Se ele tivesse feito isso com a irmã de Lucinha, que tem doze anos, acho

que o pessoal não batia nele, mas a Lucinha tem só oito aninhos” (PC, p.480), diz um dos que

testemunharam o linchamento. O segundo caso é sobre um homem em Israel que foi

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condenado à prisão por ter mantido relações sexuais com uma menina de doze anos. “Na

verdade os juízes deram como provada sua alegação de que fora seduzido por ela. Não

consegui fugir a tão vulcânica paixão, ele havia dito” (PC, p.480).

Tampouco o protagonista parece conseguir, ou mesmo querer, evitar tal paixão,

conforme ele próprio dissera anteriormente: o risco é que o mantém vivo. Ele evoca, ainda,

episódios famosos de pedofilia no âmbito artístico, em especial no literário:

A arte está cheia de meninas virando a cabeça de homens maduros, a de Malle, a de Nabokov, a de Kierkegaard, a de Dostoievski. Dostoievski seduziu uma menina de menos de doze anos e contou para Turgueniev, que não lhe deu importância. Sua culpa está projetada no Svidrigailov, de Crime e castigo, e em Stravogin, de Os Possessos, ambos pedófilos violadores. Cena do Diário de um sedutor: a menina desce da carruagem e deixa um pedaço da perna e eu, Kierkegaard, me apaixono avassaladoramente. (PC, p.482).

Dentre as citações acima, uma das mais famosas abordagens sobre pedofilia é a de

Vladmir Nabokov. No entanto, o paralelo entre o romance do escritor russo e o conto de

Fonseca revela que ambos possuem em comum basicamente o tema. O registro de Nabokov é

não raro satírico, especialmente quanto aos costumes da sociedade norte-americana dos anos

1950, sob os quais lança um olhar devastador. Humbert Humbert e Lolita representam, de

forma geral, os típicos casais da ficção nabokoviana: a do homem emocionalmente instável,

um tanto tolo, eventualmente um intelectual exilado como, por exemplo, Pnin, protagonista

do romance homônimo (1953); ou ingênuos, como Franz e Dreyer, de Rei, Dama e Valete

(1929), e Albino, de Riso na escuridão (1938). Eles se apaixonam arrebatadoramente por

mulheres do tipo femme-fatale, um tanto vulgares e muito ambiciosas, como o são,

respectivamente, Liza, Martha e Margot, que os manipulam descaradamente, conduzindo-os

amiúde ao desastre. Lolita (1955), a grosso modo, segue essas diretivas, tornando-se, porém,

mais complexa e ambígua por causa da pedofilia. Afirmar que Dolores Haze seduziu o

padrasto seria temerário, pois o relacionamento entre ambos revela nuances sutis demais para

definições categóricas. Entre eles parece haver um jogo de manipulações mútuas, ficando

difícil mesmo discernir quem está manipulando quem; quem é o sedutor e quem o seduzido.

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Aliás, um comentário de Nabokov sobre a natureza de seu livro serve como instigante

reflexão também para o erotismo presente na obra de Fonseca. “Certas técnicas usadas no

início de Lolita (por exemplo, o diário de Humbert) levaram alguns de meus primeiros

leitores a crer erroneamente que se tratava de uma sucessão de episódios eróticos, cada vez

mais intensos”, diz Vladmir, acrescentando que “quando eles cessaram, os leitores pararam

também, sentindo-se entediados e decepcionados” (NABOKOV, 1998, p.352). O escritor

russo disserta, ainda, sobre literatura erótica e/ou licenciosa do passado e a pornografia

contemporânea (demonstrando uma concepção muito similar à de Rubem, como se verá mais

abaixo):

Se é verdade que na Europa de antanho, e até o século XVIII (os melhores exemplos vêm da França, a libidinagem propositada não era incompatível com lampejos de comédia, com uma sátira vigorosa ou mesmo com a verve de um bom poeta num momento de devaneio lúbrico, também é verdade que o termo pornografia hoje em dia está associado à mediocridade ao comercialismo e a certas regras estritas de narração. A obscenidade precisa estar acasalada com a banalidade porque todo prazer estético deve ceder lugar à simples estimulação sexual, para agir diretamente sobre o paciente. [...] Assim, nas obras pornográficas, a ação tem de limitar-se à cópula de lugares-comuns. O estilo deve consistir necessariamente em uma alternância de cenas sexuais. (NABOKOV, 1998, p.352).

É freqüente, ou melhor, era freqüente considerar a ficção fonsequiana pornográfica.

Tanto que chegou a ser censurada durante a ditadura. Quando perguntado se era um escritor

pornográfico, o personagem de “Intestino grosso” responde: “Sou. Os meus livros estão

cheios de miseráveis sem dentes” (IG, p.461) – revelando que a verdadeira obscenidade não é

sexual, mas sim social. Um pouco mais adiante, define-se melhor o conceito, segundo ele, de

pornografia:

A maioria dos livros considerados pornográficos se caracteriza por uma série sucessiva de cenas eróticas cujo objetivo é estimular psicologicamente o leitor – um afrodisíaco retórico. São evitados todos os elementos que possam distrair o leitor do envolvimento unidimensional a que ele é submetido. São livros de grande simplicidade estrutural, com enredo circunscrito às transações eróticas dos personagens. As tramas tendem a ser basicamente idênticas em todos eles, há apenas diferenças de grau na escatologia e na perversão. (IG, p.465).

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E conclui dizendo que a própria complexidade de seus livros os exclui dessa categoria.

Com efeito, embora entremeada de erotismo, a obra de Fonseca não pode ser considerada

como meramente pornográfica. De acordo com Jean-Marie Goulemot:

O gestual sexual é, pois, condição necessária, mas não suficiente. A pornografia é uma estratégia de escrita. Ou antes, para que o texto pornográfico cumpra sua função, que é a de provocar o desejo de gozo em seu leitor, ele deve empregar uma estratégia de escritura que esteja em condições de produzir este resultado e unicamente este. (GOULEMOT, 2000, p.100).

Ora, as ficções de Rubem não pretendem atingir tais objetivos, não almejam provocar

meramente o desejo de gozo nos leitores. Tampouco apresentam estruturas narrativas

simplórias, muito pelo contrário. Suas descrições eróticas ou relatam fria e distanciadamente

os atos – como, por exemplo, no conto “O campeonato”, de Feliz ano novo (1979), uma

espécie de ficção científica, em que o sexo vira uma reles atividade competitiva, desprovida

de prazer, tornando-se algo parecido com o turfe – ou se aproximam do lirismo. Por exemplo,

o primeiro enlace entre o narrador e Sofia:

Eu sabia que ia ser naquele dia, senti-me dominado por espectrais alucinações, como os santos, e minha boca estava seca, meu Deus, ela tinha apenas doze anos, seu hálito ardente entrou pelas minhas narinas e extasiado vi o seu corpo se revelar, os pequenos seios redondos, a barriga enxuta por onde um fino fio de cabelos negros descia, até encontrar o púbis espesso de escuros pêlos que me engolfou como um poço, um abismo noturno de gozo e volúpia. Depois Sofia perguntou se o sangue no lençol era dela. E perguntou também se o orgasmo era uma espécie de agonia. Parecia que tudo havia sido um sonho, meu corpo todo formigava, dormente, e minha cabeça parecia ter explodido em miríades de ínfimas partículas que pairavam no ar como um gás denso e então entendi o que o poeta chinês queria dizer ao afirmar que a mente é ampla nuvem flutuando. (PC, p.485).

Em “Pierrô da caverna”, comparando-se com Lolita, levando-se em conta o que diz o

narrador, aparentemente, quem toma a iniciativa do relacionamento é a menina. Mas fazer tal

afirmação, em um caso como esse, talvez fosse simplista demais. Seja como for, estabelece-se

a relação, mas surge um contratempo – uma gravidez inesperada. Interromper a gestação se

torna urgente. E aqui se insere a morte nesta história de amor. Do ciclo eliotiano –

nascimento, cópula e morte –, faz-se necessário que a última impeça o primeiro. Difícil será

convencer o médico a realizar a operação:

Quantos anos ela tem?, perguntou ele, com aspereza. Dezesseis. Ele riu, os lábios grossos úmidos brilhantes puxados para baixo e disse num tom peremptório: ela não

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tem dezesseis anos. Se tivesse o senhor operaria?, perguntei. Talvez, ele disse. [...] Se ela tivesse dezesseis anos os riscos para a saúde da paciente seriam menores e ele não queria meter-se em confusões operando uma menina de onze anos. Ela tem doze anos, corrigi, involuntariamente. E o senhor com essa cara pierrotesca querendo me fazer de trouxa, disse ele rindo. Ela tem uma saúde de ferro, eu disse, revelando o doesto, envergonhado. Ele continuou rindo, balançando a imensa barriga, um riso baixo e musical. Boris Godunov. [...] Nós não podemos ter esse filho, doutor, eu disse humilde. Boris parou de rir e encostou o rosto no meu. [...] Por que não usou pílula, diafragma, camisinha, diu, coitus interruptus? Fazem besteira e depois vêm correndo para cá. [...] Não podemos ter esse filho, repeti, desanimado. Boris perguntou minha idade e quando eu disse notei que ele me olhou com mais simpatia. Mesmo assim não abandonou o eu estilo injurioso: mais pra lá do que pra cá, hein? Eu amo esta menina. Ah, o amor, o amor, sentenciou Boris. Tudo tem um ônus um preço, um imposto, uma carga, um gravame. [...] Vexame, ele entoou, há sempre um vexame à nossa espera. Mas o senhor tem sorte, farei esta loucura, deve ser a sua cara de parvo que me comove. (PC, p.489).

No fim do conto, aliviado por ter eliminado os delicados inconvenientes de seu enlace

amoroso com Sofia – “Eu amava Sofia, eu amava Sofia. Eu amo Sofia!” (PC, p.485) –, o

protagonista, melancólico, pierrotesco, retorna, com Sofia, à sua caverna e ao seu penoso

ofício, afirmando: “Nada mudou, nada vai mudar” (PC, p.490).

Em sua análise da narrativa, Luiz Costa Lima efetua uma leitura alegórica da trama,

considerando que o tema e o protagonista do conto representariam a situação atual do escritor

e sua relação com a vida, que lhe serve de matéria para ficção:

O personagem é um escritor que vive trancado em seu apartamento. Como diz a garota de 12 anos, não sabe assim o que se passa lá fora. Não desprezaria as amantes adultas e não se apaixonaria pela menina exatamente porque tem assim a impressão de aproximar-se da vida que lhe escapa? Não seria portanto o conto a alegoria, menos do estado da velhice, que do estado do escritor, que pretende estimular em si a paixão pela matéria? Logo no início de sua narração, ele declara: “o que me mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo, misericórdia”. [...] Seus instrumentos de trabalho são o risco da paixão e o gravador a tiracolo. Talvez o escritor, não apenas o aqui aludido, seja uma espécie de perverso: o mundo lhe importa, como já dizia Sartre, para que se converta em tinta impressa em páginas coladas”. (LIMA, Luiz Costa, 1981, p.156).

Tentar aproximar-se da vida que escapa, partir em busca de Sofia, manter-se vivo

através do risco da paixão para depois fazer disso tudo literatura. Eis talvez algo comum aos

personagens-escritores de Fonseca – o mundo, suas agruras e vicissitudes: o amor (carnal), a

morte, a glória, o fracasso, os júbilos, as misérias, enfim, a própria literatura, lhes interessa

para que se convertam em tinta impressa nas páginas dos livros.

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5. Conclusão

O objetivo deste trabalho foi analisar a representação da figura do escritor na obra de

Rubem Fonseca. Inicialmente, investigou-se a relação dos personagens-artistas – pintores,

dramaturgos e escritores – com os meios de massa, e que é marcada por uma ambivalente e

irônica perspectiva, voltada não só para o público e os intermediários da produção artística,

mas também para o posicionamento, não raro radical, dos próprios artistas.

No que concerne à profissionalização do ofício das letras, a perspectiva por parte de

alguns personagens é também ambígua. Em alguns casos, se percebe uma postura cínica com

relação ao mercado editorial, como no caso do escritor Gustavo Flávio, embora, por vezes, ele

efetue considerações inesperadamente contestadoras sobre sua atividade. Em outras situações,

os personagens se vêem em dificuldades para iniciar a carreira literária, entrando em conflito

com os interesses de algumas editoras, que não desejam investir em novos autores e propostas

estéticas, não obstante haver as que se empenham para fomentar o ambiente cultural através

justamente da publicação de estreantes. Há, ainda, casos em que a ânsia de ser reconhecido

implica em estratagemas arriscados e trágicos para certos personagens, como ocorre com o

protagonista de “Romance negro”, que alcança a glória, mas acaba, por isso, obliterando a

própria identidade e se vê preso à de um outro.

A busca pela fama será a ambição maior de muitos dos personagens-escritores, e

também dos escritores-personagens, fonsequianos. Sejam os diletantes, que vêem na literatura

mais um meio para atingir notoriedade do que um fim estético em si – redundando

freqüentemente em fracasso pela falta de talento. Sejam os que, em contrapartida, mesmo sem

talento, compram os serviços de terceiros para, ironicamente, tornarem-se autores respeitados,

sem terem sequer escrito uma linha – caso do protagonista de “Artes e ofícios”. Sejam os

profissionais, que labutam com afinco para conquistar o sucesso, embora, ao final de uma

vida inteira dedicada às letras, lamentam os desgastes e agruras de seu ofício, considerando,

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enfim, a glória como uma ilusão, caso do Joseph Conrad fictício criado por Fonseca.

Personagem que, além do mais, é assombrado pela inveja do talento de um jovem e finado

autor, Stephen Crane.

Fonseca, muitas vezes, transforma a vida e obra de certos autores em matéria para sua

ficção, como no caso do autor de O coração das trevas. A abordagem desses escritores-

personagens seguirá basicamente dois caminhos. No primeiro, o autor ocupa um papel

secundário na trama, embora essencial para o seu desenvolvimento, tornando-se verdadeiros

catalisadores da narrativa. No segundo caminho, os escritores são não apenas protagonistas,

mas também narradores. Isáak Bábel – em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos – e

Molière – em O doente Molière – são os representantes do primeiro caso. Já o supracitado

Conrad e o poeta romântico brasileiro Álvares de Azevedo se incluem no segundo. Este

último, aliás, no conto que protagoniza –“H.M.S. Cormorant em Paranaguá”– promove uma

instigante reflexão sobre as correlações entre política e literatura, questionando a identidade

individual e social do poeta perante a vida privada e pública.

Os personagens do autor podem ser considerados fesceninos, pois a dedicação que

devotam à atividade erótica é tão intensa que são raras as narrativas em que o sexo não ocupe

um papel relevante. Viver para eles é fornicar – e escrever. Percebeu-se ainda que na maioria

de suas histórias o amor – carnal – é praticamente indissociável da morte. E que alguns deles

não temem vivenciar os riscos da paixão, envolvendo-se, às vezes, em relações complexas e

interditas, como, por exemplo, o protagonista de “Pierrô da caverna”. Analisou-se também

que a obra fonsequiana, muitas vezes acusada de pornográfica, não se inclui neste tipo de

gênero, por causa de sua sofisticação estrutural e estilística. Ao contrário dos livros

pornográficos, que se lêem com uma só mão, os livros fonsequianos, por seu turno, são

daqueles que se lêem com ambas.

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Enfim, pode-se afirmar que Fonseca observa com muita ironia, ora cáustica, ora

amarga, a vida autoral, tão cheia de ambições e vaidades, de ilusões e desilusões, agruras e

vicissitudes. Retomando a idéia da síndrome de Camões, seus personagens-escritores, mesmo

com tantos percalços, resistem e persistem em seu solitário e penoso ofício.

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