Aguinaldo Peres Carlos Relva Charles Dias Joshua Falken

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Aguinaldo Peres NESTA EDIÇÃO: Carlos Relva Charles Dias Joshua Falken Leonardo Carrion Ubiratan Peleteiro Distribuição por www.creativecommons.org.br Fevereiro de 2008 Número 01

Transcript of Aguinaldo Peres Carlos Relva Charles Dias Joshua Falken

Aguinaldo Peres

NESTA EDIÇÃO:

Carlos Relva

Charles Dias

Joshua Falken

Leonardo Carrion

Ubiratan Peleteiro

Distribuição por

www.creativecommons.org.br

Fevereiro de 2008Número 01

2O MERCENÁRIO E O ABISMO

sta revista nasceu de um projeto criado e coordenado porescritores amadores.

A idéia inicial era bastante simples. Imagens de ficção científicaforam capturadas na Internet e sorteadas entre os participantes.Dentro de um prazo determinado, cada participante teve deescrever um conto, usando a imagem como tema.

Enquanto os contos eram devidamente preparados por umarevisora profissional, o formato da revista começou a ser definido.O resultado é este, a primeira edição da revista de ficção científicaBlack Rocket: 100% brasileira, do visual ao conteúdo.

Você também pode participar da próxima edição. Veja como, nonosso site: www.black-rocket.blogspot.com

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O Fantasma daDoca 6Aguinaldo Peres 06

RobbyCarlos Relva 12

Demônios doPassadoCharles Dias 18

A Solução porum FioJoshua Falken 26

CidadeSuspensaLeonardo Carrion 32

O Mercenário eo AbismoUbiratan Peleteiro 39

Editorial 04

Revista de Ficção CientíficaNúmero 01 - Fevereiro 2008

Coordenador e EditorCHARLES DIAS

[email protected]

RevisãoBIA NUNES DE SOUSA

[email protected]

EditoraçãoCARLOS RELVA

[email protected]

Para contatar os autores

Aguinaldo [email protected]

Carlos [email protected]

Charles [email protected]

Joshua [email protected]

Leonardo [email protected]

Ubiratan [email protected]

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EDITORIALNo universo da literatura há, basicamente, dois tipos de escritores. De umlado estão os que sonham com o estrelato, fama e dinheiro, os que queremser escritores profissionais. Do outro lado estão os que só querem ter suashistórias lidas e apreciadas: esses são os escritores amadores. Ser escritoramador não é fácil, ainda mais quando o gênero escolhido é a ficção cien-tífica. Por que? Simples: por conta do preconceito que ainda

ronda esse gênero, seja no meio editorial e cultural, ou mesmo entre leito-res. É só alguém dizer que gosta de ficção científica para que quem estejaperto torça o nariz (exceto se também apreciarem o gênero, claro).

Mas o preconceito não é o maior culpado de a ficção científica ser ummicro-nicho literário no Brasil. A culpa também não é das editoras, que

não acreditam ou apostam no gênero. A culpa não é dos leitores, que não se esfor-çam para acabar com o estigma de que ficção científica é coisa de louco ou nerd.Infelizmente, a maior parcela da culpa por essa realidade é dos escritores brasilei-ros de ficção científica.

Se sortearmos um leitor de ficção científica brasileiro e pedirmos para dizer o nomede três escritores do gênero, as chances dele citar um autor brasileiro são mínimas;com certeza, irá citar escritores norte-americanos como Asimov ou Clarke. Se fi-zermos a mesma coisa com um argentino, ele, com certeza, citará um autor argen-tino; se for um francês, idem. Será porque não temos escritores de ficção científicano Brasil? Claro que não. Temos vários, excelentes, que não deixam nada a desejarpara escritores de qualquer outro país. Então, o que acontece?

Quando alguém abre uma nova empresa de varejo, seja um cinema, uma loja deeletrodomésticos ou uma operadora de celular, a principal providência é fazer pro-paganda do novo negócio - afinal de contas, a propaganda é a alma do negócio. Sóque a maioria dos escritores brasileiros de ficção científica simplesmente não dãobola para isso. O resultado é que pouca gente teve a oportunidade de conhecer eapreciar a ficção científica brasileira, que se tornou uma loja que pouca gente sabeque existe e que, mesmo assim, continua não fazendo propaganda.

Por incrível que pareça, a Internet não ajudou muito a mudar esse quadro. Muitagente que escrevia ficção científica antes da Era Digital simplesmente desprezouesse novo meio de comunicação. Quem começou a escrever depois ainda não semobilizou para mudar as coisas. Enquanto há abundância de contos e livros digi-tais de ficção científica em inglês, espanhol, francês, russo e japonês, em portuguêsa produção literária digital do gênero é mínima e com divulgação limitadíssima.

A Black Rocket é uma tentativa de fazer a diferença nessa realidade patética, oresultado da união de escritores amadores de ficção científica que acreditam que aInternet é uma ótima forma de espalhar seus escritos, e que isso pode ser bem feito,com qualidade e bom gosto. Torcemos para que sejamos somente a primeira demuitas revistas digitais de literatura de ficção científica e fantasia a mostrar o talen-to dos escritores amadores brasileiros.

Charles DiasCoordenador e Editor

[email protected]

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O Fantasmada Doca 6

Aguinaldo Peres

Havia alguma coisa de muito estranho na doca 6,algo que por quase dois séculos escapou ao en-tendimento de humanos e robôs. O que estariacausando aquelas anomalias, aqueles sons estra-nhos, aqueles alertas sem motivo aparente? O quehá de tão estranho na doca 6?

7O FANTASMA DA DOCA 6

[22 de junho de 2134]

Com um estalo, o equipamento de escuta começou a transmitir:

— Emergência! ... particular ... solicita liberação ... atracar na doca 6. Problema nos ...manobradores ... citamos equipe de emerg ... Repetin ...

A única pessoa presente na sala tentou responder, porém tudo o que conseguiu foi fechar ocanal de comunicação e acidentalmente apagar a chamada dos registros, antes de fugir commedo de ser responsabilizado.

Quando o controlador retornou à sala com seu cartão de crédito, viu a embalagem de mini-pizza sobre a bancada, mas não viu o entregador. Deu de ombros e guardou o cartão no bolso domacacão. Com o sindicato dos estivadores em greve, nem se importou em checar o equipamentode rádio e se pôs a comer. Estava no terceiro pedaço quando todos os alarmes dispararam.

[6 de janeiro de 2136]

Do lado de fora da doca 6, onde ocorrera o grande acidente de 2134, Cintya vestia o trajepressurizado sobre o maiô e reclamava.

— Por que eu?

— Porque você é uma das poucas engenheiras com certificado de operação no vácuo.

— Mas vivemos numa colônia espacial! É como morar numa ilha e não saber nadar...

Luther apenas sorriu. Havia outros profissionais aptos à tarefa, porém gostava de apreciar aforma como o traje justo realçava as curvas da colega. Ele a ajudou a colocar o colete com oreservatório de oxigênio e os módulos de bateria. Depois, verificaram juntos a integridade dotraje e seus sistemas.

A engenheira atravessou a câmara de descompressão instalada há um mês pela turma demanutenção e caminhou cuidadosamente pelos escombros deixados pelo acidente; vigas torci-das e chapas de aço rasgadas. O resto havia sido levado pelas equipes de resgate, pelas segurado-ras e pelos catadores de sucata.

— Até aqui está tudo normal. Vou seguir agora para o local onde o pessoal de manutençãoestava.

— O.k. Caminhe com cuidado.

As docas ocupavam o último nível da gigantesca estrutura onde a gravidade era apenas trêsquintos da gravidade terrestre. Isso facilitava a carga e descarga dos cargueiros comerciais noshangares e também a manutenção nas docas. Cintya avançou para o centro onde o piso de metalfora parcialmente seccionado com o impacto.

— Nada ainda.

— Tente fazer alguma coisa, barulho, sei lá.

Em resposta ao pedido, chutou uma placa de aço que saiu rodopiando silenciosamente nabaixa gravidade, ergueu-se um pouco do chão e ricocheteou numa parede até parar. Cintya sorriupor trás da máscara. Ela se lembrava das muitas teorias esdrúxulas propostas pelos colegas docurso de engenharia que iam de alienígenas a fantasmas. No final das contas, a história do Fan-tasma da doca 6 era apenas uma história.

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Olhou para o alto, onde podia ver o tremeluzir do brilho do campo eletromagnético dacolônia através da rede metálica que cobria o rombo deixado pelo iate espacial. Fora muita sortenão existirem vítimas da colisão. Não havia ninguém na instalação, por causa de uma greve, enem na pequena nave.

— Nada. Nem sons de correntes, nem uivos espectrais, nem luzes piscantes. Vou até ooutro lado da estrutura apenas por desencargo de consciência.

— O.k!

Enquanto caminhava ela pensava no grande mistério: como uma nave sem tripulantes ecom o piloto automático desligado poderia ter deixado a órbita de Ganímedes e voado quasequatro unidades astronômicas para atingir exatamente o centro da doca 6? Cintya quase podiaver a simulação da caixa-preta: o iate, em trajetória elíptica para a Terra, mudando subitamentede direção e aproximando-se da colônia espacial. Ajustara a direção e a velocidade conforme omanual de procedimentos e, por fim, atravessara a porta da doca. A nave arrastara os braços deatracação, cortando o metal ao mesmo tempo em que sua carcaça era rasgada e uma grandelíngua de fogo formada por ar e plasma escapava para o espaço. Fim.

Ou assim se pensava até que, há um mês, após meses de investigação e de um demoradoprocesso de licitação, o trabalho de reconstrução fora iniciado e interrompido. Motivo: atividadeparanormal. E lá estava ela, como a heroína de algum filme B de terror, caçando fantasmas. Teriarido se...

[24 de janeiro de 2227]

Beto encostou a testa reverentemente no metal frio. Finalmente havia encontrado a lendáriadoca 6, abandonada e soterrada por novas camadas metálicas enquanto a colônia espacial seampliava.

— Roy, comece a gravar.

O pequeno robô customizado ergueu dois braços munidos com holofotes para iluminar orapaz de 16 anos, fantasiado de explorador do século XIX.

— Sou Humberto Bisk Teixeira, da Sociedade Mitológica do Espaço Profundo. Apósinfindáveis meses de pesquisa, conseguimos localizar a doca 6, apagada dos registros históricoshá dezenas de anos. Atrás desta porta de aço, ocultam-se segredos e mistérios que as geraçõespassadas acharam por bem relegar às trevas. Mas nós, da SoMEP, lançaremos uma luz nessaescuridão.

— Mas antes de abrirmos a porta para os mistérios da doca 6, irei vestir essa máscara.Afinal, não sabemos em que condições se encontra o ar no interior — Beto colocou a máscara,fez sinal de positivo para a câmera e liberou o mecanismo da tranca da porta estanque. A chapade aço deslizou para o lado, o silvo do ar escapando, um ar frio que fez a pele do rapaz se arrepiar.Próximo ao chão uma nuvem de pó se ergueu.

A um sinal, o robô avançou iluminando o interior do hangar.

— Como podem ver, o chão está coberto por uma camada de poeira e não existe qualquermarca de pés ou rodas, o que testemunha o abandono do local. Me sinto como os antigos explo-radores, entrando numa primitiva catacumba perdida. Agora, seguiremos os passos da engenheiraCintya Luther, a última pessoa a testemunhar fenômenos sobrenaturais que ela relatou, de forma

AGUINALDO PERES

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oficiosa, a uma de suas netas.

Sobre seus quatro pequenos pneus, o robô deslizou lentamente para dentro, sempre filman-do os locais que iluminava. Humberto sentia orgulho de si, sua voz continuava firme apesar domedo que sentia, pois nunca estivera em um nível tão baixo. Na verdade, era um nível há muitoabandonado e somente liberado para as equipes de manutenção. Respirou fundo e seguiu seurobô, mantendo-se dentro do halo de luz. Afinal, se quisesse tornar-se um verdadeiro jornalistainvestigativo precisava ter a coragem de enfrentar o desconhecido e quebrar algumas regras.

O robô parou no centro do hangar, apenas o leve zumbido do motor elétrico marcando osilêncio. Beto se posicionou sob a luz.

— Estamos exatamente no centro da doca 6. — Sua voz baixa e solene ecoava nas paredesdistantes. — É a partir deste ponto que todos os relatos afirmam que estranhos eventos ocorre-ram. Ilusões psicossomáticas? Histeria coletiva? Manifestações sobrenaturais? Ou interferênciaalienígena? Tirem suas próprias conclusões. Abram seus olhos e ouvidos e preparem-se para oextraordinário.

O rapaz gesticulou e o robô se pôs em movimento. Ele seguia bem próximo do robô, osangue pulsando como um tambor em seus ouvidos. E então, a escuridão. Cego, Humberto agar-rou-se ao robô, suas mãos tateavam desesperadas pelo botão de liga/desliga pressionando-o vári-as vezes, sem sucesso. A respiração ofegante embaçou a máscara e lágrimas já escorriam peloseu rosto quando a luz voltou.

— Maldita lata-velha! — Socou, aliviado, a carenagem de plástico.

As luzes iluminaram Humberto e a cabeça do robô girou para focar a câmera do rosto do rapaz.Uma voz metálica vibrou no alto-falante:

— Quem é você?

[7 de novembro de 2291]

— Ei, chefe! Tem uma porta trancada aqui.

— Trancada? Impossível! — o líder da equipe checou a fechadura eletrônica que havia sidodeliberadamente travada. — Maldição! Algum espertinho trocou as senhas. — retirou um decoderda cintura e reconfigurou as senhas.

A porta se abriu e um pequeno robô saiu bamboleando pela porta. Era um modelo antiqua-do, enferrujado. Tinha o plástico manchado, um dos pneus furado e um fio ligava-o a algumponto no interior escuro.

— Levem-me ao seu líder. — O som saiu chiando do alto-falante.

— Mas que porcaria é essa?!?

— Parece ser o brinquedo de alguma criança, chefe. O que vamos fazer com ele?

O responsável olhou carrancudo para o subordinado e para o robô, indeciso entre qual delesseria o mais inútil.

— Carlão, o que a gente veio fazer aqui?

— Ué, chefe, viemos abrir todas as portas e desligar os circuitos elétricos, antes de inundar oanel do nível 11.

O FANTASMA DA DOCA 6

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— Exato. Então pega essa coisa e joga no lixo com o resto da sucata, enquanto eu desativoesta seção.

[27 de fevereiro de 2292]

Apesar de não existir na colônia espacial o que a sociedade convencionou a chamar de dia,o tempo continuou a ser medido em períodos de 24 horas, divididos em três turnos que recebiamo nome de 'Manhã', 'Tarde' e 'Noite' por conveniência. E foi o controlador do período noturnoquem recebeu a transmissão.

— Transportador de sucata, prefixo CCS-64DK, com destino a Terra, pede autorização paradeixar a Doca 6.

O controlador estranhou a voz do piloto automático, mas não o suficiente para interrompero procedimento de decolagem.

— CCS-64DK, autorização concedida, liberando garras de atracação. Aguarde a aberturatotal do portão.

A mão do controlador ficou suspensa sobre o painel de controle, indeciso. O colega ao ladocomentou:

— Mas nós não temos uma doca de número seis.

Os dois ainda se encaravam quando os alarmes soaram.

AGUINALDO PERES

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Carlos Relva

Robby

Um robô pode amar? A paixão pode encontrar mo-rada em um peito de engrenagens e circuitos?Cientistas dizem que não, estudiosos dizem que sim.O que realmente importa é que aquele robô acredi-tava que amava e lutaria para defender seu objetode adoração, nem que para isso precisasse matar.

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Creio que robôs não se recordam, mas apenas acessam arquivos antigos. A diferença podeparecer insignificante ou sem sentido para um humano, mas é fundamental para uma máquina. Epara embasar melhor minha afirmação, tenho quatro fatos a apresentar:

Primeiro fato

Ao contrário do homem, é muito complicado para nós, robôs, recordarmos sozinhos nossaslembranças porque temos registros demasiadamente detalhados de tudo o que vivemos. É grandea dificuldade em discernir os aspectos mais relevantes de um momento vivenciado. Sempreprecisamos do foco de um ser humano.

Sei que essa dificuldade pode lhe parecer estranha, mas vou dar um exemplo simples quetalvez ilustre bem o problema: um beija-flor visitando um canteiro de flores. O que é mais impor-tante? O belo e rápido movimento do beija-flor, que se assemelha ao vôo dos insetos? A polinizaçãoda flor, que garante a perpetuação da planta? O maravilho artifício da natureza, que desenvolveflores que atraem a ave? Ou a incrível aerodinâmica de todas as aves, que proporciona sua fantás-tica capacidade de voar? Você consegue entender? Para um robô, todas as informações são im-portantes. Podemos, após observar, relacionar os dados de uma cena e cruzá-los com informaçõesantigas chegando a resultados infinitos! Deixe um robô em frente a um cenário com muitasinformações e o verá entrar em estado contemplativo por tempo indeterminado. Humanos riemdessa aflição robótica!

Segundo fato

A capacidade de reviver intensamente as recordações pode acarretar, em alguns robôs,outro problema muito mais sério do que o de não definir relevâncias: perder-se em suas própriaslembranças e acreditar que tudo o que recorda está acontecendo no momento presente. É um tipode psicose cibernética que não tem como ser revertida nos casos mais acentuados, obrigando osproprietários do robô a deletar todas as memórias. Acho que conseguem compreender que essaação significa para nós a própria morte, não?

Terceiro fato

Existem ainda casos mais graves, quando robôs crêem que lembranças alheias são suas.Suponho que uma boa analogia para essa falha no processamento de dados seria um humanocom um distúrbio de troca de personalidade. Mas é muito raro, com apenas dois casos registradosem robôs.

Mas, acreditem, nem todas as lembranças de um robô precisam ser digitais. Alguns de nósguardamos um ou outro objeto físico. A explicação para isso? Um capricho robótico ou umamania de colecionar suvenires com a desculpa de serem lembranças físicas. Afinal, como asrecordações são tão fielmente cristalizadas em nossas mentes, não há outra explicação para isso.“Focar uma lembrança?”, você poderia arriscar. Definitivamente, não. Esses objetos são apenastroféus de um momento inesquecível, entre todos os momentos inesquecíveis que é a mente deuma máquina.

O meu troféu é uma fotografia.

ROBBY

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Quarto fato

E, finalmente, o quarto e raríssimo fato, que antes de ter acometido minha mente era apenasdescrito em teorias ciberfilosóficas: as chamadas memórias fragmentadas.

Antes que eu explique o que é isso, gostaria de finalmente me apresentar. Eu sou Robby eapesar de o trabalho de juntar os fragmentos do meu passado ter sido muito árduo durante osúltimos anos, acho que consegui montar um panorama razoavelmente coeso da minha própriahistória. O começo é bem fácil de contar e, ironicamente, o mal em minha mente – a fragmenta-ção da minha memória –, contribuiu para que eu pudesse definir as relevâncias!

Pois bem. Fui construído no quarto planeta da grande estrela Altair, na constelação deAquilae. Meu criador foi o dr. Edward Morbius, que usou a tecnologia ancestral dos antigosKrells, uma civilização extremamente avançada e já extinta. Minha finalidade? Servir ao doutore a sua adorável filha, Altaira Morbius.

Como disse, minha lembrança física é uma fotografia, que guardo desde meus tempos emAltair-4. É uma foto que me mostra junto da bela Altaira. A composição me retrata ligeiramenteinclinado, colocando um sapato em um dos delicados pés da filha do doutor. Foi obtida com umacâmera antiga, uma verdadeira relíquia de um dos tripulantes da nave Belerophon, que levouMorbius e sua esposa para o planeta. Mas quem tirou a foto não foi seu antigo dono, que já seencontrava morto, e sim o próprio doutor, em um de seus raros momentos de bom humor.

Havia um perigo adormecido em Altair-4, um monstro criado pelos pesadelos da tripulaçãoda Belerophon. Quando os homens da nave C-57-D dos Planetas Unidos, comandada pelo co-mandante J. J. Adams, vieram resgatar os sobreviventes, encontrando apenas Morbius, sua filhae eu, o monstro voltou a agir implacavelmente. Esses desagradáveis problemas resultaram namorte do doutor Morbius. Eu e sua filha acabamos a bordo da nave de resgate.

Servi na nave como uma espécie de segundo navegador. Era um trabalho interessante queocupava meus circuitos integralmente. Infelizmente, meus dias no cruzador estavam contados,devido ao sentimento de ciúmes que o comandante alimentava. Não consigo definir claramentecomo isso aconteceu, mas estava ligado a meu relacionamento com Altaira, por quem ele estavaapaixonado.

Após a minha expulsão da nave, arquitetada por Adams, que alegava que eu oferecia riscoaos tripulantes devido às minhas características Krell, minha memória começou a se fragmentar.São recordações frágeis e nebulosas, trechos de aventuras em planetas estranhos, galáxias dis-tantes e realidades alternativas que povoam e confundem minha mente digital. Lembro-me decomputadores que queriam dominar mundos, de famílias perdidas no espaço. Terras devastadasonde homens e mulheres vagavam em arcas modernas, levando um pouco de esperança aosmenos afortunados. Ou heróicas amazonas quase tão belas e formosas quanto a pequena Altaira.Altaira, minha adorável menina, que eu acreditava estar definitivamente afastada de mim, pelavastidão do espaço e inclemência do tempo...

Nunca me desfiz da fotografia.

O reencontro

Desafiando todas as probabilidades, hoje vou rever Altaira! Estou a caminho de sua novacasa no planeta Terra, uma bela residência com grandes janelas panorâmicas e uma vista privile-giada. Já é noite. Toco a campainha e prontamente o portão se abre. Fico entusiasmado com a

CARLOS RELVA

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idéia de que ela também esteja ansiosa por me rever. Subo as escadas e chego à sala principal.Altaira está lá. Ela veste um traje simples, mas elegante. Está linda.

— Robby, que prazer em vê-lo! — diz Altaira. — Foi o estúdio que te mandou aqui?

Neste instante entra no recinto um homem de porte atlético. É o comandante Adams! Ele seaproxima de Altaira, parece aflito, e tenta afastá-la de mim. “Não! Desta vez, não a perderei!”,pensei.

Nos momentos seguintes uma sensação estranha percorreu meus circuitos. Seguro firme-mente o braço de Adams e arremesso o seu corpo em direção à janela. O vidro tenta conter oimpacto bravamente, contorcendo-se como borracha, mas acaba espatifando em inúmeros frag-mentos arredondados. O corpo do comandante cai no piso da garagem. Altaira corre em minhadireção aos prantos. Ela está confusa e assustada. Bate em mim várias vezes com os punhosfechados. Abraço-a forte, como um namorado apaixonado, apertando seu peito contra o meu,sentindo o ar esvair de seus pulmões rapidamente.

Quando Altaira já está desfalecida a porta atrás de mim é arrombada e sinto um disparoparalisante. Por um momento, tudo se torna escuridão. Quando recobro parcialmente os sentidosvisuais e auditivos, percebo que a sala está repleta de policiais. Um dos homens se dirige para ajanela já totalmente restituída.

— Foi uma queda e tanto, detetive! — diz um policial de cabelos grisalhos. — Ele é um dosatores do novo filme, não é?

— É; assim como ela — diz outro homem, agachado ao lado de Altaira. — Ambos partici-param da refilmagem de “O Planeta Proibido”. A segunda refilmagem, se não me engano. Eentão, como o cara está?

— Todo arrebentado, mas vai sobreviver. Já chamaram a equipe médica e...

Apesar de imobilizado, visualizo um pequeno veículo aéreo pousando na garagem, próxi-mo ao comandante Adams.

— O plano de saúde desses caras deve ser muito bom! Os médicos já chegaram. — diz opolicial. — E a atriz?

— Teve sorte, também está desmaiada, mas não sofreu tantos ferimentos.

Então, o velho policial se aproxima de mim.

— Esse robô foi usado no novo filme?

— Não, — diz o detetive — é uma cópia com inteligência artificial de “Robby, o Robô”, de1956. Estava na exposição dedicada ao robô, durante o coquetel de lançamento do novo longa-metragem, junto com figurinos e cenários inspirados no filme original e uma lista completa detodos os filmes de que Robby participou.

— Acha que é por isso que o robô pirou? — pergunta o policial. — Pensou que era real-mente Robby?

— Acredito que sim. Ele fugiu da exposição e veio direto para cá. Liguei para avisá-los doperigo, mas o ator que me atendeu não teve tempo de se proteger ou à namorada. O robô já estavana casa.

— E como você descobriu que ele atacaria a atriz principal do filme?

— Uma das atrações da exposição é um álbum de fotografias da produção do clássico de

ROBBY

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1956. Percebi que uma das fotos, a de Robby com a atriz Anne Francis, havia sido arrancada.Como Anne interpretou Altaira, supus que o robô enlouquecido poderia estar no encalço da atrizque reencarnou o papel.

— Uma bela dedução. E salvou a vida de duas pessoas! — congratulou o policial. — Masesse robô não me parece completamente desligado...

— E não está, o cérebro mnemônico continua ativo. Mesmo se o robô for desligado, issocontinua funcionando. Fica constantemente processando dados, cruzando informações. Já vemassim de fábrica. Provavelmente foi aí que o problema começou e a pobre máquina nem se deuconta. Quando os registros caem nessa plataforma secundária, o robô nem fica ciente disso.

— Poderíamos, então, dizer que é o subconsciente dele?

— De certa forma, sim.

Mergulhei novamente na escuridão e não emergi mais.

O sonho

A radiação dos primeiros raios do sol de Altair-4 é captada pelos meus sensores internos decalor. Como Morbius programou, é hora de despertar. Estou novamente em meu verdadeiro lar.

— Acordou, dorminhoco? — diz Altaira. — Venha, quero dar um passeio no jardim. Estáum dia maravilhoso!

É realmente uma manhã radiante. Posso ouvir o canto dos pássaros que sobrevoam o jar-dim de Morbius. Posso ver as flores desabrochando. E tenho a certeza íntima que o velho doutornão está em casa. Não há mais ninguém no planeta, apenas eu e Altaira.

Sei que o que aconteceu na casa da atriz e aquele diálogo entre o detetive e o policial nãoforam um devaneio. É o registro mais concreto e fidedigno que tenho armazenado em minhamente há tempos. Também acredito na possibilidade de minhas divagações sobre as dificuldadesde um robô recordar lembranças serem apenas alucinações na mente de uma inteligência artifici-al, que busca desesperadamente a solução para montar uma realidade própria e coesa.

Por que minhas idéias fluem melhor agora? Será por causa do coma a que fui induzido? Eessa realidade fantástica num planeta concebido pela criatividade humana? É minha mente se-cundária? Estou sendo completamente deletado e desativado? Ou tudo já ocorreu e os técnicosestão carregando minhas memórias novamente?

Altaira está se banhando no lago. Seu frágil corpo nu nada com a desenvoltura de um peixe.Enquanto a vejo, minhas dúvidas vão perdendo importância. Acredito que isto é o mais próximoque um robô pode chegar de sonhar. E podem ter certeza de que vou viver esse sonho intensa-mente, enquanto durar.

CARLOS RELVA

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Demônios doPassado

Charles Dias

Em um mundo que começa a esquecer seu passadosangrento e violento, a esperança convive com a de-vastação, a prosperidade se sobrepõe a velhos pecadosde guerra. Nesse mundo de contrastes, uma mulher,acostumada a apagar o passado em nome do futuro,terá de se confrontar com seu maior pesadelo.

19DEMÔNIOS DO PASSADO

“A Grande Invasão foi um capítulo especialmente sangrento em nossa história. OsInvasores surgiram das profundezas do espaço e tomaram nosso mundo de assalto.Por falha deles e sorte nossa, não foram rápidos o suficiente para evitar que focosde resistência fossem formados. Em um segundo momento, a resistência se coorde-nou e conseguiu, após anos de luta, expulsar os Invasores não só de nosso planeta,mas de todo o sistema solar.

Ainda hoje, uma década depois do Dia da Libertação, a presença dos Invasores sefaz sentir nas velhas feridas de guerra, nos milhões de desaparecidos e, principal-mente, na presença vestigial de sua mais infame arma de dominação: soldadosclonados de nosso próprio DNA, idiotizados para aceitarem seu comando e que,abandonados à própria sorte, continuam lutando, como se seus senhores ainda do-minassem o planeta”.

Trecho do prefácio de “História comentada da Grande Invasão”

***

A chuva cai pesada sobre as ruínas da cidade destruída, imersa na escuridão da noite. Umvulto caminha silenciosamente por entre restos de carros e prédios demolidos. Então fica imóvel,como um animal farejando. De repente, algo grande e pesado ataca, saltando no escuro. Encontrasomente o chão, um segundo antes de receber uma violenta descarga elétrica que ilumina a noitecom um brilho azulado e o arremessa contra uma parede. Outros dois atacantes surgem dassombras. Movimentos rápidos e violentos na escuridão. Nova descarga elétrica arremessa maisum atacante desacordado ao ar. Finalmente um último clarão, e está tudo acabado.

Uma nave surge no céu com os faróis ligados e gira sobre os escombros. Assim que pousa,um homem desembarca:

— Dessa vez você teve sorte, esses clones são mais idiotas que de costume — brincou.

— O que importa é que eu os cacei em uma hora e quarenta minutos. Isso significa quevocê perdeu a aposta. Estou errada, Mariko? — disse a mulher, vestida com uma armadura táticaflexível negra como a noite. Sentada sobre um grande bloco de concreto, ela tem a seus pés trêshomens com rostos idênticos, imundos e desacordados.

— De jeito nenhum, chefe — respondeu a piloto da nave.

— Isso que dá trabalhar com mulheres, elas sempre se unem contra os homens — reclamouo homem, em tom de brincadeira.

— Vamos levá-los para o distrito e depois você vai pagar a aposta que perdeu — concluiua mulher, saltando graciosamente ao chão.

***

No bar lotado, as garçonetes tinham de se contorcer para levar as grandes bandejas carrega-

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das de bebidas. Uma banda se apresentava em um pequeno palco tocando velhas músicas derock, as mesas estavam todas ocupadas e uma pequena multidão se acotovelava ao longo docomprido balcão de alumínio, bebendo e conversando.

— Que tal oferecer uma bebida a um irmão de armas, major? — Irina ouviu uma vozmasculina sobre seu ombro. Ao virar, deparou-se com um rosto que não via há muito tempo.

— Mayers, é você mesmo? — perguntou a mulher, reconhecendo seu sargento dos temposda guerra.

— Sim, senhor — respondeu, fazendo uma continência.

— Deixe de bobagem e vamos tomar algo pelos velhos tempos — convidou Irina.

Assim que chegaram à mesa onde estavam Mariko e Lopez, Irina fez as apresentações.Mayers continuava o mesmo homem forte de sorriso largo. Um homem de aspecto inteligente oacompanhava e foi apresentado como seu empregador.

— Ouvi dizer que você está no ramo da captura de clones — disse Mayers, antes de tomarum gole de cerveja.

— É um bom negócio, rendoso e ajuda a manter a forma. Lopez cuida do equipamento,Mariko pilota e eu caço — respondeu Irina.

— É exatamente por isso que estamos aqui. Phil, os detalhes são com você — disse o ex-sargento. O estranho que acompanhava Mayers limpou a garganta antes de falar:

— Tenho uma fábrica de processadores quânticos em Chatakawa e estamos enfrentandoum problema sério com clones. Contratei Mayers como chefe de segurança e ele sugeriu procurá-la para cuidar do problema.

— Por que alguém abriria uma fábrica em Chatakawa? Naquele lugar só tem areia e solescaldante — perguntou Lopez.

— Estamos lá exatamente pelo sol. Nossa planta é totalmente alimentada por energia solare não há melhor lugar para instalar painéis solares que em Chatakawa — respondeu Phil.

— E qual é o problema com os clones? — perguntou Irina, fazendo sinal para a garçonetetrazer outra rodada de bebidas.

— Recentemente, terminamos de instalar um novo campo de coletores solares e desdeentão já sofremos dois ataques de um bando de clones que não sabíamos que existia na região.Por sorte, não conseguiram fazer estragos consideráveis, até agora — respondeu o empresário.

— Pensava que Chatakawa já tivesse sido declarada livre de clones — comentou Mariko.

— Eles estão em todos os lugares, esses malditos sabem se esconder — respondeu Mayers,com desgosto.

— Vocês não têm seguranças para cuidar disso? — perguntou a ex-major.

— Já enviamos várias equipes atrás do bando sem sucesso. Por isso Mayers sugeriu que omelhor seria procurarmos você e sua equipe — respondeu Phil.

— Vai custar caro — disse Irina.

— Dinheiro não é problema — respondeu o empresário com a certeza de quem pode gastargrandes somas sem pensar muito.

CHARLES DIAS

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O restante da noite foi, para Irina, uma mistura de presente e passado. Alegria por estar vivae dor pelas feridas que nunca cicatrizavam por completo. Quando chegou em casa, tomou umbanho demorado e chorou amigos que viu tombar. Somente com a ajuda de dois tranqüilizantesconseguiu pegar no sono, já tarde da noite.

***

Alguns dias depois da conversa no bar, o grupo viajou para Chatakawa em uma grandenave de transporte. Durante o vôo, reuniram-se para tratar dos detalhes do trabalho.

— Vocês já nos mostraram mapas, fotos dos estragos causados, um punhado de informa-ções inúteis, mas onde estão as gravações em vídeo dos ataques? — perguntou Irina, irritada.

— Não temos nenhuma — respondeu Phil, visivelmente constrangido.— A primeira coisas que os clones fizeram foi destruir as câmeras de segurança —comple-

tou Mayers.

— Clones não costumam fazer esse tipo de coisa quando atacam — disse Lopez, em tompreocupado.

— A não ser que sejam clones de segunda geração — disse Irina, com desgosto.

— Como assim? Há mais de um tipo de clone? — perguntou Phil.— Nos últimos meses da guerra, os Invasores usaram uma nova geração de clones, híbridos

com alguma raça alienígena, mais fortes, inteligentes e perigosos que os clones comuns. Quandoforam expulsos, os Invasores deixaram todos os clones para trás. Desde então, a prioridade doComando Militar foi caçá-los e abatê-los antes dos clones de primeira geração. Esses são maisum incômodo do que um perigo. Acreditava-se que a segunda geração havia sido extinta, masesses ataquem indicam que alguns conseguiram escapar. Por algum motivo, somente agora vol-taram a agir — explicou Irina.

A reunião terminou muito antes da viagem e depois de um rápido almoço, cada um procurouum lugar onde pudesse tirar um cochilo ou fazer alguma outra coisa para passar o tempo. Irinasentou-se junto a uma das grandes escotilhas redondas e ficou observando a paisagem, enquantotentava descobrir o que a incomodava naquela missão. Sabia que alguma coisa não fazia sentidonaqueles ataques, mas não conseguiu precisar o que era. Isso a fez pensar que precisariam de muitomais informações do que tinham antes que pudesse pensar em um plano de ação.

Os dias seguintes à chegada na fábrica foram de planejamento e preparação, até que final-mente estavam prontos para começar a trabalhar. Numa noite escura com ventos fortes, Irina partiucom sua equipe e Mayers em uma nave de transporte rápido. Foram em direção a uma velha cidadeabandonada, ao sul da fábrica, e que a ex-major acreditava ser o provável esconderijo do bando declones. Quando já estavam perto da cidade, Mayers foi chamado por Phil pelo rádio.

— Mayers, fomos atacados novamente, dessa vez no portão cinco. Conseguimos conter oataque. Eles fugiram rumo ao sul, em direção à cidade abandonada — comunicou Phil, nervoso,pelo rádio.

— Irina, essa é nossa chance de pegar esses desgraçados — disse Mayers, animado.

— Lopez e eu ficaremos na cidade, você volta com Mariko e os segue a partir da fábrica,

DEMÔNIOS DO PASSADO

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com seu pessoal. Se não encontrarmos nada aqui, vamos ao seu encontro e então os pegamos emduas frentes — respondeu a ex-major com tranqüilidade.

A nave sobrevoou baixo a cidade abandonada para que os dois vultos saltassem, e entãotomou rumo norte.

***

A ventania produzia sons estranhos na cidade abandonada. Com o auxílio de uma série defiltros visuais não demorou muito para que a Irina captasse uma leitura térmica anormal em umdos velhos prédios abandonados, intensa demais para ser um dos pequenos animais do deserto,mas muito fraca para ser um clone.

— Captei uma leitura térmica anormal em um prédio ao sul — disse a ex-major pelocomunicador.

— Você não é a única, também detectei uma flutuação magnética ao norte da cidade que ébem estranha — respondeu Lopez.

— Eu verifico a leitura térmica e você, a flutuação magnética. Não vá bancar o herói. Sesuspeitar de algum perigo, faça contato imediatamente — ordenou Irina, enquanto caminhavacom cuidado em direção à rua larga varrida pelo vento.

O prédio estava meio enterrado na areia e todas as entradas estavam bloqueadas. Comagilidade, Irina saltou para o telhado, onde encontrou uma telha solta que retirou sem dificulda-de. Antes de saltar para dentro do prédio, checou a carga elétrica da armadura para ter certeza deque poderia se defender se fosse preciso. Por alguma razão, que ela mesma não compreendeu,ajustou a descarga para potência máxima, o suficiente para derrubar meia dúzia de clones gran-des de uma só vez.

Era um grande armazém vazio. O filtro infravermelho mostrava somente uma mancha co-lorida a algumas dezenas de metros, era a fonte de calor que havia captado. Depois de tentar maisalguns filtros, Irina teve certeza de que poderia ligar as lanternas da armadura sem que issorepresentasse perigo. Caminhou com cuidado em direção a fonte de calor, monitorando ao seuredor para o caso de alguma armadilha. À medida que se aproximava, conseguiu vislumbrar umacoluna mais ou menos da sua altura. Quando se aproximou o suficiente, as luzes mostraram umacoluna formada por um feixe de hastes de metal, emaranhado com grossos cabos que serpentea-vam pelo chão. Ali, estava empalado um torço de metal fosco com somente um braço, encimadopor uma cabeça sem nariz ou boca e, no lugar dos olhos, duas grandes esferas de cristal negrocom uma luz vermelha mortiça no interior. Um Invasor.

Irina sentiu como se uma bomba de gelo explodisse em seu estômago e teve de usar todo oseu autocontrole para não entrar em pânico. Deu um passo vacilante para trás, as pernas moles,as mãos trêmulas. Pensou que aquilo só podia ser um pesadelo. Dez anos de lembranças deInvasores trazendo morte e sofrimento a assaltaram. Não teve dúvida; ordenou que sua armaduralhe injetasse uma dose de tranqüilizante de combate, pois tinha certeza de que não conseguiriamanter o controle por muito mais tempo.

— Lopez, você já checou aquela flutuação magnética? — perguntou a ex-major com umacalma artificial.

CHARLES DIAS

23

— É um túnel com cabos de transmissão de energia ativos. Isso não deveria estar aqui, nãohavia nada disso nos mapas... — começou a responder, quando foi interrompido pela ex-major:

— Esqueça isso e venha para minha posição agora mesmo, encontrei algo muito maisestranho — disse, sem tirar os olhos do Invasor que continuava inerte.

Pouco depois, Lopez chegou ao armazém, vindo pelo mesmo caminho que Irina. Quandoviu o Invasor, deixou escapar uma série de impropérios.

— Pensei que nunca mais veria um desses malditos — disse, quando finalmente conseguiuarticular uma frase, com o medo impresso na voz.

— Você não é o único. Agora me diga: o que é que essa coisa está fazendo espetada aí? —ordenou Irina com uma frieza que assustou a ela mesma. Lopez examinou o estranho achado comas mãos trêmulas. Então deu um salto para trás, caindo no chão pesadamente quando perdeu oequilíbrio. Mesmo assim, continuou a se afastar rastejando pelo chão coberto de poeira grossa.

— Droga, essa coisa não está morta! — gritou.

— Como assim? — perguntou Irina.

— Você me ouviu. Essa coisa está viva. Esses cabos o estão alimentando com energia,devem ser os mesmos cabos que achei no túnel fora da cidade — respondeu o velho engenheiro,com a boca seca.

Tudo aconteceu muito rápido. Um estrondo de várias telhas desabando nos fundos do ar-mazém fez Irina se virar com um salto. Pouco depois, ouviu um grito de dor de Lopez. Quando sevirou, viu o amigo no chão. De pé ao lado dele, um Invasor segurava-lhe o pulso com força, obraço torcido, obrigando-o a permanecer no chão com uma arma apontada para a cabeça. Umtremor involuntário percorreu sua espinha ao encarar os olhos vermelhos do Invasor fixos nela.

Para Irina o tempo pareceu congelar, e nada mais existia além daqueles demônios do passa-do que voltavam para assombrá-la. A soldado se preparou para tentar livrar Lopez daquele abraçomortal, quando uma série de pequenas explosões arruinou sua concentração. Por um enormeburaco aberto numa das paredes, em meio a um turbilhão de areia, surgiram três outros pares deolhos, vermelhos como ferros em brasa. Outros Invasores. A ex-major sentiu que aquele era omelhor momento para fazer alguma coisa. Quando deu o impulso para saltar com fúria sobre oinvasor que prendia Lopez, sentiu algo agarrar-lhe com força o pescoço, puxando-a para trás.Debateu-se para entender o que estava acontecendo e só então viu seu captor: o Invasor empalado,que usava seu único braço para subjugá-la.

Ainda se debatendo, Irina conseguiu ver quando a cabeça do Invasor que mantinha Lopezimóvel explodiu. Logo depois, ouviu o estampido inconfundível de um rifle de precisão. En-quanto o corpo sem cabeça do Invasor abatido desmoronava, ela sentiu o braço que a mantinhapresa afrouxar. Aproveitou aquela chance inesperada para girar o corpo o máximo que pôde e,com a mão esquerda, agarrou o feixe de cabos que subia para o tronco do Invasor. Então, acionouo gatilho junto ao seu queixo e disparou a descarga elétrica de sua armadura. Uma explosão aarremessou no ar violentamente e a ex-major sentiu a dor se espalhar pelo corpo quando caiudesajeitada no chão a uma dezena de metros de onde estava. Ainda assim, virou-se o mais rápidoque pôde, pronta para disparar novamente, mas somente viu de relance os três outros Invasoressaltarem para dentro do buraco no fundo do armazém.

Lopez ajudou-a a se levantar, os analgésicos injetados pela armadura já faziam efeito. Mayers

DEMÔNIOS DO PASSADO

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se juntou a eles pouco depois, vindo de um passadiço junto do telhado, o longo rifle de precisãoem suas mãos.

— Vocês estão bem? — perguntou o ex-sargento. Antes que pudessem responder o chãocomeçou a tremer e então uma nova explosão encheu o armazém com uma grossa nuvem de areiae poeira. Correram os três para fora com as armas prontas para disparar, mas somente encontra-ram um enorme buraco no lugar do que um dia havia sido a praça central da cidade. Irina olhoupara o céu e ainda conseguiu ver a pequena estrela verde que diminuiu de tamanho até desapare-cer, os outros Invasores conseguiram fugir.

***

“O Incidente de Chatakawa foi fundamental para que o Serviço de Inteligência co-locasse a descoberto os planos dos Invasores para monitoramento e espionagem. Éconsenso dessa comissão que a finalidade última desses planos seria uma campa-nha de sabotagem e preparo de uma possível nova invasão de nosso sistema solar.

Se os restos dos dois Invasores destruídos pela ex-major Irina, pelo ex-capitão-en-genheiro Lopez e pelo ex-sargento Mayers não foram de grande valia nas investiga-ções – a não ser como prova de sua presença física em nosso planeta –, oscomputadores deixados pelos Invasores sobreviventes foram fundamentais. Nessescomputadores, foram encontrados logs de missões e documentos de grande impor-tância.

Foi apurado que algum problema no gerador de energia dos Invasores de Chatakawaos obrigaram a se passar por clones, simulando ataques a fábrica de processadoresquânticos para roubar energia para alimentar seus equipamentos e manter suasoperações até que o gerador fosse consertado ou reposto”.

Trecho do Relatório Final da Comissão de Investigação de Incidente de Chatakawa

CHARLES DIAS

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A Soluçãopor um Fio

Joshua Falken

Dizem os cientistas-poetas que o universo é umgrande espetáculo, e que os astros dançam baléobedecendo às notas da sinfonia das equaçõesmatemáticas, sob o comando das leis da física. Parauma nave condenada, a única possibilidade de sal-vação é participar desse espetáculo de titãs.

27A SOLUÇÃO POR UM FIO

Na faculdade, diriam que era apenas uma missão de rotina. Sem surpresas, sem preocupa-ções. Só que, no espaço, quando você deixa de se preocupar, a Lei de Murphy ataca. Foi o queSusan Kelvin Nicolelis, a engenheira-assistente (estagiária) da espaçonave cargueira Cassini-5,pensou ao recapitular o que tinha acontecido.

Tinham acabado de deixar a Estação Mineradora Júpiter, acelerando para retornar para aTerra, quando um grande tremor sacudiu a nave. Susan estava em sua cabine de descanso, mas selevantou imediatamente. Antes que chegasse ao seu posto, os alarmes soaram e a voz do coman-dante surgiu no intercomunicador:

— Atenção, todos, preparem-se para Ejeção Órion! Repito, Ejeção Órion!

Imediatamente, ela se encolheu junto à parede traseira da espaçonave, apertando o cinto desegurança posicionado para aquela situação. Não se passou nem mesmo uma pulsação de seucoração artificial antes que sentisse o corpo sendo comprimido violentamente contra a parede,pelo o que pareceu ser uma eternidade, mas foram apenas cinco nanossegundos. A compressãoviolenta reverteu seu curso, agora lançando-a contra o cinto. Ela sentia as sacudidas da gigantes-ca espaçonave, sua inércia se rebelando contra as tentativas de controlar seu momento.

Assim que os movimentos erráticos chegaram num ponto tolerável, Susan soltou o cinto efoi para o corredor de acesso, contatando seu superior pelo computador de pulso:

— Hendrik, já estou indo!

O rosto angular e precocemente calvo do engenheiro-chefe Hendrik Zeitner apareceu napequena tela:

— Você está bem, Susan?

— Estou! O que...

Nesse momento, uma vibração percorreu novamente a estrutura da nave. Seu corpo foijogado para a direita e ela começou a se sentir mais leve. Aquilo só podia significar uma coisa:

— A centrífuga do habitat está parando de girar!

— Vá até o módulo central, veja como está a situação e reporte as avarias. Depois que fizerisso, encontre-me na ponte.

— Certo!

Minutos depois, olhando pela janela do módulo central, Susan já sabia qual era o problema:um cabo eletrodinâmico (de onde ele teria vindo?) estava preso à centrífuga geradora da gravida-de artificial necessária para que a tripulação pudesse viver normalmente durante a longa viagematé Júpiter. Era apenas uma questão de realizar uma atividade extraveicular para cortar o cabo elentamente a centrífuga voltaria a funcionar.

Mas não foi aquilo que a fez perceber o tamanho do problema em que ela e a tripulação daCassini-5 estavam. Embora já soubesse pelo o anúncio da Ejeção Órion, sua mente ficou choca-da do mesmo jeito: eles não tinham mais o gigantesco motor de fusão nuclear, nem os doismotores auxiliares.

Cinco horas mais tarde, após os consertos de emergência, o comandante Hiroshi Slonczewskireuniu todos na ponte. Dez astronautas de carreira e cinco estagiários, Susan incluída.

— Hendrik, você poderia, por favor, nos explicar o que aconteceu? — pediu o superior, deolhos escuros e cabelos prematuramente grisalhos.

28

— Sim, comandante. — O engenheiro-chefe ativou a projeção de um holograma da naveque mostrava os seis tanques esféricos de deutério e Hélio-3 na proa, a centrífuga com o habitatda tripulação, os tanques de combustível nuclear da própria nave, o módulo do reator nuclear, oescudo Órion e o módulo de propulsão na popa. — Como sabem, tivemos que executar umaEjeção Órion, ejetando da estrutura da nave o módulo de propulsão. Isso foi devido ao fato detrês sondas recolhedoras se jogarem contra o motor em alta velocidade, afetando seriamente suaintegridade, embora não chegando a afetar o reator principal, que está perfeitamente funcional.Fomos protegidos da radiação, e de grande parte da onda de choque, pelo escudo, mas tivemosavarias sérias.

— Que tipo de avarias? — interrompeu um dos estagiários, que Susan sabia estar no setorde Navegação Orbital.

Susan e Hendrik se entreolharam, enquanto o comandante olhava seriamente para a tripu-lação.

— A detonação do motor causou danos nos sistemas de suporte de vida. Mais precisamen-te, perdemos parte do oxigênio armazenado para a viagem de volta e parte do sistema recicladorde O2. Temos oxigênio para somente três meses. Como perdemos os motores principais, nãopodemos atingir a velocidade de escape necessária para deixar o sistema joviano e nos encontrarcom a nave de resgate Nightingale-7. Mesmo na velocidade máxima, ela levaria quatro mesespara chegar a nossa posição.

O comandante explicou que fariam o possível para aumentar a potência dos motoresdirecionadores, mas todos sabiam que era uma tentativa vã. A verdade era uma só: deveriam sepreparar para morrer.

Se a Cassini-5 estivesse com pelo menos um motor funcionando, poderia deixar Júpitermesmo que lentamente, e se encontrar com a Nightingale-7 antes que o oxigênio acabasse. Masnão havia como os motores direcionais gerarem aquele empuxo salvador. A diferença entre avida e a morte era dela e da tripulação eram apenas alguns delta-v...

Susan quase riu com a idéia. Nos últimos quatro anos o que sempre temeu não era a morte– risco da profissão de astronauta que aceitava –, mas a possibilidade de alguém descobrir queseu corpo era completamente robótico. Desde o acidente na sua primeira viagem de treinamentona órbita geoestacionária, apenas seu sistema nervoso central continuava biológico... Foi o quesalvara sua vida na ocasião, mas essa situação extrema era contra a lei da Comunidade de Desen-volvimento Terrestre e, se revelada, poderia levar ao seu desligamento sumário. E agora poderiamorrer por simples falta de ar...

Ela pensou em sua mãe na Terra e em sua melhor amiga Verônica. Nunca mais as veria enem o Elevador Espacial, que dominou parte de sua infância e toda a sua adolescência, determi-nando seu destino.

Pela janela de sua cabine, Susan observava. Os fios castanhos de seu cabelo, os olhos decores diferentes, com um brilho desanimado. Via diversas sondas recolhedoras de deutério eHélio-3, similares as que tinham atingido o motor nuclear de sua nave e que pontuavam a atmos-fera de Júpiter, o gigante gasoso. O acidente era tão incomum que alguns membros da tripulaçãose perguntavam se não teria sido sabotagem da Liga de Defesa do Espaço.

Num processo totalmente automático, as sondas recolhedoras desciam até a superfície doplaneta e recolhiam os combustíveis nucleares. Eles então eram armazenados na Estação

JOSHUA FALKEN

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Mineradora, também automática, até que naves como a Cassini-5 carregassem o material emseus tanques para levá-lo até a Terra, a Lua, Marte, Vênus e parte dos asteróides. Olhava para aforma que lembravam um haltere: duas esferas conectadas por um fio finíssimo. Na verdade,eram a unidade recolhedora numa ponta e a unidade de armazenamento na outra, ligadas por umduto acoplado a um cabo eletrodinâmico, que gerava o arraste necessário para fazer a sondadescer até Júpiter e...

Seus olhos se arregalaram. Como não tinham percebido isto? Quando duas massasconectadas por um longo cabo condutor cruzam o campo magnético de um planeta, gera-seuma corrente elétrica, que pode ser armazenada, e um arraste, que pode ser usado para baixaro sistema de sua órbita inicial. Mas, se uma corrente elétrica percorresse o sistema do cabonuma direção contrária a que seria naturalmente induzida pelo campo magnético, seria geradoum empuxo. Essa força poderia ser usada para acelerar o conjunto, fazendo com que ele fossepara uma órbita superior, assim como as sondas recolhedoras faziam para subirem até a Esta-ção Mineradora. E Júpiter tinha simplesmente o maior campo magnético planetário do Siste-ma Solar!

Susan se levantou imediatamente e correu até a ponte. Sentou-se na cadeira de seu terminalde acesso. Um cabo de conexão saiu discretamente do pulso de Susan e conectou-se ao compu-tador central da nave. Agora, seus sistemas cibernéticos estavam unidos aos da Cassini-5. Men-talmente, começou a acessar e carregar os dados necessários para a simulação que estava criando.Ao iniciar o processamento, cruzou os dedos. Trinta segundos depois, um grito de alegria.

— Hendrik! — ela chamava pelo computador de pulso.

O engenheiro-chefe da Cassini-5 atendeu com o rosto cansado.

— Olá Susan. Seu turno de descanso ainda não aca...

— Acho que descobri uma maneira de conseguirmos a velocidade de escape!

Ela contou seu plano. Os olhos azul-escuros do engenheiro-chefe brilharam. Mais tarde naponte de comando, o comandante não acreditava na idéia de Susan:

— Você... está brincando... não está?

— Na verdade, a idéia dela é obvia e por isso mesmo brilhante — disse o engenheiro-chefe.

O rosto de seu superior fez uma carranca.

— E porque você não pensou nisso, Hendrik?

— Porque fiquei tão focado em fazer os motores direcionais funcionarem com o máximode potência para tentar nos tirar dessa situação, que me esqueci da alternativa da propulsão porcabo eletrodinâmico — explicou, dando de ombros.

— E quanto a Io? As descargas elétricas não poderiam afetar a nave?

Aquele era o ponto fraco do plano. O sistema composto por Júpiter e seu satélite Io era omais eletrodinamicamente ativo do sistema solar. Não era raro que relâmpagos passassem noespaço entre os dois corpos celestes. E os cabos eletrizados poderiam agir como atratores. Susantomou a palavra:

— Comandante, o senhor tem razão em se preocupar com essa possibilidade, mas lembre-se de que a nave foi construída para resistir a possíveis descargas como essa. Um sistema dedisjuntores pode ser instalado como proteção e, no pior caso, podemos desligar a corrente neles.

A SOLUÇÃO POR UM FIO

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O maior risco provavelmente seria a corrente elétrica entre Júpiter e Io contrabalançar a correntedos cabos, diminuindo a nossa velocidade. Isso nos obrigaria a fazer mais órbitas ao redor deJúpiter do que o previsto.

— E se corrente Júpiter-Io se somar com a dos cabos?

— Nesse caso ganharíamos velocidade, provavelmente um grande ganho súbito. Comoprevenção, teremos de nos proteger como faríamos para uma Ejeção Órion.

A astronauta em treinamento respirou fundo antes de continuar.

— Essa tentativa apresenta um risco, mas as simulações mostram que pode funcionar. Ecertamente é melhor que a outra opção que temos.

Hiroshi ficou em silêncio por um momento, olhando para o olho direito azul e o esquerdoverde de Susan.

— Está bem, vamos lá!

Uma semana de trabalho contínuo depois, estavam prontos para colocar o plano em prá-tica. Lentamente, desenrolaram seis cabos ao longo da nave avariada, três de cada lado. Quan-do atingiram seu comprimento máximo, a corrente elétrica vinda do reator principal começoua passar por eles, fazendo com que centelhas saltassem entre os cabos paralelos. Quando osindicadores mostraram que a nave começara a acelerar, a tripulação vibrou de alegria. O siste-ma funcionava!

Meia órbita mais tarde, chegaram ao ponto critico do plano: a zona de maior proximidadecom Io. A corrente interplanetária se somou a que corria nos cabos. A aceleração aumentou, masnão na proporção temida. O programa escrito para o controle dos cabos administrou a situaçãoperfeitamente O engenheiro-chefe, numa demonstração surpreendente de alegria para quemconhecia suas maneiras contidas, deu um forte tapa congratulatório no ombro de Susan e sacudiusua mão entusiasticamente.

Mais três voltas ao redor do gigante gasoso e a Cassini-5 atingiu a velocidade de escapecom suas velas eletromagnéticas enfurnadas. Estavam livres da atração de Júpiter e a naveseguia para o encontro com a Nightingale-7, em um mês e meio. Tempo de sobra.

* * *

Susan descia pela torre de quarenta mil quilômetros do Elevador Espacial, em direção dacidade flutuante logo abaixo, na superfície de seu planeta natal. Da altura em que estava podiaver os círculos urbanos, que envolviam a parte terrestre do sistema, e o sol se pondo na curva dohorizonte.

Quando finalmente desceu do carro do elevador, viu sua mãe e sua amiga Verônica espe-rando por ela no saguão de desembarque do gigantesco Terminal Terrestre.

— Bem-vinda, filha — sussurrou a mãe em seu ouvido, enquanto a abraçava.

— Não nos dê mais um susto desses! — Verônica exclamou, sacudindo seu ombro.

A astronauta riu e começaram a andar em direção à saída do terminal. Susan tinha cumpri-do a principal tarefa de um astronauta: ela retornara para casa.

JOSHUA FALKEN

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CidadeSuspensa

Leonardo Carrion

No mundo de Mada, viver nas alturas é algo co-mum, mas não para ele, e por isso sofria. Por amora Have, teria de fazer uma jornada ao desconheci-do, onde nenhum outro guerreiro ousara ir.Somente a descoberta do que há abaixo da linhadas nuvens permitirá que ele também se torne umguerreiro e merecedor de sua amada.

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— Venha, Have, não tenha medo! — gritou o menino de cinco anos. Saltando, deixou paratrás o emaranhado de grossos cabos e cordas de cânhamo trançados nos troncos das árvoresTxain e aterrissou no solo coberto de folhas.

Corria pelo chão incentivando a amiga Have para acompanhá-lo. Seu nome era Mada.Tinha o corpo robusto, pele morena, rosto bonito e uma longa cabeleira sedosa. Caminhava sobreas pernas auxiliado-as com as costas das mãos, que tocavam levemente o solo. A menina tinha amesma idade e quase o mesmo aspecto, com o corpo mais delgado e cabelos curtos.

Com certa dificuldade ela reuniu coragem para descer e caminhar sobre a terra e folhas,deixando para trás as cordas e passarelas que marcavam o limite central da Cidade Suspensa.Diversas outras crianças seguiam o mesmo caminho. Aos poucos todos se dirigiam para fora dafloresta de poderosas árvores Txain.

Juntamente com alguns adultos, abandonavam a segurança da floresta para a colheita docânhamo que crescia nas clareiras. O cânhamo era elemento essencial para a cidade. Mais até doque os ovos dos pássaros kri-kraks cujos ninhos eram cuidados pelos habitantes. Sem as fibrasdo cânhamo, não haveria a Cidade Suspensa sobre o desfiladeiro. Eram de cânhamo os cabos, ascordas trançadas e o tecido das casas-saco. De suas sementes, eram extraídos óleo e verniz,materiais também indispensáveis ao cordame e aos tecidos.

— Como você consegue caminhar tão rápido, Mada? — perguntou Have, aproximando-se,com passo vacilante, do menino que já coletava uma braçada de plantas.

— Não sei, Have. Sei que gosto de pisar no chão, de correr por aqui. Acho que faço isso bem.

— Você fala como se andar fosse coisa de gente! — disse a menina, sublinhando a palavraandar com desprezo na voz.

Ambos instintivamente olharam para a Cidade Suspensa, em seu gentil balançado sobre openhasco. Assemelhava-se a uma imensa teia de aranha, um conjunto vasto de cordas entrelaçadas.Eram amarradas umas às outras e sustentadas sobre o triângulo formado pelos três principaiscabos-mãe, tão espessos que nem cinco homens conseguiriam abraçá-los.

Os cabos-mãe formavam-se da junção de milhares de cabos menores trançados. Estes, porsua vez, eram amarrados individualmente: na Floresta Txain do Pico Nevado, ao centro; nasescarpas de granito do estéril Monte Faca, na direção do nascer do sol; e em laços em torno dogrande obelisco de diamante no Monte Brilhoso, onde o sol se punha. Os três principais caboseram ligados entre si por centenas de grossos cabos secundários, e destes apareciam os menoresem rede. Todos levavam a cidade a crescer para baixo, rumo ao fundo do desfiladeiro na forma deuma gota. Ali, as casas-saco, as passarelas, os aquedutos que traziam a água que escorria do PicoNevado, os jardins de trepadeiras frutíferas e as milhares de cordas utilizadas pela populaçãopara se deslocar em vôo no centro vazio da cidade ou na parte inferior, a nuvem.

A nuvem era a sempre presente neblina que impedia as pessoas de enxergarem o fundo dodesfiladeiro. Acima, viam apenas a continuação dos três picos que sustentavam a cidade, asnuvens e o sol no céu azul. Era bom ser criança na Cidade Suspensa.

***

— Ei, Mada, veeeenhaaaaa! — gritava Have, enquanto se precipitava sobre o vazio central

CIDADE SUSPENSA

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da cidade, segurando com apenas uma mão o cabo, projetando-se no ar para agarrar outro e voar.Mada e Have tinham agora 14 anos e faziam parte da turma que era instruída no vôo por um

professor. Mada admirava a habilidade da amiga e dos demais jovens que treinavam como osseus antepassados. Ele, no entanto, continuava solidamente preso à plataforma.

O jovem Mada já preenchera os requisitos fundamentais do vôo, o que lhe permitia ingres-sar na vida adulta e assumir uma posição na sociedade. Podia se deslocar livremente pela cidadee não apenas por onde as crianças ficavam, nas passarelas e nos cabos principais. O vôo, porém,não era para ele um prazer especial, como para os demais.

— Ei, lobo, prefere correr na sujeira?Niac era um rapaz alto e delgado, de ossos leves e incrível flexibilidade. Passou por Mada

e, depois da provocação, jogou-se no vazio, aparentemente sem qualquer forma de escapar daqueda. Agarrando-se a um cabo e logo depois a uma corda solta, deslizou pelo ar como se real-mente voasse, como um pássaro.

— Vai ver como o “lobo” também sabe voar, Niac! — respondeu Mada, tomando coragem.Segurando um dos cabos, Mada lançou-se sobre a área de treinamento. Have saltou no vazio eveio girando e sorrindo em uma corda paralela. O rapaz sabia que ela se preocupava e não gosta-va que os demais zombassem dele.

— Não é maravilhoso, Mada? — gritou contra o vento, enquanto saltavam rapidamente emuma sucessão de cabos, avançando por toda a extensão central.

Have era uma jovem que mostrava em abundância todos os atributos que encantavam osmeninos, especialmente Niac. Mada a amava profundamente.

— Você não é páreo para mim! — ela riu gostosamente e ultrapassou o rapaz. Realmentenão era. Mada não conseguiria acompanhá-la mesmo que tentasse. E não ficava nada triste emvê-la seguir na frente.

— Nem pense nisso, lobo, ela é minha! — disse-lhe o rival, chegando pela direita.— Você não tem chance com ela, Niac! — respondeu Mada.Não deixaria Have para Niac, nem que fosse preciso aprender a voar sem cabos, como os

pássaros faziam. Porém, no fundo o rapaz não tinha tanta certeza de suas chances, vendo a formavigorosa com que Niac voava.

***

Havia o Monte Brilhoso, o Pico Nevado e o Monte Faca. A descida por eles era impossí-vel, era contra a tradição dos antepassados e também inútil. Nunca fora tentada, nunca forapensada! Esta era a opinião do clã de Mada e dos demais clãs.

Ele agora era um dos aranhas, os responsáveis pela manutenção da cidade e dos ninhosdos kri-kraks. Niac e Have eram pássaros, poderiam dedicar-se à política, à defesa da cidade evárias outras atividades de elite. Isso não importava para a moça, que amava Mada. Mas, parao clã, o pedido de Niac tinha preferência sobre o de Mada. Tinha sido isso que forçara o rapaza propor o desafio.

A tradição dizia que aquele que fizesse um desafio que ninguém se oferecesse para igua-

LEONARDO CARRION

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lar, e se deste desafio resultasse um ganho para a Cidade Suspensa, passaria a integrar o Con-selho dos Clãs. A esse costume, era atribuída grande parte dos corpos que despencava para odesfiladeiro, rumo ao desconhecido. Por Have, o aranha Mada traria para a Cidade Suspensaum benefício de tal ordem que seu pedido pela garota certamente ganharia prioridade sobre ode Niac.

Há muitos anos Mada pensava em descer. Perguntava-se como seria o mundo longe dacidade e dos montes, o que haveria abaixo da eterna nuvem que marcava o limite inferior dacidade. Para onde iam os pássaros kri-kraks quando não vinham desovar nos ninhos? E oslobos da floresta?

Descida impossível; revolucionária, talvez; mas jamais inútil. Mada só tinha que esco-lher uma das três montanhas. O Pico Nevado oferecia a Floresta Txain, que seguia aparente-mente para abaixo das nuvens, mas era habitada pelos lobos e talvez por outros animaisperigosos. O Monte Brilhoso era por demais liso, não havia forma de obter apoio para a desci-da. Restava o afiado Monte Faca, apesar de suas cortantes pedras de granito. Mas, exatamentepor causa delas, oferecia apoio para a amarração de cordas.

Have veio até os confins da Cidade Suspensa e permaneceu girando em um cabo, en-quanto Mada começava a descida pelas escarpas de granito, levando às costas o máximo decorda que conseguira transportar, alguma comida e água. Ela gritava o seu nome, pedia-lheque voltasse, por ela.

— Voltarei por você, Have! — respondia-lhe Mada, até que não se ouviram mais as vozes.

Mada continuou concentrado, sempre para baixo. Parava eventualmente para comer oudormir na rede que trouxera com o equipamento. Os dias pareciam sem fim enquanto o rapazdescia através da nuvem. A luz era como a de um entardecer triste, independente da hora quefosse do dia ou da noite.

Finalmente, bem depois de os alimentos e a corda terem se esgotado, quando já co-meçava a sentir os efeitos da fome e sede, o jovem deixou a nuvem para trás. Abaixo,Mada pôde ver o vale formado pelas montanhas, o final do abismo sobre o qual se erguiaa Cidade Suspensa.

Talvez fosse o primeiro a ver aquele lugar sem que estivesse em queda mortal. Havia umtom de verde nas plantas diferente do amarronzado cânhamo e das árvores Txain dos picos. Aágua corria entre as montanhas em uma corrente estreita e, mais adiante, alargava-se formandoum lago. Perto do lago, Mada podia ver diferentes espécies de pássaros e outros animais des-conhecidos.

O jovem estava em um platô varrido pelo vento constante e cortante, mais pesado que odas alturas. Sentia-se mais animado, porém fraco. Continuou a descida sem qualquer amarra-ção. Ao pisar em uma pedra que lhe parecera bastante fixa e rugosa, seca e segura, sentiu queseu pé escorregava em algo liso como neve congelada.

O rapaz girou seus braços em busca de apoio, mas as pedras se mostraram soltas. Gritoude fúria e indignação quando caiu de costas no vazio. Mada achou que estava morto até perce-ber que pairava sobre a paisagem do vale. O ar, que deveria estar zunindo ao seu redor enquan-to caía, era sólido! Deitou-se de costas e viu, poucos metros acima de onde estava, o platô doqual observara o vale há minutos. Ergueu-se e olhou novamente. Abaixo de seus pés, a ilusãoera perfeita. Até sentia o vento nas pernas.

CIDADE SUSPENSA

36

— Como isso é possível? — Mas antes que pudesse tomar qualquer decisão, sentiu umaforte tontura e desmaiou.

***

— Mada, acorde — a voz era suave como a superfície que o rapaz sentia abaixo de seu corpo.

Aos poucos ele abriu os olhos e, surpreso, viu a face de Have.

— Have! O que houve? Onde estamos? — o jovem olhava em torno e não conseguia reco-nhecer o ambiente. Pareceu-lhe que estava dentro de uma caverna do tamanho de uma casa-saco.

— Mada, eu não sou Have. Apenas tenho a aparência de Have para que possamos conver-sar sem que você se assuste.

— Quem é você? Onde eu estou?

— Venha até aqui — disse o ser, aproximando-se de uma janela.— Antes que possa com-preender quem ou o que eu sou, devo contar-lhe quem você é.

O rapaz levantou-se da cama e se aproximou. Lá fora, Mada viu o rio e o lago que avistarado penhasco, além de muitas outras coisas incompreensíveis. Havia uma quantidade enorme deobjetos, como montanhas, mas diferentes. Também percebeu que existiam três gigantescos mon-tes que subiam em direção às nuvens. Imaginou sua cidade lá no alto e sentiu saudades. O rapaznão podia saber, mas via de perto a poderosa capital de um império. Via seus espaço-portos,prédios e naves. Uma vista revelada apenas para ele, em dezenas de séculos de segredo. Madasentia que era uma visão bela e boa.

— Mada, esta é a Cidade Suspensa hoje. Ela cresceu, evoluiu. Seus habitantes aprenderammuito, descobriram como moldar os metais e a pedra e como dominar os animais. Descobriram oque havia para ser descoberto neste mundo, o que havia nas estrelas e foram até elas. Dominaramoutros mundos e criaram um império. Criaram a nós, seus servos. Até que um dia, desapareceram.

Mada ouvia, com espanto e sem compreensão, o que dizia o ser-ave.

— Deixaram-nos apenas, seus filhos, suas máquinas, além de histórias. Nós continuamos otrabalho de nossos senhores, dominando o espaço, aumentando o império e agregando mundos.Mas o mais importante, Mada, é que há muitos milênios estamos buscando nossos senhores.

— Onde está meu povo? E a Cidade Suspensa? — perguntou Mada.

— Seu povo e sua cidade estão onde você os deixou. Vê aquele objeto gigantesco, suspensono ar? Lá dentro, nós construímos uma cópia deste mundo como era nos primórdios. Dentro dele,fizemos nascer novamente os nossos senhores e estamos levando-os pela mão, desde a concepçãoaté a maturidade. Hoje estão na infância, mas um dia poderão caminhar sozinhos e até mesmovoltar a nos conduzir. Você é um dos nossos senhores, Mada. É o mais importante até hoje, porqueconseguiu descer da Cidade Suspensa, inaugurando um novo degrau evolutivo. Temos um planetacriado para que seu povo possa continuar a evolução fora do ambiente onde estão. Isso será feitosem que ninguém perceba e você voltará para sua cidade sem recordar este encontro. Casará comsua amada Have e dominará seu povo com um novo pensamento, uma nova idéia.

Mada começou a sentir-se dormente quando ouviu o ser dizer:

LEONARDO CARRION

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— Um dia, querido senhor, falaremos de seu nome para um de seus filhos longínquos etodos celebraremos sua coragem e nossa vitória. Você não pode saber, não poderia sequer com-preender, mas, como seu servo, tenho de lhe dizer: bem-vindo aos seus domínios, senhor doUniverso.

***

Mada viveu um longo tempo na planície do planeta preparado pelos servos, sem saber queele e todo seu povo tinham um dia habitado uma estrutura artificial. Afinal, retornou à sua Cida-de Suspensa e desposou sua amada Have. Trouxe ovos de aves exóticas, frutas diferentes, histó-rias e materiais novos. Só o seu reaparecimento, muito depois de o terem considerado morto, jácausou revolução nas crenças dos clãs.

A evolução dos habitantes da Cidade Suspensa tomou novo rumo quando Mada se tornouum dos Conselheiros e acelerou-se definitivamente assim que ele assumiu a hegemonia políticada cidade. Tudo isso não aconteceu sem que vivesse muitas aventuras, mas isto é outra história.Enquanto isso, o Universo aguardava pacientemente seus senhores.

CIDADE SUSPENSA

39CIDADE SUSPENSA

O Mercenárioe o Abismo

Ubiratan Peleteiro

Um homem atormentado por seu passado desceàs profundezas do mar para mais um trabalho.Quando finalmente chega ao seu destino, encon-tra algo que nunca pensaria ver naquele lugar, efinalmente tem a chance de acertar as contas eredimir seus pecados.

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A fossa abissal era assustadora. Reinava a escuridão. Não uma escuridão transparente comoa do espaço sideral, que ele amava, mas uma escuridão densa, difícil de permear, que ele sóconseguia vencer aos poucos com a lanterna. Fez Roger sentir o mesmo frio na barriga quesentira no seu primeiro vôo espacial, ainda na Academia Astronáutica. Fora uma boa época, aúltima boa fase que tivera na vida, depois das grandes descobertas da infância e das incríveismudanças da adolescência. Entrou na vida adulta com bons empregos, para os governos de paí-ses ricos e depois para as grandes corporações. Então cedeu à tentação da lucrativa informalidade.Foi quando tudo começou a mudar, e para pior.

“Quem diria que eu viria parar no fundo do oceano, num equipamento adaptado às pres-sas!”, pensou Roger. Olhou para cima. Não podia ver quase nada do módulo de suporte à vida,apenas os cabos que se ligavam ao seu traje de mergulho como um cordão umbilical e os doisfaróis que o fitavam como os olhos de um leviatã. Mas estava bem clara na sua mente a imagemdo módulo, pois lhe lembrara os discos voadores dos invasores alienígenas, só que ele era bemmenor, com apenas três metros de diâmetro.

Voltou a olhar para baixo, iluminando as profundezas com a lanterna. Via apenas o vazio.Volta e meia, a luz atingia alguma criatura estranha, que imediatamente fugia antes que elepudesse distingui-la bem. Num dado momento, iluminou dois peixes estranhos. Eram horríveise não tiveram medo dele. Ficaram parados, com as bocas abertas, cheias de dentes longos epontiagudos como agulhas, os olhos cegos, sem brilho. Pareciam ameaçadores. Mas Roger nãoquis alterar a rota. Passou rente a eles, com o arpão em riste, mas apesar do aspecto agressivo elesnada fizeram.

— Como está indo, Roger? — soou a voz metálica no comunicador.— Tranqüilo — respondeu.

— Ótimo. Daqui a um minuto você atinge o alvo.— E faço meu serviço.

— Assim espero.Nunca decepcionara aqueles calhordas, mas eles sempre punham sua competência em dú-

vida. Trabalhando como mercenário, se dispondo a fazer o serviço sujo que ninguém queria,ganhava bastante dinheiro, mas sempre lhe restavam fantasmas para atormentar a consciência. Eainda, precisava lidar com aqueles pulhas, sempre preocupados com seus milhões, ou melhor,bilhões. Mas, dessa vez, nesse derradeiro trabalho, ganharia o suficiente para livrar-se de ambos:dos pulhas e, quem sabe, dos fantasmas. Se bem que, quanto a estes últimos, talvez não fossecapaz de exorcizá-los todos, principalmente os que habitavam seus pesadelos há mais tempo.

Enxergou o lodoso solo oceânico e logo o atingiu. Então, mirou a lanterna para o norte,conforme a informação fornecida pelo empregador. Viu a entrada da caverna numa montanhasubmarina à frente e acionou os propulsores para levá-lo até ela. As criaturas marinhas fugiam doseu caminho. Algumas tinham luz própria e riscavam o fundo do mar com traços luminososcomo pirilampos na noite.

Pousou cautelosamente na entrada. Acionou os controles do módulo que, silencioso comouma raia manta, pousou num ponto onde ficaria protegido. Os cabos eram retráteis e ainda haviabastante comprimento para permitir explorar a caverna sem precisar desconectar-se.

— Cheguei. Vou entrar.

— Boa sorte.

UBIRATAN PELETEIRO

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Roger percorreu o túnel escuro, iluminando-o com a lanterna. Lá no fundo, viu uma luz. Aose aproximar apagou a lanterna, pois se tornara desnecessária. Chegou numa ampla caverna bemiluminada. Olhando para cima, viu a interface da água com o ar e muitas luzes no teto.

Emergiu lentamente escondendo-se por trás de uma rocha que aflorava da água. Percebeuseu traje fazendo o ajuste automático da diferença de pressão. Um surpreendente controle ambientalfazia uma alteração gradual na pressão da água. “Tecnologia alienígena”, pensou Roger.

Havia um espaço plano e seco na caverna, com alguns equipamentos. Ali Roger viu o primei-ro alienígena. Era uma criatura repugnante. Os seis braços ondulantes moviam-se sobre os contro-les de um equipamento como vermes se debatendo. As pernas também pareciam tentáculos, maseram mais grossas e terminavam em pés que mais pareciam ventosas. A enorme cabeça lembrava ade um polvo, as orelhas pontiagudas e triangulares pareciam impróprias para aquele ser gosmento.Roger sacou sua pistola, sem se preocupar com o ruído do metal raspando no coldre.

O alienígena voltou o rosto em sua direção, expondo o único olho à mira. Ele lembrou dosgigantescos robôs ciclopes dos invasores que estavam subjugando toda a Terra. Mas essa lem-brança não durou um centésimo de segundo. Roger disparou, acertando o olho em cheio. Ao sair,o projétil abriu um grande rombo, dilacerando a cabeça do alienígena e esguichando sanguenegro no equipamento. O corpo desabou no chão como um trapo.

Roger saiu da água e livrou-se do grande e pesado traje. E começou a jogar o jogo doassassino. Era um jogo do qual não gostava, o jogo que produzia fantasmas, porém era muitobom nele. Esgueirava-se sorrateiro pelos túneis, localizava um alienígena, espreitava-o e depoisdava cabo dele. Esperava para ver se outro surgia em socorro e dava cabo dele também. Se não,partia em busca do próximo.

Era um alívio que se tratassem apenas de alienígenas. Tinha nojo daquelas criaturas e pre-feria vê-las mortas. O mesmo não acontecia com relação a outras pessoas. Quando era maisjovem, até que lidava bem com isso. Mas depois, os fantasmas começaram a aparecer, vinhamfalar com ele nos seus pesadelos, mostravam as fotos das esposas, dos filhos, de todos que osamavam e precisavam deles. Certa vez, um engenheiro importante que ele matou mostrou-lhe afoto do filho doente mental. “E agora, quem vai cuidar do meu filho? Minha mulher é morta, elenão tem mais ninguém!”. Balançou a cabeça com violência para afastar esses pensamentos. Pre-cisava se concentrar. Logo tudo estaria terminado. Ele nunca mais precisaria jogar esse jogo.Nesse dia, o vazio dentro dele finalmente pararia de crescer. Continuou sua busca assassina.

Então ele encontrou um velho, sentado, à frente de vastos controles. Não entendeu. Comoum ser humano poderia estar ali? Aproximou-se sorrateiramente, agachado, e só se ergueu quan-do estava bem atrás dele. O velho viu seu reflexo no monitor e virou-se, apavorado. Depois,mudou o semblante para algo mais amistoso e falou:

— Você veio me resgatar?

— Resgatar?

— Sim. Sou prisioneiro aqui. Pensei que você tivesse vindo me resgatar.

Quando Roger viu o reflexo do alienígena no monitor, já era tarde. Ele o agarrou, imobili-zando-o com seus tentáculos. A expressão no rosto do velho mudou novamente, ficou dura.

— Vocês, mercenários, podem ser espertos, mas não são nada inteligentes.

Ele abaixou e pegou a arma. Deu um sorriso irônico e continuou:

O MERCENÁRIO E O ABISMO

42

— Sabe o que eu estou fazendo aqui? Eu sou o comandante da invasão. Não há alienígenas,só humanos. Sempre nós, os seres humanos. Esses “alienígenas” são criações genéticas minhas.

— Não pode ser — falou Roger. — Eles vieram do espaço.

— Você pode não acreditar, mas é verdade. Eu vim do futuro. Nos dias de hoje eu era, oumelhor, sou o proprietário de uma empresa em ascensão. Apesar de todo meu privilegiado conhe-cimento científico, não consegui chegar até onde queria. Sabe como é, muita visão técnica epouca visão de mercado.

—Você está mentindo. Eu mesmo vi uma dessas naves cruzando o sistema solar até chegarà Terra.

— Não vou perder tempo te explicando o que é um portal espaço-tempo. Mas tenho umacuriosidade que você vai me esclarecer. Pensei que ninguém acharia meu esconderijo, aqui, nasprofundezas da zona abissal do oceano. Quem foi? Algum “concorrente”?

— Me diga você primeiro qual é a sua empresa.

— Por que quer saber?

— Também estou curioso.

O velho riu alto e depois falou:

— É a Heidelberg S.A. Você ainda não deve ter ouvido falar dela. Como eu disse, ela éapenas uma empresa emergente. Mas não ficará assim por muito tempo. Agora me diga quem éseu empregador?

— Eu te enganei. Não vou dizer.

O velho gargalhou, tombando a cabeça para trás.

— Não vai fazer diferença mesmo. — Com um gesto indicou o monitor: — Com certeza éum desses pontos luminosos. São as principais corporações do mundo. Logo meus ciclopes vãodesferir um pesado ataque a todas elas. Então vou contatar meu outro eu e simularemos umacordo com meus falsos alienígenas, usando uma tecnologia de comunicação que ele vai fingirter inventado. Ele vai cair nas graças de todo o mundo e, através dele, eu vencerei. Mas antes...

Apontou a arma para Roger, sorrindo maliciosamente. Fechou um dos olhos e fez mira natesta. Para evitar ser atingido, o falso alienígena encolheu a cabeça para dentro do corpo, comouma tartaruga,. Na primeira fração de segundo que o velho pressionou o gatilho, duas finaslâminas saíram do cabo e, como as mandíbulas de um inseto, cortaram sua mão ao meio. Osdedos caíram no chão, só o polegar restou.

O falso alienígena assustou-se com o grito do velho, relaxando um pouco os tentáculos.Roger aproveitou para esmagar o pé da criatura com sua pesada bota. A cabeça saltou para forado corpo. Roger curvou-se com toda a força e em seguida jogou sua cabeça para trás, atingindoem cheio e com violência o rosto da criatura. Ela o soltou e, rapidamente, Roger sacou a faca erasgou o adversário de baixo pra cima. As entranhas acinzentadas escorreram para o chão, antesque seu corpo sem vida tombasse.

O velho fez menção de pegar a arma novamente, mas hesitou. Fora apenas uma reaçãoinstintiva, pois o medo e a dor haviam ludibriado seu discernimento. Roger chutou a cara dovelho, afundando todos os dentes. Depois o ergueu e o jogou na cadeira. Colocou o braço nosseus ombros e a arma na sua têmpora.

UBIRATAN PELETEIRO

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— Se me lembro bem, você me chamou de burro. Então eu não serei capaz de operar esseequipamento. E eu quero ver o nome da sua empresa brilhando nesse monitor. Agora!

— Eu... posso te dar... muito dinheiro! — gaguejou o velho, enquanto seus dentes caiam etilintavam no chão.

— Eu sei, eu sei. Mas eu não gosto de quem tenta me matar. Tenho um probleminha comisso. Portanto, vou te dar um castigo. Então bota o nome logo aí! Depois que eu tiver dado umfim na sua empresa, a gente negocia.

E apertou ainda mais o cano da arma na têmpora do velho, que resolveu obedecer. Quandoviu o novo nome piscar no monitor, Roger falou:

— Obrigado.

Puxou o gatilho, estourando a cabeça do velho. Chutou o cadáver para o lado e sentou-se.

— Eu não sou tão burro, velho, mas não tinha como adivinhar onde ficava sua malditaempresa. Mas aposto que consigo descobrir como fazer os ciclopes destruírem-na.

Então viu num canto da tela o nome da corporação que o havia contratado para aqueletrabalho. Ela se repetia em outros pontos, pois tinha várias sedes. Lembrou-se do dinheiro edepois dos fantasmas. Olhou para todas aquelas luzes e percebeu que eram todas grandes fábri-cas de fantasmas. Ficou pensativo por alguns instantes, sentindo o seu imenso e frio vazio inte-rior. Depois, levou alguns minutos para aprender como operar os controles. E ordenou o ataquecontra todos aqueles múltiplos alvos. Cruzou os braços e relaxou, acompanhando o andamentodo combate. Imaginou seu empregador, olhando pela janela do seu luxuoso escritório e vendo obatalhão de robôs, cada qual com cinqüenta metros de altura e apenas um olho luminoso, aproxi-mando-se inexoravelmente.

“Os fantasmas agradecem”, foi o pensamento que lhe ocorreu. E no fundo do peito, sentiuuma pontada de algo que há muito tempo não sentia. Mas reconheceu-a imediatamente. Era aesperança de conseguir dormir em paz novamente.

O MERCENÁRIO E O ABISMO