Ainda Heidegger e o Nazismo

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    AINDA HEIDEGGER E O NAZISMO

    Pierre Aubenque

    Traduo: Nuno Ramos

    Ao estudante desconhecido que,no dia 21 de outubro de 1987, naSorbonne, abandonou a sala de aulaquando pronunciei o nome deHeidegger.

    Acreditava-se que tudo j havia sido dito sobre o nazismo de Hei-degger, especialmente depois dos estudos de O. Poggeler na Alemanha ede Fr. Fdier e Ph. Lacoue-Labarthe na Frana. O fato de o livro recentede Victor Farias sobreHeidegger e o Nazismo provocar h algumas sema-nas discusses apaixonadas num crculo bem mais amplo que o dos fil-sofos consegue ao menos demonstrar que o debate ainda no est encer-rado. Ora, Victor Farias rene, como veremos, poucos elementos verda-deiramente novos. Por que, ento, este reavivar sbito de cinzas aparente-

    mente mal extintas?Este livro e seu sucesso junto aos meios de comunicao levantam,na realidade, diversas questes. H, evidentemente, o problema, j larga-mente debatido antes dele, sobre o nazismo de Heidegger, sobre sua reali-dade, seu sentido, sua dimenso em relao obra do filsofo. Mas h tam-bm duas outras questes, mais novas, que este livro, devido ao seu car-ter especfico e sua data, tem o mrito involuntrio de levantar. Qual oestatuto tico, em relao aos nossos juzos costumeiros sobre a inquisi-o e a censura, de um livro que se apresenta abertamente como um em-preendimento de denncia, em particular, de denncia de um pensador,sobretudo quando esta denncia em grande parte caluniosa? E, de outrolado, por que o nazismo de Heidegger, que j era conhecido... desde 1933KKKK

    Este artigo foi traduzidode LeDbat 48 jan-vier/fevrier 1988.

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    (Sartre, para ficar no primeiro e mais clebre discpulo francs de Heideg-ger, estava neste momento em Berlim e devia ler os jornais), suscita, meiosculo depois, mais emoo, constrangimento ou indignao do que en-tre os contemporneos e, s vezes, do que entre as prprias vtimas doacontecimento?

    A prpria existncia do livro de Farias j constitui um problema.No se trata de um livro de filosofia. As escassas anlises a que se propeou so curtas demais ou esto redondamente erradas. A gente fica se per-guntando, como disse com justeza J. Derrida a seu respeito, "se ele l Hei-degger h mais de uma hora"1. Mas, argumentar-se-, talvez seja um livrode histria. Tambm no acredito nisso, no apenas por estar repleto deerros como tambm porque seu fim nico e confesso consiste em erigir

    um requisitrio.O senhor Farias, que leu bastante e consultou muitos arquivos, pos-sua todos os elementos para redigir uma biografia de Heidegger. Mas asdvidas sobre a objetividade do autor, e mesmo sobre sua boa f, nascemdesde as primeiras pginas, consagradas formao de Heidegger. De acor-do com ele, absolutamente tudo conspira para predestinar o jovem Hei-degger adeso ao nazismo: o catolicismo de seu meio familiar poisnos dito que este catolicismo do tipo subio, isto , reacionrio e vaga-mente anti-semita; mas tambm o bismarckismo de alguns de seus profes-sores (ao passo que a lembrana da Kulturkampf deveria ter vacinado Hei-degger, e com efeito o vacinou, contra qualquer admirao pela Prssia);e ainda o anticlericalismo de alguns outros de seus professores, j que, anun-cia gravemente o senhor Farias, " possvel observar tambm nesta poca

    a proliferao de um anticlericalismo que se articular em seguida direta-mente com o fascismo" (p. 31). Ser que ao desposar uma protestante eromper com o catolicismo, em torno de 1919, as chances de Heideggeraumentam? No, pois esta ruptura seria ditada pelo oportunismo, o queno o impedir, censura-o ainda o senhor Farias, de continuar a declarar-se catlico nos formulrios do Ministrio da Educao (o senhor, Farias ig-nora portanto que na Alemanha ocidental ainda hoje obrigatrio assina-lar a crena religiosa nos formulrios administrativos?).

    O livro, infelizmente, todo escrito neste mesmo tom. Quando eraum jovem professor em Marburg, Heidegger teve boas relaes com osestudantes? Isto tambm suspeito. Entrego aos estudantes de hoje e deontem esta frase admirvel: " nesta poca que Heidegger comea a man-ter relaes estreitas com o mundo estudantil, o que ser decisivo para

    compreender seu engajamento posterior em favor do nacional-socialismo"(p. 69).

    (1) Entrevista ao NouvelObservateur, 6-12 de no-vembro de 1987, p. 170.

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    afastada da guerra quanto Sachsenhausen de Frankfurt". O senhor Fariasignora, ou finge ignorar, que alude-se a a um ditado, referente proximi-dade entre Frankfurt e Sachsenhausen, separadas somente pelo Main. Qual-quer estudante de ginsio alemo conhece ou deveria conhecer Hei-degger, ao menos, acreditava nisto, pois falava para estudantes de ginsio o uso que Goethe faz desta frmula no primeiro ato de Gtz von Berli-chingen (Ed. Reclam, p. 28). Mas o senhor Farias no sabe disso ou noquer sab-lo. Para ele, a coisa bem clara: Sachsenhausen evoca o campode concentrao do mesmo nome (o qual, bom que se esclarea, notem nenhuma relao com esta localidade inocente, conhecida por suastabernas onde se bebe cidra fresca). Quanto a Frankfurt, poderia evocarGoethe, a revoluo de 1848, a escola de Frankfurt e sei l quantas coisasainda. Mas no: para o senhor Farias, trata-se da sede do tribunal onde fo-ram julgados os crimes de Auschwitz. Da a "trilogia", eu cito, "Abrahama Sancta Clara/Sachsenhausen/Auschwitz" (p. 293), da qual no se percebeverdadeiramente nem a necessidade interna nem sua relao com Heideg-ger, at que o senhor Farias, ao cabo de uma anlise enftica e labirntica,

    conclua atravs desta hiptese, colocada, bem verdade, no condicional:"Heidegger teria desejado assumir 'virilmente' o sentido desta trilogia ado-tando uma atitude que, dos chefes da hierarquia nazista, somente Himm-ler ousou assumir; todos sabem que Himmler se matou" (p. 294). Devodizer que nesta altura o livro quase me caiu definitivamente das mos. Pode-se pensar o que se quiser de Heidegger, mas ele tem direito, como qual-quer homem, justia, ainda que pstuma. Estas insinuaes h algu-mas outras ainda teriam ido parar nos tribunais se Heidegger fosse vi-vo. Gostaria de me deter por aqui, mas preciso dar ainda dois exemplosda impostura que este livro e sua publicao, numa traduo provavelmentemedocre (mas ser possvel conhecer algum dia o original espanhol?),constituem.

    J que falvamos de Himmler, talvez valha a pena procurar deter ain-

    da em embrio a lenda que ameaa nascer a partir da pgina 272, ondeo leitor fica sabendo, espantado (ao menos quando sabe de que se trata)que o artigo sobre "A Doutrina Platnica da Verdade" s pde vir luzem 1943 graas interveno de Himmler.Isto falso, e o prprio contex-to d testemunho disto. Trata-se aparentemente de um erro do tradutor que,misturando os pronomes, inverte os dois personagens que a frase prece-dente amalgamava: Himmler e o ministro italiano da Educao, GiuseppeBottai. Foi este ltimo, na verdade, quem imps aos nazistas reticentes aparticipao de Heidegger no Anurio Germnico-Italiano de ErnestoGrassi.

    Mais grave ainda a extrapolao realizada pelo autor do prefcio,Christian Jambet. Eu cito: " com vigor que Heidegger, durante seu pero-do de reitorado, sustenta a linha extremista de Rhm, sem o menor ind-

    cio de crtica que v, em sua cidade, as associaes dos estudantes des-manteladas, suas sedes pilhadas, seus militantes assassinados: quando che-kkk

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    gavam a ele queixas por estas exaes, dissipava-as com um simples gesto"(p. 10, o grifo meu). Ora, falso recorro aqui ao prprio Farias, queno se refere a nada disto em seu captulo sobre o perodo que militan-tes estudantis, judeus ou no-judeus, tenham sido assassinados em Frei-burg durante o reitorado de Heidegger. Peo portanto ao senhor Jambet,em nome da verdade e da justia, que suprima este pedao de frase numaprxima edio, se houver uma. Quando se acusa uma pessoa de "concor-dncia com o crime" (p. 12), colocando-a entre os que "participaram docrime" (p. 13), dever-se-ia ao menos verificar suas fontes antes de escrever.

    No seria difcil continuar. Mas esto a, em todo o caso, algumasamostras do livro que vem ocupando a imprensa h diversas semanas eque apresentado nos sales e nas salas de redao como "importante",ainda que s vezes "excessivo". Na realidade, ele excessivo e no merecea importncia que se lhe atribui. A despeito de uma erudio de fachada mas as referncias so freqentemente de segunda mo, ou simplesmenteno existem , este livro s confivel quando reproduz aquilo que jse conhecia3. necessrio desconfiar de todos os outros pontos, inclusi-

    ve quando o autor afirma (p. 97) trata-se de uma das raras "revelaes"do livro que Heidegger teria pago at o fim suas cotas ao partido nazis-ta. O documento encontrado nos arquivos do N.S.D.A.P. prova at a evi-dncia que Heidegger no se demitiu nem foi jamais excludo do partido;mas sabe-se que os partidos no excluem de boa vontade seus membrosmais clebres e que os reivindicam pelo mximo de tempo possvel, comou sem cotizao. Em todo o caso, a atuao militante de Heidegger nopartido, supondo-se que ela tenha alguma vez existido, cessou completa-mente a partir de 1934.

    No se pode contar como uma atividade propriamente poltica ofato de Heidegger, depois de sua demisso do reitorado em abril de 1934e somente at 1935, ter ainda procurado, alis inutilmente, desempenharum papel nos rgos universitrios j "enquadrados". E, salvo engano,

    exceo de uma conferncia em Roma em 1936, Heidegger jamais aban-donou a Alemanha para represent-la no estrangeiro. Colocado em meioa uma delegao cuja composio e chefia lhe escapavam, recusou-se aparticipar do Congresso Descartes em Paris, em 1937. Durante a guerrarecusou-se, diferena de outros, que no foram tratados com o mesmorigor, a representar o "pensamento alemo" nos pases ocupados. O se-nhor Farias no poderia afirmar nada de diferente a este respeito, e comefeito no o faz. Se contarmos com ateno, veremos que, a despeito dealguns artifcios de apresentao, ele consagra apenas algumas linhas aoperodo posterior a 1934, salvo no que concerne publicao do Anuriode Grassi, de que falei mais acima, e a alguns convites (Berufungen) dirigi-dos a Heidegger para ocupar uma cadeira em outras universidades, proce-dimento que fazia parte da vida ordinria das universidades alems.

    (3) Mesmo o relatrioBaumgarten (p. 234 ss.)

    era j conhecido desde aedio de Hans Saner dasNotizen zu Martin Hei-degger de Karl Jaspers(Mnchen, 1978). Este re-latrio, onde Heideggerdeclara inapto filosfica epoliticamente um de seusantigos alunos, que queriaentrar ao mesmo tempopara a carreira universit-ria e para as S.A., no con-ta certamente para a gl-ria de Heidegger. Masdeve-se precisar que eledata de 1933 e no de1935, como procura fazercrer o senhor Farias.

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    O que fica portanto de todo este embrulho o que j se sabia. Hei-degger, no perodo em que foi reitor da Universidade de Freiburg, pero-do que coincidiu com a consolidao do regime nazista (abril de 1933 aabril de 1934), apoiou clamorosamente o incio da poltica hitleriana em

    seus aspectos universitrio, social e internacional, mas sem pronunciar ja-mais uma s palavra sobre a "poltica" racial, da qual executa, no obstan-te, sem zelo particular mas tambm sem nenhuma resistncia notvel (sal-vo em dois ou trs casos precisos), as primeiras medidas naquela universi-dade: aposentadoria dos professores judeus e interdio das associaesjudias de estudantes. A partir de 1934, sua relao com o nazismo torna-semais crtica, devido a razes que examinaremos mais adiante. Fecha-se en-to numa solido desgostosa e consagra-se unicamente ao ensino at 1944.Durante este perodo, e j desde 1934, regularmente atacado pelos ide-logos oficiais do regime, mas sem qualquer conseqncia mais grave parasua carreira, alm de dificuldades para publicar seus escritos. Heidegger,em suma, foi um nazista ativo durante um perodo e, depois disto, no foijamais um antinazista militante. Isto tudo o que se pode conceder a Vic-

    tor Farias, sendo j, ainda que certos apologistas tivessem errado de medi-da ao exagerar os atos de "resistncia" de Heidegger, admitido por todos.Gostaria apenas que me permitissem citar aqui um testemunho pouco co-nhecido sobre este perodo. Encontra-se, sob a autoria de Curt Ochwaldt,num volume de homenagem a Heinrich Ochsner, que foi condiscpulo eamigo de Heidegger, suficientemente crtico para ter-se "deprimido" e "aba-tido" com o engajamento poltico de Heidegger em 1933: "Ele (H. Ochs-ner) me relatou, fato que me foi confirmado em outras partes, como aolongo destes doze anos formara-se um julgamento cada vez mais difundi-do segundo o qual freqentar os cursos de Heidegger era j quase um atode resistncia ou, ao menos, de no-conformismo"4. Walter Biemel, quefoi aluno de Heidegger em Freiburg no final da guerra, me dizia recente-mente, em resposta ao livro de Farias, que o crculo em torno de Heideg-

    ger na universidade era o nico no qual se podia criticar abertamente oregime.

    Permanece o fato massivo e incontestvel de que Heidegger aderiua uma certa idia do nazismo, por influncia da qual continuou por algumtempo, mesmo no incio do seu perodo "crtico", a acreditar na "verdadeinterna" e na "grandeza deste movimento". Que idia era esta que, segun-do ele, cessou bem depressa de identificar-se com a realidade? O senhorFarias oferece uma explicao, que me parece um pouco sumria, segun-do a qual Heidegger seria de certo modo um "nazista de esquerda", parti-drio da corrente "revolucionria" de Rhm e Strasser, decapitada no dia30 de junho de 1934 por ocasio da Noite das Facas Longas. Isto me pare-ce inverossmil, j que no corresponde educao catlica e pequeno-burguesa de Heidegger, nem ao seu passado conservador. Heidegger no

    me parece ter se deixado tomar pelo "socialismo", ainda que "nacional",nem antes nem depois do nazismo. Os partidrios de Rhm eram recruta-kkkkkk

    (4)Das Massder Verbor-genen. Heinrich Ochsner

    zum Gedchtnis editadopor C. Ochwaldt e E.Tecklenborg, Hanover,

    1981, p. 276. Quanto aojulgamento de H. Ochs-ner sobre o engajamentonazista de Heidegger, verp. 274.

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    dos basicamente entre os militantes da velha guarda que haviam aderidoao partido ou S.A. bem antes da tomada do poder. E Heidegger no esta-va entre eles. Esperou at maio de 1933 para aderir ao partido, o que lhevaleu a pecha de oportunista. Alm disso, os ataques nazistas contra Hei-degger comearam, sob a autoria de E. Krieck (que era, ele sim, um "AlterKmpfer, um velho militante), a partir de fevereiro de 1934, antes portan-to da eliminao de Rhm, e no se encontra nestas crticas, das quais da-rei um exemplo, nada que prefigure a condenao especfica do aventu-reirismo "revolucionrio" de Rhm.

    A verdade , ao mesmo tempo, mais grave e mais reconfortante: maisgrave porque no possvel atribuir a primeira adeso de Heidegger aonazismo s iluses de um idealismo vagamente socializante; mais recon-fortante na medida em que a polmica nazista contra Heidegger deixa deaparecer como um acerto de contas entre tendncias rivais e mostra-se an-tes um ataque frontal contra o pensamento mesmo e, subsidiariamente, alngua julgada insuficientemente "germnica" de Heidegger. J queo senhor Farias evoca esta polmica (p. 185) mas no oferece qualquer ilus-

    trao dela aos seus leitores, passo a citar, a ttulo de exemplo, o que E.Krieck escrevia em 1934 na revista nazista Volk im Werden:

    A tonalidade fundamental da concepo de mundo contida na dou-trina de Heidegger determinada pelos conceitos de preocupaoe de angstia, que visam, tanto um quanto o outro, o nada. O senti-do ntimo desta filosofia um atesmo declarado e um niilismo me-tafsico, que foram representados at aqui entre ns sobretudo porescritores judeus; trata-se, portanto, de um fermento de decomposi-o e de destruio para o povo alemo. Em Ser e Tempo,Heideggerfilosofa consciente e deliberadamente sobre a "quotidianidade" no se encontra nada ali que diga respeito ao povo e ao Estado,

    raa e a todos os valores de nossa concepo de mundo nacional-socialista. Quando subitamente, no discurso de reitorado A Auto-afirmao da Universidade, ouve-se ressoar um tom herico, o queocorre uma adaptao ao ano de 1933, que contradiz totalmentea atitude fundamental de Ser e Tempo (1927) e de Que Metafsica?(1931)5.

    E. Krieck respondia assim a seu modo questo decisiva que nospreocupa: h ou no h uma relao de dependncia essencial entre a fi-losofia de Heidegger e seu engajamento nacional-socialista? E. Krieck, queconhecia bem o nazismo, pensava que no. Tambm acredito que no ou no poderia decentemente continuar a pensar, como escreve, com umaindulgncia hipcrita, o senhor Jambet (p. 10), que Heidegger " um dosmaiores pensadores de todos os tempos". Mas minhas razes no so evi-dentemente as mesmas de Krieck. Acredito que a relao filosfica de Hei-kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    (5) Citado por G. Schnee-berger, Nachlese zu Hei-degger, Berne, 1962, p.225.

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    degger com o nazismo no pode ser mensurada se no se levar em contasua obra posterior.

    Ser e Tempo uma obra manifestamente apoltica. este apoliti-cismo, inclusive, que a torna negativamente responsvel pelo engajamen-

    to poltico de Heidegger, na medida em que no conseguiu impedi-lo. Hei-degger limitava-se em Ser e Tempo a uma descrio formal, de certa formaaistrica, da existncia humana. No fornecia nenhum critrio utilizvelpara guiar e medir a passagem da inautenticidade existncia autntica.o patos da "deciso resoluta", segundo o testemunho de Karl Lwith, fa-zia com que um estudante dissesse, ao sair de um curso de Heidegger, quesentia-se, dali em diante, resolvido mas que no sabia a qu. H bastan-te verdade nesta frase, e o prprio Heidegger ser vtima desta ausnciade critrio e de contedo. impressionante a vacuidade quase total dosdiscursos da poca do reitorado ( por isto, de resto, que preciso conhe-cer o ambiente para reprovar o que quer que seja nestas frases): tudo, ali, uma questo de reverso (Umwlzung), de nova partida (Aufbruch), derenovao (Erneuerung), de vontade da essncia (Wille zum Wesen), de

    "misso histrica", de "concentrao do olhar no Incontornvel" etc., semque se distinga qual poltica concreta est sendo desenhada atravs destasfrmulas. Heidegger formulara certamente a sua idia a este respeito. Masesta idia provinha da idiossincrasia, da psicologia e da sociologia, e noda filosofia.

    A adeso inicial de Heidegger ao "movimento" no um ato filos-fico. Parece-se com milhes de outros casos. Este, em particular, o casode um pequeno-burgus de provncia alemo, h muito humilhado ou des-prezado por suas origens a senhora Cassirer comparava-o maldosamen-te, quando das Conversaes de Davos (1929)6, a um "filho de camponsque tivessem conduzido fora atravs da porta de um castelo" e que,ao atingir o auge da reputao, na qual no distingue bem a parte da glriareal e a parte dos poderes irrisrios de um reitor de universidade, utiliza

    a "revoluo" de 1933 para acertar algumas contas quase pessoais e parasatisfazer assim certas reivindicaes mais genricas, especialmente con-tra a burguesia que no o tinha acolhido e qual ele unia, atravs da figurade Cassirer e de alguns outros, a intelligentsia cosmopolita e dos salesde Berlim. Ele fazia tambm, no entanto, algumas reivindicaes contraa fossilizao da universidade e seu isolamento social, contra a industriali-zao que comeava a desfigurar sua querida Floresta Negra, contra a tec-nicizao do saber que comeava areduzir a funo de um professor deuniversidade condio de uma simples pea em meio a um "empreendi-mento" (Betrieb), contra aquilo que ele chamar mais tarde de "america-nismo" etc.

    Algumas dentre estas reivindicaes, como aquela que chamaramoshoje em dia de "ecolgica" ou a preocupao de reabilitar o trabalho ma-nual e de aproximar os estudantes do mundo do trabalho, no so inteira-mente desprezveis, ainda que logo se perceba o absurdo de depositar nos

    (6) Citado por G. Schnee-berger, op. cit,, p. 7. Cf.sobre este assunto minhaapresentao de Cassirer-Heidegger, Dbat sur leKantisme et la Philoso-

    pile, Paris, 1972.

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    nazistas a esperana de satisfaz-las. Mas tudo isto tem muito pouco a vercom a filosofia, a menos:1) que se deduzam estas reivindicaes no de sentimentos, mas de prin-cpios filosficos;

    2) que se mostre que o nazismo, com tudo aquilo que se podia saber porvia diversa da de sua ideologia, era o destinatrio legtimo destasreivindicaes.

    Sobre o primeiro ponto, Heidegger realizou certamente algumas ten-tativas, em seus discursos de 1933, para estabelecer um tipo de correspon-dncia tardia entre determinados temas de Ser e Tempo (a propsito dotrabalho, por exemplo) e seu "programa" poltico de ento, mas elas logomudam de direo e no autorizam nenhuma deduo necessria. O se-gundo ponto, disseram alguns, seria mais importante para proceder a umjulgamento filosfico do nazismo de Heidegger. Se ficasse estabelecido,por exemplo, que a reivindicao ecolgica ou a necessidade de uma re-forma da universidade podiam ser deduzidas logicamente de Ser e Tem-po, mas que o recurso a um partido racista para realizar este programa,

    ao contrrio, no seria de forma alguma dedutvel dali, ento os discursosecolgicos e reformistas de Heidegger poderiam ainda hoje ser discutidosfilosoficamente, sem que fosse necessrio atribuir importncia filosficaao erro de julgamento (por mais fatal, de resto, que ele fosse) cometidoquanto natureza do regime nazista.

    Na realidade, este modo um pouco desesperado de defender o Hei-degger de 1933, em particular atravs de seu discurso de reitorado, queacredito perceber especialmente nas corajosas publicaes de G. Granela respeito, no me parece convincente. Penso que ocorre uma verdadeiraruptura ruptura de estilo, de grau, ruptura de pensamento entre asobras filosficas de Heidegger de antes de 1933 e os discursos de circuns-tncia de 1933, incluindo o de reitorado. Derrida7acaba de mostr-lo bri-lhantemente a propsito do novo emprego da palavra Geist termo apa-

    rentemente banal, mas cuja utilizao positiva por Heidegger, depois da"desconstruo" a que havia comeado a submeter esta noo em suasobras precedentes, nova e paradoxalmente inquietante.

    Mas a ruptura vale nos dois sentidos. A partir de 1934, a obra filos-fica de Heidegger retomar seu curso, por um momento interrompido, semincorporar o contedo dos discursos polticos a no ser indiretamentee, desta vez, de modo crtico. que, se o nazismo est ausente da obrafilosfica de Heidegger de antes de 1933 e se, reciprocamente, a filosofiapropriamente heideggeriana est ausente do engajamento nazista do rei-tor de 1933-1934, pode-se observar claramente desde 1935 o esboo deuma reflexo filosfica sobre o nazismo. Fica claro que, uma vez passadasa agitao e a exaltao do reitorado, Heidegger incorpora a experinciade seu fracasso e daquilo que sem dvida j desde esta poca ele tomava

    por um erro sua reflexo filosfica. O primeiro testemunho disto encontra-se no curso de 1935, intituladoIntroduo Metafsica. A frase seguintealphar

    (7) J. Derrida,De lEsprit,Paris, 1987.

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    bastante conhecida: "Aquilo que se propala hoje em dia como filosofiado nacional-socialismo, e que nada tem a ver com a verdade interna e agrandeza deste movimento (isto , com o encontro entre a tcnica deter-minada planetariamente e o homem moderno), faz sua pesca nas guas tur-

    vas destes 'valores' e destas 'totalidades'" (trad. G. Kahn, Gallimard, p. 202).Censurou-se a Heidegger no somente o fato de ter pronunciado esta fraseem 1935 como ainda o de t-la mantido na edio do curso de 1953. Elafornece testemunho, no entanto, da distncia que Heidegger havia toma-do em relao realidade ideolgica do nacional-socialismo, e desta vezem termos filosficos. A passagem conclui uma crtica da noo de valor,entendido como conseqncia derradeira da subjetivizao do ente que,comeada com Plato e levada a cabo com os Tempos Modernos, a ma-nifestao e o desfecho do esquecimento do ser. O engano da pretensafilosofia do nacional-socialismo situar-se no prolongamento desta meta-fsica dos Tempos Modernos e afirmar valores como a "vida" ou a "raa",que no passam de recortes arbitrrios no interior da totalidade do ente.No por acaso que Nietzsche nomeado aqui como o filsofo "que pen-

    sa integralmente na perspectiva da noo de valor", e que podia, assim,ser reivindicado pelos nazistas como modelo de uma valorizao do bio-lgico. Mas, em 1935, Heidegger procura ainda salvar contra Nietzsche uma"verdade interna do nacional-socialismo" que ultrapassaria a noo meta-fsica de valor e confundir-se-ia com aquilo que passar desde ento a sera tarefa de Heidegger: determinar o sentido do encontro entre o homemmoderno e a tcnica planetria.

    de acordo com esta perspectiva que se devem situar seus cursossobre Nietzsche, ministrados entre 1936 e 1940, e que so um acerto decontas com Nietzsche, cuja filosofia apresentada no como o reverso,mas como o encerramento da metafsica e, desta forma, como a ltima fa-se da errncia, aquela que instaura o niilismo, o reino planetrio da insig-

    nificncia e da unidimensionalidade. A partir deste momento, o nacional-socialismo deixa definitivamente de aparecer para Heidegger como um re-curso histrico contra a errncia. Ele se torna antes, tanto em sua idia quan-to em sua realidade, a forma mais crepuscular da prpria errncia. Os lde-res (Fhrer), ao contrrio do que pensam, no conduzem nada. So elesmesmos conduzidos pelo "mau destino do ser", que extenua este ltimono nada da calculabilidade e da planificao. "Na verdade, os lderes (Fh-rer) representam as conseqncias necessrias do fato de o ente ter adqui-rido o modo da errncia, ali onde se estende o vazio que exige uma or-dem e um resguardo do ente". Esta frase, tirada do ensaio Dpassementde Ia Mtaphysique, foi publicada apenas em 1954, no livro Ensaios e Con-ferncias, mas faz parte de um conjunto de notas dos anos 1936 a 1946.Comparaes com o curso sobre Nietzsche mostram at a evidncia que

    este o significado sem dvida bastante cifrado, mesmo para Heideg-ger que comeava a vir luz no acerto de contas este sim, bastantekamikk

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    pblico que Heidegger, durante quatro anos, procurou realizar com es-te matre penser dos nazistas que, segundo eles mesmos, eraNietzsche.

    Aquilo que a analtica existencial de Ser e Tempo no permitia ain-

    da perceber, a histria do ser traz luz e, ao desvel-lo, o denuncia. O na-zismo desejaria ser um novo comeo; no passou, na realidade, do ltimoavatar do esquecimento do ser. O nazismo gostaria de

    moldar o destino;no foi mais do que um joguete em suas mos. Para empregar os termosde Ernest Jnger, situa-se aqum da linha, no alm. Mas Heidegger separa-se de Jnger quando faz pender inteiramente para o lado da metafsica ago-nizante a figura moderna do trabalhador, do "animal trabalhante", de quemchegara a pensar, como Jnger, que regeneraria o mundo.

    H portanto certamente em Heidegger, depois do vazio filosficodo incio, uma teoria do nacional-socialismo que o condena cada vez mais,ao menos se admitirmos que, mesmo sem pronunciar qualquer julgamen-to de valor, Heidegger se esfora atravs do pensamento para galgar nova-mente uma encosta, para conjurar um declnio, e se estabelecermos defi-

    nitivamente que o nazismo pertence por inteiro a esta encosta e a este de-clnio. Mas o que incomodou bastante nesta denncia e que a tornou atmesmo inaudvel para muitos o fato de no se dar jamais como uma con-denao moral. A razo disto bastante genrica: Heidegger, como se sa-be, desconfia dos "valores". Um problema de que no se assenhoreou ja-mais inteiramente o da fundao de uma tica (ou como quer que a cha-memos) que dispensasse os julgamentos de valor, tal como, segundo al-guns, teria chegado a procurar no Antigo Testamento. Mas este ponto ul-trapassa o nosso propsito. O fato que a ausncia de uma doutrina moralno tem, de forma alguma, por conseqncia, o imoralismo, e que Hei-degger foi progressivamente estabelecendo critrios suficientes para quese possa chamar sua teoria, ainda que este termo no comparea nenhu-ma vez, de uma teoria crtica.

    Acabo de citar uma expresso que, celebrizada pela escola de Frank-furt, parece o antpoda de tudo o que o nome de Heidegger evoca. Acre-dito, no entanto, que, no que diz respeito definio do nazismo, o pensa-mento de que Heidegger mais se aproxima o marxismo, na medida emque este via no nazismo um epifenmeno de um movimento histrico maisprofundo, a saber, o capitalismo ou aquilo que Herbert Marcuse queera inicialmente discpulo de Heidegger chama de sociedade industrialavanada. Heidegger e a escola de Frankfurt tm em comum o fato de com-preenderem o nazismo como um resultado ao mesmo tempo perverso elgico da dominao "ideolgica" da racionalidade e, de um modo maisgeral, o Estado Totalitrio como a realizao mais monstruosa, porque maiscompleta, da administrao total da sociedade e do ente.

    Pode ser e procuro aqui responder a uma das questes subsidi-rias que levantei no incio que o declnio da influncia do marxismo,o retorno revigorado de um humanismo moralizante e de uma filosofia"liberal" tornem possvel hoje o que no era ontem: de um lado, a disso-kkkkkk

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    AINDA HEIDEGGER E O NAZISMO

    ciao do nazismo e do fascismo, confundidos de tal forma pela argumen-tao marxista que o primeiro aparecia como uma forma do segundo; deoutro, a reduo paralela do nazismo ao Holocausto e, em conseqncia,sua estilizao enquanto figura do mal absoluto, enquanto bloco errtico

    da Histria ou enquanto Cesura apocalptica, representaes estas cujo efei-to tornar cada vez mais odioso, cada vez mais indesculpvel todo e qual-quer contato, mesmo o mais superficial, com ele. Como foi longo o cami-nho percorrido desde Lukcs que, em ADestruio da Razo (1954), de-nunciava no irracionalismo da filosofia burguesa contempornea, tomadoem bloco, a ideologia do imperialismo, ltima fase do capitalismo! Nestapoca, Heidegger estava, digamos assim, em boa companhia, num lugarno mais infamante que o de Bergson, de Husserl ou mesmo... de Witt-genstein. Os tempos hoje em dia mudaram, o que no significa necessa-riamente que a percepo da histria tenha ganho em acuidade, nem queo julgamento sobre os homens tenha-se tornado mais equnime.

    Conheci Heidegger em 1948, durante sua travessia do deserto. Sus-penso pelas autoridades francesas de ocupao, proibido de ensinar na uni-versidade, era apenas na semiclandestinidade de sua casa de Zhringen querecebia algumas raras visitas, sobretudo de franceses. Mas nesta poca, nauniversidade, quando Max Mller, ele prprio vtima do nazismo, pronun-ciava em seu curso o nome de Heidegger, quase pedindo desculpas porestar falando em seu lugar, percorria a sala, todas as vezes, atravs de umleve batimento nas carteiras, uma manifestao de simpatia pelo homem

    ento humilhado, de reconhecimento pelo pensador e, ao mesmo tempo,de impacincia com os "militares" que exerciam o que tomvamos poruma intolervel censura. Os poucos franceses que l estavam no toma-vam parte, de resto, neste tipo de manifestao. Todos ns, entretanto, ale-mes e franceses, sabamos que Heidegger fora nazista: que outro motivofaria com que fosse suspenso? E no era preciso despender muitos esfor-os para recolher alguns ecos ainda vivos do famoso reitorado. Seria a in-conscincia da juventude que nos tornava ento de tal modo indiferentes?No o creio. Em meio ao extraordinrio pblico de veteranos, de estropia-dos, de banidos, de sobreviventes de j nem se sabia mais quais massacresque freqentava ento os anfiteatros, era uma viso direta da Alemanha quenos impedia de fazer de Heidegger um caso particular e, seja como for,exemplar. Heidegger era um pensador da Alemanha: o problema que elenos colocava era o mesmo que nos colocavam os demais alemes, em suamaior parte bastante simpticos e no entanto coletivamente to compro-kkkkkkkkkkk

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    metidos, com quem deparvamos todos os dias. Pusemo-nos, assim, a lerHeidegger in absentia, deixando para mais tarde a questo de saber porque um pensador de tal estatura no soubera se furtar ao erro coletivo.Penso hoje em dia que a filosofia no capaz de impedir os erros

    de julgamento. Mas ela permite, ainda que tardiamente, compreend-lose deles extrair lies. Aps o fracasso de sua impossvel aventura em Sira-cusa, onde acreditava poder converter um tirano, Plato escreveuA Rep-blica. Da mesma forma, aps o "fiasco do reitorado"8, Heidegger, cujo "si-lncio" se censurou um pouco apressadamente, meditou publicamente so-bre o seu erro, ainda que sua maneira, ao mesmo tempo elevada e cripto-grfica. Tal meditao no deixou de ter influncia na "reviravolta" que,a partir de 1935-1936, lhe permitiu passar da analtica ainda descritiva doDasein a uma desconstruo da histria do ser, na qual o nazismo passara ter o nico lugar que merece: um ponto qualquer junto ao "fim da meta-fsica", cuja "superao" ser ento a nica "tarefa do pensamento".

    (8) A expresso de H.Ochsner (op. cit. p. 117) edata de 1934.

    Pierre Aubenque autordeLe Problme de l'trechez Aristoteles (Paris,PUF, 1962). Traduziu eapresentou a discusso deDavos (1929) entre Cassi-rer e Heidegger (Cassirer-Heidegger, Dbat sur leKantisme et la Philoso-

    phie, Paris, Beauchesne,1972).

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    N 22, outubro de 1988

    pp. 87-99

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