Alain de Botton • Religião Para Ateus

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    captulo um

    Sabedoria semdoutrina

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    Provavelmente, apenas uma pessoa bem legal: Santa Ins de Montepulciano.

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    1.A pergunta mais enfadonha e intil que se pode fazer sobre qualquerreligio se ela ou no verdadeira no sentido de ter vindo dos cusao som de trombetas e de ser governada sobrenaturalmente por profetase seres celestiais.

    Para poupar tempo, e sob o risco de uma dolorosa perda de leitoresj no incio, vamos afirmar de forma franca que obviamente nenhumareligio verdadeira num sentido concedida-por-Deus. Este um livropara pessoas incapazes de acreditar em milagres, espritos ou histriasde sara ardente, e que no tm qualquer interesse maior nos feitos dehomens e mulheres incomuns, como a santa do sculo XIII Ins deMontepulciano, que diziam ser capaz de levitar meio metro enquantorezava e de ressuscitar crianas e que, no fim da vida(supostamente), ascendeu aos cus do sul da Toscana nas costas deum anjo.

    2.Tentar provar a no existncia de Deus pode ser uma atividade divertidapara ateus. Crticos pragmticos da religio encontraram grandesatisfao no desnudamento da idiotia de crentes com cruel mincia,parando somente aps sentirem ter revelado seus inimigos comoabsolutos tolos ou manacos.

    Embora esse exerccio tenha suas recompensas, a real questo no

    se Deus existe ou no, mas para onde levar a discusso ao seconcluir que ele evidentemente no existe. A premissa deste livro quedeve ser possvel manter-se como um ateu resoluto e, no obstante,esporadicamente considerar as religies teis, interessantes ereconfortantes e ter uma curiosidade quanto s possibilidades detrazer algumas de suas ideias e prticas para o campo secular.

    possvel no sentir atrao pela doutrina da Santssima Trindadecrist e pelo Nobre Caminho ctuplo budista e, ainda assim, interessar-se pelas maneiras como as religies fazem sermes, promovem amoralidade, engendram um esprito de comunidade, utilizam a arte e aarquitetura, inspiram viagens, exercitam as mentes e estimulam agratido pela beleza da primavera. Num mundo ameaado porfundamentalistas religiosos ou seculares, deve ser possvel equilibraruma rejeio da f e uma reverncia seletiva por rituais e conceitosreligiosos.

    quando paramos de acreditar que as religies foram outorgadas doalto ou que so totalmente insanas que as coisas ficam maisinteressantes. Podemos ento reconhecer que inventamos as religiespara servirem a duas necessidades centrais, que existem at hoje e quea sociedade secular no foi capaz de resolver por meio de nenhumahabilidade especial: primeiro, a necessidade de viver juntos emcomunidades e em harmonia apesar dos nossos impulsos egostas e

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    violentos profundamente enraizados. E, segundo, a necessidade delidar com aterrorizantes graus de dor, que surgem da nossavulnerabilidade ao fracasso profissional, a relacionamentosproblemticos, morte de entes queridos e a nossa decadncia e morte.Deus pode estar morto, mas as questes urgentes que nosimpulsionaram a invent-lo ainda nos sensibilizam e exigem resoluesque no desaparecem quando somos instados a perceber algumasimprecises cientficas na narrativa sobre o milagre da multiplicao dospes e dos peixes.

    O erro do moderno atesmo tem sido negligenciar a quantidade deaspectos que permanecem relevantes aps o descarte dos princpioscentrais das fs. Assim que paramos de sentir que devemos nos prostrardiante delas ou denegri-las, estamos livres para descobrir as religiescomo repositrios de uma mirade de conceitos engenhosos, com osquais podemos tentar mitigar alguns dos males mais persistentes e

    malcuidados da vida secular.

    3.Eu cresci num lar obstinadamente ateu, como filho de dois judeusseculares que colocavam a crena religiosa num nvel similar ao daexistncia do Papai Noel. Lembro-me do meu pai levando minha irm slgrimas numa tentativa de faz-la abandonar a noo modestamentesustentada de que um deus recluso poderia viver em alguma parte do

    universo. Ela tinha 8 anos na poca. Se meus pais descobriam quealgum membro do seu crculo social nutria sentimentos religiososclandestinos, eles passavam a destinar-lhe o tipo de piedadenormalmente reservada queles diagnosticados com uma doenadegenerativa e nunca mais seriam persuadidos a considerar aquelapessoa seriamente.

    Embora eu fosse bastante influenciado pelas atitudes dos meus pais,nos meus vinte e poucos anos passei por uma crise de falta de f. Meussentimentos de dvida tiveram origem na audio das cantatas de Bach,desenvolveram-se na presena de certas madonas de Bellini etornaram-se avassaladores com uma introduo arquitetura zen.Contudo, foi somente muito tempo aps meu pai estar morto eenterrado sob uma lpide com inscries em hebraico, num cemitrio

    judaico em Willesden, no noroeste de Londres, porque, de maneiraintrigante, ele se abstivera de fazer preparativos mais seculares quecomecei a encarar toda a dimenso da minha ambivalncia acerca dosprincpios doutrinrios em mim inculcados na infncia.

    Eu jamais hesitei na minha certeza de que Deus no existe. Eusimplesmente fui libertado pelo pensamento de que pode haver uma

    maneira de me relacionar com a religio sem precisar endossar seucontedo sobrenatural uma maneira, para colocar de forma maisabstrata, de pensar em Pais sem perturbar minha respeitosa memria do

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    meu prprio pai. Eu reconheci que minha resistncia persistente steorias sobre vida aps a morte ou sobre habitantes do cu no podia

    justificar o abandono de msica, edificaes, oraes, rituais,festividades, santurios, peregrinaes, refeies comunais emanuscritos ilustrados das fs.

    A sociedade secular tem sido injustamente empobrecida pela perdade uma srie de prticas e de temas com os quais os ateus geralmenteacham impossvel conviver, por parecerem associados demais com,para empregar a frase til de Nietzsche, os maus odores da religio.Desenvolvemos um medo em relao palavra moralidade. Ns nosirritamos com a perspectiva de ouvir um sermo. Fugimos da ideia deque a arte deveria inspirar felicidade ou ter uma misso tica. Nofazemos peregrinaes. No podemos construir templos. No temosmecanismos para expressar gratido. A noo de ler um livro deautoajuda tornou-se absurda para o erudito. Resistimos a exerccios

    mentais. Estranhos raramente cantam juntos. Somos presenteados coma escolha desagradvel entre abraar conceitos peculiares sobredeidades imateriais ou abrir mo totalmente de um conjunto de rituaisreconfortantes, sutis ou apenas encantadores para os quais temosdificuldades de encontrar equivalentes na sociedade secular.

    Ao desistir disso tudo, permitimos que a religio reivindicasse comoseu domnio exclusivo reas da experincia que deveriam pertencer atoda a humanidade as quais no deveramos ter vergonha de restituirao campo secular. O prprio cristianismo primevo era bastante adepto

    de se apoderar das boas ideias dos outros, apropriando-seagressivamente incontveis prticas pags que os ateus modernostendem a evitar na equivocada crena de que so indelevelmentecrists. A nova f incorporou as celebraes de inverno, do hemisfrionorte, e as repaginou como o Natal. Absorveu o ideal epicurista de viver

    junto numa comunidade filosfica e o transformou no que hojeconhecemos como monasticismo. E, nas arruinadas cidades do antigoImprio Romano, inseriu-se alegremente nos espaos vazios de templosoutrora devotados a heris e temas pagos.

    O desafio colocado diante dos ateus como reverter o processo decolonizao religiosa: como dissociar ideias e rituais das instituiesreligiosas que os reivindicaram, mas que no os detmverdadeiramente. Por exemplo, boa parte do que existe de melhor noNatal totalmente desvinculado da histria do nascimento de Cristo.Gira em torno de temas de comunidade, festividade e renovao queantecedem o contexto em que foram colocados ao longo dos sculospelo cristianismo. Nossas necessidades espirituais esto prontas paraser libertadas do matiz particular dado a elas pelas religies aindaque, paradoxalmente, seja o estudo das religies que frequentementetem a chave para sua redescoberta e rearticulao.

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    As religies tm o costume de se apoderar de coisas que originalmente no lhespertenciam, como visto na igreja de San Lorenzo in Miranda, Roma, construda no sculo

    XVII sobre as runas do templo romano de Antonino e Faustina.

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    O que se segue uma tentativa de ler as fs, principalmente ocristianismo e, em menor grau, o judasmo e o budismo, na esperanade provocar insightsque possam ser teis na vida secular, em particularem relao aos desafios da comunidade e do sofrimento mental ecorporal. A tese subjacente no que o secularismo seja errado, masque com muita frequncia secularizamos de maneira inadequada namedida em que, no processo de nos livrarmos de ideias inviveis,desnecessariamente abdicamos de algumas das partes mais teis eatraentes das fs.

    4.A estratgia delineada neste livro ir, naturalmente, irritar partidrios deambos os lados do debate. Os religiosos se ofendero com uma reflexoaparentemente brusca, seletiva e no sistemtica de seus credos.

    Religies no so bufs, eles protestaro, em que elementosparticulares podem ser escolhidos de forma aleatria. Todavia, a runade muitas fs tem sido sua insistncia pouco razovel em que osadeptos precisam comer tudo o que est no prato. Por que no deveriaser possvel apreciar a representao de modstia nos afrescos deGiotto e, ao mesmo tempo, ignorar a doutrina da anunciao, ou admirara nfase budista na compaixo e evitar deliberadamente suas teorias devida aps a morte? Para algum desprovido de crena religiosa, retiraralgo de um grupo de fs no muito diferente de um amante daliteratura que escolhe um punhado de escritores favoritos em meio aocnone. Se aqui se mencionam apenas trs das 21 maiores religies,isso no sinal de favoritismo ou de impacincia, mas apenas umaconsequncia de este livro enfatizar a comparao da religio em geralcom o campo secular, e no no cotejo de uma srie de credos.

    Ateus do tipo militante tambm podem se sentir ultrajados, nessecaso por um livro que trata a religio como digna de ser uma incessantepedra de toque para nossos desejos. Eles apontaro o dedo para afuriosa intolerncia institucional de muitas religies e para as provisesigualmente profusas, embora menos ilgicas e autoritrias, de consolo ediscernimento disponveis na arte e na cincia. Eles podem, ainda,perguntar por que algum que se declara sem disposio para aceitartantas facetas da religio que se sente incapaz de falar em nome de,digamos, concepes imaculadas ou de concordar com as afirmaesfeitas com reverncia nos contos Jataka sobre a identidade do Budacomo um coelho reencarnado ainda deseje se associar a um temato comprometido quanto a f.

    A isso, a resposta que as religies merecem nossa ateno pelasua absoluta ambio conceitual, por mudarem o mundo de uma

    maneira que poucas instituies seculares fizeram. Elas conseguiramcombinar teorias sobre tica e metafsica com um envolvimento prticoem educao, moda, poltica, viagem, hospedaria, cerimnias de

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    iniciao, edio de livros, arte e arquitetura uma gama de interessesque eclipsa a extenso de conquistas at mesmo dos maiores e maisinfluentes movimentos e indivduos seculares da histria. Para aquelesinteressados na disseminao e no impacto das ideias, difcil no ficarfascinado por exemplos dos movimentos de maior sucesso educacionale intelectual que o planeta j testemunhou.

    5.Para concluir, este livro no tenta fazer justia a religies particulares;elas contam com seus prprios defensores. Em vez disso, ele tentaexaminar aspectos da vida religiosa com conceitos que poderiamproveitosamente ser aplicados aos problemas da sociedade secular. Eleprocura eliminar os aspectos mais dogmticos das religies a fim deextrair algumas facetas que poderiam se mostrar oportunas e

    reconfortantes a mentes cticas contemporneas confrontadas com ascrises e as amarguras da existncia finita num planeta conturbado. Eleespera resgatar parte do que maravilhoso, tocante e sbio em tudo oque no mais parece verdadeiro.

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    captulo dois

    Comunidade

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    i. Conhecendo estranhos

    1.Uma das perdas que a sociedade moderna sente de forma mais aguda a do sentimento de comunidade. Tendemos a imaginar que no passado

    existiu um grau de boa vizinhana que foi substitudo por um anonimatoimplacvel, um estado em que as pessoas buscam contato umas com asoutras principalmente com fins restritos e individualistas: obter ganhosfinanceiros, ascenso social ou amor romntico.

    Parte da nossa nostalgia gira em torno da relutncia em dar, porcaridade, queles em dificuldades, mas tambm podemos nospreocupar com sintomas mais triviais de separao social, como, porexemplo, a incapacidade de cumprimentarmos uns aos outros na rua, oude ajudar vizinhos idosos com as compras. Vivendo em cidades

    colossais, tendemos a ficar presos em guetos tribais baseados em nveleducacional, classe e profisso, e podemos ver o resto da humanidadecomo inimigo em vez de um coletivo acolhedor ao qual gostaramos denos juntar. Pode ser extraordinrio e inslito dar incio a uma conversaespontnea com um desconhecido em um espao pblico. Aopassarmos dos trinta anos, at um pouco surpreendente fazer um novoamigo.

    Na tentativa de compreender o que pode ter erodido nosso senso decomunidade, um importante papel tem sido tradicionalmente dado

    privatizao da crena religiosa ocorrida na Europa e nos EstadosUnidos no sculo XIX. Historiadores j sugeriram que comeamos anegligenciar os vizinhos por volta da mesma poca em que deixamos decelebrar nossos deuses de modo comunal. Isso levanta a questo sobreo que as religies deviam fazer, antes desse perodo, para fortalecer oesprito de comunidade e, de maneira mais prtica, se a sociedadesecular algum dia poderia recuperar esse esprito sem depender dasuperestrutura teolgica com a qual no passado esteve entrelaada.Seria possvel reconquistar um senso de comunidade sem base-lo emfundaes religiosas?

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    2.Se examinarmos de forma mais detalhada as causas da alienaomoderna, parte da nossa sensao de solido est relacionada forados nmeros. Os bilhes de pessoas que vivem no planeta tornam aideia de conversar com um desconhecido mais ameaadora do que foiem dias menos populosos, pois a sociabilidade parece ter uma relaoinversa densidade da populao. Em geral, falamos com prazer comas pessoas quando tambm temos a opo de evit-las por completo.Enquanto o beduno cuja tenda desponta aps uma centena dequilmetros de areias desoladas tem a capacidade psicolgica deoferecer aos estranhos uma calorosa acolhida, seus contemporneosurbanos, embora no fundo no menos generosos ou bem-intencionados,no devem a fim de preservar um mnimo de serenidade interior transmitir qualquer sinal de que sequer notam os milhes de humanosque esto comendo, dormindo, discutindo, copulando e morrendo a

    poucos centmetros de distncia, por todos os lados.E h tambm a questo da maneira como somos apresentados. Osespaos pblicos nos quais geralmente encontramos outras pessoas os trens que levam ao trabalho, as caladas lotadas, os sagues dosaeroportos conspiram para projetar uma representao desfavorvelde nossas identidades, o que enfraquece a capacidade de nosapegarmos ideia de que cada pessoa necessariamente o centro deuma individualidade complexa e preciosa. Pode ser difcil continuaresperanoso em relao natureza humana aps uma caminhada pela

    Oxford Street ou uma conexo no aeroporto OHare.Em parte, costumvamos sentir uma conexo maior com os vizinhosporque eles, com frequncia, tambm eram nossos colegas. O lar no foisempre um dormitrio annimo em que se chega tarde e de onde se saicedo. Os vizinhos se conheciam bem no porque eram grandesconversadores, mas porque tinham de colher o feno ou construir otelhado da escola juntos, empreendimentos que natural e sub-repticiamente ajudavam a estimular conexes. No entanto, o capitalismotem pouca pacincia para a produo local e as microempresas. Pode

    at mesmo preferir que no tenhamos nenhum contato com os vizinhos,a fim de que eles no nos atrasem no caminho para o escritrio ou nosdesencorajem quanto a fazer uma compra on-line.

    No passado, acabvamos conhecendo outras pessoas porque notnhamos opo seno requisitar a ajuda delas e tambm recebamospedidos de auxlio. A caridade era parte fundamental da vida pr-moderna. Era impossvel evitar momentos em que precisssemos pedirdinheiro a algum quase desconhecido ou dar algo a um mendigoerrante em um mundo sem assistncia mdica, seguro-desemprego,programas habitacionais e bancos. A abordagem na rua por parte deuma pessoa doente, frgil, confusa ou desabrigada no fazia com queos passantes imediatamente olhassem para o outro lado e presumissemque uma agncia governamental se encarregaria do problema.

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    De um ponto de vista puramente econmico, somos muito maisgenerosos que nossos ancestrais jamais foram, entregando at metadede nossa renda para o bem comunal. Mas fazemos isso quase semperceber, por meio da interveno annima do sistema fiscal; e, se nosdamos o trabalho de pensar a respeito, provvel que o faamos comressentimento por nosso dinheiro ser empregado para sustentarburocracias desnecessrias ou para a compra de msseis. Raras vezessentimos uma conexo com aqueles integrantes menos afortunados doEstado para quem nossos impostos tambm garantem lenis limpos,sopa, abrigo ou uma dose diria de insulina. Nem o receptor nem odoador sentem a necessidade de dizer por favor ou obrigado. Nossasdoaes jamais so qualificadas como na era crist como oelemento fundamental de um emaranhado complexo de relaesmutuamente interdependentes, com benefcios prticos para o receptor eespirituais para o doador.

    Trancados em nossos casulos privados, a mdia passou a ser aprincipal maneira de imaginar como so as outras pessoas, e, comoconsequncia, esperamos que todos os estranhos sejam assassinos,golpistas ou pedfilos o que refora o impulso de confiar apenas nospoucos indivduos que j foram selecionados por redes familiares e declasse. Naquelas raras ocasies em que as circunstncias (nevascas,tempestades) conseguem romper nossas bolhas hermticas e nos

    jogam junto a pessoas que no conhecemos, tendemos a nosmaravilhar quando os concidados demonstram pouco interesse em nos

    cortar ao meio ou em molestar nossos filhos e que podem at mesmoser surpreendentemente gentis e se mostrar dispostos a ajudar.

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    Sonhando encontrar uma pessoa que nos dispensar de qualquer necessidade por maisgente.

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    Por mais isolados que tenhamos nos tornado, evidentemente noabandonamos toda a esperana de construir relaes. Nos solitrioscnions da cidade moderna, no existe emoo mais estimada que oamor. Entretanto, no se trata do amor sobre o qual a religio fala,tampouco a expansiva e universal irmandade da humanidade, umavariedade mais ciumenta, restrita e, no fim, mais mesquinha. um amorromntico, que nos pe em uma busca manaca de uma nica pessoacom quem esperamos conquistar uma comunho completa e para toda avida, uma pessoa em particular que nos dispensar de qualquernecessidade por gente em geral.

    Ainda que a sociedade moderna continuamente nos prometa acessoa uma comunidade, trata-se de uma comunidade centrada no culto aosucesso profissional. Sentimos que estamos batendo sua portaquando a primeira pergunta que nos indagam em uma festa o quevoc faz? e a resposta determinar se seremos bem acolhidos ou se

    nos abandonaro ao relento. Nessas reunies competitivas epseudocomunais, poucos de nossos atributos valem como moeda paracomprar a boa vontade de estranhos. O que importa, acima de tudo, oque est em nossos cartes de visita, e aqueles que optaram por passara vida cuidando dos filhos, escrevendo poesia ou jardinando ficarocom a certeza de que foram contra a corrente dos costumes dominantesdos poderosos e que merecem ser devidamente marginalizados.

    Com esse nvel de discriminao, no causa surpresa que muitos dens decidam se atirar com tudo nas carreiras. Focar na vida profissional

    em detrimento de quase todo o resto uma estratgia bastante plausvelem um mundo que aceita as conquistas no ambiente de trabalho como aprincipal moeda para assegurar no apenas os meios financeiros desobreviver fisicamente, mas a ateno de que necessitamos para terxito do ponto de vista psicolgico.

    3.As religies parecem ter um bom conhecimento de nossa solido.Mesmo que acreditemos muito pouco no que elas nos dizem a respeitoda vida aps a morte ou das origens sobrenaturais das suas doutrinas,podemos admirar sua compreenso do que nos separa de estranhos esuas tentativas de eliminar um ou dois dos preconceitos quenormalmente nos impedem de formar vnculos com outras pessoas.

    Uma missa catlica no , com certeza, o hbitat ideal para um ateu.Muito do que se diz ofensivo razo ou simplesmenteincompreensvel. Ela se estende por muito tempo e raras vezes impedeque se caia na tentao do sono. Mesmo assim, a cerimnia repleta deelementos que, de maneira sutil, fortalecem os elos de afeio dos

    congregantes, e os ateus fariam bem se os estudassem e aprendessema se apropriar deles para reutiliz-los no domnio secular.

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    O catolicismo comea a criar uma noo de comunidade por meio deum cenrio. Ele delimita um pedao da terra, ergue paredes ao redor edeclara que dentro de seus parmetros reinaro valores profundamentedistintos daqueles dominantes no mundo alm, nos escritrios, ginsiose salas de estar da cidade. Todas as construes do aos seusproprietrios oportunidades para recondicionar as expectativas dosvisitantes e para estabelecer regras de conduta especficas para eles. Agaleria de arte legitima a prtica de olhar em silncio para uma tela, e oclube noturno, de balanar braos e mos ao som de uma msica. Euma igreja, com suas portas de madeira macia e trezentos anjos depedra esculpidos ao redor do prtico, d a rara permisso de nosaproximarmos de um estranho e dizer ol sem o menor perigo desermos considerados predatrios ou insanos. Temos a promessa de queaqui (nas palavras iniciais de saudao da missa) Cristo, o amor do Paie a comunho do Esprito Santo pertencem a todos que se reuniram. A

    Igreja empresta seu enorme prestgio, acumulado ao longo do tempo,seu conhecimento e sua grandeza arquitetnica, ao nosso tmido desejode nos abrirmos para algum novo.

    A composio da congregao parece importante. As pessoasreunidas tendem a no ser uniformemente da mesma idade, raa,profisso, educao ou nvel de renda; so uma amostra aleatria dealmas unidas apenas por compartilharem o compromisso com certosvalores. A missa decompe os subgrupos econmicos e de status,dentro dos quais em geral operamos, arremessando-nos em um mar

    mais amplo de humanidade.Nesta era secular, muitas vezes presumimos que o amor famlia e osentimento de comunidade devem ser sinnimos. Quando os polticosmodernos falam sobre o desejo de consertar a sociedade, celebram afamlia como o smbolo quintessencial da comunidade. Mas ocristianismo mais sbio e menos sentimental quanto a isso, porquereconhece que uma ligao com a famlia pode, na verdade, estreitar ocrculo das nossas afeies, desviando-nos do desafio maior decompreender nossa conexo com toda a humanidade e de aprender a

    amar amigos assim como amamos os parentes.Tendo em mente fins similarmente comunais, a Igreja nos pede paradeixarmos para trs todas as ligaes com valores terrenos. So osvalores interiores de amor e caridade, em vez dos atributos externos depoder e dinheiro, que agora so venerados. Entre os maiores feitos docristianismo est a capacidade, sem o uso de qualquer coero almdos mais suaves argumentos teolgicos, de persuadir monarcas emagnatas a se ajoelhar e se curvar diante da esttua de um carpinteiro ea lavar os ps de camponeses, garis e entregadores.

    No entanto, a Igreja faz mais que apenas declarar que o sucessoterreno no importa: de vrias maneiras, permite-nos imaginar quepoderamos ser felizes sem ele. Antes de mais nada, examinando asrazes por que tentamos adquirir status, a Igreja estabelece condies

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    sob as quais podemos voluntariamente abdicar de nossa ligao classe e a ttulos. Ela parece saber que nos empenhamos para serpoderosos sobretudo porque tememos o que nos acontecer se noocuparmos um alto nvel: corremos o risco de nos tirarem a dignidade,de sermos tratados com condescendncia, de no termos amigos e depassarmos a vida em um ambiente rude e desalentador.

    A genialidade da missa neutralizar cada um desses temores. Oedifcio em que ela acontece quase sempre suntuoso. Emboratecnicamente seja devotado a celebrar a igualdade do homem, em geralsua beleza supera a de muitos palcios. A companhia tambm sedutora. Desenvolvemos desejos de fama e poder quando ser comotodo mundo parece um destino perturbador, quando a norma medocre e deprimente. O status elevado ento torna-se um instrumentopara nos separarmos de um grupo do qual temos ressentimento e medo.Contudo, quando os congregantes em uma catedral comeam a cantar

    Gloria in Excelsis, tendemos a sentir que a multido no se parece emnada com aquela que encontramos nos shoppings ou nos dilapidadosmeios de transporte pblico. Estranhos olham para cima, para o tetoabobadado e cheio de estrelas, e cantam em unssono as palavras:

    Vem, Senhor,vive em teu povoe o fortalece com tua graa.

    E nos deixam pensando que a humanidade talvez no seja uma coisato miservel, afinal.

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    Como resultado, comeamos a sentir que poderamos trabalhar deforma um pouco menos febril, pois vemos que o respeito e a seguranaque esperamos ganhar por meio de nossas carreiras j estodisponveis em uma comunidade calorosa e admirvel, que no nosimpe nenhuma exigncia terrena para sermos bem-vindos.

    Se na missa h tantas referncias pobreza, tristeza, ao fracasso e perda porque a Igreja v os doentes, os de mente frgil, osdesesperados e os idosos como elementos representativos dahumanidade e (de maneira ainda mais significativa) de ns mesmos quesomos tentados a negar, mas que nos pem, quando podemosreconhec-los, mais perto da necessidade que temos um do outro.

    Em nossos momentos mais arrogantes, o pecado do orgulho ousuperbia, na formulao em latim de Agostinho domina nossaspersonalidades e nos isola daqueles ao redor. Perdemos o interessepelos outros quando tudo o que procuramos fazer afirmar o quanto as

    coisas esto indo bem para ns, da mesma maneira que a amizade stem chance de crescer quando ousamos compartilhar aquilo quetememos e lamentamos. O resto mero exibicionismo. A missa encorajaesse descarte do orgulho. As falhas cuja exposio tanto tememos, asindiscries pelas quais sabemos que seramos ridicularizados, ossegredos que mantm superficiais e inertes as conversas com nossoschamados amigos tudo isso emerge simplesmente como parte dacondio humana. Ficamos sem motivo para dissimular ou mentir emum edifcio dedicado a celebrar o terror e a fraqueza de um homem que

    no era em nada como os heris tpicos da Antiguidade, como osferozes soldados ou os plutocratas do Senado de Roma e, entretanto,tinha valor suficiente para ser coroado como o mais alto dos homens, orei dos reis.

    4.Se conseguimos ficar acordados para (e durante) as lies da missa, aoseu trmino ela deve ter sido capaz de nos tirar, ao menos por umafrao, dos nossos habituais eixos egocntricos. Tambm deve ter nosdado ideias para repararmos algumas das fissuras endmicas do mundomoderno.

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    Uma das primeiras dessas ideias est relacionada aos benefcios delevar as pessoas a um local distinto, que deve ser atraente o bastantepara evocar entusiasmo no grupo. Ele deveria inspirar os visitantes asuspender seu habitual egosmo assustado em favor de uma alegreimerso em um esprito coletivo um cenrio improvvel na maioriados centros comunitrios modernos, cuja aparncia serve, de maneiraparadoxal, para confirmar a impropriedade de se juntar a qualquer coisacomunal.

    Em segundo lugar, a missa incorpora uma lio acerca daimportncia de estabelecer regras para dirigir as pessoas em suasinteraes. A complexidade litrgica de um missal o modo impositivocomo esse livro de instrues para a celebrao de uma missa compeleos congregantes a olhar para cima, levantar-se, ajoelhar-se, cantar, orar,beber e comer em determinados momentos fala a um aspectoessencial da natureza humana, que se beneficia de receber orientao

    sobre como se comportar com os outros. Para assegurar que laospessoais profundos e nobres possam ser forjados, uma lista deatividades bem planejada pode ser mais eficaz que deixar um grupo semisturar sem objetivo e por prpria conta.

    Uma ltima lio a ser tirada da missa tem conexo ntima com suahistria. Antes de ser uma cerimnia, antes de os congregantes sesentarem em assentos diante de um altar atrs do qual um padre ergueuma hstia e uma taa de vinho, a missa era uma refeio. O que hojeconhecemos como eucaristia teve incio como uma ocasio em que as

    primeiras comunidades crists deixavam de lado as obrigaesdomsticas e o trabalho para se reunir ao redor de uma mesa (em geralrepleta de vinho, carneiro e po zimo) a fim de comemorar a ltimaCeia. Ali, as pessoas conversavam, oravam e renovavam seuscompromissos com Cristo e umas com as outras. Da mesma maneiraque os judeus com a refeio do sab, os cristos compreendiam que,frequentemente, quando saciamos a fome do corpo que estamos maisprontos para dirigir nossa mente s necessidades dos outros. Emhomenagem mais importante virtude crist, essas reunies ficaram

    conhecidas como gape (agape significa amor, em grego) e foramrealizadas pelas comunidades crists no perodo entre a morte de Jesuse o Conclio de Laodiceia, em 364 d.C. Por causa das reclamaesquanto exuberncia excessiva de algumas dessas refeies, aincipiente Igreja tomou a deciso lamentvel de banir as gapes esugerir que os fiis deveriam, em vez disso, comer em casa com suasfamlias e apenas depois se reunir para o banquete espiritual quehoje conhecemos como eucaristia.

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    Uma construo artificial pode, no obstante, abrir a porta para sentimentos sinceros:regras sobre como conduzir uma missa, instrues em latim e ingls de um missal, 1962.

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    5.Parece relevante falar sobre refeies porque nossa faltacontempornea de uma noo de comunidade apropriada se reflete deforma importante no modo como comemos. No mundo moderno,naturalmente, no faltam lugares em que possamos realizar uma boarefeio com companhia as cidades costumam se orgulhar do grandenmero e da qualidade de seus restaurantes , mas o que significativo a ausncia quase universal de estabelecimentos que nosajudem a transformar estranhos em amigos.

    Ao mesmo tempo em que parecem exaltar a noo de sociabilidade,os restaurantes nos oferecem apenas seu simulacro mais inadequado.

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    Antes de ser uma cerimnia, a missa era uma refeio.

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    A comida no era o mais importante: Duccio di Buoninsegna, A ltima Ceia, 1308-1311.

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    O nmero de pessoas que frequentam restaurantes todas as noitessugere que esses locais devem ser refgios contra o anonimato e afrieza, mas, na realidade, no tm mecanismos sistemticos paraapresentar os fregueses uns aos outros, para dispersar suasdesconfianas mtuas, para romper os cls em que as pessoascronicamente se segregam ou para que abram o corao ecompartilhem suas vulnerabilidades com outros cidados. O foco estna comida e na decorao, nunca nas oportunidades para ampliar eaprofundar as afeies. Em um restaurante, tanto quanto em uma casa,quando a comida em si a textura dos escalopes ou a umidade dasabobrinhas torna-se a principal atrao, podemos ter certeza de quealgo est fora de lugar.

    Os clientes tendero a sair dos restaurantes da mesma maneiracomo entraram, com a experincia tendo apenas reafirmado as divisestribais existentes. Como tantas instituies da cidade moderna, os

    restaurantes so criados para reunir pessoas em um mesmo local, masno contam com meios para incentiv-las a fazer contatos significativosentre si.

    6.Com os benefcios da missa e as desvantagens das refeiescontemporneas em mente, podemos imaginar um restaurante ideal dofuturo, um Restaurante gape, fiel aos mais profundos insights da

    eucaristia.Tal restaurante teria uma porta aberta, uma modesta taxa de entradae um interior projetado para ser atrativo. A distribuio dos assentosromperia os grupos e as etnias em que normalmente nos segregamos;parentes e casais seriam separados e amigos seriam favorecidos emdetrimento de familiares. Todos teriam segurana para se aproximar edirigir a palavra sem medo de rejeio ou censura. Pelo simples fato deocuparem o mesmo espao, os convidados estariam como em umaigreja sinalizando sua adeso a um esprito de comunidade e deamizade.

    Sentar-se mesa com um grupo de estranhos tem o incomparvel einslito benefcio de tornar um pouco mais difcil odi-los impunemente.Preconceito e conflito tnico se alimentam da abstrao. Contudo, aproximidade exigida por uma refeio algo que tem que ver compassar as travessas para os outros, abrir guardanapos ao mesmo tempoe at mesmo pedir o saleiro a um desconhecido perturba nossacapacidade de nos agarrar crena de que estranhos que vestemroupas incomuns e falam com sotaques distintos merecem ser atacadosou mandados para casa. De todas as solues polticas de grande

    escala que foram propostas para resolver conflitos tnicos, existempoucas maneiras mais eficazes para promover a tolerncia entrevizinhos desconfiados que for-los a cear juntos.

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    Muitas religies tm conscincia de que os momentos relacionados ingesto de comida so propcios educao moral. como se aiminente perspectiva de uma refeio seduzisse nossos selvesnormalmente resistentes a demonstrar um pouco da mesmagenerosidade ao outro que a mesa nos exibiu. Essas religies tambmconhecem bastante a respeito de nossas dimenses sensoriais, nointelectuais, para saber que no podemos ser mantidos em uma trilhavirtuosa apenas por meio de palavras. Elas sabem que, em umarefeio, tero uma plateia cativa suscetvel a aceitar um equilbrio entreideias e alimentos e assim elas transformam refeies em liesticas disfaradas. Elas nos detm pouco antes do primeiro gole devinho e nos oferecem um pensamento que pode ser engolido com abebida como se fosse uma plula. Fazem-nos ouvir uma homilia duranteo gratificante intervalo entre dois pratos. E usam tipos especficos decomida e bebida para representar conceitos abstratos, dizendo aos

    cristos, por exemplo, que o po equivale ao corpo sagrado de Cristo,informando aos judeus que o prato de mas amassadas e nozes doPessach foi a argamassa utilizada por seus antepassados escravizadospara construir os armazns do Egito e ensinando aos zen-budistas quesuas xcaras de ch simbolizam a natureza transitria da felicidade emum mundo oscilante.

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    Um Restaurante gape, descendente secular da eucaristia e da tradio de refeiocomunal crist.

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    Ao tomar seus assentos em um Restaurante gape, os clientesencontrariam sua frente manuais de certa forma reminiscentes daHagad judaica ou do missal catlico, estabelecendo as regras sobrecomo se comportar durante a refeio. Ningum precisaria se virarsozinho para estabelecer uma conversa interessante, da mesmamaneira que no se esperaria que os participantes do Pessach ou daeucaristia crist precisassem, de maneira independente, informar-sesobre os aspectos importantes da histria das tribos de Israel ou adquiriruma noo de comunho com Deus.

    O livro de gape instruiria os comensais a falar entre si por perodosde tempo estabelecidos, sobre tpicos predefinidos. Como as famosasperguntas que a criana mais jovem instruda, pela Hagad, a fazerdurante a cerimnia do Pessach (Por que esta noite diferente detodas as outras?, Por que comemos po zimo e ervas amargas? eassim por diante), esses temas de conversa seriam cuidadosamente

    preparados com um propsito especfico: afastar os comensais dasexpresses habituais de superbia(O que voc faz?, Em qual escolaseus filhos estudam?) e conduzi-los na direo de uma revelao maissincera deles prprios (Do que voc se arrepende?, Quem voc nopode perdoar?, Do que tem medo?). A liturgia iria, como na missa,inspirar caridade no sentido mais profundo, uma capacidade de reagircom complexidade e compaixo existncia de nossos companheiros.

    Seriam confidenciados relatos de medo, culpa, clera, melancolia,amor no correspondido e infidelidade, e isso geraria uma impresso de

    nossa insanidade coletiva e encantadora fragilidade. As conversas noslibertariam de algumas das nossas fantasias mais distorcidas a respeitoda vida dos outros ao revelar o quanto, por trs de bem-defendidasfachadas, a maioria de ns est perdendo um pouco a cabea eassim teramos um motivo para oferecer a mo aos vizinhos igualmentetorturados.

    Para novos participantes, a princpio, a formalidade da liturgia narefeio pareceria peculiar. No entanto, aos poucos eles apreciariam advida que a emoo autntica tem com as regras de conduta

    equilibradas.

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    Afinal de contas, dificilmente algo natural se ajoelhar com um grupo depessoas em um cho de pedra, olhar para um altar e entoar emunssono:

    Senhor,oramos para o teu povo que cr em ti.Que eles desfrutem a ddiva do teu amor,o compartilhem com outros,e o espalhem por todas as partes.Ns te pedimos em nome de Jesus, o Senhor.Amm.

    Contudo, os fiis que vo missa no culpam sua religio por

    semelhantes comandos estruturados; em vez disso, os acolhem bem porgerar um nvel de intensidade espiritual impossvel em um contexto maiscasual.

    Graas ao Restaurante gape, nosso medo de estranhos diminuiria.O pobre comeria com o rico, o negro com o branco, o ortodoxo com osecular, o bipolar com o equilibrado, trabalhadores com gerentes,cientistas com artistas. A presso claustrofbica para obter todas asnossas satisfaes nos relacionamentos existentes diminuiria, assimcomo o desejo de ganhar status acessando os chamados crculos daelite.

    A noo de que poderamos consertar alguns dos trapos do tecidosocial moderno por meio de uma iniciativa modesta, como uma refeiocomunal, vai parecer ofensiva queles com maior confiana no poderdas solues legislativas e polticas para curar os males da sociedade.No entanto, esses restaurantes no seriam uma alternativa aos mtodospolticos tradicionais. Seriam um passo anterior dado parahumanizarmos um ao outro nas nossas imaginaes, para que, ento,nos engajssemos de maneira mais natural nas comunidades e, demodo espontneo, abrssemos mo de alguns dos impulsos na direo

    do egosmo, do racismo, da agresso, do medo e da culpa que seencontram na base de tantas das questes com as quais a polticatradicional se ocupa.

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    Uma refeio do Pessach: h, aqui, mecanismos sociais em ao to teis e complexosquanto aqueles de um parlamento ou tribunal.

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    Cristianismo, judasmo e budismo deram contribuies significativas poltica convencional, mas sua relevncia para os problemas dacomunidade possivelmente nunca maior do que quando se afastam doroteiro poltico moderno e nos lembram de que tambm existe valor emficar em um salo com uma centena de conhecidos cantando um hino auma s voz, ou em cerimoniosamente lavar os ps de um estranho, ousentar-se mesa com vizinhos e conversar e comer um cozido decarneiro os tipos de rituais que, tanto quanto as deliberaes dentrode parlamentos e tribunais de justia, ajudam a manter unidas nossassociedades frgeis e desordenadas.

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    Vestidas com o branco tradicional, judeus israelenses caminham por uma rua deJerusalm, fechada ao trnsito no Dia do Perdo, rumo sinagoga.

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    ii. Pedidos de desculpa

    1.O esforo das religies para inspirar uma noo de comunidade no sedetm na apresentao de pessoas. As religies tambm foram muito

    inteligentes na resoluo de parte do que acontece de errado dentro degrupos assim que so formados.O enfoque na clera uma abordagem particular do judasmo: como

    fcil senti-la, como difcil express-la e como assustador ecomplicado amain-la nos outros. Podemos ver isso com especialclareza no Dia do Perdo judaico, um dos mais eficazes mecanismospsicolgicos j concebidos para a resoluo de conflitos sociais.

    Caindo no dcimo dia do Tishrei, pouco aps o incio do novo anojudaico, o Dia do Perdo (ou Yom Kippur) um evento solene e crtico

    no calendrio hebraico. O Levtico instrui que, nessa data, os judeusdevem pr de lado suas costumeiras atividades domsticas ecomerciais e fazer uma reviso mental das aes empreendidas no anoanterior, identificando todos aqueles a quem fizeram mal ou trataram deforma injusta. Juntos, na sinagoga, devem repetir em orao:

    Ns somos culpados, tramos,roubamos, caluniamos.

    Agimos perversamente, maldosamente,presunosamente, fomos violentos,mentimos.

    Eles devem, ento, procurar aqueles a quem frustraram,enfureceram, trataram sem considerao ou traram e oferecer totalcontrio. a vontade de Deus e uma rara oportunidade para o perdogeral. Todos tm culpa, diz a orao noturna, ento, que todo o povode Israel seja perdoado, incluindo todos os estrangeiros que vivem em

    seu meio.Nesse dia sagrado, os judeus so aconselhados a entrar em contatocom seus colegas, a conversar com pais e filhos, a enviar cartas aconhecidos, amantes e ex-amigos no exterior e a listar seus momentosrelevantes de pecado. Aqueles a quem se desculparam, por sua vez,so instados a reconhecer a sinceridade e o esforo feito pelo ofendedorao pedir perdo. Em vez de deixar a irritao e a amargura em relao outra pessoa voltarem a crescer, devem estar prontos a deixar osincidentes passados para trs, conscientes de que sua vida no est

    livre de culpa.Deus desfruta de um papel privilegiado nesse ciclo de pedidos dedesculpas: ele o nico ser perfeito e, portanto, o nico para quem a

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    necessidade de pedir perdo alheia. Quanto aos demais, aimperfeio faz parte da natureza humana e, por conseguinte, tambm odeve ser o desejo de contrio. Pedir perdo a outras pessoas, comcoragem e honestidade, sinaliza compreenso e respeito pela diferenaentre o humano e o divino.

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    Uma iniciativa de pedir perdo que no partiu de ningum em particular: cerimnia doYom Kippur, sinagoga de Budapeste.

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    O Dia do Perdo tem a imensa vantagem de fazer com que a ideiade pedir desculpa parea ter vindo de algum outro lugar, uma iniciativaque no vem do perpetrador nem da vtima. o prprio dia que nos fazsentar aqui e conversar sobre o peculiar incidente de seis meses atrs,quando voc mentiu e eu explodi, voc me acusou de insinceridade eeu fiz voc chorar, um incidente que nenhum de ns pode esquecer porcompleto, mas que no podemos mencionar, e que vem lentamentecorroendo a confiana e o amor que um dia tivemos um pelo outro. odia que nos d a oportunidade, na verdade a responsabilidade, de pararde falar sobre nossos negcios habituais e reabrir um caso que fingimoster tirado da mente. No estamos nos satisfazendo, estamosobedecendo s regras.

    2.

    As prescries do Dia do Perdo trazem conforto para ambos os ladosnuma injria. Como vtimas de um sofrimento, frequentemente notrazemos tona aquilo que nos aflige, porque muitas feridas parecemabsurdas luz do dia. Nossa razo ficar chocada se encararmos oquanto sofremos com um convite no feito ou uma carta no respondida,o nmero de horas de tormenta que dedicamos frase indelicada ou aoaniversrio esquecido quando deveramos h muito tempo ter ficadoserenos e impermeveis a semelhantes espinhos. Nossavulnerabilidade insulta nossa autoimagem; sofremos e, ao mesmotempo, ficamos ofendidos por isso acontecer to facilmente. Nossareserva tambm pode ter um aspecto financeiro. Aqueles que noscausaram injria tendem a ter autoridade sobre ns eles so osdonos do negcio e decidem os contratos , e esse desequilbrio depoder que nos mantm quietos, mas nem por isso nos poupam daamargura e da fria reprimida.

    De maneira alternativa, quando somos ns que causamos dor aooutro, e mesmo assim deixamos de pedir desculpas, talvez isso ocorraporque agir mal fez com que nos sentssemos intoleravelmenteculpados. Podemos lamentar tanto que nos descobrimos incapazes depedir desculpas. Fugimos das nossas vtimas e agimos com uma rudezaestranha em relao a elas, no porque no nos incomodemos com oque fizemos, mas porque o que fizemos nos deixa muitodesconfortveis. Nossas vtimas, em consequncia, precisam sofrer noapenas com a dor original, mas com a frieza subsequente quedemostramos por conta de nossas conscincias atormentadas.

    3.

    O Dia do Perdo ajudar a corrigir tudo. Um perodo em que o errohumano proclamado como uma verdade geral torna mais fcil aconfisso de infraes especficas. mais suportvel admitir nossas

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    tolices quando a mais alta autoridade nos diz que, antes de mais nada,somos dementes de uma maneira infantil porm perdovel.

    O Dia do Perdo to catrtico que parece uma pena existirsomente um por ano. Um mundo secular poderia, sem medo deexcesso, adotar sua prpria verso para marcar o comeo de cadatrimestre.

    iii. Nosso dio comunidade

    1.Seria ingenuidade supor que a nica razo pela qual deixamos de criarcomunidades fortes porque somos tmidos demais para dizer oi aosoutros. Parte da nossa alienao social est relacionada s muitas

    facetas de nossa natureza que no tm o menor interesse em valorescomunais, que se entediam ou se revoltam com a fidelidade, oautossacrifcio e a empatia, e que, em vez disso, tendem de formainconsequente para o narcisismo, a inveja, a maldade, a promiscuidadee a agresso deliberada.

    As religies conhecem muito bem essas tendncias e reconhecemque, para as comunidades funcionarem, preciso lidar com elas,purgando-as e exorcizando-as com astcia, e no simplesmente comrepresso. As religies, portanto, apresentam uma srie de rituais,

    muitos deles primeira vista estranhamente elaborados, cuja funo descartar de forma segura o que cruel, destrutivo ou niilista em nossasnaturezas. Esses rituais, naturalmente, no alardeiam suas intenes,pois isso provocaria um grau de desconforto que poderia horrorizar eafugentar os participantes, porm sua longevidade e sua popularidadeprovam que algo vital atingido por meio deles.

    Os melhores rituais comunais fazem, de modo eficaz, a mediaoentre as necessidades do indivduo e as do grupo. Caso expressos comliberdade, alguns dos nossos impulsos rachariam as sociedades demaneira irreparvel. No entanto, se fossem simplesmente reprimidoscom igual fora, acabariam ameaando a sanidade dos indivduos. Porconseguinte, o ritual concilia o self e os outros. uma purgaocontrolada e muitas vezes comovente em termos estticos. Demarca umespao no qual nossas demandas egocntricas podem ser honradas e,ao mesmo tempo, domadas, a fim de que a harmonia a longo prazo e asobrevivncia do grupo sejam negociadas e asseguradas.

    2.

    Vemos um pouco disso nos rituais judaicos associados morte de umparente amado. Nesse caso, o perigo que a pessoa em luto fique todominada pela dor que pare de cumprir suas obrigaes para com a

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    comunidade. Assim, o grupo instrudo a permitir ao enlutado amplaoportunidade para expressar a tristeza, mas tambm exerce umapresso gentil, e cada vez maior, para garantir que a pessoa por fimvolte a cuidar da vida.

    Nos sete dias da shiv, que se segue morte, h permisso para umperodo de confuso cataclsmica; ento h um perodo de trinta dias,mais controlado (shloshim), em que a pessoa fica isenta de muitas dasresponsabilidades grupais, e depois doze meses inteiros (shneim asachodesh) nos quais a memria do morto celebrada em uma oraodurante os servios na sinagoga. Mas, ao final do ano, aps ainaugurao da lpide (matzev), mais oraes, outro servio e umareunio em casa, as exigncias da vida e da comunidade sodefinitivamente reafirmadas.

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    Como a tristeza pode ser expressa sem se tornar avassaladora? O impulso pode serdesistir por completo da vida e da comunidade. A inaugurao de uma lpide judaica um

    ano aps a morte de um pai.

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    Ser que precisaramos de festividades rituais se no houvesse algo para nos deixartristes? Uma cerimnia de Bar Mitzvah, estado de Nova York.

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    Em essncia, as religies entendem que pertencer a umacomunidade ao mesmo tempo bastante desejvel e nada fcil. A esserespeito, so muito mais sofisticadas que os estudiosos seculares deteoria poltica que escrevem de forma lrica sobre a perda de um sensode comunidade enquanto se recusam a reconhecer os aspectosinerentemente obscuros da vida social. As religies nos ensinam a sereducados, a honrar uns aos outros e a ser fiis e sbrios, mas tambmsabem que, se no nos permitirem o contrrio de vez em quando,quebraro nosso esprito. Em seus momentos mais sofisticados, asreligies aceitam a dvida que bondade, f e doura tm com seusopostos.

    4.O cristianismo medieval certamente compreendia essa dicotomia.

    Durante a maior parte do ano, pregava solenidade, ordem, moderao,camaradagem, sinceridade, amor a Deus e decoro sexual, e, ento, nanoite de ano-novo, abria as portas da psique coletiva e dava incio aofestum fatuorum, a Festa dos Loucos. Durante quatro dias, o mundoficava de cabea para baixo: membros do clero jogavam dados em cimado altar, zurravam como burros em vez de dizer amm, faziamcompeties de bebedeira na nave, peidavam como acompanhamento ave-maria e faziam sermes de galhofa, baseados em pardias doEvangelho (o Evangelho segundo o Traseiro da Galinha, o Evangelhosegundo a Unha do P de Lucas). Aps beber canecas de cerveja, elesseguravam os livros sagrados de ponta-cabea, faziam oraes paravegetais e urinavam de cima das torres dos sinos. Casavam burros,amarravam pnis gigantes de l em suas batinas e tentavam fazer sexocom homens ou mulheres dispostos a tanto.

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    Para ficarmos sos, podemos precisar de uma ocasio eventual para um sermosegundo a Unha do P de Lucas. Uma ilustrao, do sculo XIX, da Festa dos Loucos

    medieval.

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    Momento anual de liberao no Restaurante gape.

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    captulo trs

    Gentileza

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    i. Libertarismo e paternalismo

    1.Depois que crescemos, raras vezes somos oficialmente incentivados aser legais uns com os outros. Uma suposio fundamental dopensamento poltico ocidental moderno que devemos ser deixados empaz para viver como queremos, sem sermos importunados, sem temorde julgamento moral e sem estarmos sujeitos aos caprichos daautoridade. A liberdade tornou-se nossa virtude poltica suprema. Nose imagina que seja tarefa do Estado promover a maneira comodevemos agir com o outro ou nos mandar a palestras sobre

    cavalheirismo e polidez. A poltica moderna, tanto direita como esquerda, dominada por algo que podemos chamar de uma ideologialibertria.

    Em Sobre a liberdade, de 1859, John Stuart Mill, um dos primeiros emais articulados defensores dessa abordagem no intervencionista,explicou: O nico propsito pelo qual o poder pode ser exercido deforma legtima sobre qualquer integrante de uma comunidade civilizada,contra a vontade dele, para impedir danos a outros. Seu prprio bem,fsico ou moral, no justificativa suficiente.

    Por esse raciocnio, o Estado no deveria nutrir aspiraes de mexercom o bem-estar interior ou os modos exteriores de seus integrantes. Asimperfeies dos cidados esto alm de comentrios ou crticas pelomedo de transformar o governo naquele tipo de autoridade maiscondenado e impalatvel aos olhos libertrios, o Estado-bab.

    2.As religies, por outro lado, sempre tiveram ambies bem maisautoritrias, propondo ideias amplas sobre como os membros de umacomunidade deveriam se comportar em relao aos outros.

    Vejamos o judasmo, por exemplo. Certas passagens do cdigo legaljudaico, a Mixn, tm grandes paralelos na lei moderna. H estatutosque soam familiares sobre no roubar, romper contratos ou vingar-sedesproporcionalmente do inimigo em uma guerra.

    Entretanto, diversos outros decretos vo muito alm daquilo que umaideologia poltica libertria julgaria como dentro de um limite apropriado.O cdigo judaico tem uma obsesso com os detalhes sobre comodevemos nos comportar com nossas famlias, com colegas, estranhos e

    at mesmo com animais. Determina que jamais devemos sentar paracomer uma refeio antes de alimentarmos as cabras e os carneiros,que devemos pedir permisso aos pais quando quisermos fazer uma

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    viagem com durao superior a uma noite, que devemos convidar todasas vivas da comunidade para jantar a cada primavera e que devemossacudir as oliveiras uma nica vez durante a colheita, a fim de deixarfrutos para rfos e pobres. Tais recomendaes so seguidas porinjunes sobre a assiduidade com que devemos ter relaes sexuais, eos homens so lembrados do dever perante Deus de fazer amor comsuas mulheres regularmente, segundo um cronograma que alinha afrequncia escala dos compromissos profissionais: Para homens quetm renda independente de trabalho, todos os dias. Para trabalhadores,duas vezes por semana. Para condutores de burros, uma vez porsemana. Para condutores de camelos, uma vez por ms. Paramarinheiros, uma vez por semestre. (Mixn, Ketubot 5:6).

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    O cdigo legal judaico determina no apenas que roubar errado, mas que condutoresde burros devem fazer sexo com sua mulher uma vez por semana. Moiss recebendo as

    Tbuas da Lei, ilustrao de uma Bblia francesa, c. 834.

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    3.Pensadores libertrios concederiam que, sem dvida, admirvel tentarsatisfazer as necessidades sexuais da esposa, ser generoso comrelao s azeitonas e manter os pais informados sobre planos deviagem. Entretanto, tambm condenariam como estranha esimplesmente sinistra qualquer tentativa paternalista de converter essasaspiraes em estatuto. Quando dar comida ao cachorro ou quandoconvidar vivas para jantar so, segundo uma viso de mundo libertria,questes para a conscincia do indivduo, no para o julgamento dacomunidade.

    Na sociedade secular, pelo pensamento libertrio, uma linha rgidadeveria separar a conduta que sujeita lei daquela que sujeita moral pessoal. Deveria caber a parlamentos, foras policiais, cortes eprises impedir danos vida de um cidado ou propriedade variedades mais ambguas de mau comportamento deveriam, porm,

    permanecer dentro da exclusiva esfera da conscincia. Assim, o roubode um boi uma questo a ser investigada por um policial, enquanto aopresso do esprito de algum ao longo de duas dcadas de descasodentro do prprio quarto, no.

    Essa relutncia em se envolver em questes privadas est menosenraizada na indiferena que no ceticismo, e mais especificamente nadvida disseminada de que algum pudesse jamais estar na posio desaber com exatido o que virtude, quanto mais como ela poderia serinstilada nos outros de maneira segura e judiciosa. Conscientes da

    complexidade inerente s escolhas ticas, os libertrios no podemdeixar de notar quo poucas questes se encaixam de modo inequvocoem categorias irrefutveis de certo e errado. O que parece uma verdadebvia para algum pode ser visto por outro como um preconceitocultural. Analisando sculos de autoconfiana religiosa, os libertriosficam petrificados pelos perigos da convico. Uma abominao aomoralismo tosco baniu da esfera pblica a discusso sobre moralidade.O impulso de questionar o comportamento alheio balana diante daresposta provvel: quem voc para me dizer o que fazer?

    4.Contudo, existe uma arena na qual espontaneamente favorecemos ainterveno moralista em detrimento da neutralidade, uma arena que,para muitos de ns, domina a vida prtica e eclipsa todas as outraspreocupaes em termos de valor: a questo da educao dos filhos.

    Ser pai , inevitavelmente, arbitrar com vigor a vida dos filhos naesperana de que um dia eles crescero para ser no apenasrespeitadores da lei mas tambm legais isto , que tenham

    considerao com seus parceiros, que sejam generosos com os rfos,modestos em relao s suas qualidades e que no tenham inclinaoa mergulhar na preguia ou na autocomiserao. Em sua extenso e

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    intensidade, as reprimendas dos pais rivalizam com aquelasestabelecidas na Mixn judaica.

    Defrontados com as mesmas duas perguntas que tanto incomodamos pensadores libertrios na esfera poltica Quem voc para medizer o que fazer? e Como voc sabe o que certo? , os pais tmpouca dificuldade para chegar a respostas prticas. Mesmo ao frustraros desejos imediatos dos filhos (amide ao som de gritos de romper ostmpanos), tendem a ter certeza de que os orientam a agir de acordo comnormas que respeitariam de modo voluntrio se j tivessemdiscernimento e autocontrole plenamente desenvolvidos.

    O fato desses pais favorecerem o paternalismo em suas prpriascasas no significa que deixaram todas as dvidas ticas de lado. Elesargumentariam que perfeitamente razovel ser inseguro quanto acertas questes de relevo se fetos deveriam poder ser abortadosaps vinte e quatro semanas, por exemplo , ao mesmo tempo em que

    continuam totalmente confiantes a respeito de coisas menores, taiscomo se correto dar um tapa na cara do irmo mais novo ou esguicharsuco de ma no teto do quarto.

    Para dar forma concreta a seus pronunciamentos, os pais comfrequncia so levados a adotar tabelas com estrelinhas, complexasregras polticas domsticas (em geral coladas nas portas de geladeirasou de armrios) que estabelecem em detalhes os comportamentosespecficos que esperam e que recompensaro.

    Notando as considerveis melhoras comportamentais que essas

    tabelas costumam produzir (junto com a satisfao paradoxal que ascrianas parecem extrair ao ter seus impulsos mais desordenadosmonitorados e contidos), adultos libertrios talvez fiquem tentados asugerir, com uma risada modesta diante de uma ideia to absurda, queeles prprios podem se beneficiar de uma tabela de estrelinhas pregada parede para registrar suas prprias excentricidades.

    5.Se a ideia de uma tabela de estrelinhas para adultos parece bizarra,mas no de todo infundada, porque temos conscincia, nos momentosmais maduros, da escala de nossas imperfeies e da profundidade denossa infantilidade. H muitas coisas que gostaramos de fazer mas queacabamos nunca concretizando, e muitas formas de nos comportar squais aderimos de corao mas que ignoramos em nosso cotidiano.Entretanto, em um mundo obcecado por liberdade, restam poucas vozesque ainda ousam nos incentivar a agir bem.

    As exortaes de que precisaramos, em geral, no so muitocomplexas: perdoar os outros, conter a raiva, ousar imaginar as coisas apartir de um ponto de vista diferente, colocar em perspectiva os dramaspessoais Estamos nos agarrando a uma viso de ns mesmosinutilmente sofisticada se pensamos estar sempre acima de

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    observaes bem-colocadas, diretas e estruturadas a respeito dagentileza. H uma sabedoria maior em aceitar que, na maioria dassituaes, somos simples entidades que precisam da mesma orientaogentil, firme e bsica que costuma ser oferecida a crianas e animaisdomsticos.

    Os verdadeiros riscos s nossas chances de crescimento sodiferentes daqueles concebidos pelos libertrios. A falta de liberdadeno mais, na maioria das sociedades desenvolvidas, o problema.Nossa runa est na inabilidade para extrair o mximo da liberdade queos antepassados asseguraram para ns, com muita dor, ao longo de trssculos. Estamos fartos de ser deixados vontade para fazer o quequisermos sem dispor de sabedoria suficiente para explorar nossaliberdade. Em ltima instncia, no se trata mais de estarmos mercde autoridades paternalistas, de cujas afirmaes nos ressentimos equeremos nos libertar. O perigo corre em outra direo: estamos diante

    de tentaes que, naqueles intervalos em que podemos manterdistncia suficiente delas, costumamos criticar, mas contra as quais noencontramos nenhum estmulo para resistir, o que nos causa grandedecepo e revolta contra ns mesmos. Nossos lados maduros assistemdesesperados enquanto nossos aspectos infantis pisoteiam osprincpios mais elevados e ignoram o que reverenciamos com fervor.Nosso desejo mais profundo pode ser que algum aparea e nos salvede ns mesmos.

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    At o mais libertrio dos pais tende a reconhecer a validade da tabela de estrelinhas paralidar com crianas de quatro anos.

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    Um ocasional lembrete paternalista sobre o bom comportamento noprecisa constituir uma violao liberdade, no sentido em que essetermo deveria ser compreendido. A verdadeira liberdade no significaser de todo abandonado prpria sorte; deveria ser compatvel com serestimulado e orientado.

    Os casamentos contemporneos so um caso exemplar dosproblemas criados pela ausncia de uma atmosfera moral. Comeamoscom a melhor das intenes e um grau mximo de apoio comunal.Todos os olhos esto sobre ns: famlia, amigos e funcionrios doEstado parecem totalmente devotados nossa mtua felicidade e bomcomportamento. Mas logo nos descobrimos sozinhos com os presentesde casamento e nossas naturezas conflitantes e, como somos criaturasfracas, o pacto que firmamos com tanta sinceridade comea a erodir. Osarrebatadores desejos romnticos so materiais frgeis para construiruma relao. Ficamos insensveis e mentirosos um em relao ao outro.

    Ficamos surpresos com nossa prpria indelicadeza. Tornamo-nosdesonestos e vingativos.Podemos tentar persuadir os amigos que nos visitam no final de

    semana a ficar um pouco mais porque a considerao e o afeto delesnos lembram das altas expectativas que o mundo outrora depositou emns. No ntimo, porm, sabemos que estamos sofrendo porque no hningum ali para nos cutucar a fim de que mudemos nosso jeito efaamos um esforo. As religies compreendem isso: sabem que aexistncia de uma plateia ajuda a sustentar a bondade. As fs, desse

    modo, fornecem uma galeria de testemunhas na origem cerimonial dosnossos casamentos e, a partir da, delegam um papel vigilante s suasdeidades. Por mais sinistra que a ideia de semelhante vigilncia pareaa princpio, na realidade pode ser tranquilizador viver como se algumestivesse o tempo todo observando e esperando o melhor de ns. gratificante sentir que nossa conduta no um assunto s nosso; fazcom que o importante esforo de agir bem parea um pouco mais fcil.

    6.Os libertrios podem admitir que, em teoria, nos beneficiaramos daorientao, mas, mesmo assim, acham que seria impossvel fornec-la,pelo simples motivo de que, no fundo, ningum sabe mais o que bome o que ruim. E no sabemos, conforme se observa em um aforismosedutor e dramtico, porque Deus est morto.

    Boa parte do pensamento moral contemporneo est petrificado pelaideia de que o colapso da crena deve ter danificado de formairreparvel a capacidade de erguermos um convincente arcabouo ticopara ns mesmos. Mas esse argumento, embora parea atesta em sua

    natureza, tem uma dvida estranha e desautorizada com umamentalidade religiosa porque apenas se ns acreditarmos de fato queem algum nvel Deus existiu no passado e que as fundaes da

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    moralidade so, portanto, em sua essncia, sobrenaturais, oreconhecimento da sua atual noexistncia teria algum poder de abalarnossos princpios morais.

    Contudo, se supusermos desde o comeo que claro queinventamos Deus, o argumento se desmancha em uma tautologia pois por que nos incomodaramos em nos sentir sobrecarregados pordvidas ticas se soubssemos que as muitas regras atribudas a seressobrenaturais no passavam de uma obra de nossos ancestrais pordemais humanos?

    Parece bvio que as origens da tica religiosa jazem nanecessidade pragmtica das comunidades primevas para controlar astendncias violncia de seus integrantes e estimular hbitoscontrrios, de harmonia e perdo. Cdigos religiosos tiveram inciocomo preceitos admonitrios, que foram ento projetados no cu erefletidos de volta terra sob formas incorpreas e majestosas. Ordens

    para ser solidrio ou paciente derivaram da conscincia de que essaseram as qualidades que poderiam trazer as sociedades de volta dafragmentao e da autodestruio. Essas regras eram to vitais paranossa sobrevivncia que por milhares de anos no ousamos admitir queas tnhamos formulado, a fim de evitar que isso as expusesse aoescrutnio crtico e ao tratamento irreverente. Precisvamos fingir que amoralidade vinha do cu para isol-la de nossas mentiras e fraquezas.

    Mas, se agora podemos assumir a espiritualizao das nossas leisticas, no temos motivo para jog-las fora. Continuamos precisando de

    exortaes para sermos solidrios e justos, ainda que no acreditemosque exista um Deus que deseje que sejamos assim. No precisamos sercolocados na linha pela ameaa do inferno ou pela promessa doparaso; precisamos apenas ser lembrados que somos ns mesmos isto , as partes mais maduras e razoveis de ns (raras vezespresentes nas nossas crises e obsesses) e que desejamos levar avida que outrora imaginamos que seres sobrenaturais exigiam de ns.Uma evoluo adequada da moralidade desde a superstio at a razodeveria significar o reconhecimento de que somos os autores dos

    nossos mandamentos morais.

    7. claro que a prontido em aceitar orientao depende do tom em queela oferecida. Entre as caractersticas mais intragveis da religio esta tendncia dos clrigos para falar com as pessoas como se eles, esomente eles, detivessem a posse de maturidade e de autoridade moral.Mesmo assim, o cristianismo nunca soa mais atraente do que quandonega essa dicotomia criana-adulto e reconhece que, no fim, somos

    todos um tanto infantis, incompletos, inacabados, facilmente tentados epecadores. Estamos mais dispostos a absorver lies sobre virtudes evcios quando so oferecidas por personagens que parecem conhecer

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    por completo ambas as categorias. Da o charme e a utilidadepermanente da ideia do pecado original.

    A tradio judaico-crist tem, de maneira intermitente, reconhecidoque o que pode impedir que nos corrijamos um sentimento solitrio eculpado de quo extraordinariamente maus somos e quo alm dasalvao estamos. Essas religies, portanto, proclamaram comconsidervel frieza que todos ns, sem exceo, somos criaturasbastante imperfeitas. Eis que eu nasci em iniquidade, e em pecado meconcedeu minha me, troveja o Velho Testamento (Salmo 51), em umamensagem ecoada no Novo Testamento: Portanto, assim como por ums homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assimtambm a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram(Romanos 5:12).

    Entretanto, o reconhecimento dessa escurido no o ponto finalque o pessimismo contemporneo com tanta frequncia supe que deva

    ser. Que somos tentados a enganar, roubar, insultar, ignoraregoisticamente os outros e ser infiis, disso ningum duvida. A questono se experimentamos tentaes chocantes, mas se somos capazesde super-las de vez em quando.

    A doutrina do pecado original nos estimula a caminhar em direo aoaprimoramento moral, por meio da compreenso de que os defeitos quedesprezamos em ns so caractersticas inevitveis da espcie.

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    Tivemos de inventar maneiras para nos assustar e obrigar a fazer o que, bem no fundo, jsabamos ser o correto. As Tormentas do Inferno, manuscrito iluminado francs, c.1454.

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    Pode mos, assim, admiti-las sinceramente e tentar corrigi-las luz dodia. A doutrina sabe que a vergonha no uma emoo til decarregarmos enquanto trabalhamos para diminuir um pouco tudo aquiloque nos envergonha. Pensadores iluministas acreditavam nos fazer umfavor ao declarar que o homem era, original e naturalmente, bom.Porm, os avisos repetidos sobre nossa decncia inata podem fazercom que fiquemos paralisados pelo remorso em relao incapacidadede corresponder a nveis impossveis de integridade. Confisses depecaminosidade universal se revelam um ponto de partida melhor paradarmos os modestos passos iniciais rumo virtude.

    Uma nfase no pecado original serve ainda para responder aquaisquer dvidas a respeito de quem deve ter o direito de distribuirconselhos morais em uma era democrtica. inflamada pergunta equem voc para me dizer como viver?, um crente apenas precisareagir com a resposta um colega pecador. Todos descendemos de um

    nico ancestral, o cado Ado, e somos, portanto, acossados poransiedades idnticas, tentaes iniquidade, desejos de amor eocasionais aspiraes pureza.

    8.Jamais descobriremos regras de boa conduta que respondam a todas asquestes que possam surgir acerca de como os seres humanos seriamcapazes viver bem, juntos e em paz. No entanto, a ausncia de um

    acordo absoluto sobre a boa vida no deve, em si mesma, ser obastante para nos impedir de investigar e de promover a hiptese desemelhante existncia.

    A prioridade de instruo moral deve ser geral, ainda que a lista devirtudes e vcios para guiar qualquer um de ns tenha de ser especfica,uma vez que todos tendemos estupidez e ao dio de maneirasincrivelmente pessoais.

    A generalizao que podemos nos arriscar a traar, a partir daabordagem judaico-crist do bom comportamento, que seria melhorconcentrarmos a ateno em tipos de m conduta relativamente menosimportantes e no dramticos. O orgulho, uma atitude mentalsuperficialmente discreta, era considerado digno de registro pelocristianismo, da mesma maneira que o judasmo no via nada de frvoloem fazer recomendaes sobre quantas vezes os casais deveriam terrelaes sexuais.

    Vejamos, em contraste, o atraso e a rudeza com que o Estadomoderno entra em nossa vida com suas injunes: intervm quando j tarde demais, aps termos pegado a arma, roubado o dinheiro, mentidos crianas ou jogado o cnjuge pela janela. No estuda a dvida que

    grandes crimes tm com abusos sutis. O feito da tica judaico-crist eraabranger mais que apenas os grandes e bvios vcios da humanidade.Suas recomendaes tratavam de uma srie de crueldades e maus-

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    tratos indistintos, do tipo que desfiguram a vida cotidiana e formam ocadinho para crimes cataclsmicos. A rudeza e a humilhao emocionalpodem ser to corrosivas para uma sociedade funcional quanto o rouboe o assassinato.

    Os Dez Mandamentos foram uma primeira tentativa de controlar aagresso do homem contra o prximo. Nos ditos do Talmude e daslistas crists medievais de virtudes e vcios, testemunhamos umenvolvimento com formas de maus-tratos mais modestas, pormigualmente traioeiras e inflamveis. muito fcil declarar queassassinato e roubo so errados; exige-se um feito maior da imaginaomoral para advertir algum contra as consequncias de se fazer umadeclarao depreciativa ou de ser sexualmente distante.

    ii. Uma atmosfera moral

    1.O cristianismo jamais se preocupou em criar uma atmosfera moral naqual as pessoas pudessem apontar os defeitos umas das outras ereconhecer que seu comportamento poderia ser aprimorado.

    E como no via nenhuma diferena particular entre adultos ecrianas, nunca se esquivou de oferecer aos seus seguidores uma sriede equivalentes s tabelas de estrelinhas para apontar caminhos

    honrveis. Um dos mais bem-sucedidos desses equivalentes encontrado em Pdua, sob o abobadado teto de tijolos da capelaScrovegni.

    No comeo do sculo XIV, o artista florentino Giotto foi incumbido dedecorar as paredes da capela com um conjunto de afrescos: haveriacatorze nichos, cada um com uma pintura representando um vcio ouuma virtude diferente. No lado direito da igreja, mais perto da nave,Giotto pintou as chamadas virtudes cardeais Prudncia, Fortaleza,Temperana e Justia , seguidas pelas virtudes crists de F,Caridade e Esperana. Diretamente oposta, foi distribuda umaconfigurao correspondente de vcios: Loucura, Inconstncia, Ira,Injustia, Idolatria, Inveja e Desespero. Para cada um desses ttulosabstratos, o pintor usou exemplos vvidos para provocar a admirao doobservador e instigar sua culpa. Assim, a Ira mostrada rasgando asroupas, gritando aos cus em indignada autocomiserao, enquanto,dois nichos adiante, a Idolatria lana olhares desonestos. Os membrosda congregao deveriam sentar-se nos bancos e pensar em quaisvirtudes haviam adotado e a quais vcios haviam sucumbido, enquantoDeus observava acima, na esfera celestial, com estrelas mo.

    A tradio religiosa qual a tabela de estrelinhas de Giotto pertenciasentia-se confortvel fazendo proposies detalhadas sobre comoalgum deveria se comportar e distinguindo de seu oposto aquilo que

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    claramente definia como bom. Representaes de vcios e virtudes eramonipresentes nas quartas capas de Bblias, em livros de oraes, nasparedes de igrejas e prdios pblicos e seu propsito era didtico:ofereciam uma bssola pela qual os fiis podiam guiar sua vida emdirees honradas.

    2.Em contraste com esse desejo cristo de gerar uma atmosfera moral, ostericos libertrios argumentaram que o espao pblico deveria sermantido neutro. No deveria haver lembretes de bondade nas paredesdos prdios ou nas pginas dos livros. Tais mensagens, afinal,constituiriam violaes dramticas da nossa muito valorizadaliberdade.

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    Giotto di Bondone, Os Vcios e as Virtudes, capela Scrovegni, Pdua, c.1304.

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    Porm, j vimos por que essa preocupao no necessariamentehonra nossos desejos mais profundos, dada nossa natureza compulsivae voluntariosa. Podemos agora admitir que, de qualquer forma, nossosespaos pblicos no so nem remotamente neutros. So comorevela uma olhada rpida em qualquer avenida cobertos demensagens comerciais. Mesmo em sociedades que em teoria sededicam a nos deixar livres para fazer nossas escolhas, a mente manipulada o tempo todo em direes que dificilmente reconhecemosde maneira consciente. s vezes dito pelas agncias publicitrias, emuma tentativa profiltica de falsa modstia, que a propaganda nofunciona de fato. Somos adultos, sustenta o argumento, portanto noperdemos a capacidade de raciocnio no instante em que colocamos osolhos nas lindas fotografias de um outdoor ou de um catlogo. Assume-se que crianas possam ser menos resolutas e, por isso, talvez precisemde proteo contra certas mensagens veiculadas na televiso antes das

    oito horas da noite, para que no desenvolvam um desejo manaco pordeterminado brinquedo ou refrigerante. Mas os adultos soaparentemente sensatos e controlados o suficiente para no alterarvalores ou padres de consumo apenas por conta de um fluxoincessante de mensagens engenhosamente criadas, que os atinge detodos os lados e meios o tempo inteiro, dia e noite.

    Entretanto, essa distino entre criana e adulto suspeitamenteconveniente aos interesses comerciais. Na verdade, somos todosfrgeis nos compromissos e sofremos de uma fraqueza de vontade em

    relao ao canto da sereia da publicidade, tanto um malcriado meninode trs anos, hipnotizado pela viso de um curral de brinquedo com umcanil inflvel, quanto um homem de quarenta e dois anos cativado pelaspossibilidades de um conjunto com churrasqueira, grelhas e espetos.

    3.Ateus tendem a ter pena dos habitantes de sociedades dominadas pelareligio por causa da propaganda que eles precisam suportar, mas isso fazer vista grossa aos igualmente poderosos e contnuos chamados orao das sociedades seculares. Um Estado libertrio digno dessenome tentaria corrigir o desequilbrio de mensagens que atingem seuscidados, preterindo as meramente comerciais e indo em direo a umaconcepo holstica de florescimento. Fiis s ambies dos afrescos deGiotto, essas novas mensagens nos apresentariam de maneira vvida asmuitas maneiras nobres de comportamento que hoje tanto admiramos ealegremente ignoramos.

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    Precisamos de outros lembretes que no apenas as vantagens de salgadinhossaborosos.

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    Simplesmente no ligaremos por muito tempo para os valoressuperiores quando tudo o que recebemos para nos convencer de suavalidade um ocasional lembrete em um livro de ensaios, de vendagemmodesta e amplamente ignorado, escrito por um suposto filsofo enquanto, nos domnios da cidade, os talentos superlativos dasagncias publicitrias do globo praticam sua alquimia fantasmagrica eincendeiam todas as nossas fibras sensoriais em nome de um novo tipode produto de limpeza ou um salgadinho saboroso.

    Se tendemos a pensar com tanta frequncia em desinfetantes comfragrncia de limo ou batatinhas onduladas, mas dedicamos poucotempo tolerncia ou justia, a culpa no somente nossa. porque,em geral, essas duas virtudes cardinais no se encontram em posiode se tornar clientes da agncia de publicidade Young & Rubicam.

    iii. Modelos de conduta

    1.Ao mesmo tempo em que d ateno s mensagens em seus espaospblicos, o cristianismo sabiamente reconhece a extenso em quenossos conceitos de bom e mau so delineados pelas pessoas comquem convivemos. Ele sabe que somos perigosamente permeveis aonosso crculo social, e por demais predispostos a internalizar e imitar as

    atitudes e o comportamento alheios. Simultaneamente, aceita que ascompanhias especficas que mantemos so em grande parte resultadode foras aleatrias, uma mistura peculiar de personagens extrados dainfncia, da escola, da comunidade e do trabalho. Entre as poucascentenas de pessoas que encontramos com regularidade, provvelque no muitas sejam indivduos excepcionais, que instiguem aimaginao com suas boas qualidades, que fortaleam a alma e cujavoz queiramos adotar para fortalecer nossos melhores impulsos.

    2.A escassez de paradigmas ajuda a explicar por que o catolicismo pediante de seus crentes cerca de dois mil e quinhentos dos maiores emais virtuosos seres humanos que, ao que parece, j existiram. Essessantos, cada um a seu modo, exemplificam qualidades que deveramosesperar nutrir em ns mesmos. So Jos, por exemplo, pode nosensinar a lidar calmamente com as presses de uma jovem famlia e aenfrentar as tribulaes do trabalho com um temperamento modesto eresignado. H momentos em que talvez queiramos soltar as emoes e

    chorar na companhia de So Judas Tadeu, padroeiro das causasperdidas, cujos modos suaves podem nos confortar sem qualquernecessidade de encontrar solues imediatas nem sequer esperana.

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    Uma oportunidade para lembrar os amigos: os meses de novembro e dezembro, de umLivro dos Salmos ingls do sculo XVI, marcando as datas da morte de, entre outros, So

    Hugo, Santa Catarina, So Teodoro, Santo Edmundo, So Clemente, Santa Brbara,Santa Luzia e Santo Osmundo.

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    Para estreitar ainda mais as conexes imaginativas com os santos, ocatolicismo nos fornece calendrios que listam os dias em que elesmorreram, a fim de termos ocasies regulares para nos afastar do crculosocial e contemplar a vida de pessoas que distriburam todo o dinheiroque tinham e perambularam pela terra fazendo boas aes, vestindouma tnica spera para mortificar a carne (So Francisco), ou queusaram a f em Deus para reimplantar magicamente uma orelha cortadana cabea atormentada do seu dono (So Cutberto).

    3.Alm disso, o catolicismo percebe que h uma vantagem em sermoscapazes de ver nossos amigos ideais espalhados pela casa emrepresentaes tridimensionais miniaturizadas. Afinal, a maioria de nscomeou a vida cultivando relaes com ursinhos e outros animais, com

    os quais falvamos e que tacitamente se dirigiam a ns. Emboraimveis, esses animais eram bastante hbeis em transmitir suaspersonalidades consoladoras e inspiradoras para ns. Conversvamoscom eles quando estvamos tristes e ramos confortados quandoolhvamos pelo quarto e os vamos estoicamente resistindo noite porns. O catolicismo no v motivos para abandonar a mecnica dessasrelaes e, desse modo, convida-nos a comprar verses de madeira,pedra, resina ou plstico dos santos e coloc-las em estantes ou nichosnos quartos e corredores. Em perodos de caos domstico, podemosolhar para uma estatueta de plstico e internamente perguntar o queSo Francisco de Assis recomendaria que dissssemos para a esposafuriosa e os filhos histricos. A resposta pode estar dentro de ns todo otempo, mas, em geral, no emerge ou se torna efetiva at perguntarmosformalmente a uma estatueta sagrada.

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    O que ele faria agora? Estatuetas de So Francisco de Assis venda em diversosformatos.

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    4.Uma sociedade secular funcional pensaria com cuidado similar arespeito de seus modelos de conduta. No se limitaria a nos fornecerastros do cinema e cantores. A ausncia de crena religiosa de modoalgum invalida a necessidade persistente de santos padroeiros dequalidades como Coragem, Amizade, Fidelidade, Pacincia, Confianaou Ceticismo. Ainda podemos nos beneficiar de momentos em quedamos espao interno s vozes de pessoas mais equilibradas,corajosas e generosas que ns Lincoln ou Whitman, Churchill ouStendhal, Warren Buffett ou Paul Smith , e por intermdio delas nosreconectarmos com nossas possibilidades mais dignas e srias.

    5.A perspectiva religiosa acerca da moralidade sugere que, no fim, trata-

    se de um sinal de imaturidade se contrapor muito tenazmente a sertratado como uma criana. A obsesso com a liberdade ignora o quantode nossa necessidade infantil original, por limite e orientao,permanece dentro de ns, e, portanto, o quanto podemos aprender comestratgias paternalistas. No muito bom, e no fim das contas nemmesmo muito libertador, ser considerado to adulto a ponto de serabandonado para fazer tudo como se desejar.

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    At mesmo os mais importantes ateus podem se beneficiar de modelos de conduta.Acima: mesa de Sigmund Freud em Londres, coberta de estatuetas assrias, egpcias,

    chinesas e romanas. Alto: H quem possa preferir Virginia Woolf.

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    captulo quatro

    Educao

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    O propsito das universidades no produzir advogados, mdicos ou engenheiroscompetentes. criar seres humanoscapazes e cultos, John Stuart Mill.

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    i. O que nos ensinam

    1.Uma movimentada rua comercial no norte de Londres. Em um bairrolotado de padarias cipriotas, cabeleireiros jamaicanos e deliveries

    bengali fica o campus de uma das mais novas universidades britnicas.Ele dominado por uma torre de ao assimtrica, com doze andares,que abriga, ao longo de uma srie de corredores pintados de roxo e deamarelo berrantes, os anfiteatros para aulas e as salas de seminrios doDepartamento de Humanidades.

    Por toda a universidade, duzentos mil alunos de graduao estomatriculados em quatrocentos programas de estudo. Esse departamentoem particular foi inaugurado h poucos meses, por um ministro daEducao e por um primo da rainha, em uma cerimnia registrada em

    uma pedra de granito instalada na parede perto dos banheiros.Um lar para o melhor que foi dito e pensado no mundo, diz aplaca, que tomou emprestada a famosa definio de Matthew Arnoldpara a cultura. A frase deve ter tocado um ponto sensvel dauniversidade, pois reaparece no manual de matrcula dos alunos degraduao e em um mural ao lado da mquina de bebidas na cafeteriado poro.

    Existem poucas coisas em que a sociedade secular acredita comtanto fervor quanto na educao. Desde o Iluminismo, a educao do

    primrio universidade apresentada como a resposta mais eficazpara uma gama dos piores males da sociedade; o canal para produzirum conjunto civilizado, prspero e racional de cidados.

    Um exame dos cursos oferecidos pela nova universidade revela quemais da metade deles tem o objetivo de equipar os graduandos comhabilidades prticas, exigidas para carreiras de sucesso em sociedadesmercantis e tecnolgicas: cursos de qumica, administrao,microbiologia, direito, marketing e sade pblica.

    Mas as elevadas afirmaes feitas em nome da educao, comoaquelas lidas nos folhetos ou ouvidas nas cerimnias de formatura,tendem a sugerir que faculdades e universidades so mais que merasfbricas de tecnocratas e empresrios. A sugesto que elas tm umatarefa ainda mais elevada: podem nos transformar em pessoasmelhores, mais sbias e felizes.

    Como coloca John Stuart Mill, outro defensor vitoriano dos objetivosda educao: O propsito das universidades no produzir advogados,mdicos ou engenheiros competentes. criar seres humanoscapazes ecultos. Ou, para voltar a Matthew Arnold, uma educao culturaladequada deveria inspirar em ns um amor pelo vizinho, um desejo deacabar com a confuso humana e diminuir sua misria. Em seu nvelmais ambicioso, acrescentou ele, a educao deveria engendrar nadamenos que a nobre aspirao de tornar o mundo melhor e mais feliz do

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    que quando o encontramos.

    2.O que une afirmaes to ambiciosas e sedutoras sua paixo e seucarter vago. Raras vezes fica claro como a educao poderia

    encaminhar os estudantes para a generosidade e a verdade e afast-losdo pecado e do erro, embora seja difcil no consentir passivamentecom essa noo inspiradora, dada sua familiaridade e sua absolutabeleza.

    Entretanto,