Alan Ayckbourn - Comic Potential

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Comic Potential

PAGE 4

Comic PotentialDe Alan Ayckbourn

Traduo e adaptao Alexandre Tenrio

Personagens

Ado Silva, jovem autor, 20 e poucos anos.

Renato (Tato) Bgus, diretor, beirando os 60 anos.

Santos Silva, tio de Ado, 80 e muitos anos.

C.L.A-f-D.1000 (Clia de Mille), atriz andride, 20 e poucos anos.

Carla Dragobravo, diretora superintendente, idade desconhecida.

Priscila Flores (Pri), programadora, 30 e poucos anos.

Patrcia Pontes (Trica), tcnica, 30 e poucos anos.

Mariano Cedilha, intrprete do Sr. Silva.

P.S.A-m-J.5623, (Mdico), ator andride, 40 e tantos anos.

P.S.A-m-J.5623, (Fazendeiro), ator andride, 40 e tantos anos.

P.L.A-m-5482, (Filho), ator andride, 20 e tantos anos.

P.P.A-f-7502, (Me), atriz andride, 40 e tantos anos.

P.P.A-f-7502, (Mulher do Fazendeiro), atriz andride, 40 e tantos anos.

O Recepcionista do Hotel

A Prostituta

Peru (Um cafeto)

O Namorado

A Namorada

Vendedora

Garom 1

Garom 2

Tcnico da Fbrica

Primeiro Ato:

Cena1: Estdio de TV. Manh.

Cena 2: O mesmo estdio. Horas mais tarde.

Cena 3: O mesmo estdio. Alguns dias mais tarde

Segundo Ato:

Cena 1: O estdio. Mesmo dia.

Cena 2: Recepo do Intergaltico Plaza Hotel. noite.

Cena 3: O estdio. Mesma noite.

Cena 4: Butique do hotel. Mesma noite.

Cena 5: O estdio. Mesma noite.

Cena 6: Restaurante do hotel. Mesma noite.

Cena 7: O estdio. Mesma noite.

Cena 8: Sute do hotel. Mesma noite.

Cena 9: Quarto no Hotel Mombassa. Mesma noite, mais tarde.

Cena 10: Estdio. Manh seguinte.

Comic Potencial estreou no Teatro Stephen Joseph, em Scarborough, no dia 4 de Junho de 1998, com o seguinte elenco:

Ado Silva Nicholas Haverson

Tato Bgus Keith Barlett

Santos Silva, Recepcionista, Garom 1 John Branwell

Mdico, Fazendeiro, Namorado, Peru James Hornsby

Filho, Mariano, Garom 2, Tcnico Bill Champion

Clia de Mille Janie Dee

Trica, Namorada Pippa Hinchley

Pri Jennifer Luckcraft

Carla Dragobravo Jacqueline King

Me, Mulher do Fazendeiro, Vendedora, Prostituta Helen Pearson

Direo Alan Ayckbourn

Designer Roger Glossop

Luz Kath Geraghty

Figurinos Chritine Wall

Msica John Pattison

A ao se desenrola num futuro prximo, quando tudo est mudado, exceto a natureza humana.

Primeiro Ato

Cena Um

Estdio de TV.

Luzes fortes numa cama de hospital. O FILHO, deitado, sentindo dor. Sua ME chorando. O MDICO perto dela. Num canto est a ENFERMEIRA segurando uma prancheta.

Meio ocultos, na penumbra, assistindo a cena esto TATO, o diretor, PRI, a programadora e TRICA, a tcnica.

MDICO(Preocupado) ...j fizemos o possvel, Dona Nair. Mas o osso est esmigalhado...

ME(Em lgrimas) No, no...

FILHO(Corajoso) Me, no chore, pelo amor de Deus pare de chorar...

ME to cruel... to cruel...

MDICOEm termos cirrgicos, j se pode fazer muita coisa hoje em dia, mas milagre ainda coisa pro futuro, eu sinto muito.

MEMas por que com meu filho? Por que com Paulo Rogrio?

FILHODoutor, eu vou perder o p?

MENo, Paulo Rogrio, no...

FILHOPreciso saber, mame. meu futuro que est em jogo! Quero saber se algum dia serei capaz de entrar novamente em campo e marcar um gol, ser que no entende isso?

MENo vamos desistir, querido. Vamos lutar. Vamos lutar...

MDICO(Um pouco impaciente) Olha, dona Nair, a senhora s est piorando as coisas pro seu filho. (Estalando os dedos) Enfermeira!

A ENFERMEIRA entrega-lhe a prancheta. O MDICO passa esta para a ME.

Veja s! No precisa ser mdico para entender. Olhe bem essas radiografias, minha senhora. Elas falam por si mesmas. Veja como este p est destrudo. Temos que operar imediatamente. Vamos retirar o gisso e umpotar aqui acima do turnozelo...

A ENFERMEIRA ri.

PRI(Com raiva, falando pro seu painel) Oh, droga...

TATOCorta! Corta! Que que isso t falando? Pri, que merda essa que isso a t falando agora? Umpotar o turnozelo? Foi isso que eu ouvi?

PRIDesculpe, Tato... No culpa minha...

TATOUmpotar o turnozelo? (Apontando para a ENFERMEIRA) E do que que essa outra coisa a t rindo? Algum pode me explicar?

PRI(Meio histrica) Eu sei l.

TATO(Para TRICA) E voc, no sabe? Ser que no pode me dar uma luz sobre o que est acontecendo aqui?

TRICAT me parecendo troca aleatria de vogais.

TATOTroca de que?

PRIDas vogais, ele est trocando uma vogal por outra...

TATONo diga.

PRI, mas s de vez em quando. Deve ser um problema voclico...

TATOEra s o que me faltava. Um protagonista com problemas voclicos. Que invs de falar am fala um...

PRIPois ...

TATOMagnfico. S espero que o aparelho de fax no fique com inveja.

TRICA(Examinando o MDICO) O sinal est bom aqui no terminal...

PRINo problema de sinal, algum defeito na placa interna. A gente precisa mandar ver, t ficando cada dia pior, Tato...

TATO(Apontando para TRICA) Por que ela no conserta?

TRICAO defeito interno, j disse, eu sou tcnica, no uma cirurgi ciberntica.

TATO(Ameaando o imvel MDICO) Sua lata de sardinha velha...

PRINo bate nele...

TATO(O golpe suspenso no ar, dirigindo sua fria agora para a ENFERMEIRA) E qual problema com essa enfermeira?

PRINenhum.

TATOComo nenhum? Ela tava se mijando de rir.

TRICA, eu reparei.

PRIEu no fao a menor idia. Mas com certeza no culpa minha. Certo. Bom, vamos de novo? Voltei duas falas, ok?

TATOVambora, vambora pessoal, j estamos com quase duas horas de atraso.

PRIVinte e sete minutos pra ser exato.

TATOVamos l monstros, gravando. E Pri, me d mais lgrimas na me, t legal? Essa mulher pra estar arrasada. o filhinho querido dela que est prestes a perder o p, e o que parece que ela est com as amdalas inflamadas...

PRITudo bem. (Faz o ajuste, segue falando baixo) S no queria que ficasse exagerado, s isso.

TATOExagerado? Desde quando a gente t preocupado em no ser exagerado? Afinal no isso que eles querem? Quanto mais exagero mais audincia. Nossos dezesseis milhes de espectadores querem mais ...

PRIQuatorze.

TATOQuatorze? No eram dezesseis? Desde quando baixamos pra quatorze?

PRIDesde a semana passada.

TATOPor que eu sou sempre o ltimo a saber? Afinal, quem o diretor aqui? Por que ningum me disse?

PRISe voc se desse ao trabalho de ler o que deixamos escrito na sua mesa...

TRICAO que um aparelho de fax?

TATOUm aparelho de... Voc nunca ouviu falar em fax...?

TRICA a primeira vez.

TATOUma tcnica em ciberntica que nunca ouviu falar em fax!?

PRINo liga pra ele Trica. O Tato, tecnologicamente falando ainda est no sculo vinte...

TATOMas que porra de tcnica voc que no sabe o que um aparelho de fax?

PRIAtualmente ningum sabe o que um fax, eles pararam de ser fabricados h mais de vinte anos.

TATOE da? A era do vapor tambm acabou mas eu sei o que uma locomotiva. Apesar da grama atualmente ter o crescimento geneticamente controlado eu ainda sei o que um cortador de grama...

PRITudo bem, tudo bem! Ser que d pra gente continuar? Agora j so trinta e nove minutos de atraso.

TATOTudo bem, apertem os cintos, e... gravando! (Imediatamente) Corta! Quem disse que no leio as coisas na minha mesa?

PRINo tem um bilhete que eu deixe l que voc no rasgue ou queime.

TATOS queimo o que no tem importncia...

PRIAposto como voc no sabe que Carla est pra chegar...

TATOCarla Dragobravo?

PRIA prpria.

TATOO drago da maldade vem aqui?

PRIDeve estar pra chegar.

TATOPorra, o que que essa mulher vem fazer aqui?

PRIIsso ela no disse.

TATOQue merda! Ela no falou nada?

PRINo.

TATOQue bosta! Ser que por causa da audincia que despencou?

PRIEu sei l. Por que voc no pergunta a ela?

TATOEu no. Nem falo com essa vaca. Mas s pode ser por causa dos quatorze milhes, com certeza...

PRIE se a gente no terminar logo esse captulo, de quatorze milhes vamos cair pra oito...

TATOQue se dane. Bota no ar um captulo velho, nossos espectadores no vo nem perceber. Quatorze milhes de mongolides...

PRINo fala assim, soa to ofensivo...

TATOTV para pessoas com Q.I. abaixo de zero. Feita especialmente para quem no sabe nem ligar a porra da televiso...

PRINo, essa foi demais...

TATOGostou?

TRICAAcho que ele deve ter tomado...

PRICom certeza.

TATOBom pessoal, ao trabalho! Ateno! Gravando!

Luzes voltam a brilhar na cena sendo gravada. Retoma-se a ao.

MDICOOlhe para essas radiografias, minha senhora. Elas falam por si mesmas. Veja como este p est destrudo. Temos que operar imediatamente. Vamos retirar o gesso e amputar aqui acima do tornozelo...

TATOGraas a Deus ele no errou!

ME(Chorando comedidamente) Oh que coisa horrvel, meu Deus, que coisa horrvel...

TATOEssa mulher um chute no saco. Sabe dizer em que captulo ela morre?

PRIEles no tem a menor inteno de tirar ela do ar. o personagem que d mais ibope...

TATOIbope. Essa porra de ibope sempre adora tudo o que eu odeio.

MDICORealmente no sei o que mais possa dizer, Dona Nair...

TATOEnto no diga nada Doutor, por favor poupe-nos com seu silncio...

ME(Sem parar de chorar) Coisa horrvel, doutor, horrvel...

TATOQue puta troo horrvel mesmo. D mais lgrima na Me, por favor...

PRIJ dei...

TATOMais lgrima, mais lgrima porra! Quem o diretor aqui?

PRITa bom, l vai! (Ela manipula o painel com raiva).

A ME d um grito e continua a chorar com mais desespero.

TATOMelhor!

PRIIh, vai chover bilhetinho.

TATOVou adorar queimar um por um.

FILHO(Sobrepondo o falatrio) Por favor, me, olhe para mim, no precisa esconder suas lgrimas, mame...

TATOCoisa ridcula...

MDICO(Inaudvel na sobreposio, para a ME) Ainda bem que hoje em dia, dona Nair, podemos contar com os avanos inimaginveis da cincia na rea de reconstituio de membros...

TATOOlha o que voc fez? Agora no estou ouvindo o Mdico.

MDICO(Continuando impassvel o seu bl-bl-bl) ...atualmente, a mo, o p, um brao inteiro pode ser substitudo sem que o portador, depois de um curto tempo possa perceber a menor diferena entre o membro original e o binico. J tive muitos pacientes que voltaram a jogar tnis, futebol, e at mesmo praticar alpinismo depois de terem passado por uma substituio de coxa, mo, antebrao...

TATOAgora a porra da Enfermeira que t rindo de novo, acho que ela tambm est com algum problema...

PRIJ disse que no sei o que Tato. Vou diminuir um pouco o choro da Me, no quero levar uma advertncia.

Ela ajusta a regulagem. Durante o que se segue entram CARLA e ADO, que ficam apenas assistindo at serem notados. ADO est fascinado. A ME fica um pouco mais controlada, conforme o ajuste de PRI.

MDICOIsso tudo claro, deve-se ao estupendo avano da tecnologia no campo da robtica, Por exemplo, a mo de um andride: no fica nada a dever mo de um ser humano. Tato, pele e textura artificiais, perfeitamente humanas. E no s a mesma sensibilidade como tambm o movimento, a mesma elasticidade. Dedos, msculos, rotao do pulso... Virtualmente impossvel se distinguir hoje em dia a mo de verdade da mo sinttica. Com a vantagem, da artificial ser cinqenta vezes mais forte que a natural. (Ele ri) Tente enxergar o lado bom da coisa, minha senhora. Dentro de poucos dias seu filho estar desfrutando de um p novo em folha, que com certeza vai durar muitos anos alm do resto do corpo dele...

TATOEsse cara ia se dar bem como ministro da sade, sabia?

PRI(Indicando as visitas) Tato...

TATOO que? (Vendo-os) Oh, dona Carla, quanta honra, muito bom dia!

CARLA(Gelada) Bom dia, Tato, por favor no queremos interromper...

TATOO que isso, qualquer interrupo sempre bem vinda. Pri meu anjo, pode baixar o som e monitorar pra mim no headfone?

PRI(Sem entusiasmo algum) J que insiste...

PRI e TRICA colocam os fones de ouvido. A cena do hospital continua em silncio, eventualmente a ME sai.

CARLABom dia, Pri.

PRIBom dia, dona Carla.

CARLAVejo que sua dedicao ao programa continua inabalvel, Tato.

TATOA arte precisa respirar, Carla. A criao precisa de espao, ela no suporta um diretor presente demais. Uma certa distncia at bem saudvel.

CARLATome cuidado pra no sumir na distncia, querido.

TATODisso, no precisa ter medo.

CARLAEste aqui o Ado, de quem falei em meu ltimo report.

TATO(Ignorando-o) Sim, claro, naturalmente. Encantador.

ADOOl como vai o senhor. No sabe a honra que...

TATOUm jovem e ambicioso executivo de finanas que vai acompanhar e aconselhar este grupo de pobres artistas na produo de programas televisivos.

ADOGostaria mesmo que o senhor soubesse...

CARLAComo disse, este Ado Silva.

TATOSilva? Voc disse Silva?

CARLASobrinho do Santos.

TATO(Engolindo) Voc sobrinho do Santos Silva?

ADOSim, senhor.

TATOE o que que ele quer aqui, Carla?

CARLAAt parece que no leu meu momorax, Tato....

ADOEu queria muito vir, seu Tato. Fui eu quem pediu.

TATOPra vir aqui?

ADO.

TATOPra que?

ADOPor sua causa. Eu queria muito conhecer o senhor. O senhor meu grande dolo. Pra mim, um dos maiores diretores.

TATOQue que esse cara ta fazendo aqui? A que horas vai comear a ladainha dos nmeros do ibope?

CARLANmeros?

TATOOs ndices de audincia. No foi por isso que vieram?

ADO(Desnorteado) Como assim?

TATOAh j sei, ele veio tomar o meu lugar, isso! (Levantando-se furiosamente) Pois pode se sentar nessa merda a de cadeira. Nem mais script a gente tem, qualquer um bosta dirige atualmente.

CARLATato!

PRID pra falar mais baixo a?

ADODesculpe.

PRIEles so andrides mas precisam de mnimo de concentrao pra funcionar.

CARLATato, Ado veio aqui porque um grande admirador do seu trabalho, coisa que, alis, no entendo...

TATOAdmirador?

ADOSou sim.

TATO(Indicando o set de gravao) No vai me dizer que assiste Coraes Despedaados?

ADONo, quero dizer, s vezes. Mas gosto mesmo do seu trabalho mais antigo, seus filmes, seu Renato. Tenho todos eles em casa. Estudo-os quadro a quadro. O ritmo, as tomadas, a montagem. O seu incrvel senso de humor...

TATOAh, entendi. Que lindo. Voc deve ser um desses cava defunto? Algum por favor, tire esse adolescente necrfago daqui! Depressa que eu tenho que acabar um captulo. (Afasta-se abruptamente).

CARLASinto muito Ado. Mas lhe preveni do seu charme peculiar do sculo passado.

ADOSer que eu disse algo errado?

TRICAVoc fez ele se lembrar.

ADODe que?

TRICADo passado.

CARLA(Passando os dedos nos cabelos de ADO) Ele to ingnuo...

ADO fica embaraado.

Ele no lindo?

TRICAUma graa.

CARLAMas no seu tipo, querida. Ah sim estava me esquecendo, tenho que ir voando, meu amor. Mas eu volto. Vou te deixar vontade para saborear o gosto azedo de Renato Bgus. No demoro. Jurei a seu tio que ia cuidar direitinho de voc...

ADOTudo bem, no precisa se preocupar em...

CARLA(Beijando-o na boca) At logo amorzinho. Eu volto pra levar voc pra jantar. Au revoir pessoal.

TRICATchau.

CARLAAh, Tato.

TATO vira-se para ela com muita m vontade.

Tato, andei percebendo que a queda de audincia tem sido dramtica. Sei que a novela est num horrio remoto da programao, mas mesmo assim chegar a doze milhes o fundo do poo, meu amor.

TATOL vem...

CARLAH de convir que teremos que fazer alguma coisa. O problema que se chegarmos voc um pouquinho mais pro lado, vai acabar saindo pela janela.

TATOPri, por favor sobe o volume. No estou ouvindo direito. Tem algum aqui do meu lado falando sobre a programao. Uma falta de profissionalismo...

PRI(Aumentando o volume) J estamos chegando nos crditos do final...

Fundo musical.

CARLA(Quase inaudvel) At mais tarde, Tato. (Sai).

MDICO(Genialmente) Preste ateno, meu rapaz, fao este tipo de operao h j nem sei quantos anos. O que mais me orgulho que at hoje no perdi um s paciente. E no vai ser voc que vai sujar a minha ficha, combinado? Ento, vamos ao trabalho? uma aperoo tronqila sem grondes riscas.

A ENFERMEIRA volta a rir. Os outros reagem.

PRIAh, no...! Droga! Droga! Droga!

TATO(Sobrepondo) Ah, eu no acredito. No acredito!

TRICA(Sobrepondo) Ah, essa no, de novo!

ADO(Uma frao de segundo atrasado) O que foi que ele disse?

PRIVamos fazer de novo?

TATONo, edita o som, joga a msica mais alto pra ningum ouvir direito. Foda-se.

PRINo d, o que ele ia dizer importante pro enredo.

TATOQue enredo? Some com a voz dele!

PRIT certo.

ADOO que foi que ele disse?

TATOReparou a enfermeira? Rindo de novo.

PRI, eu vi, eu vi.

TRICAMas ela tava fora de quadro, a cmera estava fechada no mdico.

ADOEle disse aperoo? Foi isso que ele disse?

TATOOlha, faz o favor de mandar esse mdico pra reviso, d um jeito, arranja um horrio, o que eu no posso continuar a gravar a novela com um protagonista nesta condio. Diz que se eles no tiverem um horrio pra fazer o reparo, rpido, eu corto o personagem...

PRIVou ver o que eu fao, Tato, voc sabe que a gente no tem direito nem de tentar um encaixe.

TATOQuero nem saber. Consiga. Mas porra cara... (Deslizando na cadeira at ADO) me desculpe, voc tava querendo me ver?

ADOSim eu queria muito conversar com o senhor...

TATOSinta-se em casa. Vou sair, mas volto. A tem um monte de coisa pra voc se distrair, livros, filmes, voc vai adorar.

ADOSim mas eu gostaria tanto de...

TATOS falar com a Pri. Ela sabe onde est tudo por aqui. (Vai saindo) Trica!

TRICAO que, Tato?

TATOD uma olhada na enfermeira, pode ser?

TRICATudo bem, Tato.

TATO desaparece.

Silncio.

ADOEu queria tanto... Pra onde ele foi?

TRICAMolhar a garganta, voc sabe. Dirigir novela d uma sede...

ADOAh, sei.

TRICANo v atrs dele. Ele s bebe sozinho. (Para PRI) Vou agendar uma outra reviso pro Mdico.

PRI defeito interno, s pode ser.

TRICA, deve ser, os terminais esto todos em ordem.

PRIParece defeito randnico. E t ficando cada vez pior. Antes, ele s trocava o e pelo o, agora t trocando tudo...

TRICAS pode ser no processador de fala.

ADO(Observando os robs) Coisas incrveis.

TRICANunca tinha visto um de perto?

ADONo. No assim, em carne e... Impressionante.

TRICAPe impressionante nisso. (Falando para PRI em relao ao MDICO). Colocou no manual?

PRI(Apertando um boto no painel) Pronto, t no manual.

TRICA(Para o MDICO, sem delicadeza) Vem por aqui, doutor, vem atrs de mim.

TRICA sai. O MDICO vai seguindo-a obedientemente.

ADO(Enquanto os dois saem) Alguma coisa que eu possa ajudar...?

Como ningum d bola ele fica meio sem graa e perdido. PRI continua a arrumar seu painel, ignorando-o.

Bom. (Examinando a enfermeira) O que ser que ela achou to engraado?

PRIH quanto tempo voc est com a Carla?

ADOO que disse?

PRIH quanto tempo voc est com ela?

ADOS h algumas horas. Ela me pegou ontem no aeroporto, e viemos direto pra c hoje de manh.

PRIAh, sei, quer dizer que vocs no esto juntos?

ADONo. (Rindo) No. Claro que no. (Pensando na possibilidade) Pelo amor de Deus, no!

PRIDesculpe mas todo mundo aqui estava achando que... voc era o ...atual garoto... dela. Voc entende. Desculpe. Ela falava como se fosse sua dona...

ADOPois , eu at fico sem jeito. Desde cedo que ela ta agindo assim. No carro, o motorista at fechou a cortina.

PRIO povo fala...

ADOFala o que?

PRIOs drago-boys. medida que a idade dela aumenta, a deles diminui. Desculpe, a maldade, mas so os fatos.

ADO(Rindo) Vou ter que tomar cuidado com ela.

PRIPrincipalmente em dizer no. Ela no gosta de ouvir no como resposta.

TRICA volta.

TRICADeixei ele na triagem. (Para a ENFERMEIRA). Enfermeira, sente-se!

A ENFERMEIRA, obedientemente senta-se.

PRIVoc mesmo sobrinho do Santos Silva?

ADOSou sim.

PRIVoc deve ser um bocado rico.

ADONo. Meu tio que rico. Eu venho do lado pobre da famlia. Quer dizer, pobre se comparado ao do tio Santos.

TRICA(Plugando a ENFERMEIRA no painel) Qualquer um pobre comparado ao seu tio. O que que voc veio fazer aqui?

ADOEu escrevo.

PRIAh...

TRICA(Indiferente) Uhm, hum...

ADOE na verdade sou louco pelo Renato Bgus. Sempre fui. Eu acho ele um grande diretor.

TRICA mesmo?

ADOVoc no acha?

PRIBom ele pode at ter sido bom no passado, mas...

ADOOs filmes dele, pra mim so clssicos.

TRICASer?

ADOVoc j assistiu a um filme dele?

TRICANo.

ADOQualquer pessoa que se interesse por cinema deveria assistir aos filmes dele.

TRICAAh, mas eu fao televiso.

ADOE qual a diferena?

TRICAEle quer saber a diferena. Olha s em volta. esta a diferena. Olha o estdio que eles do pro horrio da manh.

PRIB.Q.I.-TV: TV para baixo coeficiente de inteligncia.

ADOPra mim parece timo. Todo esse equipamento. Os andrides atores...

TRICAEssa aparelhagem j tem mais de cinqenta anos. Voc tem que ter curso de arqueologia pra operar essa droga.

PRIOlha, no sei exatamente porque voc veio aqui, mas saiba de uma coisa: esse no o lugar mais indicado pra se deslanchar uma carreira.

ADOEu vejo por outro ngulo.

TRICAVamos almoar?

PRIVoc vem com a gente?

ADOAcho que vou ficar esperando o seu Renato ele disse que voltava...

PRIIsso no certeza absoluta. Ele costuma desaparecer durante o perodo vespertino.

ADOVou esperar assim mesmo. No quero parecer mal educado.

PRIFique vontade. Pode bisbilhotar. Ah j que voc gosta tanto dos filmes dele, acho que tem todos aqui nesta gaveta. Voc sabe ligar o monitor, no sabe?

ADOAh, sim.

PRIS uma coisa, no chame ele de seu Renato, ele odeia, tem que chamar ele de Tato.

ADO, Tato mais curto.

PRICurto e grosso, igual a ele.

Elas vo sair.

ADOEi, mas e ela...? (Mostrando a ENFERMEIRA).

TRICAEla vai ficar recarregando, se por acaso ela comear a assoviar, s desplugar aqui, ok?

ADO(Desconfiado) Ok.

PRI E TRICA saem.

PRIOnde a gente vai almoar?

TRICAAqui na emissora que no.

ADO, sozinho, olha em volta, ele fica absorvido pela ENFERMEIRA. D umas voltas nela, examinando-a detalhadamente.

ADOPor que foi que voc riu ainda agora?

Ele abre a gaveta dos filmes. Pega uma caixa com pequenos vdeo-discs. Vai lendo os ttulos em cada um deles.

Oh, uau... ah, esse timo... olha esse... nossa, tem todos... (De repente) Puxa ele tem esse aqui! Isso raridade, eu no acredito, no acredito!

Ele fica bem animado e coloca um dos filmes para reproduzir. Entra o som de um piano de acompanhamento de filme mudo. Uma grande tela (invisvel para a platia) o ilumina.

Isso!!! (Procura algum boto na mesa) Avanar, avanar...

Som do vdeo avanando. ADO acha a parte desejada. Assiste com grande interesse. Ri da cena. Ri de novo.

Como isso bom. (Ri).

Atrs dele, de repente, a ENFERMEIRA ri.

(Dando um pulo de susto) Oh meu Deus! Voc est viva? Que que eu fao? Voc t viva! Voc est viva, no est?

ENFERMEIRA, estou operante, sim.

ADOE no faz mal? Ser que eu no devia desplugar voc, ou sei l? Mandaram eu desplugar se voc comeasse a assoviar.

ENFERMEIRAEnto eu prometo no assoviar. (Olhando pra tela) Quem esse?

ADOEsse um dos maiores comediantes que j existiu. Ele se chamava Buster Keaton. Nunca ouviu falar?

ENFERMEIRANo.

ADOEle tinha seu prprio estdio, no comeo dos anos vinte. S fez filmes mudos. Voc sabe, filmes sem fala.

ENFERMEIRASem fala?

ADOBuster Keaton foi um inovador em todos... mas me desculpe, ns estamos conversando?

ENFERMEIRABem, o que parece. Eu estou ouvindo, voc est falando.

ADOBom, sim, mas... quero dizer, voc um... no ?

ENFERMEIRAAndride, sim, sou.

ADOE voc conversa?

ENFERMEIRAAh sim. Andrides conversam sim, afinal, eu no sou nenhum Buster Keaton. (Ela sorri).

ADO tambm sorri.

ADOIsso ridculo.

ENFERMEIRAPor que?

ADOJamais imaginei que iria travar uma conversa assim. Voc sempre fala com os humanos?

ENFERMEIRANo, normalmente no. Normalmente os humanos no conversam. mais rpido passar as instrues pelo computador.

ADOEnto por que est conversando agora? Por que comigo?

ENFERMEIRAPorque voc est falando comigo.

ADOE qual seu nome, voc tem nome?

ENFERMEIRAOh, tenho sim, meu nome atual Brigite Dantas, Enfermeira Brigite Dantas.

ADONo, mas esse o nome do seu personagem, no ?

ENFERMEIRASim. (Com leve sotaque) Tenho vinte e quatro anos, nasci no Maranho mas mudei pro sul com meus pais quando ainda era bem pequena...

ADOMas qual o seu nome real?

ENFERMEIRA(Meio confusa) Meu nome real?

ADOSim, voc deve ter um nome, no tem?

ENFERMEIRAAh sim, meu nome de srie: C.L.A-F. D-1000.

ADOClia. Bonito nome. Posso lhe chamar de Clia, ento?

CLIAPode.

ADOMeu nome Ado.

CLIAJ tinha ouvido.

ADOMe diga uma coisa, Clia, por que voc riu, durante a gravao?

CLIAEu no sei.

ADOAchou alguma coisa engraada?

CLIA. Acho que estou com defeito.

ADONo necessariamente. O fato de voc achar engraado, no quer dizer que esteja com defeito.

CLIADeu vontade, no consegui controlar.

ADOIsso natural. Quando a gente v uma coisa engraada, a gente ri. No d pra evitar.

CLIAAcho que estou com defeito.

ADOVoc no achou Buster Keaton engraado?

CLIASim, mas de um jeito diferente. Aquele olharzinho que ele deu.

ADOA olhada dupla, quer dizer?

CLIAO que?

ADOOlhada dupla. No sabe o que ?

CLIANo.

ADO um recurso comum de comdia a olhada dupla no caso de Keaton, no chega a nem ser dupla, quase um quarto de olhada. Por outro lado, temos deixa eu ver Oscarito. Sim, Oscarito um bom exemplo. Sabe quem ? No? O que o Oscarito fazia nos filmes da Atlntida era genial. Tipo assim, olha. (Ele faz uma pssima demonstrao. CLIA observa intrigada) Ele fazendo era muito engraado. Voc precisa ficar plugada?

CLIASim.

ADOOk, ento fique sentada a. Vou te ensinar. Certo? Bom, vejamos. Imagine que voc est lendo um livro.

CLIAEstou lendo um livro.

ADOVoc ouve eu entrando... voc sabe que sou eu, por isso nem olha pra mim. O que voc no sabe que estou, deixa ver, coberto de lama. Sim, acabei de tropear e cair no meio de uma poa da lama preta e viscosa, bem na porta da nossa casa, e estou pingando lama da cabea aos ps. Quando voc olha casualmente e me v, simplesmente registra que eu entrei, mas est to absorta no livro que rapidamente volta a l-lo. Faa isso...

CLIA o faz.

Agora, s quando voc volta a ler o livro, que registra a minha imagem. Voc se d conta do que acabou de ver e olha pra mim de novo. S que dessa vez com verdadeiro interesse, com espanto.

CLIA o faz.

Tudo bem, vamos fazer desde o incio. Voc lendo o livro. Eu entro. Coberto de lama.

ADO entra caminhando com certa dificuldade. CLIA d uma olhada pra ele, depois volta a ler o livro.

CLIAOl querido, pegou muita chuva?

Ela faz o resto da cena.

ADO(Impressionado) Bom, timo! Sua primeira olhada dupla.

CLIANo ficou mal a fala que eu pus?

ADOAh... no. No era preciso, mas caiu bem. Muito bem. Voc tem tudo pra fazer comdia.

Eles riem um pro outro. ADO faz uma gag qualquer, meio desajeitado.

Opa!

CLIA faz uma careta de estranhamento.

Semana que vem vamos fazer a cena da torta.

CLIATorta? Isso engraado?

ADOQuando se faz certo. s uma torta, normalmente de creme, num prato. E quando algum te enche o saco, ou te fala algo que te ofende, sabe como (fazendo a mmica) voc pega a torta e esfrega na cara da pessoa...

CLIAPro creme entrar bem no nariz...

ADOExatamente.

CLIAE isso engraado?

ADOAssim... falando no. mais uma piada visual.

CLIATorta de creme... (Copiando a mmica) deve ser engraado.

Ela sorri para ele. Ele sorri e acaba rindo tambm. Eles se olham. ADO fica sem jeito e de repente desvia o olhar.

As luzes caem.

Cena DoisO mesmo estdio. Mais tarde no mesmo dia. O mesmo pessoal prossegue a

gravao. O MDICO no meio de sua fala. CLIA, como ENFERMEIRA,

em seu posto. O FILHO, na cama, meio fraco, escuta. TATO est ainda

pior, devido ao lcool, est jogado em sua cadeira, assistindo sem o menor

interesse. PRI e TRICA, ocupadas fazendo todo o trabalho. ADO presta

ateno, fascinado como um menino numa loja de brinquedos.MDICO... eu sei, Paulo Rogrio, sinto muito, mas as notcias no so nada boas...

FILHO o meu p doutor? Ser que no vai dar certo?

MDICONo, meu rapaz, como disse, seu p est em perfeitas condies. Em poucas semanas j vai poder sair atrs da bola melhor do que fazia antes. No, meu filho, o que tenho a lhe dizer algo um pouco pior. sua me, Paulo. Sinto lhe dizer, assim to direto, mas... ela morreu.

TATOLegal!

FILHOMorreu?

PRIO povo no vai gostar nada disso, Tato, ela era o personagem que todo mundo gostava...

MDICOFoi aqui mesmo, no estacionamento do hospital. Uma ombulncia pegou ela na sada da emergncia. Foi tudo muito rpido.

PRIPuta merda! (Para os outros) Desculpem.

MDICOEla nada sentiu. Eu sinto muito.

TATOBota uma msica de fundo aqui, ok? Violinos, etc, anotou? (Ele assovia fora de tom).

TRICADepois dessa a gente cai pra menos de oito milhes.

MDICOBom mas agora vamos dar uma olhada nesses pontos, certo? Enfermeira! Tire a coberta, por favor.

CLIA(Cumprindo a tarefa) Sim, doutor.

TATOFecha no garoto, fecha no garoto, Trica.

TRICAOk, ficou bom.

TATOLgrimas, Pri, mais lgrimas nesse filho da puta...

PRI(Irritada) T bom, t bom.

O FILHO chora copiosamente. CLIA remove o lenol. Olha para o FILHO. Faz uma olhada dupla. O resultado meio exagerado, mais ao estilo Oscarito do que sutileza de Buster Keaton.

TATO(Assim que isso acontece) Corta! Corta! Bom... timo... gostei (Olhando pra CLIA) Mas que porra essa que esta enfermeira t fazendo? Pra, pra tudo! (Derrotado) Pri! No voc que devia estar controlando essas porras? A programadora aqui no voc, caralho? Que merda t acontecendo aqui?

PRIMas no fui eu, juro que no fiz nada!

ADOOlha, acho que a cul...

TATOOnde j se viu uma enfermeira dando uma de Oscarito, uma programadora que no consegue controlar os bonecos...

ADOOlha, acho que a cul...

TATOVoc cale a boca! No toa que estamos despencando na audincia. Aqui s tem gente incompetente.

PRI(Com raiva) Olha no ponha a culpa em mim, no fui eu quem mudou a histria s porque estava cheia da personagem...

TATOIsso se chama...

PRI... corte de personagem que d ibope.

TATO...isso se chama, corte artstico. Sei que de arte, a senhora no manja nada.

PRI...pra mim o nome disso burrice, isso sim, pura estupidez.

TATOVoc que uma tcnica de merda, no sabe porra nenhuma.

PRIE para de falar palavro na frente dos andrides, por favor! Daqui a pouco vou ter que ir tambm pra edio, montar a fala deles...

TATOVirgem, como ela trabalha!

PRIAlgum tem que trabalhar aqui, no Tato? Se no fosse eu e a Trica voc j tinha ido pra rua h muito tempo.

TATODupla de ignorantes. Vocs nem engatinhavam e eu j tava fazendo filmes...

PRIVoc vem trabalhar bbado, grita com a gente, xinga, quer que tudo funcione como mgica, e o pior, nunca ouvi nem um obrigado!

TATOT bom, obrigado ento, por coisa nenhuma. Que tal melhorou?

PRISeu bbado nojento. Olhe, no sou obrigada a trabalhar com voc. Eu tenho boas qualificaes, mereo mais do que isso.

TATOEnto o que est esperando? Pode ir embora e carregue suas qualificaes, dupla de franchonas sem talento.

PRI(Nervosa) Pois vou mesmo. E vou, ao comit denunciar seu preconceito sexual, vou te enfiar um processo. Termine o captulo sozinho, quero ver quem o incompetente. (Sai bufando).

TRICA(Seguindo-a) s vezes voc vai longe demais, Tato, vai mesmo.

TRICA sai.

Silncio.

ADO(Falando baixo) Acho que talvez a culpa disso tudo seja minha.

TATO(Novamente calmo) Eu fazia filmes, sabia?

ADOClaro que sabia, sou um grande admirador do seu...

TATOTinha uma puta equipe antigamente... Cmeras, fotgrafos, marceneiros, eletricistas, contra-regras, assistentes, dzias de assistentes. O que voc imaginar, eu tinha. Quando entrava no set de filmagem, eu era Deus, sabe como ...

ADOD pra imaginar...

TATOE todo mundo ficava em silncio esperando o que eu ia dizer. E eu falava baixo, tranqilo, nunca levantava a voz no set e eles me ouviam, todo mundo queria ouvir o que eu tinha a dizer os atores me respeitavam, queriam aprender. Era s eu dizer, muito bem pessoal, vamos rodar (Faz uma pausa dramtica) a gente marcava a cena, e quando eu dizia, cmera, ao!

Instantaneamente a ao recomea. O FILHO recomea a chorar, o MDICO examina-o enquanto CLIA volta a sua posio original.

MDICODeixe-me dar uma olhada, garoto. Vejamos como est a cicatrizao...

TATO(Furioso) Pra! Espera! Cale a boca!

MDICOMas que coisa linda, est cicatrizando muitssimo bem. Acho que no vamos ter nenhum problema aqui, enfermeira...

TATO avana no painel de PRI na tentativa de interromper a ao.

TATOQue bosta! Como que se para essa porra!

Ele finalmente consegue fazer algo. O dilogo cortado, e inesperadamente o MDICO sai. Ainda mais esquisito quando o FILHO levanta da cama e tambm sai, mancando. Apenas CLIA permanece.

TATO e ADO ficam olhando estupefatos.

ADOO que foi que voc fez?

TATOSei l. Devo ter apertado o boto de incndio. Mas o que que eu estava dizendo?

ADOVoc no set...

TATOPois . Olha pra mim agora. Olha s onde eu vim parar. Atores robticos. Uma equipe de lsbicas. Sabe que elas duas so casadas, uma com a outra?

ADOTudo bem, eu no tenho problema com isso.

TATONo tem problema com isso? , s que a, onde que eu entro? Eu no consigo ficar perto de uma mulher sem que haja alguma... possibilidade, ainda que remota, de acontecer alguma coisa, entende? Com voc no assim? Pra mim se no for assim, no tem graa.

ADONo, eu no sou assim. Mas cada um diferente...

TATO(Confidencialmente) Tentei cantar a Pri, uma vez...

ADOVerdade?

TATOIsso antes de saber que ela era mulher da Trica. Ih, ela me deu uma lio de moral que nem te conto. Sobre dignidade, e o cacete. Que eu tinha que respeitar a dignidade dela... E sabe o que eu disse pra ela? Que ela tinha uns peitinhos lindos. Bom a ela veio pra cima de mim com aquele sermo. Quando eu fazia cinema as meninas da maquiagem chegavam a fazer fila pra dar uma sada comigo.

ADOMeu Deus.

TATOAh, pois , mas os tempos so outros. Certo?

ADOCertssimo.

TATOAcho que deve ser por causa da minha idade. Voc j viu algum filme meu?

ADOTodos.

TATOViu o Playboy Apaixonado?

ADOOh claro, um dos que eu mais...

TATOUma puta comdia, eu acho.

ADOEu tambm.

TATOTem uma das cenas que eu mais gosto, o final, voc lembra, quando ele volta pra ela lembra da cena?

ADOLembro sim, uma cena inteira direto, sem corte...

TATOSem nen-hum corte... voc viu esse filme?

ADOVinte e trs vezes.

TATO, tem que ver o filme inteiro pra realmente apreciar. No se faz mais nada parecido. Um s take, sem corte. (Ele de repente para e olha para CLIA que continua imvel). Voc viu ainda agora. Essa coisa ali. Posso jurar que ela deu uma olhada dupla, do jeito que o Oscarito fazia. Voc sabe quem foi Oscarito?

ADOEu sei.

TATOAtor das antigas, j morreu, claro. No do seu tempo. Ela fez igualzinho a ele...

ADOPois eu acho que foi por minha causa.

TATOO que? Que ele morreu?

ADONo. Fui eu quem falou pra ela da olhada dupla.

TATOQuando voc fez isso?

ADONa hora que vocs saram pro almoo.

TATOOlha, voc tem que entender uma coisa: esses monstros copiam direitinho qualquer coisa que voc faa. Se voc abrir o zper pra coar o saco na frente deles, aposto como na prxima cena o mdico vai fazer igual. Eles no tm discernimento. So bonecos. Eles vem uma coisa, ouvem uma coisa, eles gravam e repetem. So gravadores com pernas, voc entende?

ADO(Apontando para CLIA) Aquela ali diferente.

TATOEla? Que nada. igual aos outros. Eles so todos idnticos. So feitos em srie, aos milhares. Tm tamanho e forma diferentes, mas por dentro, so todos iguais. No so gente, so andrides.

ADOEu juro que Clia tem senso de humor. Ela sabe rir.

TATOTodos eles sabem rir. Eles tm um chip de risada.

ADOMas Clia ri espontaneamente. Quando acha algo engraado, ela ri.

TATOVoc chamou ela de que? Clia?

ADOEla me disse que o nome dela era Clia. Clia alguma coisa de Millle.

TATONo, esse o numero de fbrica dela. O que ela disse foi o seu nmero de srie.

ADONmero?

TATOC.L.A: Coadjuvante Leve Adulto. F de feminino, D-1000 o nmero de srie...

ADO(Desapontado) Ah, entendi.

TATOE ela no tem senso de humor. Como pode uma mquina ter senso de humor?

ADOEssa tem , eu juro. (Chamando-a) Clia!

CLIASim?

ADOAnda, conte uma piada pra ela. Tenho certeza que ela vai rir.

TATOVoc quer que eu conte uma piada pra ela?

ADOIsso.

TATOTudo bem. Deixe eu ver, deixe eu pensar. Qual o segredo de uma boa piada?

Breve pausa.

ADONo sei. Qual o segr...

TATO(Interrompendo-o rapidamente) Tempo.

Silncio. CLIA franze a testa. Ningum acha graa.

Viu. O que foi que eu disse. Ela no riu.

ADOMas essa piada velha, no tem graa.

TATOE voc acha que eu vou gastar uma piada nova e boa com uma mquina? Mas vem c, me diz uma coisa, o que afinal voc t fazendo aqui? Voc est comendo a Carla?

ADONo, na verdade no, eu

TATOOu ela que t comendo voc?

ADONo, eu vim aqui porque quero escrever.

TATOO que? Voc quer escrever novela? Que azar o seu, querido, ningum mais escreve novela, isso coisa do passado. Hoje em dia, basta s um esboo do enredo, e de uns botes pra regular as emoes. Esses bonecos que inventam as falas. Eles j vm programados. s digitar o assunto, e eles desembestam. Um milagre da mais arrojada tecnologia. Eles riem, choram, se emocionam, uma maravilha dos tempos modernos. A nica desvantagem que infelizmente, o processo elimina qualquer sombra de criatividade, mas quem quer saber disso? Arte uma coisa morta, garoto, morreu no sculo passado.

ADOMas eu no quero escrever novela.

TATONo?

ADONo. Eu quero escrever comdias.

TATO(Assustado) Comdia?

ADO. Comdia de verdade. Como as de antigamente. Do tipo que voc fazia.

TATODesculpe mas ser ningum lhe disse?

ADOO que?

TATOComdia uma coisa ainda mais morta que novela. Comdia coisa sria, rapaz. Voc acha que essas coisas so capazes de fazer comdia? Voc t querendo gozar comigo. Voc acha essas coisas engraadas? No tudo bem, engraadas at podem ser, mas s isso, nem mais, nem menos. Mas isso no comdia. s engraado. E comdia bem, voc quer mesmo saber o que comdia?

ADOPra isso que eu vim aqui...

TATODuas coisas: primeiro, comdia surpresa. como mgica. Eles esperam uma coisa voc d outra. Certo?

ADOCerto.

TATOH uma cena clssica do Gordo e o Magro. O Gordo faz um limpador de chamin, que acabou de desabar, e est sentado na lareira, os tijolos caindo na sua cabea. E ele l, sentado, esperando a chuva de tijolos passar. Quando acaba, ele olha pra gente, como se estivesse dizendo: no acredito, logo comigo? Ele olha pra cima, implorando aos cus quando um ltimo tijolo despenca na cara dele. A gente sabe que isso vai acontecer, s no sabe quando, ou como ele vai reagir. Isso comdia.

ADOPerfeito!

TATOEssa olhada dupla que voc ensinou pra ela. um truque bsico. J t mais do que manjado. Todo mundo j fez. Todo mundo j viu. De Carlitos a Ded Santana...

ADOEu sei, s queria...

TATOPrecisa saber criar uma variao. Por exemplo. Imagina que aqui minha sala e eu estou sozinho, trabalhando. De repente voc entra. Digamos sei l alguma coisa aconteceu com voc. Voc est...

ADOCoberto de lama?

TATOPode ser. Ento, voc entra. Pra. Olha s. Vai.

ADO faz como se estivesse entrando. TATO d varias olhadas rpidas. Por fim, levanta-se para sair da sala e quando est bem prestes a sair, d uma ltima olhada para ADO. CLIA ri. TATO olha para ela.

Ela est rindo.

ADOPois .

TATOPor que ela est rindo? (Rspido com CLIA) Est rindo de que?

CLIAFoi engraado.

TATO(Abismado) No possvel. Ela est com defeito. Deve estar com algum problema. Essas coisas so cheias de bugs, esto sempre dando problema. Pelo amor de Deus, como pode isso rir?

ADOVoc ouviu. Ela achou engraado.

TATOMas no pode. Isso uma coisa. Igual a uma maquina de lavar. Um aspirador de p. Uma torradeira. Igual.

ADOEu tava pensando em escrever alguma coisa pra ela. Pra isso. Se voc puder me emprest-la, claro numa hora que no estiver usando, entre uma gravao e outra. Seria possvel? Tenho umas idias. Gostaria de experimentar.

TATO para. Olha pra ele.

No foi assim que voc comeou? Algum deve ter lhe dado uma chance. Por favor.

TATOVoc um filho da puta, sabia?

ADOSe gostar do meu texto, voc podia dirigir o que acha?

TATO(Balanando a cabea, de certa forma contente) No acredito. Quem voc acha que ? Acha que s entrar aqui e...

ADOMeu sobrenome Silva. Fao parte de uma famlia ambiciosa.

TATO(Depois de uma pausa) T bom, mas vai ter que pagar o tempo de aluguel do estdio do prprio bolso, certo?

ADOMuito obrigado.

TATOE nada de abusar do pessoal. Eles j esto at aqui de trabalho.

ADODe jeito nenhum. Combinado ento? (Ele chacoalha a mo de TATO). Puxa muito obrigado, obrigado mesmo, seu Renato.

TATONo me chame de seu Renato. Meu nome Tato, ok? Tato. Sinto que fui engrupido.

ADO sorri.

TATOBom, acho que t na hora de ir atrs delas. Pedir desculpas, de novo.

ADOEssa no foi a primeira vez?

TATODessa semana sim. Mas dessa vez vou inventar uma variante. Vou aparecer coberto de lama.

Ele vai sair.

ADODesculpe, seu...

TATOH?

ADOVoc disse que comdia eram duas coisa. Uma delas a surpresa. E a outra?

TATO(Fechando o punho) dio.

Ele sai.

ADOVoc viu? Viu tudo que aconteceu?

CLIAVi sim.

ADONo acredito. Conseguimos! Vai dar pra fazer!

CLIA.

ADONo est contente?

CLIA(Depois de uma reflexo) Sim, estou contente.

ADOEnto fique contente.

CLIA(Eufrica) !

ADOHum, melhor. Sabe, eu no esperava que ele fosse concordar. Mas no fundo ele continua sendo um rebelde. Tentaram acabar com ele, sabia? Quando o grupo do meu tio assumiu o controle da emissora, ele quase foi mandado embora. Na poca ele ainda fazia bons filmes, mas no era isso o que eles queriam. Ele no aceitava ser medocre. Ele discutia, estourava os oramentos. Alis esse foi seu maior erro. Ele era um estorvo pro departamento financeiro. A, botaram ele de escanteio e ele veio parar aqui. Mas pra mim, ele continua sendo um dos maiores. Acho isso um absurdo. Um crime. Voc no acha?

CLIAAcho vocs to parecidos...

ADOParecidos? Quem me dera. Voc acha mesmo?

CLIAVocs vivem por seus sonhos.

ADOTem razo.

CLIACerta vez, li em algum lugar que sonhos so flashes da realidade que poderamos desfrutar juntos se tivssemos coragem.

ADO(Um tanto surpreso) ?

CLIAQuem sabe juntos podemos encontrar essa coragem.

ADOOra, eu topo.

CLIA um sonho emocionante, Pedro.

(Toca uma msica que parece emanar dela).

ADOPedro? Que Pedro? Meu nome Ado. O que isso?

CLIADesculpe.

ADOEssa msica?

CLIAAh...

(A msica pra to de repente quanto havia comeado).

ADOO que foi isso? De onde veio essa msica?

CLIADe mim.

ADODe voc?

CLIA um de nossos acessrios. Somos equipados com um programa que gera nosso prprio fundo musical. S que o sindicato dos msicos vetou o uso. Mas como o programa no foi desinstalado, s vezes...

ADO...s vezes...

CLIABem, quando produzo alguma emoo mais forte, alegria, tristeza, ou at mesmo raiva alguma coisa acontece dentro de mim, eu no consigo evitar. (Preocupada) Acho que mais um defeito que tenho.

ADOQuer saber de uma coisa? Estou gostando cada vez mais de seus defeitos.

CARLA entra.

CARLAFinalmente estou de volta. Desculpe ter demorado tanto. Como eu odeio essas reunies de corte de oramento. Todo mundo chora e se descabela. No sei porque to difcil pras pessoas aceitarem o fato que no precisamos mais delas. A vem aquele dramalho mexicano... um horror. Ento, vamos?

ADOEu...

CARLAEstou com vontade de fazer algo extravagantemente excitante. Consegui o jatinho do Santos emprestado e reservei uma mesa num restaurantezinho delicioso em Paris. Vamos? Passamos a noite e voltamos logo pela manha. O que acha?

ADODesculpe, mas vou ter que ficar por aqui.

CARLAO que?

ADOAgradeo muito, mas acabei de combinar uma coisa. Estou escrevendo um texto e ele deixou eu usar o estdio. Ento no vai dar pra eu ir agora, no quero perder essa chance. Realmente eu te agradeo.

CARLAEle deixou voc usar o estdio?

ADOSim, de certa forma.

CARLAEle quem?

ADOOra o Tato. Seu Renato.

CARLAO Tato empregado da casa. Ele no manda nada no estdio.

ADOBem, eu no quero criar nenhum problema pra ele, s queria...

CARLAQuem ele pra deixar ou no deixar algum usar o estdio? Que ousadia!

ADOBem...

CARLAE o que que voc est querendo gravar aqui? Uma nova verso de Guerra e Paz?

ADONo, que isso.... S uma coisa que andei escrevendo.

CARLAMon bijou, no assim que as coisas funcionam em televiso. No esse o caminho. Se quiser escrever um programa, primeiro tem que mandar a idia pro departamento de enredo. Se for aprovada, ela passa pro departamento de roteiro. S que no momento o nosso departamento de enredo est sobrecarregado de idias a espera de no mnimo seis meses. Mas digamos que ela chegue ao departamento de roteiro e que eles tenham interesse. Ento eles entram em contato com voc e pedem o que chamamos de uma S.C.P, uma sinopse completa de produto. Vou logo avisando, que esta parte do trabalho no remunerada, e no h a menor garantia que o seu programa seja de fato aprovado. Mas suponhamos que seja, o que difcil, muito difcil, pois a competio tremenda. A voc ser chamado pra conversar com o chefe do departamento de roteiro que vai revisar o texto e se ele gostar, a voc recebe uma pequena ajuda de custo pra preparar a primeira verso do script. Prepare-se para trabalhar muito, pois os textos so reescritos de cinco a seis vezes, no mnimo at que fiquem satisfeitos com uma verso final. Este processo pode levar at dois anos. Ento eles buscam um diretor que se interesse pelo projeto e s ento que o piloto do programa finalmente feito. Mas tenha em mente, querido, que de cem idias, apenas quinze viram piloto, e destes quinze, nem dez vo pro ar. E se o seu chegar a ser transmitido, agora com a nova lei, voc s ser pago um ms depois dele estar sendo veiculado com uma porcentagem mnima de audincia. Bem vindo ao mundo moderno da televiso, meu amor.

ADONesse caso, tenho minhas chances so maiores se eu comear por aqui mesmo.

CARLANo tem chance nenhuma, pois eu no vou deixar que seja assim.

ADOPor que no?

CARLAPorque eu sou a coordenadora superintendente de programao, Ado, e as coisas so feitas do meu jeito. E pra mim no interessa se voc for o papa, vai ter que entrar na fila igual a todo mundo. Ento, vamos?

ADOBem, sendo assim acho que vou ter que passar por cima de voc...

CARLAQuero que saiba que estou muito zangada com este assunto, Ado

ADO...vou ter que procurar meu tio e ver o que ele acha.

CARLAEst mesmo disposto a envolver o Santos nessa histria.

ADOSe for preciso, sim. No vejo meu tio h vinte anos, mas ele sempre gostou muito de mim.

CARLA talvez tenha feito uma idia boa demais a seu respeito. Voc no passa de um moleque cheio de vontades, no ?

ADOVontade o que no me falta.

CARLAMas o que esse seu programa ?

ADOAinda no est totalmente desenvolvido, mas estou escrevendo pra Clia.

CARLAPra quem?

ADOClia. Clia de Mille.

CARLAE quem essa tal de Clia de Mille?

CLIAEu.

CARLA(Abismada) Isso? Est escrevendo um programa pra isso?

ADOEstou.

CARLAMas isso um andride. No pode escrever um especial prum andride. Eles s fazem novelas do horrio vespertino. No pode us-los em nenhum outro tipo de coisa.

ADONs achamos que ela tem bom potencial.

CARLANs quem?

ADOEu e o Tato.

CARLABobagem! O que que isso a j fez?

CLIAEstive em algumas das novelas de maior sucesso que a emissora produziu pro horrio vespertino. Em Essa Festa um Arromba eu fiz Tnia, uma adolescente com problemas de relacionamento...

CARLACale a boca!

CLIA(Sem se importar) ...que acabava tragicamente se atirando da Ponte dos Remdios, tendo nos braos seu beb, fruto de um amor proibido...

CARLAOlha aqui d pra mandar ela calar a boca?

ADOEu no sei como fazer ela calar a boca.

CLIAdepois fui escalada pra fazer Academia da Moada, na qual eu interpretei Mrcia, que comeava como uma pobre menina feia que se transformava numa linda patricinha devido ao seu amor irrestrito por Roberto. Infelizmente esse casamento no dura muito, quando os dois morrem brutalmente num acidente horrvel na descida pro Guaruj.

CARLA(No painel) Mquina estpida. Pra, corta! Como que se desliga isso?

CLIAMeu trabalho seguinte foi na srie policial Investigao Suspeita, como Helena, uma cantora de rock, alcolatra e viciada, e apesar da curta durao da novela recebi timas criticas...

CLIA para de repente quando CARLA consegue deslig-la.

CARLAPronto! (Ela encara ADO) E com isto que voc quer trabalhar?

ADO.

CARLAAchei que tnhamos algo mais srio entre ns, Ado. Estou muito decepcionada com voc. Muito, muito triste. E magoada.

ADOSinto muito.

CARLAAchei que podamos... Voc no imagina o que tive que fazer pra conseguir o jatinho, e o restaurante tinha uma fila de espera de quase dois meses.

ADOBem, voc devia ter me consultado antes.

CARLAEu no consulto, querido, eu fao. E ningum, jamais, diz um no para mim. No me interessa que voc esteja fazendo papel de bobo, mas a mim que voc no vai fazer de palhaa, Est claro? (Ela vai sair, para e fala para CLIA) E voc vai direto pra limpeza, sua andride horrorosa.

Ela sai bufando e cruza com TATO, PRI e TRICA que voltam.

PRINossa o que foi que voc fez?

ADOEu disse no pra ela.

PRIMinha nossa!

TRICAEla no deve ter gostado.

PRI(Triunfante junto com TRICA) No mesmo.

TRICA(Junto com PRI) No mesmo.

TATOEla uma inimiga perigosa, garoto. No provoque o seu lado animal (Para CLIA) Isso tambm vale pra voc, de Mille. Ok pessoal, ao trabalho.

CLIASim senhor!

Eles olham pra ela um segundo. Depois, enquanto voltam a suas funes, as luzes caem.

Cena Trs

O mesmo estdio. Poucos dias depois.

Assistimos agora a um ensaio do texto de ADO.

Esto todos l: TATO, PRI e TRICA em seus postos e ADO, inquieto.

Os personagens sofreram pequenas alteraes, mas devido prioridade da

novela, estas alteraes so feitas apenas com a ajuda de um ou outro

adereo.

O MDICO agora atua como o FAZENDEIRO. A ME como sua

MULHER, e CLIA ela mesma.

O cenrio sofreu alguma pequena alterao. A cama continua l e foram

acrescentadas duas pequenas mesas, uma servindo de fogo e a outra

como mesa de cozinha. H tambm uma ou duas cadeiras.

A cena comea com o FAZENDEIRO trazendo CLIA, inconsciente,

em seus braos.FAZENDEIRO(Chamando) Mezinha... Mezinha... Rpido! Me ajude aqui.

MULHER(Correndo pra socorrer) O que foi isso, Paizinho? O que aconteceu?

FAZENDEIROEu no sei. Encontrei essa moa cada na beira da estrada. Deve ter sido atropelada. Vamos coloc-la na cama.

Com dificuldade eles colocam CLIA na cama.

Pronto! Assim!

MULHEREla no parece nada bem.

FAZENDEIROE no est mesmo. Acho que devamos chamar um mdico.

MULHERO mdico mais prximo fica a quase cem quilmetros. E com essa chuva ele no chegaria nunca.

FAZENDEIROVerdade. As estradas esto alagadas, caiu barreira.

MULHER(Para CLIA) Como voc est, meu bem? Est me escutando? Oh ela est to fria, coitadinha, vou pegar uma coberta, paizinho...

CLIA d uns gemidos, como se tentasse dizer algo.

O que foi que ela disse? (Para CLIA) Est tentando nos dizer alguma coisa, meu anjo?

Mais gemidos.

O que ser que ela est tentando dizer, paizinho?

FAZENDEIROSe calar a boca um instante, pode ser que a gente descubra, mezinha.

Eles se curvam sobre CLIA pra ouvir melhor.

Ento, querida, o que foi?

CLIA(Com dificuldade) Eu ca do caminho...

MULHERO que que ela disse?

FAZENDEIROCaiu de um cominho...

PRIDroga, de novo!

TATOCorta! Corta!

Os andrides ficam imveis, exceto CLIA.

Bom, j melhorou.

CLIAFoi melhor dessa vez?

TATOMuito, muito melhor. Quanto menos, melhor, entende. Ponha isso nessa sua cabecinha de lata, CLIA, entendeu?

CLIASim senhor.

PRIDesculpe Tato, estou tentando balancear a dico dele, mas to imprevisvel...

TATOEu sei Pri, fazer mais do que j faz, milagre.

PRIObrigada. (Para TRICA) Como ele est mansinho hoje.

TRICAPena que dure to pouco.

TATOPri, por favor, mande os andrides pra reprogramar. Deixe s a Clia.

PRI(No painel) Eles vo chegar daqui a pouco, Tato...

TATONo, tudo bem, temos tempo, ainda. Voc Trica, fica de olho.

O FAZENDEIRO e a MULHER saem acompanhados de TRICA.

Est contente Ado?

ADOOh, acho que sou o cara mais feliz do mundo!

TATOOh, que perigo! Um roteirista feliz. Soa at mal.

PRIPosso deixar Clia no automtico se quiser, Tato. Tudo bem?

TATOIsso, mas deixa os outros conectados no sistema.

PRICerto, s no quero confuso pro meu lado, ok?

TATODeixa comigo. (Para CLIA) Agora escute. Voc tem que ir com calma, tem que ter cuidado. Seus instintos so bons, e o mais importante, voc tem uma noo de tempo muito natural. Mas tem que confiar em mim e tentar fazer o que eu digo, entendeu?

CLIASim, senhor.

TATOReparou como eu estou sempre pedindo pra voc fazer menos, e voc ta sempre querendo fazer mais?

CLIASim.

TATOVoc no a primeira atriz com esse problema, pode ser a primeira andride, mas a primeira atriz, no. Tem que aprender a usar seu auto-controle, certo?

CLIACerto, senhor

TATOQuando o pessoal chegar voc tem que mostrar a eles do que capaz. Quanto menos voc se exibe, mais convincente fica. Temos que ganhar eles pelos detalhes. E no perca nunca a verdade da comdia. Porque na hora que a platia para de acreditar, ela levanta e vai embora. T me ouvindo? Um dia, quando for uma estrela, pode me mandar merda, mas por enquanto voc uma criana, com bom potencial (apontando para ADO) igual a ele. O garoto prodgio.

ADOMas eu nem disse nada.

TRICA(Aparecendo na porta) Tem uma van entrando.

PRISo eles chegando, Tato.

TATOS mais uma coisa...

PRITato eles esto subindo...

TATO(Gritando) S um segundo, porra!

TRICAEles ainda tm que descarregar a cadeira...

TATOOk, ento s uma coisa, rpido. Quando voc pega a chaleira de gua quente, sabe onde estou falando?

CLIASim, senhor.

TATONuma comdia, voc pode se queimar de diversas maneiras. Pode fazer de um jeito grande, ou pequeno. Pode escolher entre fazer assim: (Ele pega a chaleira, d um grito ao deix-la cair e sai pulando) Ou pode fazer desse outro jeito: (Repete a demonstrao s que desta vez sai apenas fazendo a mmica do grito). Agora adivinhe o jeito que eu quero que voc faa?

CLIADo jeito pequeno.

TATOOh como voc descobriu? S no pode fazer do jeito mdio. (Desta vez ele repete a cena sentindo dor, verdadeiramente) Ah, isso queima. No, assim s quando fizer Joana Darc. Ningum acha graa na desgraa, a no ser que seja sdico, ou um total demente, mas estes a gente no conta. Isso no quer dizer que as duas primeiras opes no possam ser feitas com verdade, afinal ningum vai morrer com uma queimadinha dessa. Certo?

CLIACerto sim, senhor.

TATOtimo, obrigado mesmo por ter me ouvido. No sabe como me sinto grato. Realmente adorei. Eu j estou to velho e voc tem talento e potencial suficiente pra viver muito alm de mim, mas o que eu mais gosto em voc esse negcio de senhor. (Para os outros) Quem foi que ensinou a ela me chamar de senhor?

PRINingum. Nem sei de onde ela tirou isso.

TATOSabe que uma boa idia? Acho que todo mundo devia passar a me chamar de senhor.

CARLA entrou.

CARLABom dia, senhor.

TATOAh, senhora Dragobravo! Veio como mediadora do julgamento?

CARLAEstou certa que Santos ainda capaz de tomar suas prprias decises. Agora, um minuto da ateno de todos! S rapidamente quero avisar que, como todos sabem, o Sr. Santos Silva sofre de uma leve deficincia, e embora sua audio seja perfeita ele estar se expressando verbalmente atravs de uma terceira pessoa. Peo que respeitem o espao individual do Sr Silva, evitando qualquer tipo de contato fsico e mantenham os andrides a uma distncia mnima de cinco metros, o Sr. Silva alrgico energia polarizada de maquinas humanides. Finalmente, evitem fazer perguntas ao Sr. Silva, devendo ser sempre ele prprio, o levantador das questes.

TATOAgora uma pausa pra cantar o hino.

CARLAA vem ele, por favor, todos de p.

Todos se levantam. TATO por ltimo, com relutncia.

SANTOS SILVA entra na cadeira de rodas. Todo embrulhado. Ele permanece totalmente imvel. Se no fossem seus olhos que de vez em quando piscam, poderamos dizer que estivesse morto.

MARIANO, seuinterprete quem empurra a cadeira. Este usa fone e microfone, com o fio presumivelmente conectado a SANTOS SILVA.

(Consultando sua agenda de pulso) Por favor Sr Santos Silva, este Renato Gabus, o diretor, tenho certeza que ainda se recorda dele...

TATOOi!

CARLANossa programadora Priscila Flores e nossa responsvel tcnica Patrcia Fontes.

TRICAPontes.

PRIMuito prazer, seu Santos.

CARLAAh este seu sobrinho, Ado Silva, que naturalmente o senhor j conhece.

ADOSer que ainda conhece? So mais de vinte anos. Como vai, tio?

TATO(Grunhindo) No pergunte...

CARLAFinalmente, este Mariano que passa a se apresentar.

MARIANOBoa tarde a todos. Meu nome Mariano Cedilha, e funciono como intrprete do Sr Silva. Embora ele oua com perfeio, todo o seu discurso ser redirecionado atravs de meu prprio aparelho fontico. Por este motivo, solicito aos presentes, que a partir de agora, considerem tudo que eu fale como vindo do Sr Santos Silva. Caso haja necessidade deu expressar minha prpria opinio, isto ser feito de forma identificada, a fim de evitar qualquer mal entendido. Portanto, peo-lhes que se comuniquem diretamente com o Sr Silva, e julguem o meu discurso como fruto de sua expresso pessoal. Grato por sua ateno.

TATO(Para PRI) Parece uma secretria eletrnica, lembra?

PRIShh!

CARLAEnto, vamos comear? Estamos com a agenda super lotada, vai ter que ser algo bem rpido.

TATO uma cena de trinta minutos, quer que a gente faa em velocidade warp?

CARLAFaam uma amostra.

TATODe quanto tempo?

CARLACinco minutos?

TATONo d pra fazer uma cena de trinta em cinco minutos.

MARIANO(Rispidamente) Cinco minutos cravados, o tempo de que dispomos. Comecem, por favor.

TATO(Olhando surpreso para MARIANO) O que? (Olhando para SANTOS) Ah, tudo bem. O que que a gente pode fazer em cinco minutos?

ADOQuem sabe eu poderia fazer uma descrio da idia geral.

TATOIsso bom. Deixa eu ver um bom trecho que a gente possa mostrar. (Para CARLA) Oh Carla, por favor, tem que ser s cinco minutos mesmo?

CARLA(Sorridente) Sinto muito, mas logo sero apenas quatro.

TATOVoc mesmo uma serpente de vingana, no ? Poxa, o primeiro script do menino e voc...

ADO(Rpido) Bom, em termos gerais a idia e a seguinte: Uma comdia. At a nada de novo, s que uma metragem mais longa, um especial de duas horas de durao

CARLA(Rindo) Ih, pode esquecer...

ADONo, eu estou imaginado esse como o primeiro especial de uma serie de episdios semanais de trinta minutos com os mesmos personagens principais.

CARLADuas horas? Nem pensar. Quem vai resistir acordado depois de duas horas?

ADOPosso terminar?

CARLASe j difcil segurar a audincia por vinte minutos...

ADOPor favor, permite que eu use meus cinco?

MARIANOCarla, cale a boca e deixe ele falar.

ADOObrigado. Nosso personagem central Clia. Ela uma

MARIANO

Voc disse Clia?

ADOSim.

MARIANOComo se escreve?

ADO(Mais alto do que o normal) C E L I A...

MARIANONo precisa gritar, meu ouvido est bom.

ADOPerdo. Bem, a histria a seguinte...

MARIANOConheci uma Zlia, famosa na poca do teatro de revista, boa comediante.

ADOSim, Zlia Hoffman, trabalhou muito com Col, nunca cheguei a v-la, mas ouvi dizer que foi linda...

MARIANO

Linda e deliciosa. (ADO d um sorrisinho). Se esta da for uma comediante to gostosa quanto a Zlia, pode virar uma mina de ouro.

ADOEspero que sim. S que, Clia uma andride. A pegada, que no programa, ela uma andride fazendo papel de andride. E isso nunca se fez antes

CARLAQue original.

ADOA histria comea com ela saindo da fabrica, novinha em folha, zero quilmetro, sendo transportada pro estdio. final do vero, chuvas torrenciais, granizo... Numa curva o caminho derrapa, o motorista perde o controle. A porta lateral do ba se abre e um andride cai acidentalmente na beira da estrada. Clia. Sua caixa arrebenta, ela sai rolando numa pequena ribanceira. At que logo um agricultor do local, seu Valdir, que tentava inutilmente cobrir o canteiro de hortel das pedras de gelo, percebe aquela moa cada a alguns metros. Valdir a leva pra casa. Ele e sua mulher cuidam dela e acidentalmente ativam seu circuito. Sendo pessoas to simples, claro, no se do contas de que ela um andride. Sobretudo quando desperta, e por no ter na memria, nada alm da programao bsica de fbrica, ela tambm no sabe que um andride. Naturalmente ela os aceita como seus pais. Eles, como no descobrem quem so os verdadeiros pais dela, ficam com ela como se fosse a filha desejada que nunca tiveram. rpida, esperta, inteligente e logo comea a ler tudo que lhe cai nas mos. Ela engraada, simptica e genuinamente popular. Tem uma intuio extra-humana. E claro, sendo um andride, uma fora fsica incomum. Tem vrios amigos, jovens, velhos, injustiados. No meio social em que vive, cercada de corrupo, disputa e tramias sexuais, ela brilha em sua pureza. Em pouco tempo torna-se a esperana daquela gente. Quase como um super-heroi, salva crianas dum hospital em chamas, convence um grupo de traficantes a se entregar, e por a vai. Eventualmente acaba sendo eleita prefeita da cidadezinha.

CARLAEles elegem um andride pra prefeito?

ADOSim, mas a que est, eles no sabem que ela uma andride Mas nesse processo, ela tambm faz inimigos. Especialmente a dona do bingo, uma perua estressada que acha que o marido est saindo com ela. Esta mulher ciumenta e vingativa faz de tudo e acaba descobrindo a verdadeira origem de Clia. Na vspera da eleio revela ao povo que ela no passa de um andride. As pessoas se enfurecem por terem sido ludibriadas e induzidas a votar numa mquina. Pra se vingar eles do uma droga pra ela, seqestram-na, e acabam por danific-la, deixando-a inerte, sem vida, na beira de uma estrada, no meio de um temporal; a espera de algum, que talvez a resgate mais uma vez... Mas isso o segundo ano da srie.

Ele para de falar. Silncio.

Essa a idia bsica.

CARLAE chama isso de comdia?

ADOAcho que pode ficar engraado sim, mas tambm eu sei l...

TATO uma comedia sim. Quer dizer no pra ningum se mijar de dar risada, mas porra. uma fantasia, uma grande alegoria...

CARLANossa, j estou vendo at o teto explodindo com o pico de audincia.

TATODesde quando voc sabe o que um bom roteiro, drago cabeudo?

PRITato!

TATOVoc s veio pra espezinhar, botar pra baixo. s disso que voc entende.

CARLASe eu soubesse que era isso o roteiro, nem precisava ter vindo, meu bem...

MARIANOEsto desperdiando meu tempo. Vamos, quero ver logo o tratamento que esto dando coisa.

TATO(Acalmando-se) Muito bem. (D uma pausa pra se recompor).

PRI(Mostrando discretamente o script para ele) A gente pode mostrar esse pedao que comea aqui, Tato, o que acha?

CARLATm ainda um minuto e meio.

TATO, vamos mostrar isso mesmo, que diferena faz, agora que ela j cagou tudo. (Ele se joga na cadeira).

PRIEsta parte do inicio, quando ela acorda j em sua nova casa. O fazendeiro e sua mulher, estiveram se revezando durante a noite. Est amanhecendo e o fazendeiro dorme.

CLIA foi para a cama. O FAZENDEIRO entrou, colocou uma cadeira ao lado da cama sentou-se e ps-se a dormir.

PRI olha para TATO.

TATOOk pessoal, vamos trabalhar. Ao.

CLIA desperta. Senta-se na cama. Olha a sua volta. Ela est confusa. Observa o quarto, cuidadosamente coloca as pernas pra fora da cama. Observa o FAZENDEIRO que ressona tranqilamente.

(Sussurrando para PRI). Abaixa o ronco, abaixa o ronco.

O ronco do FAZENDEIRO diminui. CLIA aproxima-se dele. Quase toca o seu rosto, ele da um grunhido. Ela tira a mo. Vai at a mesa. Encontra um bilhete e um prato coberto com um pano.

CLIA(Lendo) Papaizinho. Se ela acordar, d isso pra ela comer, beijos da mamezinha. (Ela acha isso estranho) Mamezinha? (Olha para o FAZENDEIRO) Papaizinho? (Ela se ilumina) Papaizinho!

Ela sorri. O FAZENDEIRO continua a dormir. CLIA levanta o pano que cobre o prato, parece ser uma espcie de torta, prova com o dedo e acha gostoso. Ela vai at o fogo, observa, estica o brao e pega a chaleira, fazendo a cena do jeito menor, como TATO lhe ensinou.

TATOBom! Bom!

CARLAGesto pequeno! Muito pequeno. Ela tem que exagerar mais pra ficar engraado.

TATO lana um olhar furioso pra ela. CLIA ainda examinando a mo esbarra na mesa. O FAZENDEIRO acorda assustado com o barulho. Ele olha para CLIA. Ela olha para ele. Silncio.

CLIA(Com cuidado) Papaizinho!

FAZENDEIRO(Surpreso) Papaizinho?

CLIAPapaizinho! (Corre a seu encontro) Oh, papai!

Ela o abraa. Ele corresponde ao abraa um tanto relutante. A MULHER entra e pra ao ver a cena.

MULHERPapaizinho?

FAZENDEIRO(Embaraado) Mamezinha.

CLIA(Virando-se para a MULHER) Mamezinha? Oh mame!

Corre em direo a ela e a abraa. A MULHER fica igualmente perplexa. Por sobre o ombro de CLIA ela busca alguma explicao do FAZENDEIRO, que balana os ombros sem saber o que responder.

TATOCorta!

MARIANOBravo! (Aplaude).

ADOO senhor gostou, tio?

MARIANONo, perdo, isso quem disse fui eu. Desculpe no ter me identificado. Sr. Silva com a palavra acho que tem algum potencial...

TATOMas claro que tem potencial. Seu sobrinho bom, Santos. Ele sabe escrever boa comdia. Est tudo a simples, emocionante, divertido. E tudo com que? duas, trs palavras!

CARLASe me permite uma opinio, achei sentimentalide, bobo e completamente fora da realidade.

TATOComo assim fora da realidade?

ADODessa vez voc pegou pesado...

CARLATalvez, nas mos de outra pessoa, quem sabe possa ter algum charme...

TATONingum aqui t preocupado com charme

CARLAPois deveriam, Tato, pois atualmente ter charme est na moda, querido. isso que nossos telespectadores querem

ADONo pode julgar assim tendo visto s um minuto de cena.

MARIANOEu quero falar...

CARLA(Ignorando-o por completo) Pra comear, meu amor, o tom est muito intimista. Ah, e fique sabendo que O Encaixe Mais Que Perfeito foi aprovado com uma sinopse que no chegava a meia da pgina.

TATOPor isso que essa bosta

MARIANOPor favor me deixem falar

ADO(Incrdulo) O Encaixe Mais Que Perfeito...?

CARLA. O especial de natal do ano passado deu 52%, o que significa um publico de aproximadamente 120 milhes de espectadores. E de pois ficamos na mdia de 39%, durante 48 semanas.

MARIANOSilva Santos pedindo a palavra!

TATOE da, isso no quer dizer nada. Imagina, noite de natal, 120 milhes de infelizes de cara cheia, se entupindo de peru e peidando na frente da televiso.

CARLAIncluindo voc, naturalmente...

MARIANOEu insisto que me deixem falar, ou...

ADOSer que no podemos falar calmamente?

TATO(Furioso) No, me diz: do que que voc entende? Se que entende de alguma coisa! Voc no passa de uma administradora de finanas, incapaz de se emocionar, ou apreciar qualquer tipo de trabalho criativo. No distingue uma obra de arte de um pinto de borracha. Aposto que fica at de pau duro, lendo o livro do caixa.

CARLAIsso, garanto a voc que eu no tenho.

TATOEst brincando... Sabe que conseguiu me enganar esses anos todos?

PRI(Levantando-se com um grito) D pra todo mundo calar a boca?

Silncio.

MARIANOEu quero fal...

PRI(Rspida) Calado! (Percebendo a gafe) Oh, desculpe, seu Santos. (Apontando para MARIANO) Pensei que era ela. No o senhor.

MARIANOQuero ouvir um de cada vez. Comeando por Carla.

CARLAObrigada, Santos. (O mais calma possvel) O que estava tentando dizer que, como Supervisora Regional, poderia aprovar a realizao do projeto, mas no sem antes submet-lo a algumas condies.

TATOE quem aqui falou em...

PRIShhh!

CARLAQuero mais dois ou trs roteiristas experientes trabalhando ao lado de Ado, primeiro pra melhorar essa sinopse.

ADOMas isso ... (Ele mesmo se interrompe).

CARLAE essa idia de um especial de duas horas completamente fora de questo. Caso no tenham sido informados ainda, h mais de trinta anos no se faz especial de duas horas. O tempo total de um programa so dezoito minutos e trinta e cinco segundos, incluindo crditos. E podemos achar uma brecha na programao mais alternativa do fim da madrugada. tudo o que tenho a oferecer.

ADOOh, no precisava tanto...

TATOMaravilha, pegamos o horrio alternativo!

CARLACerto, mas calma, isso se chegarmos a um acordo quanto ao cast. (Aproximando-se de CLIA) Vamos precisar algum nome pra este papel. Trata-se de um produto que precisa ser bem vendido. Sem um nome de peso, enterrar o projeto.

ADONo, isso eu no concordo.

CARLAEnto no temos programa. Sinto muito Ado, mas essas so as regras.

ADOO papel foi escrito pra Clia... foi escrito baseado nela...

CARLAQuerido, preste ateno no que est dizendo. Voc acha que algum vai comprar um programa baseado nessa coisa?

ADOE por que no?

CARLAIsso, um andride. Um andride fabricado em serie, programado para interpretar personagens secundrios em novelas estpidas do horrio vespertino. Voc no pode querer construir um produto em cima disso. Olha bem pra essa coisa. Ela anda mal, mal consegue falar e tem a personalidade efervescente de uma Brastemp.

Comeamos a ouvir uma msica ameaadora, emanando de CLIA.

Pode at ser que exista, em alguma parte do mundo, uma meia dzia de idiotas... (percebendo a msica) que msica essa? em alguma parte do mundo, que estejam dispostos a desperdiar dezoito minutos e trinta e cinco segundos de sua preciosa e intil existncia assistindo um monte de plstico e fios pra l e pra c, esbanjando a sensualidade de uma lata de pat nacional, eu no admito... glrrp!

CLIA pegou a torta que estava sobre a mesa e acaba esmagando-a na cara de CARLA, exatamente como a ensinaram.

TATO(Baixinho) Puta que o pariu...

Pela primeira vez ouvimos um som vindo do prprio SANTOS SILVA. o som de uma risada rouca. MARIANO demora uma frao de segundo para perceber e coloca-se tambm a rir cumprindo sua funo.

TATO, PRI, TRICA e finalmente ADO juntam-se s gargalhadas. CLIA, olha em volta e, contente com a reao deles, comea a rir tambm.

CARLA comea a limpar a meleca dos olhos. TRICA vai at ela, pegando o seu brao.

TRICADeixe eu lhe mostrar onde o banheiro, senhora...

CARLA sacode o brao, rejeitando-a e sai porta a fora. TRICA, sem se importar, vai atrs dela.

A risada geral termina.

MARIANOTenho que lhe agradecer, h anos que no rio tanto.

ADOEla pode ser ainda mais engraada, tio, o senhor precisa ver.

PRIMas e quanto ao programa, seu Santos, perdoe-me a pergunta direta, mas que...

MARIANOConcordo em dar continuidade ao projeto contanto que seja feito nos termos delineados pela senhora Drago Bravo.

ADOMas tio, e a Clia?

SILVA(Falando com dificuldade) Mande-a pra limpeza.

MARIANO(Repetindo-o um tanto inutilmente) Mande-a pra limpeza.

SANTOS SILVA faz um gesto. MARIANO, obedecendo, sai empurrando a cadeira.

ADOMas no pode mandar ela pra limpeza. Ela ela uma pessoa.

MARIANO(Virando-se para falar) Ela instvel, da prxima vez pode acabar matando algum...

Silncio.

ADOCulpa minha. Tudo culpa minha.

TATOFoi voc que ensinou isso pra ela tambm? A torta na cara?

ADOFoi.

TATOMuito bom. Vai nos custar nosso programa, mas muito bom.

PRIMas o Santos Silva disse...

TATOSei o que ele disse mas no ele que decide. Quem decide a megera.

ADOO que vamos fazer? Eu no vou abrir mo da Clia.

TATO(Abrindo uma gaveta) Eu sei o que eu vou fazer e sugiro que faam o mesmo. (Colocando com fora a garrafa de usque na mesa) Podem se servir. Eu vou dar uma volta. Esse estdio t fedendo a altos executivos. (Para CLIA) E voc, minha querida atriz de lata e cabelo sinttico, quantas vezes vou ter que dizer que no pra exagerar!

ADOQuer que eu lhe acompanhe?

TOEu bebo sozinho, ningum lhe disse?

CLIA(Radiante, para si mesma) Ele me chamou de atriz.

ADO. Acho que j era.

PRISe fosse voc no desistia do programa, O Santos concordou com o projeto...

ADO(Mostrando CLIA) Sim, mas sem ela. E sem ela no tem programa. Ponto final.

PRIEu tambm acho que com ela seria timo, fantstico. Mas tem outras, Ado, nada insubstituvel. Pode ser diferente, mas to bom quanto.

ADOEu no vou fazer o programa sem a Clia.

PRIAdo, ela uma andride. Nada alem disso.

ADOEla muito mais que isso.

PRIOlha, quando a Trica voltar, vou pedir a ela pra tirar a roupa dela. Ela pode at abrir ela pra voc ver como ela feita, s um monte de fios, placas e circuitos e bytes. No gente. E at mal pensar nela como uma pessoa, Ado. Isso at tem um nome, chama-se ciber-empatia. Acontece. Quando a gente faz o treinamento pra operar eles a gente tem aula de como lidar com andrides. A gente aprende a no chamar de ele ou ela mas de isso, ou aquilo; nunca conversar com eles, a no ser assuntos estritamente profissionais. Nunca, jamais permitir qualquer tipo de socializao. Desliga-los assim que acabar o trabalho. Ou ento, corre-se o risco de se envolver emocionalmente e a voc se estrepa, e o que pior, acaba estrepando com a memria emotiva deles...

ADOMas se voc tivesse ouvido ela conversar comigo. As coisas que ela disse...

PRIAs coisas que ela diz, Ado as palavras que ela usa a conversa, digamos assim, que ela leva um amlgama de todas as conversas, de todos os personagens que ela fez nas novelas que participou. disso que se constri a personalidade dela, nada mais. Cada vez que voc fala com ela, voc provoca uma rplica. E o que ela faz, pegar alguma coisa que est arquivada no banco de memria e usar como resposta. S isso.

ADOE no isso que mais ou menos todo mundo faz?

PRISe eu acreditasse realmente no que est falando, no ia nunca querer ser sua amiga.

TRICA de volta.

Como ela est?

TRICAGaranto que no uma viso agradvel. E ele?

PRIO de sempre.

TRICAHoras de intervalo, ento?

PRIPode ser. (Para ADO) Quer vir com a gente? (Pausa).

ADONo, vou tomar um drinque aqui mesmo.

PRICuidado pra no ficar igual a ele. Isso d mais problemas do que resolve, vai por mim.

CARLA entra, de olhos vermelhos e cara limpa sem nenhuma maquiagem, cabelo molhado, toda desfeita, um horror.

Oh, a senhora...

CARLAVou mandar fechar este estdio. Melhor que saibam logo, pra comear a procurarem outro emprego, queridinhas, eu vou fechar este estdio.

Ela sai.

TRICASim, e feliz ano novo.

PRIBom, os programas infantis esto sempre me chamando, eles sempre precisam de gente. Mas lembra do que eu disse, Ado, falo srio. No converse com... isto.

TRICAAt mais.

Elas saem.

ADO(Meio pra si mesmo) Tchau. (Depois de um instante, olha pra garrafa de usque. Vai at ela. Abre a gaveta de TATO, pega um copo. Na hora que vai se servir...) Voc quer tambm? Ou...

CLIAClaro. Um homem nunca deve beber sozinho.

ADOTudo bem. (Pega outro copo) que eu pensei... voc no deve precisar beber.

CLIAPor que no?

ADOVoc bebe?

CLIAE como tambm.

ADOVoc come?

CLIA Sim, nas novelas que fao a gente tem que comer e beber muito.

ADO.

CLIA. A gente come e bebe o tempo todo.

ADO verdade. Sade.

CLIASade.

ADOA enfermeira come sempre? Quero dizer, quando voc est fazendo a enfermeira, voc tem que comer sempre?

CLIANo. Brigite no de comer muito, Mas ela bebe, na verdade alcolatra, s que ningum desconfia.

ADOVerdade?

CLIASim, por isso que de vez em quando ela d aquelas risadas. Eu pensei de fazer ela meio bbada na hora do trabalho.

ADO(Rindo) E quem teve essa idia? Dela ser alcolatra?

CLIAEu mesma. Acho que ia ficar muito chato, se no inventasse alguma coisa. Ela s parada, balanando a cabea: sim doutor, no doutor...

ADOSei.

Pausa.

Como voc olha essa uma pergunta muito pessoal, no precisa responder se no quiser mas o que acontece com a comida que voc come e a bebida que bebe, quero dizer, depois, entende?

CLIAAlgum vem e me esvazia.

ADOClaro. Pergunta estpida a minha.

Pausa.

Quando ele disse pra mandar voc pra limpeza, o que exatamente ele quis dizer?

CLIAIr pra limpeza? quando nos mandam de volta pra fabrica, apagam nossa memria e restauram a configurao original bsica. Se fizessem isso comigo, ficaria como a Clia da sua histria. Eu comearia de novo.

ADO(Dando um gole no usque) Ei, isso forte. (Tosse) Quer mais?

CLIAManda ver, maninho.

ADO(Rindo) Manda ver, maninho... Em que novela disse isso? Voc lembra?

CLIACaptulo dezenove, cena quatro, dcima segunda fala de Becos Selvagens. Eu fazia uma detetive secreta que morria levando um tiro. A cena foi tima. (Instantaneamente fazendo a cena, sentindo dor) Por favor, Giba, no me deixe ir, me ajude! Jamais fui capaz de dizer o quanto voc importante pra mim... me perdoe...! Foi uma boa cena.

ADONo quero que voc v pra limpeza. Acho isso um crime.

CLIANo, no crime nenhum. comum fazer isso com as mquinas.

ADOToda a sua memria apagada. Tudo o que voc . Isso no entristece voc?

CLIANo tenho nada que valha a pena lembrar. A no ser talvez, esses ltimos dias.

ADOIsso to triste. At me d vontade de chorar. Voc no se importaria que a Clia essa pessoa que voc agora simplesmente deixasse de existir?

CLIAEu no teria a menor lembrana dela. Como poderia me importar?

Ela vai at ele e faz um carinho em sua cabea.

(Baixinho) Pode chorar se tiver vontade.

Ele olha pra ela. H um momento entre os dois. Ento ele se afasta.

ADONo adianta nada ficar aqui me corroendo em auto-piedade. Por que a gente no sei l... Vamos fazer alguma coisa? Sair pra jantar? No, acho que pra voc isso no tem graa, ser? O que gostaria de fazer?

CLIADanar.

ADODanar?

CLIAQueria ir danar. Nunca posso danar.

ADOTudo bem ento, se isso que quer. Msica. Como a gente faz pra ouvir uma msica?

CLIANaquela gaveta. Esto os discos dele.

ADO abre uma gaveta.

ADONossa, que coleo! Uau, voc ia adorar esse aqui. Eu no sou bom de dana, vou logo avisando. Voc dana bem?

CLIASim, eu tenho um programa.

ADOFoi o que imaginei. Uhm, (pegando um disquete) O que ser isso? Zu-Zu-Top, como ser? Vejamos.

Ele pe o disquete pra tocar no painel. Msica.

Ento? O que acha?

CLIALegal. Engraado.

Ela comea a danar. Suavemente de incio. ADO a acompanha.

ADOPuxa, voc dana bem.

CLIAEu dano!

Logo no incio parece que ela vai danar ao redor dele, mas ele mantm o jogo se divertindo. Aos poucos ela vai tomando total controle da ao at deix-lo esttico, sem flego, apenas admirando-a. Por fim...

Desculpe. Voc est bem?

ADO(Ainda sem flego) Meu Deus, voc linda. Voc muito linda!

Ela sorri, oferecendo-lhe a mo. Ela o suspende, pondo-o de p sem fazer o menor esforo. Isso nos d a noo de sua fora incomum. Eles se abraam. ADO beija delicadamente. Ela retribui. Uma outra msica comea, desta vez emanando dela. uma msica bem romntica, um tema de amor.

ADO voc agora?

CLIASim, desculpe. Quer que eu pare?

ADONo, tudo bem. Combina com a cena.

Danam juntos. Calmamente.

CLIANo quero ir pra limpeza, Ado. No quero nunca mais esquecer isso.

ADONingum vai limpar voc, eu prometo.

CLIAPromete?

ADOPrometo.

CLIAOh Ado...

ADOClia...

CLIAAdo...

A msica continua enquanto as luzes caem.

Blackout.

Segundo Ato

Cena Um

O mesmo estdio de TV. Mas como a partir de agora as cenas mudam rapidamente, o que vemos dele bem menos; sua rea deve ser reduzida para agilizar as mudanas de cena, que devem ser imediatas.

Sobem as luzes e l esto TATO, PRI e TRICA.

TATOSaram? Como assim, saram?

PRI

Os dois. Evaporaram.

TATOE pra onde eles foram?

PRI

No sei.

TATOO que ser que deu na cabea dele? Ele no pode sair por a com um andride. Eles so propriedade do estdio. Se alguma acontecer com aquilo, a gente vai passar o resto da vida trabalhando pra pagar o prejuzo. Essas coisas custam uma fortuna.

TRICAUm milho e setecentos.

TATOObrigado. J pensou se porra tudo isso? J pensou o que vai acontecer quando a Carla descobrir? Pois bvio que ela vai descobrir.

PRIA gente tem que encontrar eles antes.

TATONuma cidade de vinte e cinco milhes de habitantes no vai ser fcil.

PRIPodemos ativar o rastreador.

TATORastreador?

TRICA. Eles tm um rastreador de segurana. s uma questo de tempo, pra gente captar o sinal da Clia.

PRICada andride deixa um sinal especfico no sistema.

TATOMas se algum detectar o sinal antes da gente?

PRIS se tiver a senha de decodificao.

TATOEnto vai ativa esse rastreador. Rpido (Vai sair. Lembra de repente) Estamos sem enfermeira! Como que a gente vai gravar daqui a pouco sem a enfermeira?

TRICA(Apontando para PRI) Por que ela no faz?

PRIQuem?

TRICAVoc?

PRIEu? Nem pensar!

TRICASim , eu opero o programa e o Tato pode fazer as cmeras.

TATOBoa idia. Eu pego por trs. S precisa prender o cabelo...

PRIEu no vou fazer enfermeira nenhuma.

TRICA(Com malicia) Ora, acha que j no percebi voc s vezes de olho nela?

PRI(Envergonhada) Que besteira.

TATOMelhor se fantasiar de enfermeira do que de presa. Anda, vai pegar uma roupa, e (para TRICA) voc, me encontre esse monstro.

TRICA e PRI saem.

(Vai saindo depois delas e falando) Porra Ado, o que voc foi me arranjar...?

Ele sai e as luzes cortam para:

Cena Dois

Recepo de hotel de luxo.

Som distante de piano e copos. O RECEPCIONISTA atrs do balco.

ADO e CLIA entram meio sem jeito. a primeira vez que CLIA deixa

o estdio, ela parece estar no pas das maravilhas.

Eles chegam at o balco da recepo.

RECEPCIONISTABoa noite senhor, senhora. Sejam bem-vindos, em que posso ajud-los?

ADOA sim, sim. Minha minha secretaria ligou ainda h pouco. Fez reserva para duas pessoas...

RECEPCIONISTAPerfeitamente. Qual o nome, senhor?

ADOHmm Sr e Sra Penafiel.

RECEPCIONISTAPenafiel. S um instante, senhor. (Ele tecla algo no seu computador).

ADO(Baixo, s para CLIA) Da onde voc foi tirar esse nome? Penafiel? ridculo.

CLIASei l, foi o primeiro que me veio na cabea. Era o nome do capito de um barco, numa novela que eu fiz, eu era a mulher dele

RECEPCIONISTAMuito bem senhor, desculpe a demora. Aqui est, um quarto de casal para o mnimo de trs noites, correto?

ADOIsso.

RECEPCIONISTAPois no, senhor. O senhor tem bagagem?

ADO(Tendo apenas sua pasta) H no. que tivemos bom, um pequeno

RECEPCIONISTA(Desconfiado) Entendi. Ento no tm bagagem?

CLIA(Automaticamente, sobre algum remoto capitulo) O senhor no imagina pelo que passamos. Minha irm foi presa no Paraguai, por trfico de herona, oh meu Deus, confundiram ela com outra pessoa! Ento eu e meu marido tivemos que ir s pressas at l pra resolver o problema, s que quando ns chegamos, ela j tinha sido solta pela policia, mas os traficantes estavam agora com ela, porque achavam que ela era agente dupla. Gastamos todo nosso dinheiro e quando descobrimos o cativeiro, num bairro miservel de Assuno, ela tinha acabado de ser executada, pobrezinha, seu corpo cravejado de balas. A, quem chega? a polcia. E nos prendem como suspeitos de termos matado ela. Passamos quatro dias na priso, at acreditarem na nossa histria. Ento nos soltaram e tivemos que voltar com a roupa do corpo. O senhor no imagina o horror que foi tudo isso.

ADO est olhando para ela, estupefato.

RECEPCIONISTAMinha nossa! Que coisa horrvel, senhora Penafiel, eu sinto muito, realmente.

CLIAComo se no bastasse, o meu marido

ADO(Agilmente) Sim querida, mas no precisamos ficar contanto nossas desgraas de uma vez, no ? Ser que j podemos ir pro quarto?

RECEPCIONISTASim naturalmente, senhor. no quadragsimo oitavo andar, senhor. Um apartamento bem tranqilo.

ADOObrigado.

RECEPCIONISTAO senhor vai usar seu chip de pagamento?

ADOVou pagar em dinheiro?

RECEPCIONISTADinheiro?

ADOEu sempre pago em dinheiro.

CLIASim, desde que ns

ADOSim desde que bem isso uma outra historia que no convm entrar em detalhe agora, querida.

RECEPCIONISTAE a senhora Penafiel no gostaria talvez de trocar o uniforme de enfermeira?

ADOAh, sim claro. Foi o que arranjaram pra ela vestir depois que suas roupas foram literalmente despedaadas quando a revistaram. Desgraados! Vocs tm alguma loja de roupa por aqui?

RECEPCIONISTATemos uma tima butique, aqui mesmo no trreo, basta seguir este corredor. Ficam abertos at s oito. Tenho certeza que a senhora Penafiel encontrar tudo de que precisa.

ADOEnto, querida, vamos s compras?

CLIA(Sorrindo contentssima) Claro, querido.

ADOS me diz uma coisa? Voc tem sempre uma histria pra qualquer situao?

Eles saem, CLIA de mos dadas com ele parece perfeitamente vontade em seu novo personagem.

Luzes cortam para:

Cena Trs

O Estdio.

TATO entra. CARLA, furiosa, o segue. PRI entra em seguida.

CARLAEsta dizendo que ele fugiu com material do estdio?

TATOMas no precisa entrar em pnico, nos vamos encontr-los.

CARLAEu espero que sim. O nome disso roubo. Se ele no fosse sobrinho do Santos, eu j teria chamado a polcia.

PRINo, isso no vai ser preciso.

CARLA(Vai sair) Pode estar certo que no meu relatrio, voc quem vai constar como o responsvel por isso, Tato...

PRIMas senhora

CARLA(Irada, para PRI) E voc tambm! (Sai).

TATOE a, onde eles esto, Pri? Algum sinal deles?

PRINada ainda, devem estar em algum local fechado. Temos que esperar que saiam pra uma rea mais aberta. A Trica foi l pro terrao pra ver se consegue um sinal mais ntido.

TATOSer que adianta?

PRIComo vou saber?

TATOObrigado Tico, me chame se o Teco cair do telhado, certo? (Ele vai sair).

PRIMas qual o problema com voc? Eu pensei que voc estava adorando! Afinal no voc o rebelde por aqui?

TATONo tenha dvida, o que eu no quero perder o emprego, e ainda por cima ir pra cadeia por no ter dinheiro pra pagar o prejuzo. Vou molhar o bico, e no me siga.

Ele sai. PRI suspira e sai atrs dele.

Luzes cortam para:

Cena Quatro

A butique do hotel.

ADO espera por CLIA. Ele continua com sua pasta. Da mesma forma,

esperando pela NAMORADA est o NAMORADO. Ele parece rico e de

saco cheio. A NAMORADA sai do provador e parece o par ideal para ele.

Ela usa um vestido mnimo.NAMORADAO que voc acha?

NAMORADOEst perfeito. Maravilhoso. Acho que