Alan Richardson - Apologética Cristã

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  • CRIST

  • Apologtica Crist Alan Richardson

    Digitalizado por: jolosa

  • Todos os direitos reservados. Copyright 1983 da JUERP para a lngua portuguesa.

    Traduo autorizada do original em ingls Chnstian Apologetics Copyright (c ) by Alan Richardson.

    239Ric-Ap Richardson, Alan

    Apologtica crist. 3a edio. Traduo feita pelo Rev. Waldemar W. Wey. Rio de Janeiro, Junta de Educao Religiosa e Publicaes, 1983.

    200p

    Titulo original em ingls: Christian Apologetics

    1. Apologtica Crist. I. Ttulo.

    CDD - 239

    :>

    3.000/1983

    Capa de V. N. Karklis Nmero de Cdigo para Pedidos: 28.101 Junta de Educao Religiosa e Publicaes da Conveno Batista Brasileira Caixa Postal 320

    20000, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    Impresso em grficas prprias

  • SUMRIO

    Pre fcio .......................................................................................................................... 7

    I. A APOLOCTICA CRIST EA FILOSOFIA DE NOSSOS DIAS .............................. 17

    1. A Natureza e a Necessidade da Apologtica ................................................ 17 2. O Ponto de Conexo na Razo e na Conscincia .................................... 22 3. Sero Possveis a tica e a Filosofia Cientficas? .......................................... 26 4. A Natureza e a Necessidade da Filosofia ..................................................... 29

    II. A TEOLOGIA COMO CINCIA EXPERIMENTAL ............................................... 33

    1. As Cincias e Suas Categorias ...................................................................... 33 2. A Apreciao Metafsica das Categorias Cientficas .................................... 35 3. A Matria da Cincia Teolgica .................................................................. 40 4. A Independncia das Categorias Teolgicas ............................................... 44 5. O Mtodo e o Esprito da Teologia .............................................................. 46

    6111. O CRISTIANISMO EA IDEOLOGIA .................................................................... 53

    1. Que Devemos Entender por Ideologia? ..................................................... 53 2. Ter a F Crist Origem Ideolgica? ...............................................................56 3. A Validez do Conceito de Ideologia ...............................................................58 4. O Cristianismo e Sua Expresso Social ...........................................................63 5. A F e o Culto Cristo Esto Alm da Ideo log ia..............................................67

    IV. A TEOLOGIA E A H IST R IA ................................................................................... 73

    1. O Cristianismo como um Credo Histrico .................................................... 73 2. O Carter do Pensamento Histrico ............................................................. 75% 3. A F e os Valores na Histria ......................................................................... 81 4. O Cristo da F ou o Cepticismo Histrico .................................................... 85

    V. A REVELAO GERAL ........................................................................................ 89

    1. O Ponto-de-vista Tradicional: o Conhecimento de Deus, o Natural e oRevelado ........................... / ' . ............................................... 5?

    2. A Im propriedade da A lternativa L ib e r a l ....................................................... 1 3, Os Conceitos de Revelao Geral e Revelao Especial ............................ 94 4.\ A Universalidade do Conhecimento de Deus ............................................. 97 5. A Necessidade da Revelao Geral e de Algo Mais........................................101

  • 1. A Revelao Especial Atravs da Histria Bblica ......................................107 2. A Particularidade da Revelao Especial Resposta a Objees ............... 111 3. Os Acontecimentos Histricos e Sua Interpretao como Revelao Bbli

    ca ............................... 116 4. A Histria Bblica como a Fonte da Doutrina C ris t ......................................121

    ,V II. O ARGUMENTO DO*MILAGRE ........................................................................... 125

    *l. GVPaqpl Tradicional do Milagre na Apologtica C ris t .................................. 125 2. A lfi{Mcincia da Alternativa Moderna ..................................................... 1305 3. A Revelo em SI Essencialmente Miraculosa .........................................133 4. Confirmao Histrica Dentro duma Comunidade Histrica ...................... 135,3. Os Milagres e-a Interpretao da Evidncia Histrica ................................. 139

    V III. O ARGUMENTO DA PR O FEC IA ............................................................................ 143

    1 . 0 Colapso do Literalismo na Interpretao da Prof rl: 143 2. A Interpretao Alegrica e a Analogia da F . 145 3. O Cumprimento Tipolgico das Escrituras ...... 151 4. O Cumprimento da Histria 155 5. Nova Exposio do Argumento da Profecia >.......................159

    IX. A INSPIRAO E A AUTORIDADE DA BBLIA ................................................... 163

    1. A Revoluo do Sculo Dezenove nos Estudos Bblicos .................... 163 2. A Inspirao da Biblia Luz dos Conhecimentos Modernos ........................166 3. O Testemunho Interior do Espirito S a n to ..................................................... 170 4. A Autoridade Divina da Bblia .................................................................... 176

    X. F E RAZO ........................................................................................................ 183

    1 . 0 Clssico Conceito Cristo da Relao da Revelao para com a Razo . .. 183 2. A Possibilidade da Filosofia Crist ................................... 186 3. A F como Condio de Racionalidade .......................................................191 4. Balano Final: Toms de Aquino e Agostinho............................................... 1%

    V I. A REVELAO ESPECIAL ...................................................................................................................... 107

  • PREFCIO

    Este Prefcio no se destina ao leitor que reclama uma introduo inicial ao estudo da apologtica crist. Aconselha-se ao mesmo que passe por cima dele e comece a ler o primeiro capitulo, pois que nele busquei dar uma introduo adequada ao assunto, como um todo, e tambm propiciar a apresentao do mesmo neste livro. Aps haver lido os outros captulos, espero que esteja preparado para voltar atrs e ler com maior compreenso e proveito as observaes feitas aqui. O escopo deste Prefcio indicar o ponto-de-vista e o argumento desta obra, colocando-a dentro do vasto contexto do pensamento hodierno no que respeita ao problema da natureza de nossos conhecimentos, mais particularmente de nossos conhecimentos cientficos. A Apologtica Crist trata do problema da natureza e solidez de nosso conhecimento de Deus, e, assim, nos compele a examinar os mtodos e concluses da pesquisa teolgica luz daquilo que em geral conhecemos do mundo que nos cerca e daquilo que conhecemos de ns mesmos em relao a esse mundo.

    Nesta poca hodierna, o exame da apologtica crist inevitavelmente deve levantar a questo da metodologia da cincia teolgica com relao metodologia das cincias em geral. Como vivemos numa poca que aprendeu a fazer passar todo e qualquer conhecimento pelo crivo do mtodo cientfico, certo que a mente hodierna s receber bem os apologistas cristos cujos conhecimentos teolgicos conseguirem vencer essa prova, justificando-se, assim, plenamente perante o tribunal da pesquisa racional e cientfica. Existem indubitavelmente problemas filosficos maiores, no que respeita natureza de nossos conhecimentos, seja do mundo exterior, seja do que temos dentro de ns, e mesmo de nossos semelhantes ou de Deus; e destas coisas trataria um ensaio sobre a filosofia da religio. Mas neste livro no somos convidados a tratar diretamente desses assuntos, conquanto no confuso estado atual do pensamento epistemolgico o apologista cristo no se veja fortemente obrigado a procurar resolver problemas para os quais no vemos resposta alguma na atitude filosfica geralmente adotada pelos hodiernos metafsicos. Nos captulos seguintes trataremos no da filosofia da religio, e, sim, da Apologtica Crist; e o problema capital com que o apologista cristo de nossos dias se atraca se de fato deseja entrar em contato vital com a mentalidade de sua poca pertence mais esfera da metodologia cientfica do que propriamente ao mundo da metafsica e da epistemolo- gia, conquanto, certo, reconhecemos todos ser impossvel discutir de qualquer modo o mtodo cientfico sem implicarmos conseqentes para com a filosofia. Assim nos vemos compelidos a admitir a relao que existe entre as cincias (incluindo a cincia teolgica) e a filosofia.

    Portanto, o estudo da Apologtica Crist nos pe diante do problema da metodologia da cincia teolgica e suas relaes com a metodologia das cincias em geral, pois que isso nos leva a considerar o problema da validez dos conhecimentos teolgicos. Abalanamo-nos, assim, a um

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  • _ exame crtico do mtodo da cincia teolgica luz daquilo que chamamos de mtodo cientfico. Raramente os estudiosos da apologtica crist tm se abalanado a realizar essa tarefa, desde que no sculo dezenove se adotaram as bases modernas e cientificas do mtodo teolgico. H vrias razes que motivaram sse esquecimento do estudo da Apologtica Crist no sculo em que ora vivemos. Uma delas est em que os que lidam num campo particular e especifico da cincia habitualmente deixam de lado o problema mais geral da metodologia cientfica, tomando como provados os mtodos da cincia especial de que se ocupam, uma vez que toda a sua ateno fica absorvida pela pesquisa particular que empreendem; como cientistas, deseiam avanar na tarefa a que se propuseram, e, assim, no se mostram seriamente interessados nas questes de metodologia e de filosofia que formam os bastidores da especialidade a que se dedicam. Muitos telogos acostumam-se a aprofundar seus estudos sem uma pausa para considerar se o mtodo que esto seguindo tem ou no relaes com o mtodo cientfico em geral. De fato, semelhana de muitos estudiosos doutras cincias, freqentemente negligenciam a existncia e a importncia desse problema. Eis por que amide ouvimos lamentaes e queixas pelo fato de serem mui raras as definies ou explicaes do que vem a ser a teologia; ouvimos, sim, dizer inmeras vezes do qu&eTa trata, de qual o seu objeto de estudo. A cincia teolgica, semelhana de todas as mais cincias, como uma tentativa da razo na nsia de compreender uma parte do total de nossa experincia humana, deriva sua caracterstica distintiva do emprego que faz do mtodo cientfico no seu caso, mtodo esse particularmente apropriado investigao teolgica. No sculo XX os telogos tomaram como provado esse mtodo pelo menos assim se ensina presentemente a Teologia nas faculdades teolgicas das universidades da Inglaterra e mui raramente vemos algum submet-lo a uma investigao crtica, ou mesmo contrast-lo com a metodologia doutras disciplinas cientficas. Desde o aparecimento e a aceitao geral dos mtodos da crtica literria e histrica no sculo passado, admitiu-se a existncia disso a que chamamos de mtodo teolgico cientfico, e todos os estudiosos de teologia de nossos dias sabem o que isso. No obstante, fora das faculdades e escolas de teologia, os que militam noutros campos cientficos mal sabem da existncia desse mtodo da cincia teolgica.

    Por isso o estudante da Apologtica Crist v-se compelido a levantar a questo da natureza e das conseqncias do mtodo da cincia teolgica; e isso precisamente porque pretende estabelecer a validez do conhecimento teolgico. Muitas cabeas pensantes negam hoje a possibilidade de um conhecimento teolgico genuno e verdadeiro e o que vem a dar no mesmo no admitem a teologia como cincia. Assim como no sculo dezoito um pensador do peso de um Hume, criticando a idia ento aceita

    i da relao entre causa e efeit, levantou dvidas sobre a possibilidade de se ter um conhecimento cientfico das prprias cincias naturais, tambm neste nosso sculo muitos pensadores, com sua crtica da idia hoje aceita sobre a revelao, ajudaram a solapar a crena na possibilidade de conhecermos a Deus, ou na possibilidade duma teologia cientfica. Assim como, em sua Crtica da Razo Pura, Kant se props responder pergunta

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  • que se formulara sobre a possibilidade da cincia natural, assim urge qu Q apologista cristo de nossos dias examine com senso crticofa^rfi^nte humana e suas manobras com o fito de estabelecer no s a possibilicJad; mas mesmo a necessidade, da cincia teolgica. A maioria dos: cientistas do sculo dezoito, e mesmo de pocas mais recentes, deixaram de lado s dvjdas e interrogaes de Hume e de seus sucessores; simplesmnte fizeram avanar o estudo das cincias naturais, e, na verdade, viram-se recompensados com resultados espetaculares. Esses que assim se dedicaram a essa tarefa de pesquisas e descobertas cientficas chamariam de loucos todos quantos duvidassem da possibilidade do conhecimento cientfico, mormente quando de ano para ano mais sobe a pilha das provas prticas e positivas de sua validez. Semelhantemente, os telogos tm hoje muitas provas de teor pragmtico dentro de sua experincia prpria, bem como dentro da Igreja, e isso os leva a julgar desnecessrio indagar da possibilidade dum conhecimento teolgico cientfico, dado que diariamente esto em contato com tal conhecimento. No obstante, o estudante da Apologtica Crist, encarando firme a tarefa de organizar uma apologia convincente para este presente sculo, sente-se obrigado a tentar mostrar que existe um mtodo teolgico, e que este consiste igualmente na aplicao do mtodo cientfico ao mundo das coisas da teologia, e que, como corolrio disto, admitimos a possibilidade dum conhecimento teolgico suficientemente slido. A apologtica compreende, assim, uma crtica de razo teolgica.

    Enquanto os telogos continuarem a dar pouca ateno compreenso da natureza do mtodo que esto seguindo no campo da teologia, no desejo de convencer outros de sua validez; enquanto se contentarem com deixar sem resposta os problemas fundamentais que a mentalidade de hoje apresenta quanto natureza das verdades teolgicas, jamais conseguiro estabelecer um contato positivo com a mente duma gerao que chegou a admitir que a nica espcie de conhecimento a que com razo se pode dar esse ttulo o conhecimento cientfico. A mentalidade modrna cr que se deve definir o conhecimento como algo que possa ser demonstrado (como na matemtica) ou indutivamente mostrado como racionalmente certo mediante a aplicao do mtodo cientfico (como nas cincias empricas). Alguns pensadores cristos viram a necessidade de se atacar este assunto e de sustentar a existncia de outras espcies de conhecimento alm do conhecimento cientfico, tais como o conhecimento religioso e o artstico. Isto se deu principalmente porque comumente se toma o conhecimento cientfico como esse conhecimento conseguido pelas cincias naturais, e porque se admitiu o mtodo cientfico como o mtodo par excellence das cincias naturais. Tal mtodo visava a uma objetividade, a uma imper- sonalidade e a uma expulso completa de todos os valores e de todas as estimativas de valor. O ponto-de-vista pessoal, ou a f, do observador ficaria completamente excludo nessa qprao. Admitiu-se largamente que at mesmo as cincias humanas ' at mesmo a histria seriam qualificadas como cincias, aplicando-sp-lhes o mtodo cientfico, como o entendiam, em todas as cincias naturais.

  • Houve, porm, no sculo XX, uma mudana bem grande e importante no modo de ver dos prprios cieptistas, resultante principalmente do aparecimento e o d admisso, por quase todos, das cincias humanas (Geisteswissenschaften) em contraste com as cincias naturais. No campo das cincias humanas houve um notvel desvio, fugindo-se da principal afirmativa do positivismo ou melhor da afirmativa de que os mtodos da cincia natural so os picos mtodos cientficos de real valor e que tais mtodos tm aplicao universal. Isto se deu mediante a rejeio geral das categorias das cincias fsicas como as categorias de cincia par excel- lence, e pelo fato de se ter insistido cada vez mais em que as cincias humanas tm o direito e tambm o dever de formular suas prprias categorias pelos mtodos apropriados sua pesquisa especial. Na verdade, os telogos sempre vinham reclamando esse direito e insistindo em usar categorias como as da revelao, desatendendo s alegaes dos f ilsofos naturalistas. Outros, porm, inclusive alguns historiadores, por muito tempo admitiram que os mtodos da cincia natural deviam ser identificados com o mtodo cientfico, como o entendiam, e que, por isso mesmo, at mesmo a histria devia ser modelada pelo padro das cincias fsicas. Assim, inclinaram-se a aceitar a categoria de causa e efeito e esperar fatos que pudessem ser classificados ou generalizados de acordo com os mtodos familiares das cincias naturais mais abstratas. Hoje em dia dificilmente algum adotar essa espcie de positivismo histrico como uma explicao satisfatria da natureza e do propsito da histria, e os estudiosos de todas as cincias humanas rejeitam cmple- tamente as concluses do naturalismo cientifico.

    Um modo de observar a diferena existente entre o modo de ver hodierno e o daquele velho perodo naturalista consiste em afirmar que o conhecimento que se procura nas cincias humanas j no hoje um conhecimento impessoal, "objetivo", do qual se tenham cuidadosamente excludo todas as apreciaes de valor. Reconhece-se que nas cincias mais concretas ou humanas, inclusive a histria e a teologia, no se pode expulsar, riem se expulsa, em nome da cincia, o ponto-de-vista do observador, nem o seu julgamento pessoal. No pode haver aqui conhecimento impessoal, "objetivo", da verdade histrica e teolgica, porque aquilo que conhecemos da existncia humana difere do conhecimento que temos do mundo externo que as cincias naturais investigam. Nas cincias concretas, nossa existncia pessoal, todo o nosso ser, est estreitamente ligado a elas, e, num sentido mui importante, est includo no objeto de nosso estudo. De fato, tambm verdade que mesmo nas cincias naturais no existe nenhum conhecimento que seja absolutamente independente de algum ato de f, ou de afirmativas que no podem ser cientificamente provadas. Mas o carter existencial das cincias mais concretas, ou humanas, reala poderosamente a importncia do ato pessoal de julgamento, ou de f, contido no estudo de qualquer uma delas. Nestas vemos estarem fora de lugar os mtodos impessoais da cincia natural; pois, de fato, existe no estudo das cincias humanas uma subjetividade que lhes indispensvel; e, sem ela no se descobre a verdade nessas cincias, conquanto isto no significa que elas no

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  • possuam seus padres e requisitos prprios e igualmente vlidos, ou que sejam cincias meramente impressionistas e "subjetivistas". Urge aprendermos que h boa diferena entre subjetividade e subjetivismo.

    Assim, pois, o estudo da metodologia cientfica hoje nos rvela a impropriedade dos propsitos das cincias naturais pelo menos precisamente no mesmo sentido nos estudos humanos. Chamamos estes ltimos estudos de "existenciais", e, assim fazendo, adiantamos no serem possveis nem desejveis, nas cincias mais concretas, a "imparcialidade" e a "insulao", atitudes, alis, valiosas nas cincias naturais. Agora, o fato de admitirmos o carter existencial das cincias humanas (incluindo a histria e a teologia) no nos obriga a aceitar essa filosofia, conhecida pelo nome de existencialismo, ou a filosofia da subjetividade. Por terem os filsofos existenciais ajudado nossa gerao a admitir aquilo a que chamamos o carter existencial das cincias humanas, estendemos- lhes nossa respeitosa gratido. Mas no se segue da que, com este achado da verdade acerca da natureza do conhecimento humano, venhamos a encontrar a to sonhada resposta para as verdades finais dos mais profundos problemas da filosofia. Veremos, mais tarde, que o ponto-de- vista defendido nesta obra no se concilia com a filosofia existencialista que, sendo uma filosofia finalista, no podemos deixar de tom-la como uma das muitas formas atuais desse irracionalismo que este nosso desorientado sculo popularizou. Bastante significativo o fato de ter sido o melanclico Kierkegaard o profeta e precursor do existencialismo, e igualmente o fato de ter essa filosofia florescido na Alemanha depois de 1918 e na Frana depois de 1940. Acresce ainda que, como toda e qualquer filosofia que no se baseia na revelao bblica, o existencialismo se concilia tanto com a interpretao crist como com a no crist. Assim, Jaspers e Mareei seguiram a sugesto de Kierkegaard, pondo-o a servio da religio, enquanto Heidegger e Sartre acharam o existencialismo muito compatvel com o atesmo e o niilismo. Tais vislumbres da verdade, que tornam plausvel o existencialismo como filosofia, so de fato muito mais velhos que Kierkegaard. Na verdade, sempre estiveram presentes, por exemplo, no lado subjetivista da teoria agostiniana do conhecimento (conquanto fosse isso somente um lado do assunto), e tambm no lmpido conhecimento prprio de Pascal. Tais vislumbres, ou noes, esquecidos durante o longo reinado do racionalismo e da filosofia naturalista, igualmente antipticos para Toms de Aquino como para Voltaire, para Descartes como para Herbert Spencer, e proclamados to-somnte por uns profetas solitrios como Pascal e Kierkegaard, hoje vem sua verdade geralmente reconhecida; porque, de fato, hoje em dia parece stor decaindo o longo domnio do racionalismo e do naturalismo, e a gerao presente talvez esteja preparada para aceitar na esfera da epistepiologia crist certas verdades provindas da objetividade subjetivista de Agostinho. E, dentre essas verdades, pelo menos at onde chega o conhecimento.dos telogos, avulta o ponto-de-vista de Agostinho sobre a revela^ gejJJ e: a revelao especial. - r! v *

    O estudo do carter existencial de nosso conhecimento Qf,^gjpo das cincias humanas nos ajuda a ver que hoje em dia no h necessjdade

  • alguma de se afirmar a existncia de outras espcies de conhecimento alm do conhecimento cientfico. H poucos anos, o falecido cnego B.H. Streeter e outros mais estudiosos da Apologtica Crist pensavam ser seu dever aceitar a existncia de duas espcies de conhecimento o que nos vem das cincias empricas, e o que provm da poesia, da arte e da religio. Quando Streeter se dedicou obra de "reconciliar a cincia com a religio" visto que a influncia de Dilthey na Alemanha era quase desconhecida aqui prevalecia ainda em nosso pas (Inglaterra), a idia de que se devia identificar os mtodos das cincias naturais com o mtodo cientfico, e de que todo estudo que se propusesse nos trazer qualquer conhecimento devia submeter-se s pressuposies, escopos e mtodos da cincia natural. Ento, o estudo da vida orgnica, da mente e da sociedade, como da histria, da religio e da tica, devia seguir aquelas linhas que imerecidamente haviam alcanado to glorioso prestgio nas cincias fsicas; e a filosofia por si mesma nada mais era que a aplicao universal dos mtodos da cincia natural. A ndole da poca era declaradamente naturalista ou positivista, e mesmo aqueles que no aceitavam o naturalismo ou o positivismo como uma filosofia viam-se forados a concordar com ele. Para ser considerada como cincia, a biologia precisou mecanizar-se, os estudos sociais tornaram-se naturalistas, e a histria se fez positivista. A maioria dos telogos deixou de tomar a teologia como cincia, uma vez que os conceitos naturalistas da cincia pareciam em geral negar-lhes o ttulo de cientistas. Se a cincia era naturalista, os historiadores poderiam aceitar essa posio e submeter-se a isso; mas os telogos enfrentaram a situao por ignorar a cincia e suas exigncias, e estruturaram um mtodo cientfico prprio, sem ligar para o que acontecia no dito mundo cientfico. Os poucos telogos que aceitaram o desafio acharam que o critrio individual lhes devia dar coragem, e modestamente afirmaram existirem outras espcies de conhecimento alm do conhecimento cientfico. Esse tipo de apologia, no entanto, no se revelou muito eficaz numa poca positivista, j que, negando-se ao conhecimento religioso ou artstico o carter de cientfico, bastava isso para conden-lo como conhecimento.

    Hoje a situao est completamente mudada, ou vai se modificando rapidamente, conquanto os velhos conceitos naturalistas ainda dominem muitos que no foram atingidos pelas recentes discusses. Os estudiosos das cincias humanas reclamam agora para as categorias e mtodos fsicos uma libertao dessa dita prepotncia, e esto dando maior ateno ao aspecto pessoal ou existencial de suas cincias. J os historiadores no receiam mais os critrios de valor. Os filsofos e novelistas existenciais chamaram a ateno para o fato de subjetividade. Muitos humanistas cientficos por si prprios esto acorooando a.idia de que a cincia tem muito que ver com a tica e que pode indicar a natureza do progresso tico. Os socilogos do conhecimento demonstraram j os fatores pessoais e subjetivos contidos em todos os nossos conhecimentos pelo fato de condicionamento social, e os vislumbres do marxismo de modo geral tm ajudado a lanar por terra o racionalismo da velha moda. E nisso foram secundados pelos "novos" psiclogos. Nos captulos seguintes teremos

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  • ocasio de criticar as concluses dos existencialistas, dos humanistas cientficos, dos marxistas e dos freudianos. Urge, porm, desde j aclarar que, embora rejeitemos tais sistemas como respostas completas e finjs para os problemas filosficos, reconhecemos e alegremente proclamamos o valor de seus postulados. Os cristos desta nossa gerao tm muito que aprender de todos esses pensadores, e o primeiro trabalho da apologtica crist no refutar os marxistas e os mais restantes, e, sim, compreender aquilo que eles tm a ensinar, bem como aceitar e construir sobre a verdade que descobriram. Uma das verdades que urge aprendermos dos marxistas e dos freudianos diz respeito importncia ds fatores pessoais e subjetivos em os nossos conhecimentos, e no s nas esferas da economia e da sociedade. At agora parece que os apologistas cristos ainda no comearam a apreciar devidamente o significado de Marx e Freud como aliados na luta contra o racionalismo e o positivismo as duas grandes inverdades, que tanto infeccionaram e infelicitaram o pensamento moderno e que cerraram de maneira poderosa as portas de inmeras menta- lidades, inibindo-lhes a compreenso da verdade crist. H muitas coisas do pensamento moderno que o estudante da apologtica crist deve conhecer e com que deve entrar em contato, coisas que lhe daro o ponto de partida para comear a discusso com pessoas no crists. H um problema comum para os telogos e para os estudiosos de todas as outras cincias humanas. E' este: Como se torna possvel o conheci- mehto na histria e nos estudos humanos, i. ., fora da esfera em que se pode aplicar de modo eficaz o mtodo s cincias naturais? Falhou Dilthey e falhou Collingwood em conseguir para a cincia histrica aquilo que tanto desejaram, que foi construir uma critica da razo histrica, fazer para a histria (ou, mais largamente, para as cincias humanas) aquilo que Kant tentou realizar para as cincias fsicas mostrar como se torna possvel o conhecimento nos estudos histricos (e humanos).

    Assim, pois, um dos problemas mais absorventes e mais desconcertantes que desafia o pensamento moderno este de explicar como se torna possvel qualquer conhecimento fora da esfera das cincias naturais. Claramente esta questo to vital para o telogo como para os estudiosos de quaisquer outras cincias humanas. O telogo de nossos dias, com muitos humanistas cristos e no cristos, mostra-se profundamente apreensivo quanto ao destino duma civilizao como a nossa, em que o ceticismo, o relativismo tico e o niilismo avanam na esteira duma poca de racionalismo e positivismo. O cristo participa ainda, com todo e qualquer humanista, desse mesmo desejo de mostrar que em nosso conhecimento do homem, da histria e da sociedade existe uma subjetividade na qual os valores so questo de deveres, em que o julgamento pessoal no coisa meramente impressionista e fantstica, e na qual existe uma diferena real entre o razovel e o absurd. O problema , pois, o de reconhecer a objetividade do valor pela subjetividade do conhecimento. No propsito deste livro apresentar uma soluo para esse problema, nem construir uma epistemologia ou filosofia crist. O mais que podemos fazer mostrar por que se pensa que o telogo tem uma contribuio especial nessa discusso moderna do problema do conhe-

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  • cimento, dado que tal problema no novidade na histria do pensamento cristo, embora tome uma forma nova e urgente. Hoje nossa situao no to sem precedentes como se inclinam a pensar aqueles que pouco conhecem histria do pensamento. No passado houve momentos em que a f crist foi como que confrontada pelo naturalismo, o ceticismo e o relativismo, e nos quais ela se viu habilitada a criar as condies necessrias ao entendimento. Poderemos apontar certas bases que nos permitem crer que a f crist pode hoje novamente levar a cabo seu antigo ofcio de restaurar a racionalidade que o homem havia perdido, oferecendo-lhe algo bem melhor que o racionalismo.

    Alguns leitores destas pginas, para os quais "cincia" ainda significa "cincia natural" (ou, mais simplesmente, "a qumica"), certo ficaro chocados ao ouvirem falar na teologia como uma cincia emprica. O fato de haver ainda muita gente desacostumada a pensar na teologia como cincia indica, de um lado, quo pouco se entendeu o significado da revoluo do sculo dezenove no mtodo teolgico, e, doutro, quo forte ainda hoje na opinio geral o domnio do ponto-de-vista naturalista ou positivista sobre a natureza essencial da cincia, justamente agora quando as cincias humanas atingiram a maioridade. Mas um exame cuidadoso do assunto revelar que o estudo da apologtica crist hoje deve necessariamente tratar do problema do mtodo da teologia em relao com o mtodo cientfico em geral. O que permanente acerca da cincia, como afirmou o Dr. A. D. Ritchie, o seu mtodo, e no suas teorias ou concluses. As teorias e concluses cientficas no tm permanncia, e o apologista cristo que achar que lhe cabe o dever de "reconciliar" as ltimas teorias cientficas com a verdade crist estar comeando a argumentar pelo avesso. O ponto de partida certo da apologtica crist a metodologia cientfica. Temos hoje cincias (inclusive a teologia) que propiciam conhecimento emprico e que, contudo, no empregam, e no podem empregar os mtodos das cincias naturais abstratas. O apologista cristo deve mostrar que o mtodo cientfico teolgico, como aplicado aos fatos do viver cristo hodierno aos fatos da existncia da Igreja e de sua Bblia faculta um corpo de conhecimento que reclama e legaliza, no nvel cientfico, certas categorias estritamente teolgicas, como o caso da revelao. Deve-se mostrar que no se pode compreender a existncia teolgica em termos de quaisquer categorias no teolgicas, e devemos reconhecer que o mtodo teolgico, como mtodo cientfico,

    ' inclui o emprego dessas categorias.Talvez possamos antecipar aqui trs possveis objees afirmativa

    anterior. Primeira alguns podem estranhar o estarmos falando da teologia como uma das cincias humanas. Respondemos, brevemente, que, embora se tome a teologia como uma "cincia divina", por causa de seu objetivo ou de sua matria, no que respeita ao seu mtodo ( que

    ' o que importa em se falando dela como cincia), ela verdadeiramentehumana, e, como tal, est sujeita a todas as limitaes e imperfeies de nossos fragmentados conhecimentos humanos,

    t Segunda pode-se objetar ainda que a alegao de ser a teologia uma cincia, pois faculta conhecimento cientfico, desfaz a necessidade da f e

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  • tenta nos oferecer gnosis no lugar dela. Esta objeo decididamente interpreta mal isso a que chamamos de a natureza existencial do conhecimento que se alcana pelas cincias histricas e humanas. Nesses estudos, so de mxima importncia o julgamento pessoal, a estimativa de valores, o discernimento e o risco da f. E nisto diferem elas das outras cincias mais abstratas. Em todas elas est presente um sentido mui importante, no qual a f precede razo, e certo uma condio de racionalidade. Isto coisa especialmente verdadeira nas esferas da teologia e da filosofia.

    Terceira pode-se objetar ainda que o que havemos dito significa que, para a promoo do verdadeiro entendimento teolgico, foram de pouco valor aqueles sculos de paciente e devotado estudo da teologia que precederam revoluo que sofreu o mtodo teolgico no sculo passado. Esta concluso mais que absurda. No se pode tirar esta concluso de nada do que dissemos atrs. Embora a teologia como cincia emprica (no dedutiva) tenha propriamente nascido no sculo passado (XIX), no se conclui que todas as obras de teologia escritas anteriormente sejam "anticientficas" e de reduzido valor. E aqui se v claramente uma das mais importantes diferenas entre as cincias naturais abstratas e as mais concretas, ou cincias humanas existenciais. A cincia teolgica emprica de hoje j no tem a mesma relao com a tradicional teologia que precedeu o surgimento da crtica, que tem, por exemplo, a qumica com a alquimia. Nas cincias abstratas, as teorias de ontem interessam apenas historicamente; j, nas cincias concretas, e tambm, por certo, de modo supremo na filosofia, a histria da cincia, como na histria da filosofia, parte essencial dela, e sem ela no a compreenderamos. Ningum poder entender do que trata a teologia sem primeiro conhecer algo da histria do pensamento cristo. No campo da teologia no se aceita que aquilo que mais novo seja, ipso facto, mais verdadeiro ou mais profundo. Percebe-se, ento, que neste ponto se torna mais notvel o contraste entre as cincias naturais e as cincias humanas. Um acadmico de cincias naturais de Oxbridge hoje no l Newton, e um professor de qumica de Redbrick teria muito que ensinar a Roger Bacon. Mas, j nas cincias humanas, a coisa bem diferente, visto que tais cincias so algo mais do que o amontoar de "fatos" sobre fatos. Duvidamos que Freud pudesse apresentar a Agostinho algo alm de uma lista maior de palavras de gria por aqueles processos que Agostinho conhecia perfeitamente. Em todos os estudos concretos os nossos pensadores de hoje tm muito o que aprender dos antigos.

    E acontece que o escritor, seguindo uma tradio muito respeitvel e encantadora, ao chegar ao fim do seu Prefcio, para se confessar agradecido a outros escritores, sente que de fato fica a dever mais aos antigos pensadores e doutores da Igreja do que propriamente aos dos ltimos tempos. Dos grandes do passado, uma figura avulta, cujo pensamento tem uma relevncia toda especial e peculiar nessa questo da natureza da verdade crist, notadamente para os nossos dias, que, em muitos respeitos, assemelham-se aos dias em que ele viveu; e o dbito e gratido do escritor para com ele aparecero muitas vezes nas pginas

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  • seguintes. E dos muitos pensadores modernos, aos quais igualmente o escritor se confessa agradecido, seria injustia, creio, escolher alguns, e tambm seria penoso para o leitor conhecer a enorme lista de todos esses nomes. Surgir de pronto, espera-se, a extenso do dbito do escritor, visto que os nomes de tais autores aparecem reconhecidamente citados no texto e nas notas ao p da pgina. O exame dum tema como o nosso necessariamente nos obrigou a penetrar nas obras de outros escritores, e, como j o disse Coleridge, at mesmo o ano enxerga longe quando encontra um gigante que lhe permite instalar-se sobre seus ombros.

    The College, Alan RichardsonDurham .

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  • CAPTULO I*

    A APOLOGTICA CRIST E A FILOSOFIA DE NOSSOS DIAS

    1. A NATUREZA E A NECESSIDADE DA APOLOGTICA

    Etimologicamente, apologia quer dizer defesa; significa, primariamente, uma resposta de defesa contra alguma acusao ou denncia. Muitas vezes se tem anotado que a primeira pregao da f crist iniciou-se com palavras de apologia. 1 Necessariamente, est sempre presente em toda pregao crist um elemento de defesa, e difcil se torna mesmo afirmar com preciso em que ponto a defesa passa para o contra-ataque. v\ palavra apologia, no seu significado cristo, envolve a defesa da verdade crist. Ela vai ao encontro duma acusao, explcita ou no, apresentando os fatos do caso e anotando as concluses racionais que deles se tiram, como fez o apstolo Paulo ao se defender diante do rei Agripa. 2 Apologias particulares ou especiais so as escritas com o fito de repelir uma certa e determinada acusao, ou plano de ataque, feita ao cristianismo, e, neste vasto setor de literatura crist, temos as Apologias de Justino Mrtir e de Aristides, a Contra Celsm de Origines; a Summa contra Gentiles, de Toms de Aquino; e A Analogia da Religio, do Bispo Butler. A apologtica, distinguindo-se da apologia^ o estudo dos modos e meios usados na defesa da verdade cristaTTJcT tarefa da apologtica, como disciplina teolgica, tratar deste ou daquele ataque particular desfechado contra o cristianismo, nem mesmo o de levar mais um volume biblioteca das apologias crists. A apologtica trata das relaes da f crist com a esfera mais vasta do conhecimento secular do homem filosofia, a cincia, a histria, a sociologia e as outras mais visando demonstrar que a f no discrepa da verdade descoberta por essas pesquisas. Tarefa como esta deve, necessariamente, ser empreendida em cada poca. mesmo um empreendimento de considervel urgncia num perodo em que os conhecimentos cientficos e as transformaes sociais se processam to rapidamente. Assim, a apologtica, como disciplina teolgica, torna-se uma espcie de inventrio intelectual feito pelos pensadores cristos, podendo-se descrev-los como tentando aferir seus predicados luz do pensamento filosfico contemporneo e do cpohe- cimento cientfico. Portanto, vemos que a apologtica tambm prirna- riamente um estudo empreendido por cristos para cristos. E/ neste sentido, devemos distinguir sua tarefa da tarefa da apologia, vjsto que esta se dirige a pessoas no crists. A apologtica constitui, assim, um estado necessrio para o trabalho do apologista, ou, mais simplesmente, parte essencial do preparo de pregadores, evangelistas e professores crists.1 Atos dos Apstolos 2:14 e ss.

  • Pode muito bem ser verdade que existem inquiridores sinceros que de bom grado se confessariam cristos, uma vez aclaradas suas dvidas, e que se beneficiariam imenso entreouvindo pensadores cristos a discutir assuntos apologticos; e, neste sentido, a apologtica pode muito bem realizar um servio de natureza secundria, ajudando tais inquiridores. 1 Se, porventura, algum desses inquiridores estiver lendo esta obra, dever perceber logo que ela no foi escrita visando em primeiro lugar a sua pessoa.

    Geralmente se distingue a apologtica religiosa da apologtica crist.2 Essa distino nos ajudar a firmar de modo preciso os limites de nosso trabalho. A apologtica religiosa geraUrata de matrias tais como a defesa do conceito religioso ou testa do muncfo; trata de defender os argumentos da 'existncia de Deus, do problema do mal, do contra-ataque aos conceitos atestas e agnsticos, e doutros mais. Tem parentesco, assim, com aquilo a que se chamava geralmente de "teologia natural" e com o que hoje conhecido por filosofia da religio. A apologtica religiosa geral trata forosamente desses assuntos sem a ajuda da revelao especial. A apologtica crist, no sentido mais restrito que essa expresso contm, quando*empregada de modo exato, trata das conexes e consqncias da'reveo crist para uma compreenso racional do mundo e de nossa existncia nele. Buscajpqstrarq i^ ajrylailo, como_a_entendem os cristos, no incampatveT^m Trexerccio darazo7 e constitui, sim, valioso'uxlio e guia para a razo humana no seu anseio de compreender as coisas; e, muito mais ainda, que a revelao no uma fico produzida pela imaginao de cristos, e, sim, uma categoria baseada em fatos observveis e em experincias identificveis, quando corretamente interpretados. Neste livro nos ocuparemos principalmente com a apolog-

    1. Alguns escritores entendem que o objetivo especial e primrio da apologtica esse que afirmamos ser sua funo secundria. Assim, A. B. Bruce, em sua Apologetics, or Christianity Defensively Stated (Edimburgo, 1895) escreve: "A apologtica... um preparador do caminho da f, uma ajuda f contra as dvidas que surgem donde quer que for, especialmente contra aquelas engendradas pela filosofia e pela cincia. Seu objetivo especfico auxiliar homens de espirito franco e sincero que, assaltados por essas dvidas, simpatizam, no entanto, com os crentes. Ela se dirige igualmente queles que se vem arrastados em duas direes, para Cristo e contra Cristo, caminhos que a uns prendem na incredulidade e a outros levam f em Cristo. Toda a defesa pressupe um inimigo, mas o^ inimigo no o infiel dogmtico que de maneira final levou sua mente a achar que o cristianismo uma iluso, e, sim, o pensamento anticristo dentro do prprio corao do homem crente. "Os inimigos do homem sero os seus prprios familiares! O apologista sabido instintivamente foge do conflito com a incredulidade dogmtica, por ser coisa intil. Ele deseja encontrar, e d como concedido naqueles para quem escreve, uma certa imparcialidade e largueza de esprito, uma alma generosa que padece duma tara hostil que ele anseia remover, tara ess provinda no dum motivo baixo, animada em sua hostilidade por motivos elevados (p. 37). Estas afirmativas de Bruce so finais, e qualquer que leve a srio o estudo da apologtica simpatizar com o desiderato desse escritor. No obstante, no satisfaz esse modo de compreender a natureza da apologtica, porque confunde a tarefa da apologtica com a da apologia. Podemos dizer que a apologtica se relaciona com a apologia assim como a homiltica se relaciona com a pregao.

    2 Veja, e.g., o artigo "Theology", de D.S. Adam, na Encydopaedia of Religion and Ethics, Vol. XII, pp. 297 ess.

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  • tica crist, distinguindo-a da apologtica religiosa geral. S trataremos dos problemas da apologtica religiosa geral na medida em que estiverem mais profundamente relacionados com os problemas mais restritos da apologtica crist. Antes de nos sentirmos preparados para encarar os problemas especficos da apologtica crist, temos que fazer certas consideraes mui importantes que surgem da discusso hodierna da patureza da verdade cientfica, dos pressupostos ideolgicos e da investigao histrica. Devemos examinar isso antes, visto que claramente se relaciona com a nossa maneira de tratar o assunto. Os problemas atinentes apologtica crist, dos quais trataremos de modo especial, incluem a natureza da revelao em geral, e da revelao crist em particular, a validez dos argumentos tradicionais da apologtica crist, aduzidos do milagre e da profecia, a inspirao e autoridade da Bblia, e a relao da f para com a razo.

    E' certo dizer-se que a apologia, e com ela a apologtica (embora o termo pertena ao perodo moderno), sempre tiveram, em todas as pocas, uma posio honrosa na linha central do desenvolvimento da teologia crista. Houve, porm, certos perodos em que de certo modo se negligenciou tanto a arte como a teoria da apologia. Obviamente, no se faz necessria a apologia numa poca em que o Estado determina que todos os seus sditos sejam batizados na infncia e manda queimar vivo

    , todo aquele que externa suas dvidas teolgicas. Contudo, coisa notvel observar como os grandes telogos mesmo dentre aqueles conhecidos como os mais "dogmticos" tinham conscincia da necessidade do elemento apologtico na apresentao de seu credo. Telogos do mais altocoturno, taiscmoOrgenes, Agostinho e Toms de Aquino, igualmente so os principais apologistas da Igreja. Uma poro surpreendentemente enorme do primeiro livro das Institutas de Calvino dedicada apologtica e s provas tiradas da razo: o jovem sbio humanista da Renascena que se tornou o lder da Reforma no perdia uma oportunidade sequer para apontar os erros do humanismo clssico. Pequeno nmero de telogos, como Lutero, deram to pouco valor aos poderes da razo humana que achavam ser quase tempo perdido se dirigirem a ela. Diziam que a f no precisava justificar-se diante do tribunal da razo. 1 Esta posio extremista, porm, no representa a atitude geral e clssica do pensamento cristo; o prprio Tertuliano apelou para a conscincia das

    1 Karl Barth, em nossos dias, parece sugerir que a apologtica no uma atividade razovel para os cristos, porque ela comea concedendo razo competncia para discutir a possibilidade e mesmo o contudo da revelao, ou, pelo menos, ela pressupe que a razo cria o necessrio "ponto de conexo" entre Deus e o homem: "a f deve tomar a srio a descrena, e a si mesma no muito a srio, e, portanto, secreta ou abertamente deixa de ser f". Barth gosta de distines precisas: a razo, para ele, sempre "a razo sem f", e assim a f necessariamente o contrrio da razo; a nica apologtica verdadeira est na confrontao da incredulidade pela f, e esta ltima obra de Deus. assim como a primeira produto do homem. A Palavra de Deus no precisa ser defendida pelo homem, e unicamente a descrena pensar em defend-la. Ele cita e aprova a Lutero, quando diz "temos que cuidar no... de defender o evangelho at o ponto de ele entrar em colapso No nos ansiemos: pois o evangelho no precisa de nosso auxlio; ele suficientemente forte por si mesmo... Pouco importa que este fraco sopro ruja contra os sofistas. Que conseguir esse morcego com o bater de suas asas?" (Veja K. Barth, em

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  • classes dirigentes romanas, 1 e ainda na ocasio, quando convinha ao seu objetivo, argumentou que os ensinamentos cristos eram muito semelhantes dos poetas e filsofos pagos. 2

    Em nossos dias tornou-se moda em certos setores questionar sobre o 7 valor e mesmo sobre a legitimidade da apologtica crist. Foi dito (no

    falsamente, certo) que tarefa do crente confrontar a incredulidade com o desafio do evangelho, para convencer de pecado e proclamar a mensagem de arrependimento e rnovao. Criticar ou tentar julgar racionalmente a revelao divina presuno; e, se os homens pudessem assim racionalmente critic-la e avali-la, certo j no seria ela divina. (Este argumento , na essncia, o mesmo que usaram a princpio aqueles que se opuseram crtica bblica.) Nossa tarefa no , dizem, argumentar sobre a existncia de Deus, e, sim, confrontar os homens com Seu julgamento e misericrdia, no discutir se Deus nos deu uma revelao, mas dizer aos homens o que ela . Agora, verdade que o apologista no deve substituir o argumento pela pregao; e igualmente verdade que grande

    -parte da tarefa do apologista declarar de modo explcito o que o evangelho, removendo as falsas interpretaes que dele tm muitas pessoas e que de contnuo sobremaneira obstaculizam a aceitao do credo cristo. Acresce ainda que o estudante de apologtica no deve pensar que os homens vo se converter f crist s com argumentos tirados da razo, ou por quaisquer meios humanos: Deus, que d a revelao, d tambm a f pela qual a recebemos, e a luz para que a entendamos; a f, como firmemente sustentamos, sempre o dom de Deus. Indubitavelmente verdade e falha grave e lamentvel que grande parte da pregao hodierna perdeu o nimo confiante e seguro da ousada proclamao crist, e no poucas vezes tem adotado os modos de quem procura justificar-se ou "apologizar". 3 No difcil compreender por que se reagiu no sentido de se fazer uma declarao mais forte e peremptria do evangelho ante o colapso da teologia liberal nos ltimosDoctrine of lhe Word of God; Church Dogmatics, Vol. I, Parte I, transcrio inglesa de C.T Thomson, Edimburgo, 1936, pp. 30 a 33.) Ricardo Hooker, cujo ponto-de-vista sobre as relaes da f com a razo aparece na obra The Laws of Ecdesiastical Polity, Livro III. Cap viii, trata seriamente das censuras feitas razo pelos puritanos do sculo dezesseis, que. por sua vez, haviam sido influenciados pelos extremistas do continente. Diz ele: "H um bom nmero de gente que pensa no poder admirar, como preciso, o poder e a autoridade da Palavra de Deus, caso nas coisas divinas se possa atribuir qualquer fora razo humana. Por esse motivo nunca usam de bom grado a razo para no a desacreditar" (loc. cit.) Plus a change plus, c'est Ia mme chose. A teologia inglesa deve levar a cabo novamente, no sculo XX. a tarefa a que Hooker com tanta habilidade se dedicou no sculo XVI.

    1 Apol. IX2 Ibid., XLVII3 A confuso que o povo em geral faz de "apologia" com "apologizar" (desculpar-se,

    no sentido moderno) pode ter amparo real. Quando, em 17%, o Bispo Ricardo Watson (1737-1816) publicou An Apology for the Bible, o rei George III comentou: "Apologia da Bblia! Apologia da Bblia! Eu nunca soube que a Bblia precisava de defesa" (Overton and Relton, em The English Church from the Accession of George I to The End of XV III Century, p. 260). O Bispo Watson enviou tambm uma Apology for Christianity (1776) para Eduardo Gibbon, em resposta ao^ataque desfechado contra o cristianismo no Decline and Fali (Cap. XV), obra ainda muito querida pela imprensa racionalista.

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  • tempos. 1 Mas, isto em nada nos leva a pr em dvida o valor ou legitimidade da apologtica. * Encontraremos a base real da rejeio-da apologtica como disciplina tolgica numa teoria particular das relaes da razo com a revelao, teoria que afirma serem ambas extremos irreconciliveis e que no h nenhum "ponto de conexo" na razo ou conscincia humana para o qual a revelao possa apelar. Tal teoria corre em sentido contrrio ao da corrente principal do pensamento cristo sobre o assunto. Nada h na Bblia, e muito pouco nos ensinos dos grandes doutores da Igreja, que sustente essa teoria. De fato, ela no mais velha que Lutero; e, na verdade, justo afirmar-se nada mais que isso, visto que Lutero no elaborou teorias preciosas sobre assuntos filosficos.3

    1 , no obstante, coisa que nos choca ler, na Introduo Geral feita pelos editores da Library of Constructive Theology, o seguinte: J se foi o tempo em que a 'apologtica' era coisa de algum valor." Tais palavras parecem condenar adiantadamente a mor parte dos volumes da srie. No entanto, a sentena posterior revela que o escritor conhece pouco o que realmente a apologtica. Diz ele: "Precisa-se de algo mais que uma defesa de proposies j aceitas sobre a autoridade." A apologtica crist, por certo, no a defesa de proposies j aceitas sobre a autoridade, mas a defesa da proposio que afirma existir uma autoridade na revelao, ou atrs dela, ou que existe uma revelao autorizada e terminante.

    2 Sobre este assunto veja Towards a Christian Philosophy (Londres, 1942). pp. 11 a 19, de Leonardo Hodgson; Democracy and Dictatorship in the Light of Christian Faith(Londres, 1935), p. 30, do mesmo autor; Our Knowledge of God (Oxford, 1939). pp. 14 a 16, de Joo Baillie; e By Faith Alone (Londres, 1943), pp. 118 em diante, de H.F Lovell Cocks.

    3 O repdio da razo, separando-a da revelao, realizado por Lutero, podemos ver claro na citao que segue: "A sabedoria natural duma criatura humana em matria de f, at que se regenere e nasa de novo, tudo escurido, nada conhecendo das coisas divinas. Mas numa pessoa crente, regenerada e iluminada pelo Espirito Santo, atravs da Palavra, instrumento glorioso e sincero, e obra de Deus... O entendimento, pela f, recebe vida da f; o que se achava morto vive de novo" (Table-Talk, transcrio feita por Hazlitt, CCXCIV). Nisto que afirma a habilitao da razo pela f em Cristo o ensino de Lutero verdadeiro, em referncia ao pensamento de Agostinho; mas pode-se ilustrar a diferena que h entre o ponto-de-vista de Agostinho e o de Lutero com este trecho de Agostinho, que, conquanto enfatize ele o fato de que a f precede razo na compreenso da verdade, no obstante claramente reconhece haver um sentido em que a razo precede f, visto que a Palavra no pode penetrar numa criatura irracional, admitindo-se, dai, que a razo o necessrio "ponto de conexo" da alma humana com a Palavra divina: "Morra de vez a idia de que Deus odeia em ns aquilo em que ele nos fez superiores s mais criaturas viventes! Digo, perea a idia de que devamos crer no termos necessidade de buscar uma razo para aquilo que cremos, porque de fato j no poderamos crer se no tivssemos almas racionais (animas). Em certas coisas que pertencem esfera da doutrina salvadora e que ainda no temos capacidade de alcanar pela razo, mas que compreenderemos um dia, a f precede razo (fides praecedat rationem); e essa f purifica o corao, de modo que ele pode receber e suportar a grande luz da razo. O profeta, assim, fala bem racionalmente quando diz Nisi credideritis, non intelligetis "Se no crerdes, no entendereis"), (Isaias 7:9, LXX). O profeta aqui faz distino entre f e razo, e nos aconselha que devemos primeiro crer, para que possamos entender aquilo que cremos. Vimos, assim, ser coisa razovel que a f preceda razo. Sim, porque, se este preceito no for razovel, logo ser um absurdo. E Deus nos livre de assim pensarmos. Se, portanto, razovel que a f preceda razo a fim de nos levar a certos e grandes assuntos que no poderiamos ainda entender, segue-se, ent^o, indubitavelmente, ainda que em grau menor, que a razo, que disso nos convence, de algum modo precede f (procul dubio quantulacumque ratio quae hoc persuadet etiam ipsa antecedit fidem) Por isso o apstolo Pedro nos admoesta que

    21r

  • 2. O "PONTO DE CONEXO" NA RAZO E NA CONSCINCIA

    De encontro a todas essas teorias, a discusso da apologtica envolve o reconhecimento da existncia dum "ponto de conexo" entre as mentes dos crentes e, pelo menos, as de alguns incrdulos. O Dr. Paul Tillich observa que a apologtica subentende a disposio de se defender em face de um agressor e diante dum critrio comum. 1 Por exemplo quando era largamente aceito o ensino' dos esticos acerca do Logos, era coisa possvel aos primeiros apologistas defender, diante daqueles que estavam prontos a admitir a validade da filosofia dum Logos, o seu conceito de Cristo como o Logos encarnado. Existe, no entanto, sempre o perigo de0 apologista cristo avanar demais na direo das categorias de seu opositor e falhar na demonstrao de que a f crist sempre transcende e, at certo ponto, nega as categorias de todo pensamento no cristo. Mas, pelo menos, existe um "ponto de conexo", um ponto de partida para a discusso. A apologtica admite, pois, a existncia de distines dentro da prpria descrena, conquanto s vezes se torne difcil defini-las. Temos, em primeiro lugar, o humanista bem intencionado, que acredita nos valores e os procura, e que no mundo hodierno o produto de sculos de ensinamento cristo e da cultura e civilizao crist; em segundo lugar, temos aqueles que crem sinceramente em alguma filosofia de vida no crist, tais como os marxistas e os maometanos; em tercejrojugar, temos esse grande grupo de gente que aparentemente vive alheia a todas as questes da verdade e dos valores, que tanto se interessam por suas prprias pessoas, por suas necessidades e prazeres temporais, que no pensam noutra coisa. Talvez haja uma quarta classe, a daqueles que deliberada e cinicamente desprezam toda a verdade e os valores morais e espirituais, exaltando nica e religiosamente a si prprios (como os nacionalistas, os nazistas; e, como indivduos, os ateus prticos); estes so os verdadeiramente pervertidos, e a verdade crist a nica profilaxia eficaz para debelar essa suprema corruptio optimi pssima. Quanto a este ou aquele espcime do terceiro e mesmo do quarto grupo, seria provavelmente exagero dizer que com ele no existe absolutamente nenhum "ponto de conexo". Mas na prtica est claro que a apologtica no nos fornece nenhuma maneira de nos aproximarmos gente desse quilate. Cremos que s a pregao direta do perturbador Evangelho de Cristo poder conseguir, de certa forma, abalar esses indivduos.

    O caso dos dois primeiros grupos, porm, um tanto diferente, e os grandes apologistas cristos do passado freqentemente a eles se dirigiram. O apelo de Justino Mrtir compreenso dos filsofos do segundo sculo uma boa ilustrao duma apologia da Igreja antiga dirigida ao primeiro grupo; e podemos catalogar a Summa contra Gentiles de Toms de Aquino como notvel exemplo de Apologtica que visava pessoas doestejamos preparados para responder a qualquer que nos pergunte a razo de nossa f e esperana (I Pedro 3:15)" (Ep. CXX, 3,4). A continuao dessa pgina de Agostinho constitui uma defesa completa da apologtica crist.

    1 Veja The Interpretation of History (New York. 1936), p. 43.

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  • segundo grupo, visto que ele parte justamente dos princpios racionais que seus opositores j admitiam, i. e., admitiam a filctsofia aristotlica como critrio comumente reconhecido, i O estudo da?' apologtica claramente ser de grande proveito para os cristos que anseiamr lida* com pessoas de qualquer um desses grupos. Os que nunca estudaram s laes da f crist luz dessa verdade, que pode ser encontrada, como no caso do humanista ou do marxista, mui provavelmente no defendero com sucesso o cristianismo, quando atacado pelos humanistas ou pelos marxistas, e no conseguiro organizar uma poderosa contra-ofensiva. A elevada estima que os humanistas tm pela verdade e pelos altos valores, bem como a sede que os marxistas tm de iustica social, provam ser esse um "ponto de conexo" muitssimo significativo, e vemos, ento, existir, em cada caso, um critrio comumente reconhecido, ainda que seja muito reduzida a rea de concordncia para o incio da discusso. Onde quer que encontremos em atividade a razo e a conscincia, a se torna importante a tarefa da apologtica crist. Esta viso da validade e urgncia da apologtica estriba-se na compreenso total das relaes entre revelao e razo, relaes que subjazem e que, espera-se, se aclarem devidamente no argumento desta obra. E isto est de acordo com o pensamento e a prtica dos grandes teolgos da Igreja desde os dias de Paulo ou de Joo at os nossos dias. 2

    Tanto o humanismo secular como o marxismo, como os vemos hoje, sofreram forte influncia do ensinamento e dos ideais cristos. 3 E nisso, em grande parte, sempre tiveram contato com a revelao da verdade que est em Jesus Cristo. Visto sustentarmos que toda a revelao "salvadora", para salvar, no se pode dizer que eles sejam totalmente "mpios" (seja qual for o ttulo que se dem a si mesmos) ou que estejam totalmente alienados da iluminao do Sol da Justia. Enquanto no puderem ver a

    1 No se diz aqui que Toms de Aquino escreveu mais para leitores maometanos ou judeus do que para cristos. Sabia ele que a maioria de seus leitores seria de cristos. Este fato, porm, ilustra a natureza da apologtica crist, que. num sentido, refletir a posio crist luz das crticas feitas peos incrdulos. Toms de Aquino deseja mostrar como a razo, separada da revelao, como os prprios maometanos devem obedecer (o "critrio comumente admitido"), responde aos erros do pago e conduz verdade crist. Cf. Summa contra Gentiles, Livro I, Cap. II: Alguns deles (dos pagos), como os maometanos e gentios, no concordam conosco quanto autoridade de qualquer escritura, pela qual possam ser convencidos, na mesma base em que podemos discutir com os judeus atravs do Velho Testamento e com os herejes atravs do Novo Testamento, visto os primeiros no aceitarem nenhuma dessas bases. Portanto, temos que recorrer razo natural, base que todos se vem compelidos a aceitar. Mas ainda isto no deixa de ser deficiente em se tratando das coisas de Deus.

    2 A alegada rejeio por parte de Paulo (em I Cor. caps. I e II) do seu mtodo de tratar com os filsofos na. Colina de Marte (Atos 17:22-34) coisa muito incerta para servir como argumento. O pensamento de Paulo acerca da razo e da conscincia do mundo pago est claramente expresso em Romanos, caps. 1-3, donde se nota o argumento em toda a extenso deste livro; Romanos 1:20, particularmente, tornou-se o texto fundamental da "teologia natural", notadamente na. Idade Mdia. Se algum desejar um texto bblico que de modo conciso prove e ratifique a necessidade da apologtica crist, bastar ler I Pedro 3:15. -

    3 Para ver melhor o marxismo neste particular veja, a obra The Christian Significance of Karl Marx (Londres, 1946). d eAleX; Miller. iv - ,

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  • verdade no seu todo, vem-na atravs do brilho da Fonte da Luz, que por si s possibilita ao homem conhecer a verdade. A viso que tm, no entanto, anuviada e deformada; uma viso ainda imperfeita, como a daquele que enxergava os homens como rvores andando. O toque da mo de Cristo j se iniciou, porm no completou a obra curadora em seus olhos ainda cegos. Podemos descrever obra da apologtica crist como uma preparao para levar outra vez esses olhos presena de Cristo, para que os toque de novo, e da vejam nitidamente todas as coisas. O dom da vista sempre um milagre da graa divina; todavia, isto em nada quer dizer que oS cristos devam assentar-se quietos a um canto e nada fazer para preparar o caminho do Senhor. "O fato de ser Deus quem d o crescimento no motivo para deixarmos de plantar e regar." 1 - Desde o incio do sculo XX sofreu considervel transformao em sua natureza a tarefa do apologista cristo. O falecido Arcebispo Temple narrou como, em Oxford, na dcada anterior a 1914, pareceu que a tarefa do apologista cristo iria desembocar numa metafsica cristocntrica em termos duma filosofia idealstica ento largamente admitida por pensadores da poca. 2 A influncia de mestres, como Eduardo Caird, Josias Royce e Bernardo Bosanquet, era ainda mui forte. Ainda mesmo em 1924 o Dr. Temple acreditava que um leve toque na balana intelectual poderia fazer as conchas pender para a aceitao dessa metafsica cristocntrica, uma vez que prevalecia como conceito dominante a filosofia espiritual e mesmo testa dos idealistas de Oxford. 3 Hoje no se v nenhum conceito dominante e nenhuma filosofia largamente aceita. Os filsofos de profisso parece estarem agora de qualquer modo gastando seu tempo na discusso das possibilidades de existir a metafsica. Uma corrente entende que tudo quanto se afirma sobre valores no passa de atoarda sem cualquer significado. J outra corrente afirma que a filosofia nada mais que o produto de foras econmicas. Assim, sustenta-se, em diversos lugares, que s se pode ter certeza no reinado das cincias empricas. Alm do conhecimento cientfico, diz-se, nenhum outro conhecimento ppssvel, e a nica atividade que resta ao filsofo, como tal, abandonar todas as proposies ou conceitos que no possam ser demonstrados pelo mtodo cientfico. No de se admirar que muitos pseudofilsofos, desanimados ante uma tal limitao de sua prpria vocao, se apressem em mandar s urtigas sua beca de filsofos e vistam logo a camiseta de algum partido, proclamando ao mundo que sua tarefa no explicar o mundo, e, sim, modific-lo. cda grupo social humano. investigao dessa realidade emprica um objeto prprio do estudo cientfico, mesmo quando, pela natureza do caso, s torne muito mais difcil e complexo alinhar indues do que quando lidamos com as cincias fsicas. Como todo o povo de cada sociedade constitudo de governadores e governados (e nalgumas ambas as coisas ao mesmo tempo), h, necessariamente, uma qualidade existencial de investigao poltica que dificulta muito o conseguir-se esse alheamento cientfico, tornando-se isso qui at impossvel num sentido completo, conquanto no se procure tal desinteresse como condio ideal. Pois, sem dvida, verdade que o estudo cientfico da poltica, concebida abstratamente, no leva ou pelo menos no deve levar ningum a tomar uma atitude particular para com o Estado, ou a tomar este ou aquele partido particular; no obstante, provvel que o estudante no consiga abster-se de definir sua atitude pessoal a respeito de certo nmero de conceitos polticos ou de escolas polticas, e estar, ento, mais claramente habilitado para ver e evitar pelo menos alguns dos erros de opinio poltica, resultantes da impensada ou superficial aceitao dessa propaganda. O. cientista desinteressado e o membro duma sociedade politicamente viva so, afinal, uma e a mesma pessoa, ^-dificilmente este evitar a companhia daquele, quando vivem to avizinhados. De semelhante modo, verdade indubitvel que o estudo da teologia por si s no compelir o studante a assumir uma atitude particular para com a Igreja e sua >regao; tal estudo, no entanto, certo o habilitar a ver mais claramente

    o que que est envolvido na existncia da Igreja e muito o ajudar a definir numa base bem considerada sua atitude pessoal para com ela; ou, pelo menos, ter ele oportunidade para se desvencilhar de preconceitos que estavam estribados na ignorncia, coisa que, como nos outros campos cientficos, obscurecem a mente daqueles que nunca consideraram a srio o fato da existncia da Igreja. Por causa da natureza complexa, concreta e existencial de suas categorias, em comparao com as categorias das cincias fsicas, torna-se muito mais difcil traar uma positiva linha divisria entre os limites das cincias teolgica e poltica de um lado e da filosofia doutro; no obstante, certo, so elas perfeitamente distintas, e, at onde for possvel, deve-se manter bem clara essa distino assaz importante.

    O conceito de q iy a tonlngia nmq cincia emprica ainda para muita gente parece novidade. Muitos telogos, conquanto bem acostumados a empregar mtodos cientficos de estudo em seus trabalhos, conhecem muito pouco da cincia, que vai alm de sua esfera, coisa que raramente consideram; e muitos cientistas que laboram no campo das cincias naturais conhecem muito pouco da teologia no ponto em que se acha hoje desenvolvida pelos atuais mtodos de crtica. NQss poca uma poca de especializao, e, assim, uma metade do mundo pouco sbe^da outra mtd. O cientista natural muitas vezes no tem conscincia da revoluo experijrientadapelo mtodo teolgico oos-ltimos-cem anos, e supe (se pensa de qualquer modo no assunto) que o telogo est ainda

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  • vivendo no mundo de Toms de Aquino, no qual toda a ciocia_era cincia d e& ith ia. exato que desde os dias da formao do cnon do Novo Testamento at o final do sculo XVIII, ou at mais tarde ainda, os telogos, em geral, admitiam que os artigos do Credo Cristo podiam ser deduzidos pela razo das afirmativas explcitas e infalveis contidas na Bblia. Neste ponto Calvino no dissentiu de Aquino. A tradicional posio crist tanto catlica como protestante era de que a revelao escriturstica e divina admitia a deduo de verdades bem definidas, e a teologia era ento a cincia dedutiva da revelao. Este conceito da cincia teolgica sobreviveu at muito depois do aparecimento do mtodo indutivo no perodo moderno e de sua vitoriosa aplicao nas cincias fsicas; e deve notar-se que ele no foi desbaratado por nenhumas influncias provindas das cincias naturais, e, sim, por um movimento que veio de dentro a descoberta feita pelos prprios telogos das categorias da moderna crtica histrica e literria. Podemos conjeturar que se reconhecer o sculo XIX como um dos perodos mais importantes da histria do pensamento cristo, em que se deflagrou uma coprnica revoluo ao introduzir-se o mtodo cientfico de induo em toda a esfera do estudo teolgico. Tal revoluo trouxe como conseqncias, entre outras, uma completa reinterpretaao^c^Tod o conceito de revelao. A tarefa mxima que deve ocupar hoje os apologetas cristos investigar se o estudo da teologia, como uma cincia emprica, comprova a categoria da revelao como uma caracterizao indispensvel daqueles fatos de que o telogo tem que tomar conhecimento. A leolneia. ento, a investigao^feita no nivel da_cincia empirica, dos fajosj:ontidos na existncia da comumHdicrist crentTcInte e testemunhadora pela formulao de categorias que se adequaro para a compreenso desses fatos. Podemos expressar isto doutro modo, dizendo que a tarefa da apologtica crist no sculo XX demonstrar que a f pode agentar um ^xame minucioso luz do moderno mtodo nentitico^jih V node- submeter-se perfeitamente ao mtodo cientfico que lhe seia apropriado. _ "que o meTSdtrtTogico. ' ~ - -

    4. A INDEPENDNCIA DAS CATECORIAS TEOLGICAS

    Trs so os modos principais pelos quais podemos afirmar que a teologia hoje faz jus ao direito de ser reconhecida como uma cincia empirica ou experimental: O.primeiro o uso independente que ela faz de suas firpasxaigat!53SrueItTgxientfica; o segurjdo o emprego que ela faz do mtodo cientifico: e o terceiro, o espirito com que ela trata de sua matria. Veremos de maneira^rvTcada um desses modos.

    Em primeiro lugar, ento, a teologia usa suas prprias categorias de classificao e interpretao. Se assim ela no fizesse, e se ela se visse obrigada a tomar por emprstimo as categorias doutra cincia, j no a poderamos ter como uma cincia independente. Seria apenas uma subdiviso da cincia cujas categorias tomou emprestadas. Temos j notado que na histria do pensamento moderno cada cincia nova que surge tem lutado constantemente no sentido de conseguir o reconheci-

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  • mento de seu direito de usar suas categorias prprias. Por exerpp||(;cjf psicologia no uma subdiviso da cincia fsica geral, porqu^suS* categorias no se reduzem quelas das cincias fsico-qumicas, Senie^ lhantemente, a teologia no um ramo de qualquer outra cinciaptio um rmo da psicologia, porque ela muito mais que o estudo dos v

    - fenmenos da experincia religiosa; nem tambm um departamento do estudo comparado das religies, visto que usa categorias (como a da revelao) que muitos estudantes do estudo comparado das religies aparentemente se inclinam a dispensar. Psiclogos, socilogos, e outros mais cientistas tm, naturalmente, muitas vezes, reivindicado o direito de usar todos os dados da existncia teolgica com suas categorias prprias, e, se tal direito fosse reconhecido, j as categorias prprias da teologia no teriam nenhuma validade independente; e precisamente esta espcie de direito, freqentemente reclamado por pessoas no afeitas ao moderno mtodo teolgico, que a apologtica crist deve repelir de pronto. O telogo, como qualquer outro cientista que se convenceu da validade das categorias com que labuta, se dar ao trabalho de demonstrar que a matria de que trata no pode adequadamente ser subordinada s categorias de qualquer outra cincia; no obstante, concordar que muitos dos fenmenos por ele estudados podem ser tambm estudados de outros ngulos diferentes por cientistas de outros campos, e acolher alegremente todo e qualquer esclarecimento que essas pesquisas paralelas puderem oferecer. Os territrios de cincias djferentes coincidem em parte, ou melhor, duas o mais cincias mits vezeTstudm o mesmo fenmeno, porm cada uma do seu ponto-de-vista prprio. O psiclogo e o antroplogo, por exemplo, tomam conhecimento de alguns fatos de que igualmente se ocupa o telogo, e no h a menor necessidade de entrarem em conflito. Pelo contrrio, devero cooperar.e se ajudar mutuamente, devendo sempre cada cincia abster-se de sustentar dogmaticamente hipteses que possam desacreditar as ctegorias das outras. '

    Os prprios telogos nemsempre percebem importncia do reconhecimento da teologia como uma cincia independente. Assim, alguns deles se inclinaram, e alguns ainda se inclinam, ao menos pelo que parece, a aceitar que se reduza a sua cincia condio de um satlite da psicologia. Atravs do sculo XIX, a teologia mostrou-se^ injustificada- mente condescendente para com suas irms as outras cincias. O falecido Dr. H.R. Mackintosh afirmou que Schleiermacher, cujo trabalho mui notvel, sobre The Christian Faith (A F Crist), foi publicado em 1821, inaugurou o maior sculo da teologia desde o sculo IV; mas, se assim , aventuramo-nos a pensar que isso se deu porque durante o seu decurso, aps uma jornada de muitos rodeios e incertezas, a teologia comeou a compreender mais claramente a sua prpria verdadeira natureza, e tambm a sua tarefa especfica. O prprio Schleiermacher e boa poro de seus seguidores inclinaram-se a ignorar aquilo que ternos julgado ser a irredutibilidade das categorias teolgicas, tal como a d revelao, e a fazer da teologia um ramo de algurri putr cincj; encararam a teologia como a investigao d espiritualidade hlfr!.^ PM da experincia que a alma tem da vida espiritual dentrotda.lgrejav

    I- ^ \ ^

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  • Definiram a teologia como a interrogao da conscincia religiosa, que visa descobrir o que a religio.1 Esta definio de religio rebaixa a teologia condio de um ramo da psicologia da religio; toma-se, assim, mera sistematizao dos credos duma dada igreja num dado tempo; e essa tarefa poderia ser executada para os nossos dias pelos observadores das massas! A funo do telogo, nesse caso, seria pouco mais que a daquele que produz uma srie de reportagens, tal como Doctrine in the Church of England, estando cada um desses artigos mais ou menos superado na data em que fosse publicado. Naturalmente, no isto perfeitamente o que se quer significar quando se afirma que a tarefa da teologia estudar os dados fornecidos pela existncia da Igreja crente e testemunhante. A teologia negaria a validade de suas categorias prprias e abdicaria seu direito de cincia independente, caso admitisse o conceito de que a verdade crist provm da prpria conscincia religiosa do homem, e assim acabaria abandonando tambm o conceito histrico de uma revelao dada. A teologia como riZnria permanece de p. ou rui por terra com a 1 categofia da revelao. Assim se no h na histria nenhuma revelao distintivamente crist. TaTo seriam necessrias as categorja5-speciaiiIcl~~ Tflogia, e ento sria o estudo cientfico da religio mais da alcada do pSicolQgcw-dCLSocilogo e d~crntroplog07~que do teologo, E bom anotar que o sculo de atividade teolgica inaugurado- por Schleiermacher explorou todos os mtodos concebveis de interpretao dos fenmenos da existncia crist por meio de categorias no teolgicas, mas se encerrou com a confiante reafirmao dessas categorias e com uma renovada insistncia sobre a independncia da teologia. O sculo da teologia protestante que Schleiermacher inaugurou se encerrou com a publicao da Epistle to the Romans por Karl Barth, em 1919. 2 A completou-se o ciclo.

    5. O MTODO E O ESPRITO DA TEOLOGIA

    A segunda razo que se pode dar para catalogar a teologia como uma cinci exprlmental o uso que ela faz do mtodo cientfico. J notamos o significado da substituio do mtodo indutivo pela concepo anterior da teologia como cincia dedutiva, coisa que se deu no sculo XIX. O telogo colhe e sistematizados fatos da existncia-lgreja. abrangendo.

    1 J. Baillie, em Interpretation of Religion, 1929, p. 14; Cf. W. Temple, em Nature, Man and God, p. 44 em diante. Se a tarefa da teologia fosse mesmo a de formular os pareceres da experincia religiosa, no seria nada difcil para os cticos e os de mentalidade de critica opor-lhe srias objees; veja tambm ).L. Stocks, por exemplo, em Reason and Intuition, Oxford, 1919, p. 220 em diante.

    2 H.R. Mackintosh (Types of Modem Theology, 1937, p. 60) afirmou que o Christian Faith de Schliermacher , logo depois das Institutas de Calvino, a obra dogmtica de maior influncia que a teologia protestante pode salientar. Algum poder sustentar que a publicao da Church Dogmatics de Barth, exige a reviso desse conceito. cedo ainda para se afirmar, mas bvio que se processou uma revelao na teologia protestante desde 1919. Para acertar o conceito de Barth sobre a dogmtica como uma cincia, veja suas obras Doctrine of the Word of God e Church Dogmatics, Vol. I, Parte i, trad. ingl. de G.T. Thomson, Edimburgo, 1936, pp. 1-17 e 315-330.

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  • aturalmente. os fatos histricos Meados origem e ao c r e s c im e n t o r ia _ _^>reiu Pelos expedientes da moderna crtica histrica e literria, procura ele determinar a natureza desses fatos sobre que est baseada a f crist e pelos quais ela se expressa; e, completada essa tarefa na esfera da teologia histrica, passa a indagar que categorias tal como a da revelao divina, ou a da inspirao so necessrias para a interpretao desses fatos e dos fatos da existncia-lgreja nos dias atuais. A ltima parte dessa tarefa a matria tradicionalmente conhecida por dogmtica, que uma tentativa para formular as doutrinas que surgem ds fatos assim examinados plena luz de nossos conhecimentos atuais. O fato de este setor do estudo teolgico chegar mui depressa s fronteiras da metafsica, ou dos da filosofia da religio, em nada nos deve alarmar ou desconcertar; devamos, naturalmente, esperar que isto se desse, porque, se sustentamos a necessidade das categorias teolgicas, obviamente devem elas ter uma significao bem elevada para a compreenso filosfica do mundo e para aquilo que este significa. O carter relativamente existencial das cincias humanas.como cincias distintas das cincias naturais, significa, como j observamos, que suas fronteiras com a filosofia so logo alcanadas e so bem menos conhecidas.

    Contudo, no terreno da teologia histrica, bem mais fcil se pr a salvo das questes metafsicas do que no campo da dogmtica, ainda que, naturalmente, impossvel seja evitar-se o aparecimento de tais questes no decurso das investigaes. Nos vrios ramos da teologia hjstrjca critica bblica, literria e histrica, inclusive a crtica textual, a histria eclesistica, o estudo da patristica, da lingstica e outros mais torna-se possvel aos tcnicos no interessados pessoalmente no credo cristo (tomado no sentido da dogmtica) trabalhar ao lado de tcnicos cristos convictos, nas pesquisas cientficas. Nomes de grandes luminares logo nos vm memria. O Cardeal Newman afirmou ser um fato bem triste o maior dos historiadores eclesisticos ter sido o ateu jGibbon. Ainda mesmo aqui, como em todas as matrias histricas, a aceitao ou no das categorias dogmticas (ou da religio crist) por parte do investigador influi mui consideravelmente na determinao do peso que ele d a esta ou quela pea da evidncia histrica, ou na deciso sobre se este ou aquele acontecimento realmente sucedeu. Esta uma dificuldade que acompanha todas as pesquisas histricas e que quase chega a tornar-se escndalo aos olhos daqueles que entendem quase que s de cincias fsicas e que se formaram na escola que com tanta simplicidade pontifica ser bobagem discutir fatos. Nas cincias histricas, como pormenorizadamente observaremos em captulo posterior, possvel a dois investigadores competentes chegar a interpretaes contrrias, ou opostas, dos fatos, e mesmo at discordarem sobre o que so e o que no so fatos. Por esta razo, no _ possvel separar a teologia histrica da teologia dogmtica de modo inflexvel, visto que'qe~sempre mais ouTnns afetada por interpretaes dogmticas se tais interpretaes so inspiradas pela f crist ou por algum conceito no cristo das coisa& No h nenhuma objeo, como veremos, ao conceito da teologia^como cincia, ou ao de que sua interpretao dos fatos com que lida estgj^t

  • certo ponto condicionado pelas categorias que o investigador adota; isto igualmente verdade para com todas as cincias, mas ressalta mais nas cincias mais existenciais, porque nestas est pessoalmente envolvido todo o ser do investigador, como j nunca acontece nas cincias naturais mais abstratas. O fsico ou o bilogo que nega a validade das categorias teolgicas o faz no por ser um cientista, e, sim, por no ser um homem cristo. Enquanto isso, o telogo vai avanando, revendo e modificando, aumentando e aprofundando as categorias de sua cincia, dirigido sempre pelo seu estudo dos fatos; seguir sempre argumentando aonde sua razo o guia.

    Isto nos leva terceira razo, por oue devemos considerar a teologia como cincia, hriPriisa Ho acprir> rj^ntitico com oue o telogo * empreendp sim Neste ponto surge na mente de muitos umaobjeo. 1 Dizem que cientista o indivduo que encara este ou aquele assunto com mente aberta e sem trazer em sua mente concluses preconcebidas; com o telogo isso no se d, porque ele um cristo antes de iniciar seus estudos e pesquisas; da, o seu interesse dogmtico se sobrepe, ou, pelo menos, antecede ao seu julgamento cientifico. Agora, porm, urge vasculharmos bem o que se entende por mente aberta. Veremos que o pesquisador das cincias naturais no se encontra em posio muito diferente daquela do telogo, se levarmos em conta a natureza mais definidamente existencial da cincia teolgica. A noo de mente aberta no significa, nem pode significar que o cientista empreendeseus estudos com a mente em estado de ggBula rasajou num estadn completo de dvida ^rtesianaj A cinda^equalqueT orrh estaria, assim, alm da capacidade detjurejier Jessoa^ue se avizinhasse dessa condio. 2 Os cientistas devem empreender seus estudos tendo em suas / mentes certas categorias e convices. Precisam crer na unidade e uniformidade das coisas, no valor do conhecimento, na importncia da _ matria que estudam e em muitas coisas mais O cientista de fato chega-se sua tarefa convicto (por quaisquer razes) de que sua matria merece escudo, de que h um objeto real a ser estudado, e de que, estudando-o, alcanar valiosos conhecimentos, e de que h relaes a determinar e significados a descobrir, advenham ou nq,de tudo isso resultados prticos ^e teis. Ainda mais; ele no inicia seu estudo admitindo mentalmente que todas as concluses alcanadas pelos seus antecessores nesse campo de pesquisas so certas ou erradas, e que nesse caso precisa comear de novo no mesmo ponto em que Newton, ou Bacon ou Thales comearam. Ele aceita, no mnimo a autoridade da tradio; ele aprende o que se penSQije admitiu at seus dias, antes de ele se inclinar a duvidar. Agora, quando ingenuamente se afirma que o telogo no tem mente aberta ao encarar os objetos de seu estudo, parece que se admite que ele deve comear o seu estudo teolgico sem a menor convico de que h nele alguma cisTque vale a pena estudar, e disposto a crer que todos os telogos do passado e do presente andaram correndo atrs dum fogo-ftuo. Ningum jamais conseguir contribuir de maneira notvel para o avanamento dos conhe

    1 Veja, e.g., J. L. Stocks, op. cit-, p. 218 em diante.2 Cf. A. D. Ritchie, em The Scientific Method, p. 104.

  • cimentos se duvidar do valor de sua cincia ou da validade^de sqas categorias. Signifique o que signifiear essa mente aberta,: crto' que nunca poder significar uma coisa para os que lidam no campo das cincias naturais e outra para os que lidam no campo da teologia.

    O telogo, como qualquer outro cientista, deve chegar-* ao trabalho com um alto conceito de sua dignidade e valia, com unri senscx_ bem protuiiu de padibs de mtPftr.rtartP im-XZlectual e com um sincero desejo de conhecer a verdade. Um repasso pela fTTstria do pensamento cristo n fVla que os maiores telogos do passado foram homens deste calibre. Um datum mui importante que o telogo de nossos dias deve anotar o de que nenhum daqueles telogos jamais achou que sua aceitao da religio crist lhe prejudicara a razo ou inibira de abraar a verdade, para onde quer que esta o conduzisse, conquanto algumas vezes ela o levasse a sofrer a crtica duma igreja emprica ou da ordem eclesistica de seus dias, fazendo dele por fora um reformador. Os Pais gregos, embora permanecessem fiis ao cerne do credo cristo, entregaram-se a uma considervel latitude de interpretao e especulao no exteriorizarem a verdade teolgica. At mesmo os telogos popularmente tidos e havidos como as colunas mestras do dogmatismo conservador, em sua poca, foram acusados por seus contemporneos como perigosos inovadores, dos quais todo o mundo se devia acautelar. Toms de Aquino o doutor anglico durante a sua vida curta de labutar, teve que lutar corajosamente pelo novo Aristotelismo contra o tradicional Augustinismo platnico; e o Tomismo viu-se combatido no s por franciscanos, como S. Boaventura e Joo Peckham, mas at mesmo por membros da ordem a que Aquino pertencia a dominicana como Roberto Kilwardby. Lutero e Catvino foram arrojados pioneiros de novos conceitos no campo teolgico antes de se tornarem os respeitveis pais do Luteranismo e Calvinismo. Conquanto parea, para uma poca posterior, sadiamente tradicionalista um grande professor de teologia, certo que em seus dias no foi ele tido como um guia seguro para aqueles que sequiosamente iam emps da ortodoxia. Qualquer que se der ao trabalho de pesquisar isso deve logo convencer-se de que os grandes vultos da clssica teologia crist foram homens dominados por uma avassaladora vontade de conhecer a verdade e de lev-la a outrem, custasse o que custasse.

    v Visto que o telogo deve encarar a sua especialidade com um elevado conceito de sua dignTdd^vlrrsegue-se, na prtica se no de modo absoluto na teoria que ele ser um membro convicto da comunidade crist crente e testemunhadora. Onde mais adquirir ele o sentido do valor e da dignidade de sua cincia seno na Igreja Crist? Vivendo apartado da Igreja, certo ele nunca ter um conhecimento direto dos dados de sua pesquisa.. No , portanto, um mero acidente, e, sim, uma necessidade prtica (ainda que talvez no terica) serem os telogos membros da lereja. Existem, naturalmente, muitos peritos empenhados no estudo

    'cientifico de alguns ramos da teologia histrica que no do muito valor aos deveres e responsabilidades de membro da Igreja, ou que at mesmo permanecem fora da Igreja. Teologia dogmtica, porm, essencialmente

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  • o assunto da Igreja, pois que um dogma, ainda que simples, sempre uma definio eclesistica. E tal definio o resultado dos trabalhos do telogo. Este ponto coisa mui importante, e, no obstante, de contnuo ns o vemos mal compreendido. o telogo quem formula as definies ou dogmas das igrejas, e erra aquele que pensa que os dogmas so impostos aos telogos por uma autoridade extrateolgica. O dogma a articulao daquilo que a Igreja cr, e da alada do telogo articular aquilo que est implcito na existncia da Igreja. Somente aqueles que possuem isso que chamamos o conhecimento existencial da f e da vida da Igreja esto em condies de articular o seu verdadeiro significado. Os pensadores cristos de h muito j perceberam esta verdade; e podemos resumir a atitude geral deles nas palavras de Sto. Anselmo: O modo certo de se agir consiste em rermos nas coisas profundas da religio crist antes de nos pormos a discuti-las com a nossa razo. 1 Um indivduo que no compreende pessoalmente a f e a graa no ter probabilidades de avanar como telogo dogmtico, ainda que alcance notabilidade como perito de algum ramo da teologia histrica ou mesmo da histria do dogma. A situao no radicalmente diversa da que encontramos noutras cincias: concebe-se que um entusiasta do primeiro ano passe bem por um exame de astronomia (i. e., naquilo que ele conhece das obstinadas teorias dos pseudo-astrnomos), mas quem poder provar que ele nos vai ajudar a compreender melhor as estrelas?.VA tarefa do telogo, portanto, no dessas que um tcnico pode realizar cabalmente dentro de sua biblioteca. O primeiro datum da teologia a f, o culto e o testemunho da Igreja viva. A cincia teolgica uma necessidade em vista do fato de que hoje a declarao autntica da verdade crist se faz pela palavra e pelos sacramentos, pelo ministrio pastoral e pela assistncia espiritual e curadora atravs duma comunidade crist que mui recentemente se tem tornado mundial. O vigor e crescimento da Igreja no decorrer destes ltimos cento e cinqenta anos tm sido realmente notveis e como nunca se viu em qualquer outra poca da Igreja desde a era apostlica; e o despertar da compreenso de uma unidade essencial dos vrios ramos de uma nica igreja chamou a ateno de muita gente que pensa para o significado daquilo a que o Arcebispo Temple chamou de o grande e novo fato de nossa poca. Estas coisas, bem como muitas outras, tal como o aparecimento das igrejas confis- sionais e seu testemunho em face do neopaganismo do sculo XX, so dados empricos para o telogo. justamente esta qualidade de conhecimento que falta geralmente aos que esto fora da Igreja. E, mais ainda, eles tambm provavelmente nada sabem dos progressos alcanados pelo estudo da teologia histrica nos ltimos cem anos, e, por isso, no percebem que lhes faltam os materiais necessrios construo de um julgamento teolgico racional. Acresce ainda que no tarefa mui difcil apurar os fatos de que se constituem os dados da teologia, tanto os histricos como os contemporneos; no so fatos esotricos, nem msticos. So fatos muito bem documentados e acessveis ao escrupuloso exame de qualquer indagador interessado. mesmo uma caracterstica

    1 Cur Deus Homo, Livr. I, Cap. 2.

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  • especial do cristianismo apresentar fatos e chamar a ateno para acontecimentos que no se deram em qualquer canto.

    Resta-nos, talvez, adicionar que, assim como a Igreja e seu testemunho e vida so necessrios teologia, tambm esta necessria ao testemunho e vida da Igreja. A Igreja existe para proclamar a verdade por palavras e aes, e assiste grande razo a Barth quando afirma que a proclamao da Igreja a matria-prima da dogmtica, i Teologia a disciplina pela qual a Igreja retifica e ajusta a sua proclamao. Uma igreja que deixar de interessar-se pela teologia logo perder seu interesse por sua proclamao, e estar caminhando a passos largos para reduzir-se a uma instituio que sobrevive apenas do impulso de sua maquinria at seu final desmantelamento. 2 O reavivamento do interesse e do estudo teolgico que se verificou nos ltimos tempos ndice bem seguro da vitalidade da Igreja Crist e constitui em si outro datum para o telogo.

    1 Doctrine of the Word of God; Church Dogm