Albano, Adriana Helena - Memoria, Temporalidade Do Rastro e Confissão

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Memória: temporalidade do rastro e confissão Adriana Helena de O. Albano * 1. Introdução: O estudo das memórias e seus desdobramentos vêm ocupando um espaço cada vez maior nas análises críticas, principalmente devido ao fato de a memória ser um lugar não só de leitura de identidades, mas também da cultura, do tempo, do além do homem. Esclarecemos que não tomamos aqui nenhuma distinção entre autobiografia e memória. Entretanto, Silviano Santiago (SANTIAGO, 1989, p. 25-27) tenta estabelecer essa diferença: uma sendo a vida individual, a formação da personalidade e a segunda sendo considerada como representação de acontecimentos exteriores, aqueles vividos ou presenciados. Consideramos que a formação de uma identidade, de uma personalidade, sempre vai se construir sobre as vivências cotidianas, pelas influências externas e ainda por tudo que se constitui para o além do homem. Todavia, tal discussão passa para um outro campo, um campo mais restrito, adquirindo menos relevância quando levamos em conta os estudos de Derrida sobre a autobiografia como confissão, que considera toda escrita como sendo autobiográfica. * doutoranda em Letras pela Unesp

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Albano, Adriana Helena

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Derrida, Beckett e Freud: a temporalidade da memria

Memria: temporalidade do rastro e confisso

Adriana Helena de O. Albano*1. Introduo:

O estudo das memrias e seus desdobramentos vm ocupando um espao cada vez maior nas anlises crticas, principalmente devido ao fato de a memria ser um lugar no s de leitura de identidades, mas tambm da cultura, do tempo, do alm do homem. Esclarecemos que no tomamos aqui nenhuma distino entre autobiografia e memria. Entretanto, Silviano Santiago (SANTIAGO, 1989, p. 25-27) tenta estabelecer essa diferena: uma sendo a vida individual, a formao da personalidade e a segunda sendo considerada como representao de acontecimentos exteriores, aqueles vividos ou presenciados. Consideramos que a formao de uma identidade, de uma personalidade, sempre vai se construir sobre as vivncias cotidianas, pelas influncias externas e ainda por tudo que se constitui para o alm do homem.

Todavia, tal discusso passa para um outro campo, um campo mais restrito, adquirindo menos relevncia quando levamos em conta os estudos de Derrida sobre a autobiografia como confisso, que considera toda escrita como sendo autobiogrfica.

Seguindo esse caminho, desenvolveremos aqui, inicialmente, um pensamento ligado ao conceito de memria principalmente influenciada pelos estudos que Derrida (2002a) faz sobre o pensamento de Freud a respeito da constituio da psique humana. A partir dessa pesquisa pudemos observar que outro autor, Beckett, analisando Proust, aproxima-se de tais conceitos ao descrever a temporalidade no linear da obra proustiana e a formao constante do sujeito atravs das vivncias negociadas pela memria. Negociao que compreende ainda todo o inexorvel da existncia do homem sobre a terra.

Dessa forma, articularemos, num segundo momento, a relao da escrita autobiogrfica com a confisso, com a capacidade do texto em negociar o alm do texto e o alm do homem. A autobiografia ser considerada como testemunho auto-imunitrio, como a possibilidade de leitura da incomensurabilidade do ser por meio da escritura da vida.

Esse acontecimento da escritura vem como proposta de se analisar, num prximo artigo, obras autobiogrficas de escritores brasileiros. Deseja-se demonstrar como a desconstruo proposta por Jacques Derrida proporciona a leitura de parte do ser, daquilo que existe entre a vida e a morte. 2. Derrida, Freud e Beckett:

Freud quem primeiramente apresenta a memria de uma forma no fisiolgica. Ele a descreve psiquicamente e determina sua formao a partir do rastro mnsico proveniente da repetio de experincias. um processo complexo que consiste na atuao de um conjunto de foras diferenciais produzidas por meio da percepo e de acordo com a excitao. Desse processo a resultante ser o rastro minsico. Cada uma das foras, sozinha, no significa nada, mas em relao a outras produz o sentido que formar o rastro. Este consiste na marca provisria, que tambm estar em relao a outras marcas, para a inscrio de um novo rastro na memria, e assim sucessivamente.

A representao psquica de Freud para a memria descrita por Derrida como a resistncia que provocaria a abertura ao arrombamento do rastro. Tal acontecimento se daria da seguinte forma: um conjunto de foras diferenciais provenientes de experincias vividas provocaria o arrombamento, a abertura de um caminho por onde o rastro se inscreveria, rastro como resultante da relao diferencial. Qualquer inscrio na psique j supe um rastro, que poder ser apagado. Sua condio de existncia ser negociador de foras diferenciais sempre, para que outro rastro possa existir. Aquilo que est sendo inscrito passa a ser ento o prprio rastro, fazendo-se e refazendo-se sempre, a cada nova experincia. Por isso impossvel nos remetermos a uma origem, pois esta renovada a cada negociao do rastro.

A conscincia do indivduo, antes tida como principal parte do psquico, ento observada como um de seus constituintes e no mais seu universo total. Ela passa a ser vista como parte do conjunto, como uma de suas galxias, perdendo o status anterior e inovando a conceituabilidade temporal. Os conceitos de temporalidade determinavam que a conscincia era dada a partir da noo do presente. Toda a percepo era entendida como formada apenas por aquilo que acontece no presente, e dele se estenderia, frente, o futuro e, atrs, o passado, ambos ausentes porque seus acontecimentos no estariam presentificados ao ser na forma de presena. Entretanto, no h como garantir uma forma de conscincia que possua a realidade do vivido no presente, que possa apreend-la em sua originalidade. S podemos, ao contrrio, questionar tal fato na medida em que s conseguimos perceber aquilo que nos faculta significar, o que torna o presente e a sua realidade fatores simblicos. Alm disso, como j percebemos no tocante formao do rastro, h uma srie de elementos agindo nessa empresa, elementos que no se separam e s tm importncia em relao a outros. Poderamos citar, na ordem do psquico, agentes como a memria, o inconsciente, a conscincia e o pr-consciente, assim como a formao do sentido e do rastro, como resultante da organizao desses elementos. Tudo estaria ainda se relacionando, em diferena, com o social e o meio natural.

No podemos esquecer que as pulses de vida e de morte, inerentes a todo processo psquico, tambm exercem sua fora. O que acontece na medida em que as pulses direcionam a intensidade, deslocando vetores do campo da psique no qual os sentidos e os rastros so produzidos. Pulso de vida e pulso de morte como formas de proteo vida, como constituintes do ser e da forma de negociar os significantes. A problemtica do psiquismo, desse formador e formao do ser, deve se direcionar para o estudo da memria, ela prpria sendo o psiquismo e no uma de suas particularidades. Atravs da lembrana h a preservao da vida na forma de repetio e de pulso de morte. Essas duas na verdade esto intimamente ligadas, pois o que acontece no processo de rememorao a repetio de um estdio anterior experimentado e articulado com os conhecimentos adquiridos a posteriori, diferindo-se. Pelo processo de diferenciao e suplementaridade, a morte surge como o horizonte incomensurvel, mas que est sempre presente (no como presena) vida, se no a prpria vida acontecendo. A descoberta de Freud que Derrida persegue ento direcionada para alm do psiquismo do sujeito.

A memria se daria como rastro, fruto de exploraes marcadas pela diferena, caminho aberto em que no se poderia fazer o caminho de volta origem. como o caminhar por um deserto em que os passos seriam apagados pelo vento oeste . No haveria a possibilidade de traar a mesma trajetria, no mximo uma aproximao. Graas ao fato de no podermos voltar a um estgio anterior puro, que conseguimos elaborar novas formulaes a respeito da vida, sempre renovada. Caminho aberto como o resultado provisrio de foras atuando infinitamente e de forma diferencial. A repetio em diferena provocada pela excitao causada pelo contato com o meio a responsvel pelo acontecimento do rastro. O rastro s se transforma em marca mnsica por meio da repetio em diferena e da forma da excitao. A inscrio do rastro proporcionada pela diversidade de foras. Freud afirma ainda que um meio de preservao da vida pela economia de morte, pois a repetio se d como forma de diferena em relao situao de perigo, em que o indivduo difere a experincia para a autopreservao. Acontece forma originria ser inaugurada pela repetio em diferena: certo que a vida se protege pela repetio (DERRIDA, 2002a, p. 188), mas ao mesmo tempo no h uma vida primeiramente que viria a ser preservada. Esse processo da economia de morte seria o prprio acontecer da vida, seria a vida se fazendo, j que ela no existe sem a economia de morte, sem repetio em diferena, sem rastro.

Assim, a memria, a recordao, a tentativa de repetio de uma experincia, no pode nunca retomar um ponto passado na linha do tempo, pois nem a linha nem o ponto estaro l. Devemos ento pensar de outra forma, pensar a constituio temporal no como uma sucesso de tempos, mas como a irrupo de um feixe. Um acontecimento nico e imprevisvel que constitui-se por uma mecnica em que no h origem nem centro organizador e em que cada constituinte influencia o outro, cada um sendo responsvel pela formao do outro, garantindo a prpria existncia graas a um movimento renegociador e revivificante. a reatualizao como um devir-sendo, que compe a contemporaneidade das experincias e do se-fazer, como forma de auto-constituio pela repetio na diversidade. Uma agoridade sempre dada como a ser constituda e a ser inaugurada como originria, ao mesmo tempo em que nega tal condio. Um acontecimento que ao invs do ser ou no ser, formaria um ser no sendo a partir de si, do sendo em si, diferindo-se por uma ausncia de semelhana que sempre poder comportar.

Dessa forma, podemos dizer que no existe um texto na folha de papel como transcrio de outro texto interior ou inconsciente. A prpria existncia de um texto autobiogrfico j implica em modificao no ser, de sua existncia a si. Uma existncia mutante que provoca a criao do sentido, do sentido como um vir-a-ser. Segundo Freud, a parte psquica que recebe os estmulos exteriores no forma marca duradoura, o que nos faz pensar que a escrita pode registrar o acontecimento antes mesmo de esse aparecer prpria conscincia, o percebido s se d a ler no passado, abaixo da percepo e depois dela (idem, p. 219).

importante lembrar que no h como separar o mundo exterior daquele do psiquismo, uma vez que todo o exterior nos apresentado sob nosso ponto de vista, como interpretao. O material psquico formado pela percepo do externo, assim como este o influencia, numa via de mo dupla: A soma de todas trilhagens, os acontecimentos, os incidentes que sobrevieram no desenvolvimento do indivduo constituem um modelo que fornece a medida do real (LACAN, 1954-1955, p. 140).

A constituio do ser, da psique e portanto da memria, tudo de forma imbricada, funciona como uma mquina e forma aquilo que chamamos trao. Entendemos por trao aquilo que deixa a marca no indivduo, mas que pode ser apagada, e rastro como um vestgio, um caminho aberto que traa sua via para necessariamente se apagar, o que a condio de sua existncia. O rastro nunca ser sentido como presente conscincia, mas na condio de dar abertura para um acontecimento que ainda est se fazendo, que ainda est por vir, o trao.

Percebemos que a escrita, assim como o sujeito, no possui uma forma fixa e imutvel e que o autor tambm perde o seu status de limite e dono da obra. O escritor vai apenas comportar um de seus sentidos, e o comportar na verdade quer dizer que em um momento ele deixou-se no-ser atravs da escritura para se refazer apenas depois dela, depois de ter se descoberto mais de um e principalmente um no mesmo. O processo da escrita parece ser um eterno redescobrir, um redefinir a si e dinmica da existncia a partir da experienciao e da formao do sentido futuro no texto. Uma tarefa no muito fcil a partir do momento em que a tendncia do homem, muitas vezes, se paralisar diante de redefinies de seus valores.

Beckett, ao analisar Proust, se aproxima bastante das considerao derridianas de tempo. Afirma que o tempo um monstro de duas cabeas: danao e salvao. Explica que o ontem nos deformou ou ns a ele, num caminho de morte constante, morte na/da vida para que esta se fizesse presente. Sobre o funcionamento da psique tambm diz que no podemos controlar a memria ou os fatos evocados, tanto porque o que obtemos do real apenas uma caricatura, quanto porque no h possibilidade de identificao do sujeito com o objeto desejado. No caso da autobiografia, a identificao do autor com o narrador. Para Beckett a personalidade constantemente modificada fruto mais uma vez da passagem do tempo no interior do indivduo. O estudioso da obra de Proust discorda de uma temporalidade medida pela forma tradicional. Ele utiliza a metfora do diamante para apresentar a relao no excludente, mas sim articulada das temporalidades: o diamante em uma estrada batida deforma e deformado, ao mesmo tempo em que resiste e mantm seu trabalho. Em seu fim est uma ameaa e uma promessa:

No h como fugir do ontem porque ontem nos deformou, ou foi por ns deformado. (...) Ontem no um marco de estrada ultrapassado, mas um diamante na estrada batida dos anos e irremediavelmente parte de ns, dentro de ns, pesado e perigoso. (BECKETT, 2003, p. 11) Para o sujeito, a transformao de si atravs do processo de reformulao e re-significao dolorosa e no acontece tranqilamente. O antigo eu, no trabalho de formao, de modificao de seus anseios, medos e culpas, resiste at o ltimo momento antes de ceder. Tem-se ento uma relao que se estabelece como um lugar de diferena que acrescenta. A ameaa do estranho e do diferente provoca um movimento da psique para que ela possa se defender, reorganizando-se para tornar familiar aquela nova experincia: Esfoliao perptua da personalidade (idem, p.25). Beckett descreve algo parecido com o processo psquico do bloco mgico freudiano, na medida em que se refere ao pacto renovado, uma forma de se preparar para os acontecimentos vindouros, mas que tambm representa a morte, uma eterna morte daquilo que havia antes para o nascimento de uma nova forma de negociao da percepo. Notamos, ao relacionar as anlises de Beckett com as de Derrida e Freud, que a reviravolta das sensaes e formulaes habituais para que o novo tome lugar, corresponderia ao arrombamento para a inscrio do rastro.

Para Beckett, a verdadeira essncia de toda forma de experincia est no intruso, no objeto estranho a nossa percepo. Algo misterioso racionalidade at ento erigida e baseada em conhecimentos devidamente apreendidos. O misterioso no parece encaixar-se em nossa estrutura de imediato e preciso que haja uma rearticulao para que seja apreendido, o que nos remete novamente pulso de morte, ou vida morte.

O tempo para Proust no segue uma linearidade tradicional, mas extra-temporal, est ausente da noo da cronologia habitual.

Na morte h uma perda de si mesmo e talvez atravs da autobiografia se possa apreender a si, esse outro em mim, e acolh-lo, deix-lo o mais prximo possvel na tentativa ilusria de deix-lo preso, adiando o ltimo instante, o da separao final. Para pensarmos a memria e seu funcionamento necessrio que a enxerguemos como construo da lgica do suplemento, pois: O indivduo uma sucesso de indivduos (idem, p. 17). O sujeito faz um eterno retorno em forma de repetio, mas repetio em diferena, como se sempre algo estivesse a se acrescentar, em momentos distintos, a cada camada psquica, mas sob a condio de estas estarem sempre em relao de diferena e espaamento. Cada uma em relao a todas as outras.

O tempo da memria e do ser um tempo presente. Presente como presena de um passado ausente, a se fazer em forma de promessa.

3. A escrita de memria como confisso

Para tratarmos do assunto expresso pelo ttulo acima precisamos fazer um retorno s origens, referirmos previamente a um perodo muito anterior, a um tempo mtico que corresponde ao relato da Gnese. Esse caminho, necessrio para nossas consideraes, na verdade segue um outro caminho j aberto e tambm traado por Jacques Derrida. Via a qual orienta muitas outras consideraes acerca da relao entre a escrita autobiogrfica e o gesto confessional em seu sentido eclesistico.

Recuemos ento ao momento do pecado, do erro cometido pelo homem no paraso aps ter comido o fruto da rvore da vida. O erro consistia, ao mesmo tempo, em desobedecer a uma ordem divina, no conhecimento do bem e do mal e da nudez, assim como na vergonha por estar nu. O que vai nos interessar aqui o rompimento da condio de um no-saber sobre si e tudo o que se seguiu a isso. Quando o homem passa a conhecer e a reconhecer sua condio de estar nu, com seu sexo exposto, ele se envergonha, perde sua pureza original, cobre-se e em seguida, quando tal fato dado a conhecer a Deus, severamente punido. Punido inclusive com a futura morte, pois perde sua condio de imortalidade e passa a ser mortal. Segue-se ento a esse fato que todos os homens passam a ser punidos pelo pecado de um s, mas tornado de todos.

Na natureza o homem o nico animal que se cobre, que tem vergonha de seu sexo. , portanto, o nico que se sente nu, que se sente impuro e necessita cobrir-se. Os animais, segundo Derrida, no se sentem nus porque so nus, para eles no existe a condio de nudez. Assim, podemos concluir que no h um pensamento do bem e do mal sem o sentimento da nudez, sem sentir-se impuro, j que foi a partir desse acontecimento que fomos expulsos do paraso. Os trs fatores, o conhecimento do bem e do mal, o conhecimento da prpria nudez e a punio, esto intimamente ligados. O saber sobre si mesmo que implica o conhecimento de estar nu envolve todo o comportamento humano, toda sua forma de representao, pois no h como pensar separadamente o saber e a tcnica e tudo que est relacionado a esse vivente depois do erro inaugural:

o vesturio responde a uma tcnica. Ns teramos ento que pensar juntos, como um mesmo tema, o pudor e a tcnica. E o mal e a histria, e o trabalho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o nico [animal] a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. (DERRIDA, 2002, p. 18)

O conhecimento do bem e do mal e da situao em que se encontrava no mundo deram ao homem o poder de ser igual aos deuses, mas o conhecimento tambm lhes garantiu o sentimento de impureza, de culpa. Aps o pecado original o homem passa a se constituir em uma rede de relaes calcadas pelo erro cometido na origem e pela necessidade de redeno.

Pensemos ento da seguinte forma: se o homem se sente envergonhado, se sente necessidade de cobrir-se, porque se sente impuro, mas necessita sentir-se puro e por isso cobre-se. Esse sentimento acontece mesmo quando estamos ss, ou no exemplo de Derrida, quando estamos diante de um animal que est nu e que no tem conhecimento de sua nudez e nem da nossa. O pensamento aqui se direciona ento para a hiptese de que o sentimento de vergonha e impudor, desde a Gnese, est presente na constituio do homem ocidental, em seu comportamento, em sua forma de ver o mundo e principalmente de ver a si mesmo.

Todavia, se s podemos sentir vergonha diante de um outro, quando estamos ss ou diante de um animal que no possui o conhecimento da nudez e sentimos necessidade de nos cobrir, a vergonha diante de quem? Diante do outro, do outro em mim. Percebemos que antes de nos dirigirmos ao outro externo, nos dirigimos primeiramente a ns, a um outro em ns, e diante dele que precisamos, primeiramente, confessar.

importante lembrar que o homem o nico animal que conta a sua prpria histria, que est sempre se lembrando dos atos passados, recordando, passando em revista a histria do homem. Segundo Derrida (2002b), o homem um animal autobiogrfico, e esta autobiografia, a histria de si, depois do pecado original torna-se confisso, testemunho de um erro inaugural, uma dvida estabelecida entre criador e criatura.

O testemunho, antes do discurso, antes de sua passagem ao ato vai sempre se dirigir ao outro, sempre vamos narrar primeiramente a um outro em ns, um trabalho de abertura para o post-scriptum. O testemunho ento no deixa de fazer com que haja uma reflexo sobre si, uma reflexo autobiogrfica antes de se relacionar com o nome de Deus. A religio uma resposta diante de si e diante de Deus. A literalidade e a escrita so componentes fundamentais de toda crena e de toda forma de revelao, de resposta revelao. uma via de mo dupla: se toda forma de religio j supe uma resposta, uma resposta primeiramente provocadora de uma reflexo interior, ou seja, de um movimento autobiogrfico, toda autobiografia tambm uma forma de confisso, de testemunho, um testemunho auto-imunitrio. Percebemos a partir dessa argumentao que a escrita um lugar sagrado na medida em se constitui tambm como sepultura, lugar de morte para o renascimento de um outro, agora rearticulado atravs do texto.

Santo Agostinho inaugurou um pensamento filosfico cristo no qual a confisso consistia num movimento da alma como intimidade, como um poder de atingir o interior de si, pois a que se encontra a verdade. Constri-se assim uma forma de individualizao num mundo em que era valorizado o coletivo em detrimento do particular. Para o cristo necessrio o conhecimento individual, intra-pessoal, para que o homem tenha condies de atingir a Divindade, o que inaugura um pensamento individual, uma preocupao com o sujeito. No mundo antigo, o ntimo, o particular no eram to valorizados. Houve o orculo de Delfos, o conhece-te a ti mesmo. Presente tambm em Scrates, Plato e Aristteles. Mas os gregos dificilmente diziam eu. Diziam na maioria das vezes ns.

Derrida (1995) escreve que quando Santo Agostinho se perguntava porque deveria se confessar a Deus, j que Ele tudo sabe e tudo v, a resposta era que o ato de confisso no busca informar a Deus os pecados, mas sim em dar graas vida, em aumentar o conhecimento sobre si mesmo, aproximando-se do Criador.

A escrita autobiogrfica carrega a memria de um tempo muito remoto, aquele que vai alm da prpria escrita, e que no s se remete ao Testamento, mas a prpria Escritura do homem, de sua existncia na Terra. a formao de um tecido que carrega o post-scriptum que no dito, nem previsto, mas sempre uma promessa, um dever, uma dvida, a possibilidade do (ainda) impossvel. A escrita comporta um desejo de confisso e por isso sua capacidade de obter o perdo infinita. Todo desejo de confisso carrega em si a absolvio inerente porque confessar saber-se perdoado.

Atravs da narrativa de uma vida, tenta-se nomear aquilo que vai alm do nome (a experincia, a paixo), o inominvel. A confisso atravessa toda a escrita autobiogrfica e tenta salvar o ser que vai alm de si e que existe atravs do nome, que comporta o nome ou o caminho aberto por ele. Tenta-se salvar tudo aquilo que trazido pelo nome, exceto o nome, e pode-se pensar que o ato da escrita injusto. Porm, tal fato significa sim respeit-lo em sua condio de nome, perceber sua economia de existncia, seu trabalho, que o de anunciar a chegada do outro, a lembrana do outro e estacionar-se em sua nudez, para abrir possibilidades futuras.

Existe no texto, ao mesmo tempo, um sentimento de pecado e de restituio marcado por uma espcie de eterno reconhecimento e gratido pela vida, pela ddiva divina da vida, pela existncia do homem sobre a Terra. Podemos dizer que se vive um tempo calcado pela tentativa de redeno e de gratificao, um pela falta cometida no incio e outro pelo dom da vida, da vida inteira. Isso porque diferentemente do pensamento grego, o cristo acredita que o mundo foi criado, que Deus o criou a partir do nada, antes havia nada, e ele criou o cu e a terra, e criou por amor. Assim estaremos sempre em dvida por termos recebido a vida, por ela ter sido dada a ns, sem nada em troca. Mas o homem est ameaado pelo nada, pela condenao morte devido passagem da serpente.

Rousseau afirma que um roubo cometido em sua adolescncia o levou a escrever suas memrias: Esse peso continuou, pois, at hoje sem o alvio da conscincia, e posso dizer que o desejo de me livrar dele de alguma maneira muito contribuiu para a resoluo de escrever minhas confisses (apud Derrida, 2004, p. 59). A escritura da vida realizada pela autobiografia a escuta das vivncias de um eu que no consegue reconhecer-se, mas que tenta representar esse outro metonmico e metafrico torna-se assim um gesto de restituio e de reconhecimento. Restituio porque atravs do discurso de contar-se a si primeiramente a sua vida que o homem estar buscando a salvao. A obra seu testemunho, a revelao, a verdade, uma verdade sobre a vida, uma confisso que por si s j pressupe o perdo, j o liberta do mal cometido, da culpa. A necessidade de voltar-se para as aes passadas afeta o eu e retraa o caminho a seguir e o caminho seguido, atravs da reconstituio de si, e em busca da salvao. Em toda forma de confisso, de testemunho, est subentendido um eu digo a verdade e digo a algum, e toda forma de promessa de dizer a verdade, todo juramento, j envolve instantaneamente Deus. No h juramento nem testemunho sem Deus.

A memria, o voltar-se para os fatos passados da prpria histria individual, exerce um papel de libertao em relao ao tempo e imagem racionalista do mundo quando acontece nas manifestaes religiosas. assim no Cristianismo e no Budismo: o primeiro remete sempre a existncia a um tempo mtico, e o segundo, de acordo com Mircea Eliade (1972), garante aos mais evoludos uma memria absoluta, porque pode recordar toda a vida, o que garante um poder de Cosmocrata. Isso ocorre porque o poder, o trabalho de recordar considerado maior do que o poder de conhecer a origem, j que na recordao h um movimento de redescoberta e re-significao.

a abertura de registro de um ser como confisso, num movimento de rememorao, de lembranas muitas vezes difceis, que traz tona os erros cometidos, os maus comportamentos, mas tambm a necessidade de ser perdoado, redimido, purificado. A confisso e a necessidade de perdo nascem naquele tempo mtico e marcam a busca de crdito com o doador-credor que Deus, aquele que d, mas quer receber a dvida em forma de um determinado comportamento humano.

O contar sobre si como forma de reconhecimento pela vida acontece como uma operao em que reviso e re-visito minha existncia para cont-la, para reconhec-la como valorosa. Uma gratido infinita por estar vivo, por ter vivido e poder contar-se a sua vida.

O sacrifcio realizado pela escrita, a experincia de poder e de autoridade sobre o sujeito e sobre as leis da vida provocam uma perda de si por vontade prpria. Perda para no estar sujeito a nenhuma dualidade opositiva, nem acima, nem abaixo, nem servo, nem senhor. Um ato de f, de crena no poder da palavra, de sua promessa, a promessa de que realizar seu trabalho por si mesma, na ausncia de seu autor.

A autobiografia carrega a tenso entre a vida-e-morte, estas inseparveis, para tentar dar conta da incomensurvel organizao da existncia humana que a de sobrevivncia e desaparecimento. A escritura das memrias trabalha e metaforiza tempo e indivduo e, por isso, realiza um movimento de morte e ressurreio, confisso e renovao.

No processo de reconhecimento, acontece um trabalho de autoconhecimento voltado para a restituio, que abarca o ser em sua complexidade. Fato que ao mesmo tempo aproxima e afasta o sujeito de si mesmo, numa relao de estranhamento e familiaridade. H um deslizamento das personalidades desencadeado pelo desejo de continuidade infinita da conciliao dos eus.

A delimitao de uma vida atravs da sua narrativa coloca um espao em que o contar sobre si pode ou no ser resultado de uma inveno, mas carrega uma relao com a vida e com as necessidades presentes. Carrega uma tenso e um desejo de pagar uma dvida atravs da reviso dos atos passados, de um desvelamento de si. Escreve-se a vida porque ela digna de ser escrita, porque ela agradecimento ao valor que lhe devido.

O retorno a um tempo ausente, mtico, num movimento que carrega o rastro arcaico no momento de busca do passado (em passado como presena), da escrita da vida, pode ser considerado um gesto imunitrio (e pois um movimento de salvao, de salvamento e de salvao do salvo, do santo, do imune, do indemne, da nudez virginal e intacta) (DERRIDA. 2002, p. 87).

A dignidade do ser vivente algo que extrapola a prpria vida e o vivente, indo alm deles, e nesse espao que pode habitar a religiosidade, a paixo, no alm do texto que o texto comporta. A vida do vivente vale mais do que ela prpria, est alm dela, e no excesso, na suplementaridade que acontece a necessidade de perpetuao e sua relao com a finitude, a relao com a morte, o gesto auto-imunitrio. S o texto pode abrigar tamanha complexidade, s atravs dele pode-se negociar a incomensurabilidade da existncia.

Aquilo que mantm uma comunidade humana auto-imune em vida sua capacidade de estar sempre aberta a algo alm dela, uma sobre-vivncia, algo que poder ser o outro, a liberdade, a morte, Deus. Algo que possibilitar a tentativa do retorno pureza. Assim, toda forma de testemunho possui j um interlocutor que o excede, que vai alm, e que tenta resgatar um tempo antes da queda, para que possa unir-se a Deus, tornando-se igual a Ele. A transitoriedade das coisas mundanas, a mudana das etapas de vida do homem, ou mesmo da natureza o nascer, crescer, envelhecer e morrer garantem ao ser a certeza da morte, sua inevitabilidade e diante disso ele tenta sobreviver a ela, perpetuando-se atravs da obra.

A escrita de memria possui a fora de libertar a obra do tempo, libertando autor e obra de qualquer tentativa de fixidez, j que o escritor, num processo de deslizamento, percorre um caminho traado por si mesmo. Movimento que consiste em deslocar-se rumo ao desconhecido, rumo ao impossvel, como afirma Derrida: Ir aonde possvel ir no seria um deslocamento ou uma deciso; seria o desenvolvimento irresponsvel de um programa. A nica deciso possvel passa pela loucura do indecidvel e do impossvel: ir aonde (wo, Ort, Wort) impossvel ir (idem, 1995, p. 42), pois nada em tal processo pode ser controlado.

A inteno do sujeito antes de iniciar a escrita autobiogrfica apenas uma das foras que interagem num processo maior de iterabilidade, que vai inscrever a marca, o rastro. Mas essa determinao ser provisria, podendo ser transformada, j que se trata de uma cadeia de signos na qual nunca poderemos obter o nome exato que una em definitivo um nome a uma nica coisa (NASCIMENTO, 1999, p.160). Dessa forma, a incomensurabilidade da existncia humana, a confisso, o pecado e o perdo, se faro presentes como devir, negociando o alm do homem.

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SANTIAGO, Silviano. Prosa literria atual no Brasil. In: ____ Nas malhas da letra: ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 25-37.

* doutoranda em Letras pela Unesp

Para Freud os organismos tenderiam manuteno de seu estado anterior, o estdio de no evoluo, aquele anterior vida. Todas as transformaes ocorridas buscando a evoluo foram provocadas pelos estmulos exteriores que obrigaram os seres a se preparem para os acontecimentos exteriores e com isso se tornarem mais complexos. Mas nunca a compulso vida anterior (morte, inanimao) cessou, estando, ao contrrio, se organizando junto a esses novos impulsos exteriores, desenvolvendo-se rumo ao estado inicial, ao de inanimao, de morte, de pulso morte. Seria a vida desenvolvendo-se rumo morte.

Na mitologia, Eros pede ao Vento Oeste que salve Psique da morte retirando-a do penhasco.