Albert Camus - Fenomenologia E Absurdo (PDF)

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An. Filos. São João del-Rei, n. 10. p. 305-315, jul. 2003 ALBERT CAMUS: FENOMENOLOGIA E ABSURDO Ac. Camila Jourdan - Filosofia – UERJ Orientadora: Prof. Cléa Góis - UERJ Resumo: Este artigo se propõe caracterizar de maneira introdutória a presença da feno- menologia de Edmund Husserl na obra filosó- fico-literária de Albert Camus, mostrando em que sentido ela se aproxima e em que sentido ela se afasta do enfoque existencialista dos autores de sua época e, em especial, da proposta sartriana. Primeiramente, explicita- remos sinteticamente o método fenomenoló- gico e a sua utilização contemporânea pelo existencialismo. A seguir, relacionaremos os mesmos com os conceitos básicos da obra camusiana, a saber: o absurdo, a revolta e a felicidade sensível. Para tanto, partiremos da seguinte hipótese: Albert Camus pretende responder à mesma questão que deu origem ao pensamento moderno existencialista fe- nomenológico, ou seja, saber se diante da consciência do absurdo a vida vale a pena. Porém, Camus não considera fundamental noções como: liberdade, escolha e historici- dade. Assim, ele pretende se manter fiel a falta de sentido tanto do mundo quanto do homem, superando o absurdo somente na afirmação trágica do mesmo. Palavras-chave: Albert Camus. Edmund Husserl. Absurdo. Abstract: This article intends to characterize in an introductory way the presence of Ed- mund Husserl's phenomenological in Albert Camus's philosophical-literary work, showing in that felt she approaches and in that felt she stands back of the authors' of your time exis- tentialist focus and, especially, of the proposal sartriana. Firstly, we will show sinteticamente the phenomenological method and your con- temporary use for the existentialism. To pro- ceed, we will relate the same ones with the basic concepts of the work “camusiana”, to know: the absurdity, the revolt and the sensi- tive happiness. For so much, we will leave of the following hypothesis: Albert Camus in- tends to answer to the same subject that cre- ated the thought existentialist modern phe- nomenological, in other words, to know before the conscience of the absurdity the life is worthwhile. However, Camus doesn't consider fundamental notions as: freedom, choice and history. Like this, he intends to stay faithful the sense lack so much of the world as of the man, only overcoming the absurdity in the tragic statement of the same. Key-Word: Albert Camus. Edmund Husserl. Absurd. Introdução tese normalmente aceita pelos mais variados autores que as questões fundamentais do pensamento moderno são, senão introduzidas, pelo menos representa- das na História da Filosofia, por Im- manuel Kant. Não cabe aqui analisar a crítica kan- tiana, apenas ressaltar que as ques- tões levantadas na obra de Kant subjazem o método fenomenológico É

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An. Filos. São João del-Rei, n. 10. p. 305-315, jul. 2003

ALBERT CAMUS: FENOMENOLOGIA E ABSURDOAc. Camila Jourdan - Filosofia – UERJOrientadora: Prof. Cléa Góis - UERJ

Resumo: Este artigo se propõe caracterizar

de maneira introdutória a presença da feno-

menologia de Edmund Husserl na obra filosó-

fico-literária de Albert Camus, mostrando em

que sentido ela se aproxima e em que sentido

ela se afasta do enfoque existencialista dos

autores de sua época e, em especial, da

proposta sartriana. Primeiramente, explicita-

remos sinteticamente o método fenomenoló-

gico e a sua utilização contemporânea pelo

existencialismo. A seguir, relacionaremos os

mesmos com os conceitos básicos da obra

camusiana, a saber: o absurdo, a revolta e a

felicidade sensível. Para tanto, partiremos da

seguinte hipótese: Albert Camus pretende

responder à mesma questão que deu origem

ao pensamento moderno existencialista fe-

nomenológico, ou seja, saber se diante da

consciência do absurdo a vida vale a pena.

Porém, Camus não considera fundamental

noções como: liberdade, escolha e historici-

dade. Assim, ele pretende se manter fiel a

falta de sentido tanto do mundo quanto do

homem, superando o absurdo somente na

afirmação trágica do mesmo.

Palavras-chave: Albert Camus. Edmund

Husserl. Absurdo.

Abstract: This article intends to characterize

in an introductory way the presence of Ed-

mund Husserl's phenomenological in Albert

Camus's philosophical-literary work, showing

in that felt she approaches and in that felt she

stands back of the authors' of your time exis-

tentialist focus and, especially, of the proposal

sartriana. Firstly, we will show sinteticamente

the phenomenological method and your con-

temporary use for the existentialism. To pro-

ceed, we will relate the same ones with the

basic concepts of the work “camusiana”, to

know: the absurdity, the revolt and the sensi-

tive happiness. For so much, we will leave of

the following hypothesis: Albert Camus in-

tends to answer to the same subject that cre-

ated the thought existentialist modern phe-

nomenological, in other words, to know before

the conscience of the absurdity the life is

worthwhile. However, Camus doesn't consider

fundamental notions as: freedom, choice and

history. Like this, he intends to stay faithful the

sense lack so much of the world as of the

man, only overcoming the absurdity in the

tragic statement of the same.

Key-Word: Albert Camus. Edmund Husserl.

Absurd.

Introdução

tese normalmente aceita pelosmais variados autores que asquestões fundamentais do

pensamento moderno são, senãointroduzidas, pelo menos representa-das na História da Filosofia, por Im-

manuel Kant.

Não cabe aqui analisar a crítica kan-tiana, apenas ressaltar que as ques-tões levantadas na obra de Kantsubjazem o método fenomenológico

É

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de Edmund Husserl e, portanto, aosconceitos camusianos.

Kant estabelece, como é sabido, oslimites do conhecimento racional.Com isso, ele introduz na modernida-de a questão fundamental da separa-ção entre o homem e a natureza.Desde os mitos, passando pelas reli-giões e por toda a história do pensa-mento, essa cisão foi pensada a par-tir da capacidade humana de cogni-ção, ou seja, o homem se separa danatureza pois é capaz de estabelecerconhecimento sobre ela, criando as-sim uma segunda realidade conceitu-al. Ao longo da história, boa parte dospensadores se dedicaram, implícitaou explicitamente, a resolver essaseparação.1 Kant inaugura a moder-nidade afirmando justamente essacisão através da sua teoria do conhe-cimento2. Ele une empirismo e raciona-lismo a partir da separação entre a reali-dade (como as coisas são nelas mesmas)e a forma como a conhecemos (como ascoisas aparecem para nós). Para Kant,nosso conhecimento se dá a partir daordenação de nossas intuições nas cate-gorias do entendimento. As intuições sóseriam possíveis nos conceitos puros denossa sensibilidade, a saber: o espaço eo tempo. Eles dariam a forma em quealgo é experimentado. Já as categorias,seriam os conceitos puros, ou melhor,aquilo que permitiria conceitos em ge-ral. Elas dariam a forma de comoalgo é pensado e seriam, portanto, 1 Posteriormente a Kant, podemos ressaltar o Ro-mantismo Alemão como um bom exemplo dessatentativa de síntese através da experiência estética.2 Pode-se a apontar a própria obra de Kant resolu-ções para essa cisão. Afinal, ela seria, em certosentido, cognitiva mas não ontológica. No entanto,não cabe aqui nos aprofundarmos nessa questão.

condições de toda experiência, poispermitiriam a síntese do múltiplo. Issoincluiria o próprio sujeito que experi-menta, pois seriam regras pelasquais identificaríamos o diverso naunidade.

Assim, Kant faz o conhecimento ob-jetivo depender igualmente dos da-dos sensíveis e da razão, refutandotanto o ceticismo (já que o conheci-mento objetivo é possível), quanto odogmatismo (já que ele não dá contade uma ontologia da realidade). Opreço desse milagre talvez seja oprimeiro desespero moderno (nostermos de Camus, o absurdo): aquiloque o homem conhece (fenômeno)não é o mundo em si mesmo (nou-menon). Para alguns, o fim da meta-física; para outros, uma nova facetada mesma. É da separação entreconhecimento e mundo, que tambémé uma separação entre o abstrato e osensível, a mente e o corpo, 3 que opensamento precisará dar conta apartir de então.

Foi a isso que Nietzsche chamou AMorte de Deus, ou, nas palavras doromântico Friedrich Hölderlin, OAfastamento Categórico: virada decostas mútua entre homens e deu-ses. É nessa impossibilidade de me-tafísica que o afastamento entre ho-mem e mundo provoca, é nesse va-zio deixado por uma epistemologiaque torna ausente a possibilidade decritérios absolutos para nosso saber,que surge o Método Fenomenológico

3 Kant não propõe essa separação, pois a própriaintuição sensível é abstracta. No entanto, essa seriamais uma afirmação da referida cisão, afinal, nohomem, mesmo o sensível seria abstracto.

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e, posteriormente, o Existencialismo.Nesse último, como veremos, é fun-damentalmente na existência do indi-víduo que esse vazio será retratado.

O Método

Edmund Husserl é considerado oprecursor do Método Fenomenológi-co, uma proposta epistêmica queprecisa dar conta da demanda kanti-ana, pretendendo rigor científico eabrangência ontológica. Ou seja,Husserl quer um saber objetivo queforneça a realidade do conhecido, emcerto sentido, um fenômeno que sejanoumenon. Dito de outro modo: Hus-serl precisa que a aparência Seja.Esse é o princípio fundamental daFenomenologia: a quebra da separa-ção entre aparência e coisa em si,que propõe unir novamente o mundoe o homem.

Para Husserl, o Ser essencial domundo só pode ser descoberto a par-tir da sua relação com o Eu. Isso por-que, partindo das idéias de Brenta-no4, Husserl considera a intencionali-dade como característica fundamen-tal da consciência. Ou seja, a consci-ência é sempre consciência de algu-ma coisa. Através desta noção, Hus-serl pretende superar a cisão entreabstrato (homem) e sensível (mun-do). Para tanto, seria necessário, emum primeiro momento, a chamada“redução fenomenológica”: suspen-são da crença em uma realidade ob-jetiva independente do sujeito cog- 4 Filósofo e psicólogo alemão do final do séculoXVIII. Brentano reintroduziu na filosofia a noçãomedieval de que a intencionalidade é o aspectofundamental da consciência. Foi considerado porisso o precursor da Fenomenologia.

noscente (epochê)5. Para a Fenome-nologia, não existe nenhuma realida-de se escondendo atrás dos fenôme-nos. Isso não significa que a aparên-cia seja a realidade. Nem tão poucoum idealismo subjetivista. Afinal, paraHusserl, é necessário se chegar àsessências dos fenômenos (eidos) eessas essências são objetivas, sãopara todos. Isso significa que os fe-nômenos revelam a realidade e queas essências são, elas mesmas, fe-nômenos.

Segundo Husserl, a relação cognitivapossui um pólo intencional e um póloobjetivo. O primeiro, o pólo da cons-ciência, só existe em relação com osegundo, o objeto. Por outro lado, aprópria consciência é possibilidadede aparição desse objeto. Pode-se-iadizer, então, que a consciência e ofenômeno estão em relação de bi-condicionalidade, ou seja, implicam-se mútua e necessariamente, sendo,portanto, equivalentes. O objeto se-ria, em sua essência, uma aparição.E é essa essência-aparição, essefenômeno-noumenon, que a Feno-menologia pretende enfocar. A cons-ciência seria o fundamento da possi-bilidade do objeto, ou seja, da apari-ção. No entanto, como vimos, por serintencional, a consciência tambémrequer como possibilidade um objetoindependente dela. O pólo intencionalé condição de sua própria condição,a saber, o pólo objetivo. Nesse senti-do, ela implica uma realidade objeti-va, enquanto aparição que se revelaimediatamente a ela, na intuição dasessências. O pólo objetivo nada mais

5 Vocábulo grego que significa ‘abstenção’.

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é do que o termo objetivo da consci-ência intencional. A consciência, emseus diferentes modos, dá diferentessentidos às coisas. No entanto, osentido tem de existir independentede ser constatado pela intuição dasessências.

Para a Fenomenologia, consciência efenômeno (nos termos de Sartre: oPara-Si e o Em-Si) são equivalentes.Mas, embora dependam um do outro,não podem colapsar totalmente. Aolongo de sua teoria, Husserl acabaretomando o conflito pré-crítico entreidealismo e realismo. Afirmando tê-losuperado, Husserl o mantém no pri-vilégio ora do aspecto subjetivo, orado aspecto objetivo dessa condicio-nalidade mútua.

O Existencialismo de Jean-PaulSartre

É justamente do método fenomeno-lógico, dessa redução de algo à suasérie de aparições, que parte o filó-sofo e romancista contemporâneofrancês Jean Paul Sartre. Sartre éconsiderado um dos principais filó-sofos do Existencialismo. Com ele, aquestão dos limites do conhecimentohumano se torna explicitamente aquestão da separação entre homeme mundo. É de um certo vazio provo-cado por essa cisão que o Existenci-alismo tratará. Os temas fundamen-tais do Existencialismo são: a indife-rença absurda e incompreensível domundo, a escolha e a liberdade hu-mana diante dessa incompreensão.

Na introdução de O Ser e o Nada6,Sartre comenta a identificação de umobjeto a partir de uma essência (ei-dos) que é, ela mesma, fenômeno(embora, um outro tipo de fenômeno).Sartre chama a atenção para o fatode que permanecendo sempre nonível da aparência, poderíamos pro-curar infinitamente a essência daessência da essência. para identificá-las como essências. Justamente porisso, a essência precisaria se revelarde maneira imediata, através de umaintuição O sujeito intencional precisa-ria transcender a série de apariçõesindividuais (série infinita que jamaisaparece completamente) rumo a es-sência intuída (finita e que aparece).

Segundo Sartre, haveria um fenôme-no do Ser e um Ser do fenômeno. Oprimeiro, enquanto fenômeno, teriaele mesmo um Ser com base no qualapareceria: o Ser do fenômeno doSer (não haveria nisso uma progres-são ao infinito porque o Ser seriaimediato e somente um). Por outrolado, o Ser do fenômeno jamais po-deria se reduzir ao fenômeno do Ser,pois necessita da transfenomenalida-de para fundamentar a condição fe-nomênica. O percebido se remeteriaàquele que percebe. Haveria portantoum Ser do perceber, que não estariano percebido e que seria a consciên-cia intencional, o qual Sartre chamouSer-Para-Si. E haveria um Ser dopercebido, que não estaria no perce-ber e que seria maciço, fechado epleno, o qual Sartre chamou Ser-Em-Si. Temos então o seguinte esquema: 6 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada - Ensaio deOntologia Fenomenológica. Trad.: Paulo Perdigão.Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

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SER→SER-PARA-SI (consciência)→Ser do fenô-

meno do Ser-Para-Si

↓ ↓

↓ fenômeno do Ser-Para-Si

SER-EM-SI (maciço)→ Ser do fenômeno do Ser-

Em-Si

fenômeno do Ser-Em-Si

O Ser-Para-Si da consciência, se-gundo Sartre, seria completamentevoltado para fora, para o outro. Eleseria o que não é e não seria o que é,já que seria auto-constitutivo de seusentido a partir do objeto que intenci-onal. Já o Ser-Em-Si, seria o outronecessário à intencionalidade. Comoele jamais se revela à consciência, édestituído de sentido. Seria essa se-paração entre Em-si e Para-Si a ab-surdidade da existência, a tão menci-onada separação entre homem emundo.

A partir dessa separação surgiria oNada. O Nada surge à consciênciacomo seu fundamento na medida emque ela se identifica como não sendoo outro que intenciona. Ora, se ela,como vimos não é o que é, pois sevolta para fora, mas também nãopode ser o que intenciona, justa-mente por intencioná-lo, a consciên-cia encontra-se nadificada. A nadifi-cação seria a impossibilidade daconsciência ser objeto de si mesma,nessa nadificação surgiria a liberdadee a angústia de um fazer-se separa-do de si. Por outro lado, essa nadifi-cação permitiria a relação entre ho-mem e mundo, já que qualquer rela-ção pressupõe não se ser aquilo como que nos relacionamos, ou seja, a

separação sujeito/objeto. Se ela nãonos permite sermos o mundo, nospermite conhecê-lo. No Nada, se da-ria o diálogo homem/mundo. Assim, ohomem forneceria sentido ao mundoe a si mesmo. Mas o Em-si, jamaisseria afetado, nem pelo Nada, nempela intencionalidade. A nadificaçãoseria sempre entre Para-Si e Para-Si.7 O Ser do Para-Si é justamenteessa impossibilidade de coincidir-secom si mesmo (como já foi dito, sen-do o que não é e não sendo o que é).A realidade humana, marcada pelacarência, busca incessantementecoincidir-se consigo, sem jamais con-seguir. O homem só é livre por essaseparação nadificante entre Para-Si eEm-Si. Entretanto, essa mesma liber-dade ontológica do homem terminaos unindo novamente na doação desentido. Aquilo que era a-fundamento, torna-se o próprio fun-damento a partir da liberdade. Será aisso que, como veremos, Camuschamará suicídio filosófico.

Albert Camus

Albert Camus é um literato, um artistada palavra. Mas é também um filó-sofo, um pensador. Camus formou-seem filosofia na Universidade de Argel,mas, ao invés de utilizar o discursoargumentativo e sistemático, usou adramaturgia, os ensaios literários eas narrativas romanescas para ex-pressar seu pensamento. Essa es-colha pela forma artística não acon-

7 É possível se fazer a seguinte crítica à Sartre: se oPara-Si não afeta o Em-Si, como então o póloobjetivo da consciência poderia ser afetado? Ouseja, como a consciência poderia realmente secriar?

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tece por acaso: talvez seja o próprioconteúdo do pensamento camusianoque a determina.

Uma idéia que parece perpassar to-das as obras de Camus é a de queuma certa ‘experiência’ da belezareúne no sensível, o abstrato. Toda asua obra pode ser lida a partir dessarevelação do abstrato no próprio sen-sível. Melhor dizendo, o abstrato,normalmente associado ao conceitu-al, em Camus, a partir de uma con-cepção estética-mística de mundo,aparece na sensibilidade. No entanto,em Camus, a sensibilidade se dife-rencia da experimentação. Para ele,não é a experiência que pode levarao abstrato, não é a experiência quepode tornar alguém sábio. Camus serefere a uma forma de sensibilidadeque, em termos platônicos, se relaci-ona muito mais com a contemplaçãodas idéias (só que em Camus essacontemplação é um certo modo deestar no próprio mundo), do que coma experimentação.8 Esta seria umasensibilidade fora do tempo, ondenão há mais o sujeito que experi-menta, nem o objeto experimentado.9

Essa total lucidez diante da falta desentido do mundo só seria possívelna transcendência do sujeito, afinal o 8 Como ele afirma: “Ver, e ver sobre a terra - comoesquecer essa lição? Aos mistérios de Elêusisbastava contemplá-los.” Idem, p.10. E ainda: “EmTipasa, ver eqüivale a crer e não me obstino emnegar aquilo que minha mão pode tocar e que meuslábios podem acariciar.” CAMUS, Albert. Núpci-as, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva.São Paulo: Círculo do Livro, Copyright by Galli-mard 1950 por Núpcias e 1954 por O verão, p.12.9 Ou seja: “Antes de entrarmos no reino das ruínassomos espectadores pela última vez.” Ou: “Não,não era eu que importava, nem o mundo, masapenas a harmonia e o silêncio que, vindo dele atéa mim, fazia nascer o amor.” Idem, p.8 e p.14.

sujeito sempre tem história, convic-ções e perspectivas que ele não podever, já que interpreta a existênciaatravés deles. Podemos resumir atese fundamental do pensamentocamusiano da seguinte forma: a sen-sibilidade absurda da separação en-tre homem e mundo é indizível, trági-ca e silenciosa porque é uma sensibi-lidade abstrata, que une na própriaseparação o homem e o mundo.10

Esse vazio não nega a certeza damorte e está diretamente associado àfelicidade.11

É por isso que se pode falar de núp-cias entre o homem e o mundo atra-vés do próprio silêncio absurdo entreos dois. Se o homem e o mundo nãopodem se comunicar, a vida não fazsentido e o suicídio é legítimo. Mas asensibilidade do absurdo cria a bele-za, possibilita a revolta e a sabedoria.Nessa sensibilidade, homem e mun-do se complementam. Então, o ab-surdo não é absurdo, ele se supera ea vida vale a pena. Mas é preciso queessa vida seja afirmada, é precisoque eu faça uma escolha no absurdo,ou seja, é preciso que eu me revolte.E, para haver revolta, é preciso quenão haja esperanças. Para Camus, aesperança é realmente o pior dosmales a sair da caixa de Pandora,pois ela impede a revolta ao negar o 10 “E, diante do vôo pesado dos grandes pássarosno céu de Djemila, é justamente um peso de vidaque reclamo e obtenho. Entregar-me por completoa essa paixão passiva: o resto já não mais me per-tence. Possuo juventude demais dentro de mimpara poder falar da morte. Mas parece-me que, setivesse que fazê-lo, é aqui que encontraria a pala-vra exata para exprimir, entre o horror e o silêncio,a certeza consciente de uma morte sem esperança.”

Idem, p.18.11 Conf.: Idem, pp.13-14.

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absurdo. E é essa revolta diante domundo, as próprias núpcias com omundo, a felicidade. O absurdo é umponto de partida e não de chegada, éa partir dele que eu supero o próprioabsurdo.

Talvez por isso Camus utilize umaforma artística para expressar con-ceitos. É ela que nos possibilita falarde uma felicidade (abstrata) que ésensível. Essa idéia está diretamenteligada com a estética, no sentido gre-go de “sensibilidade diante do belo”(e não de obra de arte).12 Camus sevolta para a Grécia Clássica e afirmauma experiência mística-trágica domundo, experiência que une princípi-os opostos na própria separação.13 É 12 Essa é uma idéia também presente no Idealismoromântico alemão. Esse movimento filosóficopropôs, a partir da dialética, superar a separaçãokantiano entre noumenon e fenômeno. Essa super-ação se daria na experiência estética trágica. Foitambém na Antigüidade Clássica grega que osautores dessa escola, incluindo o Nietzsche de ONascimento da Tragédia, buscaram inspiração paratal experiência fundamental, capaz de unir dialeti-camente (em certo sentido, na própria separação)homem e natureza (em Nietzsche, Apolo e Dioni-so).Não podemos aqui analisar profundamente em quesentido se aproximariam e em que sentido se dis-tanciariam de Camus essas correntes filosóficassob pena de nos afastarmos do tema desse trabalhoque, afinal, é a Fenomenologia. Podemos aquiapenas apontar que os dois partem da mesmaquestão: a separação entre homem e mundo. Nãopretendemos com isso aproximar Camus dessasescolas, afinal praticamente toda a história dafilosofia pode ser lida a partir dessa questão mo-derna (embora essa separação seja vista como umaspecto da condição humana independente daépoca, ela é assim formulada na Modernidade).Pretendemos apenas ilustrar melhor o tema queestamos tratando em Camus.13 “Reencontrava, assim, uma vida em estado puro,redescobria um paraíso que é dado apenas aosanimais dotados de maior ou menor inteligência.Naquele ponto em que o espírito nega o espírito,ele alcança sua verdade e com ela sua glória e seuamor extremo.” CAMUS, Albert. A morte feliz.

na afirmação e na negação, ou seja,na revolta, que o absurdo do mundo(separação entre o homem e a natu-reza) é superado.14 Camus é um utó-pico, para ele, a natureza supera otempo, a história, aquilo que passa.Mas Camus não seria propriamenteum romântico, pois a sua naturezanão é idealizada, ela é absurda, trá-gica. Nem, tão pouco, um dialético,no sentido que conhecemos. A con-tradição do homem absurdo não éresolvida através de uma síntesedialética, ela é mantida. A sua revoltaé antes de tudo afirmativa, ela negapara afirmar algo além do que estánegando. É menos uma síntese doque uma superação.15 A separação

Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro:Record, 1997, p.116.14 “Em seguida é preciso quebrar os jogos fixos doespelho e entrar no movimento pelo qual o absurdosupera a si próprio. (...) O absurdo, assim como adúvida metódica, fez tabula rasa. Ele nos deixasem saída. Mas, como a dúvida, ao desdizer-se, elepode orientar uma nova busca. Com o raciocínioacontece o mesmo. Proclamo que não creio emnada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidarde minha própria proclamação e tenho de, nomínimo, acreditar em meu protesto. A primeira eúnica evidência que assim me é dada, no âmbito daexperiência absurda, é a revolta.” CAMUS, Albert.O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4°ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.20.15 “Que é um homem revoltado? Um homem quedlz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é tam-bém um homem que diz sim desde o seu primeiromovimento. Um escravo, que recebeu ordensdurante toda a sua vida, julga subitamente inacei-tável um novo comando. Qual o significado dessenão? Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraramdemais’, ‘até aí, sim ; a partir daí, não’; ‘assim já édemais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vaiultrapassar’. Em suma, este não afirma a existênciade uma fronteira.” Idem, p.25.O mesmo que Camus já havia dito no Núpcias:“Pouca gente compreende que existe um recusaque nada tem haver com renúncia. Que significamaqui as palavras que falam de futuro, de maior bemestar, de situação? Que significa o progresso docoração? Se rejeito obstinadamente todos os ‘mais

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entre o homem e o mundo (o absur-do, a morte) não é negada. Para Ca-mus, o absurdo não é absurdo, porisso ele pode ser superado em uma‘experiência’ estética. E essa ‘experi-ência’ estética, situada entre a espe-rança e o desespero, é, de certa for-ma, a experiência da revolta, experi-ência que nega e afirma, experiênciada felicidade. A felicidade é, portanto,o único dever do homem, revelado natransvaloração do absurdo. Sendofeliz, o homem dá sentido a vida esupera o absurdo, afirmando a suacondição. O que Camus parece nosdizer é que há sofrimento na vida eque afirmar a vida inclui afirmar essesofrimento, inclusive a morte.

O Existencialismo Absurdo

A partir dessas considerações pode-mos notar o quanto Camus se distan-cia do enfoque existencialista menci-onado. Camus rompe com o existen-cialismo em 1951, com a publicaçãode O homem revoltado. No entanto,como vimos, em A morte feliz e Núp-cias (escritos no final da década detrinta, quando ele sequer tinha tidoainda contato direto com o existenci-alismo), já é possível notar clara-mente grandes divergências comessa corrente. Camus não defendeum filosofia do sujeito. A liberdadecamusiana, não é a do sujeito queescolhe, é a liberdade que nasce dacontemplação do absurdo, ou seja,

tardes’ do mundo, é porque se trata, da mesmaforma, de não renunciar à minha riqueza presente.Não me agrada acreditar que a morte se abre parauma outra vida.” CAMUS, Albert. Núpcias, Overão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. SãoPaulo: Círculo do Livro, Copyright by Gallimard1950 por Núpcias e 1954 por O verão, p.18.

da infinita distância entre o mundo eo homem.16 É somente na constata-ção dessa separação que o homemrevoltado pode superá-la. A felicidadeem Camus realmente advém de umaescolha consciente: a revolta dianteda injustiça do absurdo.17 Mas, dentrodessa escolha existe a vontade defelicidade, que é fundamental e quenega essa consciência através doesquecimento que permite a inocên-cia.18 Ou seja, a felicidade é não serresponsável, justamente o oposto daproposta existencialista. Para Camus,escolher seria o problema, escolherseria não ser livre.19 O sujeito não éresponsável ou culpado pelos seusatos porque ele esquece de si. Épreciso que se faça uma escolha,mas é preciso que se esqueça essaescolha.

No livro O Mito de Sísifo20, Camusanalisa os principais autores fenome-nólogos e existencialistas. Como vi-mos, ele parte das mesmas questõesque esses autores. Segundo Camus,a questão fundamental da filosofia, a

16 “Por sentir-se tão longe de tudo e até mesmo desua febre, por experimentar tão claramente o quehá de absurdo e de miserável na âmago das vidasmais ordenadas, nesse quarto erguia-se diante delea imagem vergonhosa e secreta de uma espécie deliberdade que nasce da dúvida e da fraude.” CA-MUS, Albert. A morte feliz. Trad.: Valerie Rumja-nek. - 4° ed. - Rio de Janeiro: Record, 1997, p.67.17 Conf.: Idem, p.113.18 Conf.: Idem, p.109.19 “O erro, minha pequena Catherine, é acreditarque é preciso escolher, que é preciso fazer aquiloque se quer e que existem condições para a felici-dade. A única coisa que conta é a vontade de feli-cidade, uma espécie de enorme consciência semprepresente.” Idem, p.121.20 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo - EnsaioSobre o Absurdo com um Estudo Sobre FranzKafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa:Livros do Brasil, s/data.

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única questão verdadeiramente séria,é saber se vale a pena viver dianteda constatação dessa absurda sepa-ração entre homem e mundo e dainjustiça que se torna vida nessascondições. É preciso saber se existealgo que justifique a vida, pois, senão houver, eu posso me matar e euposso matar o outro.21 O homem quefaz isso é o homem absurdo, ou seja,é aquele que mata a arte e a revol-ta22, matando as possibilidades desuperação do absurdo. No entanto, ohomem revoltado afirma o absurdona beleza da vida. Ele é aquele que,a partir do absurdo, nega e afirmaatravés da revolta. Sendo assim, estehomem não pode negar, com o suicí-dio ou com o assassinato, o próprioabsurdo que a permite.23 Ele o recu-sa, porém não renuncia. Como já foidito, é preciso haver absurdo para sesuperar o absurdo. Eu não me mato,não me acovardo diante do absurdoe, portanto, também não mato o ou-tro, afinal, o absurdo da vida é uni-versal, para todos.

Pode-se afirmar que o próprio Camusutiliza o método fenomenológico emsua obra e em suas análises. Ouseja, ele suspende a crença na exis-tência de uma realidade objetiva epressupõe a separação entre Em-Si ePara-Si. Camus elogia a Fenomeno-

21 Conf.: CAMUS, Albert. O homem revoltado.Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro:Record, 1999, p.16.22 CAMUS, Albert. Núpcias, O verão. Trad.: VeraQueiroz da Costa e Silva. São Paulo: Círculo doLivro, Copyright by Gallimard 1950 por Núpcias e1954 por O verão, p.139.23Conf.: CAMUS, Albert. O homem revoltado.Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro:Record, 1999, p.34.

logia Existencialista por ser uma filo-sofia, pelo menos em princípio, semesperanças, que parte da negação deuma essência por trás das aparênci-as. Mas, para ele, a Fenomenologiadeve ir além de si mesma. A noçãode absurdo existencialista nasce deum sentimento do absurdo, e é essesentimento que deve permanecerfundamental. Por isso, Camus, aocontrário dos autores fenomenólogos,se recusa a considerar a aparênciacomo essência. O Método Fenome-nológico, para ele, acabaria fundandouma metafísica, embora uma metafí-sica da aparência. Aliás, como qual-quer método, ele pressuporia umametafísica como fundamento.24

Para Camus, nenhum conhecimentoé verdadeiro. Sua redução do mundoàs aparências não as tornam essên-cias. O único ‘conhecimento verda-deiro’ seria justamente o dessa im-possibilidade, ou seja, a já mencio-nada sensibilidade do absurdo. Comovimos, essa sensibilidade não se dáracionalmente, mas esteticamente.Ela, segundo Camus, “ilumina omundo a uma luz que lhe é própria”,possibilitando a superação do absur-do.

Diante do absurdo, podemos ter ati-tudes afirmativas ou negativas, po-dermos revoltar-nos ou suicidar-nos.Camus opõe duas atitudes diantedesse mesmo ponto de partida. Paraele, tanto a Antigüidade, quanto a

24 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo - EnsaioSobre o Absurdo com um Estudo Sobre FranzKafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa:Livros do Brasil, s/data, p.23.

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Modernidade partem da mesmaconstatação do absurdo. Na Antigüi-dade, a atitude trágica grega seriauma possibilidade de posicionamentoafirmativo diante dessa constatação.Já a esperança do cristianismo nas-cente seria uma atitude negativa di-ante da mesma. Na Modernidade, opensamento que parte do absurdo éo Existencialismo. No entanto, Ca-mus constata nos autores dessa es-cola a mesma esperança cristã queacaba negando o absurdo. Talvez porisso ele proponha um resgate moder-no do pensamento grego como posi-ção afirmativa diante desse senti-mento.

Para Camus, a análise que Sartre fazda consciência, como separada de si,bem como seu reconhecimento domundo enquanto inumano, seriamconstatações da absurdidade daexistência: essa estranheza diante denós e da natureza, essa certeza damorte. O absurdo nasce desse con-flito entre carência de sentido (Para-Si) e ausência de sentido (Em-Si).Ele pressupõe então tanto um,quanto outro. Porém, para Camus,diante disso, não é necessário sesuicidar ou ter esperanças, não énecessário ser existencialista oucristão. Antes, é preciso manter-se noabsurdo e torná-lo seu próprio senti-do na Revolta Estética. Se o absurdoestá tanto no homem, quanto nomundo, ele os une. No entanto, issonão o nega, isso o mantém. A revolta,como vimos, recusa mas não renun-cia. O Existencialismo fenomenológi-co, ao contrário, não recusa, masrenuncia a seus pressupostos (o sen-timento do absurdo), justamente nes-

sa ausência de recusa, nessa quebrade tensão (Para-Si/Em-Si). Os exis-tencialistas divinizam o absurdo,afirmando um Ser da experiência eum sentido para a vida. Sem a recusado absurdo, na aceitação do mesmocomo fenômeno, os existencialistasacabam o negando. Pois, com isso,acaba-se a característica essencialdo absurdo que é a contradição. Osexistencialistas fenomenólogos privi-legiam sempre um lado da tensão. Acolocação da essência na aparêncianega a carência de sentido necessá-ria ao absurdo. Já Camus, com arevolta, pretende tirar do absurdo umprincípio que o ultrapasse sem negá-lo. Esse princípio é justamente a au-sência de princípios metafísicos ouracionais. É preciso manter a tensãoentre uma razão limitada e um irraci-onal recorrente. Nenhum dos doispode ser negado, nenhum dos doispode ser privilegiado.

É interessante notar como se dá apresença dos pressupostos kantianosem Camus, no que podemos chamarde uma ‘dialética sem síntese’. Pri-meiramente, a natureza se recusaatravés da razão, mas a razão nãorenuncia a ela, ou seja, continua sen-do natural. Após, razão se recusaatravés do absurdo, nascido do con-flito desta com a natureza, mas oabsurdo continua sendo racional.Finalmente, o absurdo se recusaatravés da revolta, nascida do conflitodeste com a razão, mas a revoltacontinua sendo absurda. Portanto,para Camus, a existência humana é:1) natural; 2) racional; 3) absurda; 4)revoltada. No silêncio da naturezadiante da racionalidade, surge o ab-

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surdo. Nessa síntese que mantém atensão, temos então uma nova antí-tese, a revolta. Essa antítese conti-nua mantendo a tensão na afirmaçãoe negação da tese. E essa tensãoseria a própria vida.

O ‘salto’ existencialista, segundoCamus, está justamente em fazerfundamento o que é a-fundamento.Por isso o religare camusiano é semesperanças, ele mantém tanto a ra-zão do homem, quanto a irracionali-dade do mundo e a tensão absurdaentre os dois. Ou seja, é um religareno sentido literal do termo, ou seja,não pretende deixar nada separado.Camus quer um religare que mante-

nha inclusive a tensão. Esse religareparadoxal deve ser, portanto, artísti-co.

Como vimos, em Sartre, o ‘salto’existencialista se dá no diálogo entrehomem e mundo, que o Nada geradopela própria separação acaba permi-tindo através da liberdade. No en-tanto, para Camus, a liberdade éigualmente absurda, não há sentidonem na consciência, nem no Em-Si.Há apenas a tensão entre os dois,que afirma o absurdo como condiçãode si mesma. Assim, o diálogo entrehomem e mundo se dá trágica e es-teticamente na separação absoluta.

Referências Bibliográficas

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