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    SRIE ANTROPOLOGIA

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    POR FALAR EM PARASO TERRESTRE

    Alcida Rita Ramos

    Com ligeiras modificaes, este trabalho foi

    apresentado Revista Travessia N 24 do Centrode Estudos Migratrios.

    Braslia1995

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    POR FALAR EM PARASO TERRESTRE

    Alcida Rita Ramos

    O que Colombo no sabia

    Ao fim de sua quarta viagem ao Novo Mundo e at a hora da morte, CristvoColombo estava certo de haver chegado entrada do Paraso Terrestre. Convenceu-se dissoquando viu a foz de um grande rio, majestoso, amaznico. Era o Orinoco. A impresso foito forte que s o apelo ao divino pde satisfazer os sentidos do comandante do MarOceano. Tamanha grandiosidade s poderia ser coisa de Paraso, aquele portento lquido

    tinha que ser um dos quatro rios do den.Se no chega a corresponder s fantasias ednicas de Colombo, o rio Orinoco

    merece seu lugar na histria por vrias razes, dentre as quais, o privilgio de abrigar umdos povos indgenas mais conhecidos da atualidade. No alto de suas cabeceiras, metade dosYanomami se espalham por uma infinidade de igaraps que s no so tambm brasileiros

    porque a barreira do Macio das Guianas impede-os de correr para o sul. Mas, do lado dec desse magnfico divisor de guas, fonte de inspirao para fantasias como as de ConanDoyle sobre um Mundo Perdido, vive a outra metade dos Yanomami. Ao todo so cerca de20 mil ndios, falando quatro lnguas distintas mas intimamente relacionadas, plantandosuas roas, explorando os recursos naturais de uma floresta sempre prdiga desde querespeitada em sua essncia, passando s novas geraes um estilo cultural que lhes vemgarantindo no s um nvel de vida satisfatrio, como tambm a notvel capacidade deexpandir seu territrio.

    O que os olhos de branco no vem

    Ao olho desavisado, a paisagem do Macio das Guianas, englobando o sul daVenezuela e o norte de Roraima e Amazonas, no Brasil, parece despovoada, s para si,

    montona na eterna repetio de um sem fim de rvores que se acotovelam por um lugar aosol. Mas no, ela no nem um vazio humano nem um manto nico tecido em verde. Hque aprender a ver a Amaznia. Na sua intimidade, a mata se revela diferenciada, habitada,transformada pela ao milenar de muitas geraes humanas.

    Tomemos, por exemplo, o padro de cultivo de povos como os Yanomami. Cadafamlia tem sua roa, algo semelhante em tamanho a um campo de futebol. Quando essaroa est no auge da produo, j uma nova foi derrubada, ao mesmo tempo em que outra,velha e tomada pelo mato, ainda fornece banana, pupunha e alguns tubrculos. Nesse eco-sistema, a baixssima fertilidade do solo permite no mximo uns trs anos de produtividadealta. Roas velhas no so replantadas. O mato invade, tocos de grandes rvores comeam

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    a brotar, a floresta se recompe e vinte ou trinta anos depois parece que a roa nuncaexistiu. Pensemos que cada aldeia tem em mdia umas vinte famlias, todas abrindo roasnum rodzio de dois ou trs anos, e que aproximadamente cinco mil famlias yanomamifazem o mesmo continuadamente. Multiplicando esses nmeros pela imensido de outrasfamlias de outros povos indgenas Amaznia afora, onde o grau de fertilidade do solo

    varia, mas no chega a permitir assentamentos totalmente permanentes, difcil imaginaruma floresta ainda virgem, depois de sculos e sculos de cultivo, de caa e coleta. O quevemos com nossos olhos sincrnicos e quase sempre destreinados o resultado de umfluxo de minsculos desmatamentos pontilhando a paisagem e do refluxo derejuvenescimento da mata viabilizado pela maneira contida e sbia com que os povosindgenas impem suas atividades econmicas ao meio ambiente. Do fundo de suasabedoria, os Yanomami desenvolveram um sistema social, poltico e econmico que

    privilegia a disperso territorial, pois sabem que a concentrao demogrfica levainevitavelmente ao esgotamento dos recursos. Sua terra grande (nove e meio milhes dehectares no Brasil) e tem muito boas razes para isso.

    De fato, o territrio yanomami um exemplo de manejo bem sucedido de recursosnaturais notrios por sua fragilidade traduzida na quantidade altamente rarefeita de espciesde fauna e flora. Respondendo a essa disperso natural, as comunidades yanomami so

    pequenas (raramente passam de 100 pessoas), distanciadas entre si (de umas poucas horas adias de caminhada) e ligadas por uma intricada teia de atalhos.

    Finas nervuras de terra, ora tortas, ora retas, sempre resolutas, subindo e descendoencostas, detendo-se em igaraps para ressurgir do outro lado, confundindo-se com razesque serpenteiam o cho da mata, com troncos de rvores cados sobre rios, so as trilhasyanomami. Se ao rs-do-cho elas podem driblar o olho menos esperto ou experiente, doalto de um avio elas so perfeitamente invisveis, meticulosamente encobertas pela copacerrada da floresta. Por essas trilhas o caminhante pode percorrer quilmetros, atravessar

    estados ou at pases, em horas, dias ou semanas de viagem, seja para chegar a algumaroa, ponto de caa, aldeia vizinha ou remota.

    As trilhas yanomami so o testemunho mais pedestre, por assim dizer, dasmovimentaes desse povo que parece ter sido feito para andar, locomover-se, espraiar-se.Abertas a faco, acentuadas e conservadas pela batida intermitente de mltiplas passadas,as trilhas nascem, vivem e morrem ao sabor do interesse das pessoas em manter seusvnculos com este ou aquele lugar. Se, por um passe de mgica, todas as trilhas j abertasem terras yanomami aflorassem no solo e novamente se tornassem visveis, teramos ummapa virio dos mais densos e um retrato fidedigno de todas as rotas ligando todas asroas, todas as aldeias e todos os acampamentos sazonais passados e presentes, numa

    estonteante profuso de indcios grficos da eficincia talvez milenar com que osYanomami vm ocupando a regio ocidental das Guianas. Um tal mapa hipotticoderrubaria de um golpe argumentos contrrios ao reconhecimento pelo estado brasileiro darea Indgena Yanomami, argumentos que se sustentam na debilidade de um olharimpressionista e mope para defender a fico dos vazios demogrficos. Dizem que umdesperdcio "dar" tanta terra a to poucos ndios que, alm do mais, no a ocupam toda, nosabem explorar os seus recursos naturais, so at responsveis, ainda que indiretos, pela

    penria de legies de brasileiros desvalidos e sem terra e acabam por abrir um flanco cobia estrangeira. Em suma, est a a eptome da soberba "civilizada": aquilo que o olho

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    de branco urbano no v, no existe1.

    O que move os Yanomami

    A partir do mapa invisvel, mas no menos real, traado no terreno das experinciashistricas e geogrficas dos Yanomami, possvel delinear alguns movimentos demagnitudes e conseqncias diversas. Esses movimentos, embora tendo efeitossemelhantes no sentido de resultarem em deslocamento no espao, tm distintas origens emotivaes. Alguns representam mudanas muito pequenas, outros podem sercaracterizados como migraes, enquanto outros ainda advm de potentes pressesexternas sobre o modo de vida normal das comunidades. Mas, antes de tudo, preciso noconfundir esses movimentos espaciais com a noo de nomadismo que est to presente noimaginrio branco sobre o primitivo extico2. Contra o senso comum que toma qualquertipo de mobilidade espacial dos ndios como sinal de nomadismo3, o que precisa ficar

    perfeitamente claro que o que se segue uma descrio de um povo mvel, mas no"nmade". Dos menores aos maiores, vejamos quais so esses movimentos.

    Parte da sabedoria com que os Yanomami tm manejado seu habitat reflete-se na prtica de dois tipos de deslocamento. Um ditado pela necessidade de fazer novosroados a cada dois ou trs anos e de buscar novos locais de caa, quando os animaisescasseiam ou desaparecem das imediaes de cada comunidade. Assim, as aldeias sedeslocam, em parte, procura de novos stios onde a mata seja mais propcia para o cultivo,

    para a coleta e para a caa. Se uma comunidade permanece muito tempo num mesmo lugar,comea a rarear a fonte de protena animal e a aumentar a distncia entre a aldeia e as

    roas, at chegar ao ponto em que mais vivel mudar a aldeia. Tais deslocamentos fazem-se num raio de cerca de trs quilmetros a cada cinco ou dez anos. Para quem conviveconstantemente com os Yanomami ou os visita anualmente, esses movimentos so quaseimperceptveis, mas surgem bastante acentuados quando retornamos depois de anos de

    1. Semelhante arrogncia foi aplicada tambm ao caso do massacre de Haximu, em 1993, quando a morte de 16Yanomami foi questionada face ausncia de cadveres. O fato, explicado ad nauseam por ndios e antroplogos,de que os Yanomami no deixam seus mortos jazendo pelo cho, mas, ao contrrio, cremam-nos e guardam as suascinzas em cumprimento de um dever cultural, no parece ter tido o menor efeito nas mentes cartesianas queinsistem no "no vejo, portanto, no existe".

    2. A problemtica do "nomadismo", tema de outro artigo em gestao, intriga por seu carter insidioso epersistente no lxico antropolgico. Talvez oriundo do Crescente Frtil, quando as primeiras cidades-estados daSumria e Caldia se esconderam atrs de muralhas e deixaram de fora os "brbaros nmades", esse conceito (eoutros como tribo, povos marginais, ou caadores e coletores) vem sendo usado para estabelecer a diferena entrecivilizados e primitivos e reforar um valor ocidental que a vida sedentria representa. O caso do nomadismo mais um exemplo do que Bourdieu (1989:36) chamou de "persuaso clandestina" do senso comum sobre alinguagem e, evoco Whorf, no pensamento antropolgico.

    3. Dicionrio Aurlio: Nmade: 1. Diz-se das tribos ou povos errantes, sem habitao fixa, que se deslocamconstantemente em busca de alimentos, pastagens, etc. (...); 3. P.ext: Diz-se de indivduo que leva vida errante;vagabundo.

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    ausncia.O outro micro-movimento de prazo mais longo e pode advir do esgotamento

    acumulado de uma determinada rea. A atividade intensiva de roas e de caa pode superara capacidade de rejuvenescimento de uma micro-regio, envolvendo geralmente mais deuma comunidade. De modo a contrabalanar essa tendncia, aproximadamente a cada

    gerao, muda-se para mais longe, num raio de dez a trinta quilmetros.Mas esse efeito espacial tambm ocorre por outras razes. A ecloso de epidemias

    ou a ocorrncia de conflitos entre comunidades podem provocar uma debandada. Asubseqente instalao em novo local, longe do anterior, acaba produzindo novosrearranjos geogrficos e sociais numa dada sub-rea. Isto tudo est intimamente ligado auma das caractersticas mais marcantes da organizao social dos Yanomami, qual seja, o

    padro de segmentao das aldeias, segundo o qual novos grupos locais podem surgir acada duas ou trs geraes. As rivalidades polticas que fermentam no interior dascomunidades ocasionam cises peridicas. Convertem-se, desse modo, em instrumentoshbeis para manter as aldeias dentro de limites demogrficos aceitveis. Os grupos

    dissidentes afastam-se e procuram novos locais onde possam residir e exercer suasatividades econmicas de maneira mais eficiente. Os laos de sangue e de casamentomantm vivo o interesse mtuo entre os grupos que se separaram. A princpio aliadas, essascomunidades, antes uma s, vo se distanciando com o tempo at no terem entre sivnculos maiores do que os que as ligam a outras tantas comunidades. Por esse processo,conseguem dois resultados positivos: um, evitam os efeitos do crescimento vegetativo queresulta em concentrao demogrfica indesejada, com muita gente explorando os mesmosrecursos ao mesmo tempo; dois, preservam e at aumentam a grande rede de relaes quecobre todo o territrio yanomami.

    Um terceiro processo de mobilidade, que podemos chamar de migratrio, estestreitamente relacionado aos dois primeiros em sua dinmica, mas tem caractersticas e

    conseqncias geopolticas diferentes. Foi o que permitiu a expanso territorial dosYanomami na regio guianense. um processo ainda muito pouco conhecido, pois, naausncia de dados arqueolgicos, nem os registros histricos nem os depoimentos dos

    prprios ndios nos reportam a um passado suficientemente longnquo para permitir areconstruo do incio da presena yanomami em seu atual territrio. O que temos nossadisposio pouco, mas j d uma idia da trajetria histrica desse grupo nos ltimos 200anos. Para alm disso, onde existe um vazio no registro histrico, certas tcnicaslingsticas procuram preencher com inferncias retiradas do grau de semelhana entre asquatro lnguas conhecidas: Yanomam, Yanomam, Sanum e Yanam.

    O que a histria no registrou

    Os Yanomami como um todo j vivem na regio do Macio das Guianas, pelomenos, desde o sculo 18, data da primeira referncia escrita da sua presena porexploradores europeus4. Mas, se levarmos em conta os resultados da aplicao da

    4. Em sua tese de doutorado, Bruce Albert (1985) segue os indcios histricos da ocupao yanomami do norte de

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    glotocronologia, tcnica lingstica que procura medir a distncia entre as vrias lnguasfaladas hoje, temos cifras reveladoras. O lingista Ernesto Migliazza5 afirma que a primeiralngua a se separar do idioma original foi o Sanum, no sculo XIII depois de Cristo. Istosignifica que seriam necessrios, pelo menos, 700 anos para que todas as quatro lnguas sesubdividissem e chegassem ao nvel de diferenciao que encontramos hoje. Com base

    nesses clculos, o gegrafo norte-americano, William Smole6, que desenvolveu pesquisa decampo com os Yanomami na Venezuela, conclui que o fato de os falantes das quatrolnguas viverem hoje relativamente prximos uns dos outros indica que seu territriooriginal deve ter sido muito maior do que o atual. S assim podemos entender como uma

    primeira disperso geogrfica resultou em tamanhas diferenas lingsticas, pois se a proximidade tivesse sido sempre como agora, suas lnguas no seriam to diferentes.Depois da expanso mxima, teria havido uma contrao territorial.

    O registro lingstico um dos poucos sinais que nos legado pela histria remotados Yanomami. Por um lado, as condies climticas da Amaznia so pouco propcias aachados arqueolgicos; o clima quente e mido destri em pouco tempo a maior parte dos

    materiais de origem orgnica, como casas, enfeites, etc. Por outro lado, um dos traos maistipicamente yanomami a cremao dos mortos e, na maioria dos subgrupos, a ingestoritual pelos parentes das cinzas dos ossos carbonizados. No deixam, portanto, vestgios deseus corpos e de muito pouco de sua cultura, como uns parcos machados de pedra oufrgeis panelas de barro. Resta a glotocronologia, os relatos de exploradores e a histriaoral dos Yanomami.

    Em captulo mais recente dessa histria, temos dos prprios ndios, por exemplo,dos Sanum, o subgrupo mais setentrional, o relato da chegada yanomami ao vale do rioAuaris (afluente do Parima que, por sua vez, desemboca no Uraricoera que depois setransforma no Rio Branco), em Roraima.

    H duas ou trs geraes, os Sanum e seus atuais vizinhos Maiongong, de fala

    Caribe, combatiam-se duramente pela ocupao de um territrio deixado semi-vazio peladizimao de povos inteiros de origem Caribe e Arawak, principalmente. Um aps outro,eles sucumbiram aos maus tratos e s epidemias dos conquistadores brancos no norte daAmaznia e, principalmente, aos excessos do boom da borracha no sculo passado. OsSanum, vindos do sudoeste, expandiam-se e entravam em terras tradicionais dosMaiongong, praticamente o nico grupo que restou daquele flagelo, e que tiveram queenfrentar em sua marcha rumo ao norte e leste. Depois de numerosas incurses dos Sanumcontra aldeias Maiongong, estes decidiram contra-atacar a tiro de espingarda (um legadodos tempos da invaso branca) que acabaram de vez com a guerra intertribal, por volta davirada do sculo. Cessaram os conflitos blicos e desde ento os dois grupos passaram a

    co-existir na mesma regio, mantendo relaes pacficas mas tensas num clima que lembraa inquieta paz da guerra fria. Alguns intercasamentos selaram essa paz e hoje em dia o altoAuaris ocupado majoritariamente pelos Sanum e por uma crescente populao

    Roraima e Amazonas. Ver tambm a proposta de Criao do Parque Yanomami, elaborada pela Comisso pelaCriao do Parque Yanomami, So Paulo, 1979.

    5. Ver Ernesto Migliazza 1982.

    6. Ver William Smole 1976.

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    maiongong7.Espraiados em leque, os Sanum acabaram por ocupar no apenas o vale do alto

    Auaris, mas tambm outros rios, como o Merevari, na Venezuela. Eles mesmos apontam aregio do rio Ocamo, afluente do Orinoco, na Venezuela, como o local de onde comearama migrao. Contam que fugiam de ataques de outros yanomami, como, por exemplo, o que

    eles chamam de Samatali, membros do subgrupo Yanomam da Venezuela. Nessa lentafuga, conjuntos de comunidades detiveram-se em vrios locais sucessivos onde abriramroas, tiveram filhos, subdividiram-se, formaram novas alianas. Ao longo de duasgeraes, colonizaram praticamente toda a rea que antes pertencera a grupos Caribe eArawak dizimados pelas invases de brancos8. Por razes sem dvida ligadas ao difcilacesso das cabeceiras dos rios guianenses, os Yanomami conseguiram escapar a essasinvases, sem, no entanto, ficar imunes aos efeitos indiretos da presena de brancos naregio, como, por exemplo, epidemias de sarampo e alguns bens manufaturados quechegaram a eles muito antes de se verem frente a frente com os invasores. Poupadosdaquela dizimao, os Sanum em particular e Yanomami em geral reuniam as condies

    necessrias para empreender a ocupao de novos territrios que at ento lhes eramdesconhecidos. Avanaram por terras novas, numa verdadeira migrao que difere muitodas pequenas mudanas de residncia que ficam contidas dentro de um espao j definido

    por tradio e consenso. Nenhum desses deslocamentos, volto a insistir, tem qualquersemelhana com a figura imaginada do ndio nmade, sem eira nem beira, eternamente em

    busca de um sustento mnimo que o livre por mais um dia da inanio. Neste sentido, nemos Yanomami nem qualquer outro povo indgena conhecido se encaixa nesse imaginrio

    preconceituoso dos brancos que, ao atribuirem nomadismo aos ndios, nada mais fazem doque afirmar o valor ocidental conferido ao sedentarismo.

    O que a invaso no poupa

    Nas ltimas dcadas, os Yanomami tm vivido momentos dramticos, talvez ospiores de sua longa existncia. O trauma da construo da Perimetral Norte dos anos 70deixou um rastro de morte que extinguiu comunidades inteiras. Os sobreviventes de quatroaldeias do alto Catrimani, atingida por uma epidemia de sarampo que matou metade deseus habitantes, deram a volta por cima e se reorganizaram para fundar o que hoje oDemini, quartel general de Davi Kopenawa, o mais conhecido dos Yanomami. O projetoagropecurio do Apia expulsou as comunidades que l viviam e reduziu seusremanescentes a prias nos povoados circundantes.

    A partir de agosto de 1987, dezenas de milhares de garimpeiros invadiramvirtualmente toda a rea yanomami, provocando em questo de meses a pior pandemia demalria que a regio j viu. Inmeras comunidades foram devastadas e os sobreviventesfadados a vaguear de aldeia em aldeia em busca de um novo domiclio. Esta nova maneira

    7. Sobre as relaes entre Sanum e Maiongong ver Ramos 1980.

    8. Mais informaes sobre os Sanum podem ser encontradas em Ramos 1990.

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    de se mover no espao totalmente imposta de fora, involuntria, catica e violenta,carregando em seu bojo no o efeito de uma cadeia social em expanso, mas, ao contrrio,retraindo-se com a desagregao que mortes em massa acarretam. A malria,

    principalmente, tem o potencial de transformar em realidade a fico dos "vaziosdemogrficos" da Amaznia em geral e da rea yanomami em particular, ao devastar

    aldeias e contrair o espao vital das comunidades9.A desagregao social deu-se em vrios nveis, a comear pela destruio da base

    econmica das comunidades: roas destrudas pela potncia de enormes mangueirasrevolvendo barrancos para chegar ao ouro; animais de caa escorraados pelo barulhoinfernal de avies, helicpteros e maquinrio; trilhas seccionadas por imensas craterasabertas fora de poderosos jatos d'gua. Tudo isto acompanhado da constante sangria devidas indgenas, seja por assassinato, seja por doenas contagiosas. Nos primeiros dois anosde atividade garimpeira, estima-se que cerca de mil e quinhentos Yanomami morreram emconseqncia direta da corrida do ouro. Mesmo as comunidades que no experimentaramdiretamente a presena fsica dos garimpeiros e suas mquinas demolidoras acabaram

    sentindo as ondas de choque dessa corrida. Epidemias que comeam num determinadoponto grassam como fogo selvagem por dezenas, centenas de aldeias, deixando um rastrode devastao. Tuberculose, malria e, menos dramtica mas inexorvel, oncocercose, sodoenas que mutilam ou matam, destroando o equilbrio demogrfico de regies inteiras.Por essas ondas de choque a tragdia yanomami ampliou-se a cada nova pista, a cada novo

    barranco, a cada novo acampamento garimpeiro. No h comunidades imunes, nem as queficam do outro lado da fronteira, em solo venezuelano. Com efeito de metstase, o impactoda atividade garimpeira corri artrias, veias e capilares da grande cadeia orgnica que asociedade yanomami. Sociedade do movimento, do fluxo, ela enfrenta agora, alm dodesatino garimpeiro, um outro perigo, que a tentativa, por parte de no poucos polticos,de anular o que lhe garantido por direito: o usufruto exclusivo de seu territrio, um

    territrio suficientemente amplo para permitir a continuidade de seu modo fluido e sbio deviver.

    Agradecimentos. Beneficiei-me muito dos comentrios de Wilson Trajano Filho, ChristianGeffray e Stephen Baines a quem agradeo.

    9. Sobre o impacto das invases sobre os Yanomami ver Ramos 1995, captulo 11.

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    REFERNCIAS

    Albert, Bruce1985 Temps du Sang, Temps des Cendres. Tese de Doutorado, Universidade de

    Paris X.Bourdieu, Pierre1982 O Poder Simblico. Lisboa: DIFEL.

    Migliazza, Ernesto1982 "Linguistic prehistory and the refuge model in Amazonia" In Biological

    Diversification in the Tropics. Proceedings of the 5th InternationalSymposium for Tropical Biology (G.T. Prance, org.), pp. 497-519. NovaIorque: Columbia University Press.

    Ramos, Alcida Rita1980 Hierarquia e Simbiose. Relaes Intertribais no Brasil. So Paulo:

    Hucitec.1990 Memrias Sanum. Tempo e Espao em uma Sociedade Yanomami. So

    Paulo/Braslia: Marco Zero/EdunB.1995 Sanum Memories. A Yanomami Ethnography in Times of Crisis.

    Madison: The University of Wisconsin Press.Smole, William

    1976 The Yanoama Indians. A Cultural Geography. Austin: University of TexasPress.