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Além do interesse: a estética da dignidade nos escritos políticos dos primeiros românticos Lara Cruz Correa * RESUMO: Explora-se a idéia de uma "estética da dignidade", derivada do individualismo ético kantiano e de sua absorção e ressignificação no interior da tradição romântica. A partir dos escritos políticos de F. Schlegel, Novalis e Schleiermacher – autores cuja reflexão político-filosófica é usualmente relegada a segundo plano - investiga-se a existência de um específico conjunto de princípios e valores que informa uma noção peculiar de "vida digna", cujo núcleo reside na realização a um só tempo moral e estética do indivíduo, e que vem rivalizar com concepções que definem a política essencialmente como arena de enfrentamento de interesses individuais competitivos. Em uma linguagem que pretende sintetizar razão e sentimento, que significado viver de acordo com certas normas éticas e estéticas adquire para um determinado ideal de organização da vida pública? Modernidade polifônica e subjetivação romântica Limites teóricos e práticos da linguagem do interesse Não seria propriamente original uma reflexão acerca do pensamento político contemporâneo que viesse a encerrar um diagnóstico melancólico, apontando uma significativa contração no horizonte imaginativo de seus teóricos. Na adesão a uma cosmologia específica, traduzida pela generalização da racionalidade econômica e pelo individualismo liberal de matriz utilitária, assiste-se à consolidação de uma série de pressupostos de ordem ontológica, epistemológica, ética, estética (a lista se entende...) de consequências nada desprezíveis para o ordenamento da sociedade. Entretanto, ainda mais fundamental, para além de todas as idiossincrasias desse paradigma peculiar, parece ser o fato mesmo de sua relativa dominância no cenário contemporâneo, em contraste com o agudo dissenso entre modelos distintos e mutuamente excludentes de concepção da realidade que marcaram o contexto moderno, disputando, em discursos e práticas, possibilidades alternativas de organização das subjetividades e da vida pública 1 . O objetivo do presente trabalho é refletir acerca dessa “homogeneização do * Doutoranda em Ciência Política no IESP-UERJ. Bolsista do CNPq. 1 Sobre a referida simphonía do pensamento político contemporâneo e seu contraste com o panorama intelectual moderno, ver Lessa (2003). 1

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Além do interesse: a estética da dignidade nos escritos políticos dos primeiros

românticos

Lara Cruz Correa*

RESUMO: Explora-se a idéia de uma "estética da dignidade", derivada do

individualismo ético kantiano e de sua absorção e ressignificação no interior da tradição

romântica. A partir dos escritos políticos de F. Schlegel, Novalis e Schleiermacher –

autores cuja reflexão político-filosófica é usualmente relegada a segundo plano -

investiga-se a existência de um específico conjunto de princípios e valores que informa

uma noção peculiar de "vida digna", cujo núcleo reside na realização a um só tempo

moral e estética do indivíduo, e que vem rivalizar com concepções que definem a

política essencialmente como arena de enfrentamento de interesses individuais

competitivos. Em uma linguagem que pretende sintetizar razão e sentimento, que

significado viver de acordo com certas normas éticas e estéticas adquire para um

determinado ideal de organização da vida pública?

Modernidade polifônica e subjetivação romântica

Limites teóricos e práticos da linguagem do interesse

Não seria propriamente original uma reflexão acerca do pensamento político

contemporâneo que viesse a encerrar um diagnóstico melancólico, apontando uma

significativa contração no horizonte imaginativo de seus teóricos. Na adesão a uma

cosmologia específica, traduzida pela generalização da racionalidade econômica e pelo

individualismo liberal de matriz utilitária, assiste-se à consolidação de uma série de

pressupostos de ordem ontológica, epistemológica, ética, estética (a lista se entende...)

de consequências nada desprezíveis para o ordenamento da sociedade. Entretanto, ainda

mais fundamental, para além de todas as idiossincrasias desse paradigma peculiar,

parece ser o fato mesmo de sua relativa dominância no cenário contemporâneo, em

contraste com o agudo dissenso entre modelos distintos e mutuamente excludentes de

concepção da realidade que marcaram o contexto moderno, disputando, em discursos e

práticas, possibilidades alternativas de organização das subjetividades e da vida

pública1. O objetivo do presente trabalho é refletir acerca dessa “homogeneização do

* Doutoranda em Ciência Política no IESP-UERJ. Bolsista do CNPq.1 Sobre a referida simphonía do pensamento político contemporâneo e seu contraste com o panorama intelectual moderno, ver Lessa (2003).

1

pensar” característica de nossos tempos, voltando a atenção à modernidade enquanto

contexto histórico-intelectual em que “ainda rolavam os dados”, ou, poderíamos dizer,

antes que o homo economicus houvesse cometido fratricídio e sepultado o poeta

romântico.

Uma interessante esquematização quanto às origens modernas do paradigma

contemporaneamente dominante é oferecida por Lukes (1973): o indivíduo abstrato que

hoje figura como protagonista do pensamento político teria como características,

segundo aponta o autor, certos traços psicológicos idiossincráticos tomados como

dados, essenciais, ou seja, atributos inatos que determinariam suas propensões e

comportamentos. Dessa constituição natural do indivíduo teriam sido derivadas, como

desdobramentos necessários e previsíveis, as noções correspondentes de sociedade e de

Estado, estes pensados no limite dos atributos requisitados para que aquelas

necessidades naturais pudessem ser supridas (Lukes, 1973: 73-75). Arranjos político-

institucionais específicos emergiriam, portanto, dessa singular concepção quanto à

natureza humana, sendo traduzidos, por fim, na consagração do consentimento

individual como base de legitimidade do governo, na canalização do interesse

individual como cerne do sistema representativo e na afirmação da garantia das

condições de realização daqueles desejos individuais como função primordial do

Estado, sem que lhe coubesse de qualquer formar pretender “influenciá-los, alterá-los

ou interpretá-los”(Lukes, 1973: 79-80).

Barboza Filho (2008), por sua vez, refere-se a essa linguagem do interesse como

um modo específico de normatividade que, em articulação com modelos dela distintos e

que lhe serviriam como sublinguagens, viria a compor o eclético repertório moderno de

possibilidades de subjetivação. Juntamente com as linguagens da razão e do afeto, a

linguagem do interesse teria surgido como expressão da corrosão dos princípios

teológicos tradicionais de compreensão do mundo e sua substituição por linguagens

secularizadas, que se pretendiam ancoragens ético-normativas para o agir humano,

efetivamente fornecendo modelos teórico-filosóficos de organização da vida. Palco da

disputa teórica entre tais linguagens, e das peculiares formas de hierarquização entre

elas, a modernidade teria sido um contexto de intensa disputa de valores (Barboza Filho,

2008:17)2. Pode-se supor que tal polifonia teria implicado, por sua vez, uma intrincada 2 A tríplice tipologia oferecida pelo autor é uma apropriação e modificação da classificação originalmente elaborada por Anthony Padgen, baseada em quatro linguagens, quais sejam, o aristotelismo político, o republicanismo clássico, a economia política e a ciência da política. Para a reflexão específica que aqui buscamos conduzir, entretanto, a teoria das três linguagens se mostra satisfatoriamente exaustiva e afim às categorias conceituais que pretendemos mobilizar.

2

polissemia, uma vez que as categorias conceituais sobre as quais o pensamento político

se estruturava teriam sido submetidas a constantes re-significações em cada qual

daqueles campos morais.

A posição que pretendemos destacar é que, no contexto em que o interesse é

estabelecido como linguagem dominante, uma relevante ausência é observada.

Voltemos a Lukes: em seu mapeamento daquelas noções definidoras do que chama

individualismo moderno, o autor identifica um conjunto de concepções que,

reaparecendo sob formulações específicas no polifônico panorama intelectual da

modernidade, seriam indicativas de seus valores nucleares: as noções de dignidade do

homem, autonomia, privacidade e autoaperfeiçoamento estariam presentes em distintas

correntes de pensamentos, mobilizadas em diferentes graus, i.e., sendo atribuída maior

relevância a algumas dessas categorias em detrimento de outras, a depender do contexto

intelectual em questão. O ponto que cabe aqui estabelecer é que uma efetiva supressão

se opera quando do estabelecimento da linguagem do interesse em sua versão liberal-

utilitária, qual seja, o cancelamento de qualquer preceito que meça forças com uma

noção radical de dignidade humana. Na medida em que individualiza, desagrega e

matematiza, a linguagem do interesse não pode pensar a noção de algo que seja “um fim

em si” e, por isso, só pode conceber os sujeitos individuais como portadores de distintas

“utilidades”, as quais são tão somente ocasional e quantitativamente distinguíveis entre

si, mas essencial e qualitativamente equivalentes. Isso significa, por um lado, o

reconhecimento da legitimidade dos heterogêneos interesses individuais, assim como,

por outro, a aceitação de uma lógica coercitiva no veto à ação arbitrária de um indivíduo

sobre outro, intervindo artificialmente sobre os fins particulares para o estabelecimento

de um nível mínimo de equilíbrio3.

Supomos que seja precisamente essa inviabilidade crônica de gestação de uma

idéia de dignidade no quadro conceitual da linguagem do interesse que explique a

dificuldade semântica em discerni-la das demais ideias básicas do individualismo

moderno, tais quais indicadas por Lukes. Pode-se supor que seja essa a razão de fundo

de sua identificação a noções de autonomia e igualdade – desde que compreendidas

3 A tipologia de Barboza Filho destaca Hobbes, Locke e Tocqueville (este último, representante de uma versão mais benevolente e palatável do “interesse bem compreendido”) como exemplares desta linguagem. Consideramos, porém, que o chamado Utilitarismo clássico, que tem em Bentham, James Mill e John Stuart Mill seus principais expoentes, em virtude da importância fundamental que confere às categorias do interesse individual e do artifício, pode ser incluído na reflexão, inclusive fornecendo a terminologia que aplicamos ao caracterizar a linguagem do interesse em termos de equilíbrio de utilidades.

3

ambas também em referência a suas significações típicas no âmbito do pensamento

liberal de corte utilitário. A posição que pretendemos demarcar é a de que tal

“contaminação” da idéia de dignidade é própria aos limites conceituais inerentes ao

pensamento dominante: quando nos voltamos ao pensamento romântico, vemos a

dignidade alçada a premissa ética e estética que suporta tais noções, das quais não é

sinônimo, mas antes fundamento4, e então podemos perceber que a relação própria entre

elas não é de automática substitutibilidade, mas de vinculações específicas.

A linguagem da dignidade

Interessa-nos demarcar a circunscrição do tema da dignidade ao pensamento

moderno porque é ali que adquire sua dimensão enquanto categoria ética –

precisamente aquela que lhe confere relevância enquanto valor informativo de um

determinado modelo de vida social e organização política. Autores como Lovejoy

(2001:187) apontam a origem da noção da dignidade no pensamento judaico-cristão

enquanto categoria primeiramente ontológica, referida quer ao lugar próprio a cada ente

da Criação na Grande Cadeia do Ser (de modo que homens teriam dignidade superior a

plantas, por exemplo, e inferior a anjos) quer à afirmação de que, criados à semelhança

de Deus, todos os homens nascem portadores de igual dignidade. Nessa perspectiva,

atributos que o pensamento moderno conferirá ao termo já se fazem presentes – dado

que a dignidade é afirmada como qualidade universal e intrínseca – mas sua passagem

do âmbito ontológico ao ético acompanhará as posteriores formulações de Santo

Agostinho a São Tomás de Aquino e a afirmação do efeito corruptor do ato pecaminoso

sobre a dignidade do indivíduo pecador. No humanismo renascentista tal perspectiva

alcança formulação mais nítida e inspirada, em especial com o Discurso sobre a

dignidade do homem, de 1496, de Pico della Mirandola. Neste, que é o mais notório

tratado filosófico acerca do tema, pela primeira vez uma vinculação é explicitamente

traçada entre a liberdade e a dignidade do homem, sendo esta então identificada ao

cultivo e desenvolvimento de certas “habilidades interiores que, apropriadamente

exercitadas, permitiriam aos sujeitos aspirarem à sua realização enquanto seres morais”

4 Ver Malpas & Lickiss (2007) acerca da dignidade como fundamento e não sinônimo. Os autores chamam a atenção para certos âmbitos discursivos do pensamento contemporâneo, como o “médico-bioético” (que usualmente refere-se a uma idéia de dignidade enquanto “respeito à autonomia”, sendo esta compreendida em termos de decision making- é autônomo o indivíduo capaz de retirar os princípios de seu agir de sua própria atividade reflexiva) e o “legalista” (que vincula o debate quanto à dignidade à temática dos direitos humanos e define a igualdade em termos de tratamento não-hierárquico e não-discriminatório), nos quais a nebulosidade semântica se faz perceptível.

4

(Brennan & Lo, 2007: 45), em uma perspectiva que agora deriva a dignidade do livre

arbítrio e da agência individual5.

Em sua variante moderna, a dignidade reaparece no âmbito da filosofia kantiana,

constituindo o núcleo mesmo de sua doutrina prática. O imperativo categórico, único e

definitivo teste de validade da agência moral, indica ser a racionalidade o atributo que

distingue o homem dos demais seres e que lhe garante ascendência sobre eles: somente

o indivíduo dotado de vontade racional tem valor absoluto, todo o resto possuindo

apenas o valor relativo que ele próprio lhe atribui. A posição é especialmente clara na

segunda formulação do imperativo prático, que postula: “Procede de maneira que

trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre e

ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio” (FMC:92). A noção de todo

sujeito racional como fim em si, de valor intrínseco e único, é o que se encerra na noção

de dignidade humana: “Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer

outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por

conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade” (FMC:98). E

aqui temos, portanto, a dignidade renascentista, vinculada ao livre arbítrio, naquilo que

consideramos seu primeiro momento moderno, tipicamente iluminista, em que a

liberdade se conecta à universalidade da razão.

Sabe-se, porém, que a crise do racionalismo iluminista esteve relacionada à

percepção dos limites da razão tanto em âmbito epistemológico, enquanto via segura

para a obtenção de conhecimento, quanto na esfera moral, no que tange à sua

legitimidade na determinação das condutas. Sabe-se também que, na Alemanha

moderna, a sensibilidade às limitações desse modelo de compreensão do mundo

encontrou solo fértil. No movimento romântico, a reação ao racionalismo encontrou

expressão consciente, em suas distintas manifestações e, primordialmente, no campo

das artes. Com o advento do moderno capitalismo e com a emergência das massas na

vida política, o individualismo de caráter universalista dos intelectuais iluministas

5 “Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: ‘Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, afim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti segundo teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até os seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo’” (Pico della Mirandola, 2008:57).

5

encontrou na individualidade singular proclamada pelos poetas românticos um ponto de

tensão que exigia a revisão de seus pressupostos.

Supomos que intelectuais da primeira geração do Romantismo alemão (o chamado

período Frühromantik), como F. Schlegel, Novalis e Schleiermacher6, instigados pela

obra crítica kantiana e influenciados pelas posteriores reflexões acerca do tema da

educação estética tais quais desenvolvidos por Schiller, inserem no pensamento

moderno a noção de uma organização estética da existência que corresponde a um

segundo desdobramento moderno do ideal de dignidade7. Tradicionalmente referidos

pela literatura especializada antes pelo que os distingue do que pelo que os aproxima,

acreditamos, entretanto, que entre o sistemático transcendentalismo kantiano e a

anárquica inspiração sentimentalista romântica, algo de comum anuncia-se, esgarçando

os limites do atomismo liberal em sua linguagem do interesse, tensionando suas

contradições e inserindo no panorama intelectual do pensamento moderno um

específico ideal de individualidade e um alternativo modelo de organização política.

Romantizar o mundo: o imperativo político

A relação entre os primeiros românticos e o legado da filosofia crítica de Kant é

sempre complexa e de difícil definição, expressando-se ora como assimilação e

reverência, ora como oposição consciente e incisiva, ora como dedicação obsessiva à

sua superação. O fato é que a noção kantiana de uma “subjetividade moral radicalmente

livre”8 imprimiu-se de tal forma no imaginário daqueles autores que, mesmo nos

momentos em que subvertiam suas categorias, permaneciam ainda profundamente

instigados a responder àquelas questões fundamentais que Kant havia formulado. Se a

noção de uma comunidade universal de seres racionais livres era a imagem projetada

por Kant de um reino dos fins, os românticos, não obstante sua desconfiança quanto à

legitimidade exclusiva da razão, conservavam seu ímpeto utópico, i.e., a crença na

6 Friedrich Schlegel (1772–1829). Georg Friedrich Philipp von Hardenberg, pseudônimo Novalis

(1772–1801). Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834). 7 A vasta maioria desses escritos políticos da geração proto-romântica foi publicada no período que se estendeu de 1797 a 1801, aproximadamente, na forma de fragmentos, curtos comentários em prosa, cuja extensão poderia ser de algumas poucas palavras (remetendo a máximas ou chistes), algumas linhas ou, em caso excepcional, algumas páginas. Sobre a complexa relação entre a forma fragmento e a filosofia romântica, ver Scheel (2010). Quando aqui referidos, os fragmentos são citados indicando o nome da publicação original, o número relativo ao fragmento e a página correspondente na edição de referência. No caso de ausência de traduções para o português, optamos pela versão em língua inglesa do volume compilado por Beiser (1996).8 A expressão é de Charles Taylor (2005).

6

potencialidade e responsabilidade dos homens enquanto agentes de transformação, em

atividade contínua de aproximação a um ideal. Essa vocação utópica romântica

revelava-se fruto da própria inscrição histórica daqueles autores, imersos no ambiente

pós-revolucionário e impelidos a refletir sobre o significado dos abalos que haviam

então atingido a Europa, desestruturando ideias tradicionais e seus correlatos

institucionais (Seligman-Silva, 2002:09-10).

Naquele momento convulsivo, no entanto, o ideal kantiano de uma paz perpétua

fundamentada em uma noção abstrata de direitos naturais e em um formalismo legalista

parecia-lhes uma aspiração insípida. Em 1796, Schlegel publica Versuch über den

Begriff des Republikanismus, um comentário ao tratado de Kant, texto que dificilmente

se encaixaria na caracterização “conservadora” que estudiosos comumente atribuem aos

intelectuais românticos. Incisivo e polemista, o ensaio mira no caráter “mínimo, abstrato

e contraditório” (Izenberg,1992:97) do republicanismo kantiano. Ali, Schlegel realiza,

contra Kant, uma defesa radical da democracia e do direito de resistência, questionando

as definições kantianas de igualdade e liberdade. Dirá Schlegel:

The minimum of civil freedom is contained in the Kantian definition. The medium of civil freedom is the right to obey no external laws other than those which the (represented) majority of the nation has really willed and the (supposed) universality of the nation could will. The (unattainable) maximum of civil freedom is that of the criticized definition, which would be a tautology only if it spoke of moral and not political freedom. The highest political freedom would be equivalent to moral freedom, which is limited only by the moral law, completely independent of coercive laws (VBR: 97, grifos no original).

E complementa:

Similarly, what Kant defines as external legal equality in general is only the minimum in the infinite progression to the unattainable idea of political equality. The medium consists in not allowing any differences among the rights and obligations of the citizens other than those which the majority of the nation has actually willed and the totality of the people could will. The maximum would be an absolute equality of rights and duties for all citizens, thus ending all domination and dependency (VBR: 97, grifos no original).

Para Schlegel, o republicanismo kantiano era constrito pelo próprio formalismo

e circularidade de suas proposições e só poderia então se concretizar enquanto fictio

juris:

But how is republicanism possible? The general will is its necessary condition; but the absolute general (and therefore absolute enduring) will does not occur in the realm of experience and exists only in the world of pure thought. The individual and universal are therefore separated from one another by an infinite gulf, over which one can jump only by a salto mortale. There’s no solution here other than, by means of a fiction, to regard an empirical will as the surrogate if the a priori absolute general will. Since a pure resolution of the

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political problem is impossible, we have to content ourselves with the approximation to his practical X (VBR:101, grifos no original).

O fundamental é que as limitações teóricas kantianas, tal qual percebidas por

Schlegel, estariam no caráter mesmo de sua antropologia, a qual guardaria, em seus

fundamentos, afinidades elementares com uma noção antissocial de natureza humana e

que só poderia pensar a organização política, portanto, a partir de uma lógica coercitiva.

Trata-se da “insociável sociabilidade” de que fala Kant, a irrevogável tensão que

caracteriza o indivíduo kantiano, e que coloca sua consciência em perpétuo conflito

entre o impulso particularista, que lhe impele a agir de acordo com seus apetites

egoístas, e os ditames da racionalidade pura, que lhe ordenam obedecer às leis da

moralidade. Essa oposição acaba, no entanto, servindo ao homem, na medida em que,

segundo o argumento teleológico mobilizado por Kant, “O meio de que a natureza se

serve para realizar o desenvolvimento de todas as disposições é o antagonismo das

mesmas na sociedade, na medida em que se torna ao fim a causa de uma ordem

regulada por leis desta sociedade”(IHUPVC:13). Tal posição inspira a solução legalista

kantiana:

It only remains for men to create a good organization for the state [...], and to arrange it in such a way that their self-seeking energies are opposed to one another, each thereby neutralizing or eliminating the destructive effects of the rest. And as far as reason is concerned, the result is the same as if man’s selfish tendencies were non-existent, so that man, even if he is not morally good in himself, is nevertheless compelled to be a good citizen. As hard as it may sound, the problem of setting up a state can be solved by a nation of devils (so long as they possess understanding) (PP:112).

Se, na linguagem do interesse a que nos referíamos, a razão entrava como

componente remodelador, introduzida artificialmente por sobre a constituição natural

passional e egoísta do homem, não para eliminar suas inclinações e seus desejos, mas

para transformá-los e reabilitá-los para a vida pública, organizando as finalidades

individuais em um ponto de equilíbrio, poderíamos então pensar tal linguagem

gramaticalmente como “o homem é desejo e razão”9, pois a racionalidade é um

incremento, acrescentado posteriormente por sobre a cupiditas (Barboza Filho,

2008:18). A diferença para o modelo antropológico kantiano é que ali a razão deixa de

ser tão somente uma sublinguagem do interesse, para se erguer absoluta e magnânima.

O indivíduo kantiano é, desde o princípio, um híbrido: em parte ser sensitivo, habitante 9 Ou como dirá Hirschman, em obra que é referência sobre o tema das relações entre as esferas da razão, das paixões e do interesse: “O interesse era visto na verdade participando da melhor natureza de cada um, como a paixão do amor-próprio melhorada e contida pela razão, e como razão que recebe orientação e força daquela paixão. A resultante forma híbrida de ação humana era considerada isenta tanto da destrutividade da paixão quanto da ineficácia da razão” (2002: 64-5).

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do mundo fenomênico, refém de suas tendências e inclinações antissociais – um

demônio; e em parte ser racional, dotado da faculdade de submeter seu agir às leis da

vontade pura e subordinar sua particularidade aos ditames de uma lei universal. O que

ocorre nessa linguagem da razão é que, ao expressar-se como “o homem é razão versus

desejo”, ela mantém como traço essencial da constituição humana a existência de uma

cisão no interior do indivíduo, e é em relação a este fundamento que as condições da

vida social e política serão pensadas.

Com exceção da crítica à Paz Perpétua, são escassas as menções de Schlegel a

desenhos institucionais ideais. Também em Novalis as reflexões permanecem distantes

da tradicional discussão na filosofia política em torno das formas de governo. Não raro,

este traço comum aos autores românticos, somado à imersão destes no mundo das artes,

levou ao questionamento quanto à existência de um pensamento político propriamente

romântico (Frank, 2004; Millán-Zeibert, 2004; Kompridis, 2006). É preciso, portanto,

um olhar atento para que se perceba que, falando seu idioma próprio, os românticos

oferecem observações contundentes, não raro radicais, quanto à organização política.

Vejamos então as reflexões trazidas por Novalis nos fragmentos compilados em

Glauben und Liebe, de 1798, e no opúsculo Christenheit oder Europa, escrito em 1799,

mas publicado integralmente somente em 1826. Nestes, o rompimento com a

racionalidade iluminista é ainda mais abrupto - tão radical, de fato, que há razão para se

especular que tenha sido proposital e conscientemente exagerado e rebuscado, em seu

argumento assim como em seu estilo retórico, para efeitos de arrebatamento e

mobilização. Em CoE, dá-se o que Seligman-Silva (2002) chama a instauração de “uma

nova temporalidade”: o instável contexto europeu contemporâneo é comparado a um

passado idealizado, reconstruído por Novalis através de um recuo ao imaginário

medieval de um Europa politicamente unificada, uma “era de ouro” na qual as nações

encontravam-se, interna e externamente, pacificadas na fé cristã.

Those were beautiful magnificent times, when Europe was a Christian land, when one Christianity dwelled on this civilized continent, and when one common interest joined the most distant provinces of this vast spiritual empire. […] Every member of this society was honoured everywhere. If the common people sought from their clergyman comfort or help, protection or advice, gladly caring for his various needs in return, he also gained protection, respect and audience from his superiors. […] How happily everyone could complete their earthly labours, since those holy men had safeguarded them a future life, forgave every sin, explained and erased every blackspot in this life (CoE: 61).

O ideal monárquico-cristão medieval simboliza a um só tempo a harmonia

interior do homem consigo mesmo e a harmonia entre os homens, isto é, unidade

9

espiritual em seu sentido pleno, moral e política. O deslocamento de cognitio em

direção a fides como modalidade legítima de acesso à verdade e de determinação das

condutas é um aspecto relevante desse postulado místico-religioso. Ali está contida a

crítica romântica à modernidade, vista por Novalis como regida por relações

instrumentais entre o homem e as coisas e entre os próprios homens.

Needs, and the arts of satisfying them, grow more complicates; greedy man then requires so much time to know and acquire skill in these arts, that he no longer has time for the quiet collection of mind for the attentive consideration of the inner world. Should a conflict arise, his present interests seem to mean more to him; and so withers the beautiful blossoms of his youth, faith and love, giving way to the bitter fruits of knowledge and possession (CoE:64)

O conhecimento e a posse no lugar da fé e do amor – são estes os termos com

que Novalis caracteriza a deterioração das relações sociais no momento pós-

revolucionário, articulando a ascensão da moderna sociedade de mercado à

fragmentação social, relacionando o crescente materialismo com a perda de um senso

de transcendentalidade e com a consequente dissolução da ideia de comunidade em

virtude de as necessidades humanas agora encontrarem sua possibilidade de resolução

tão somente pela via das satisfações individuais hedonistas, independentemente

consideradas (Kleingeld, 2008:273).

Mas Novalis não pretende tão somente a vituperação das tendências de seu

tempo; a crítica à modernidade é também um chamado. A exaltação da Europa católica

e monárquica é, na verdade, um símbolo daqueles valores que caracterizavam a

sensibilidade romântica; o sentido é menos nostálgico do que alegórico (Kleingeld,

2008; Stoljar, 1997), isto é, tratava-se menos de um clamor pelo retorno daquelas

instituições do passado do que a afirmação de um conjunto de valores a ser recuperado.

Por mais que as evocações de Novalis tivessem pretensões retoricamente envolventes e

sedutoras – era, afinal, um poeta que escrevia, e o fato de o argumento ser apresentado

em prosa é pouco significativo diante das imagens e emoções que o texto produz no

leitor – há razão para se supor que seus escritos políticos fossem, em seus próprios

termos, uma ideia regulatória em sentido kantiano, transcendental (Seligman-Silva,

2002). Não pensemos, porém, que isso enfraquece a radicalidade ou agudez de seu

projeto, pois é justamente nesse imperativo que vemos descortinados alguns conceitos

filosóficos centrais ao romantismo.

De fato, tão nuclear é a ideia suposta nesse ideal regulador de Novalis que ele

guarda a origem semântica do próprio movimento romântico. Novalis cunhou o termo

romantisieren em sua obra estética para referir-se à atividade do poeta. Somente em um

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segundo momento teria dele derivado as formas nominal das Romantische e adjetiva

romantisch (Hiebel, 1947:515), o que evidencia que lhe interessava primeira e

fundamentalmente o ato de produção da poesia enquanto processo. O detalhamento

desse processo é revelador. Parte da atividade de romantização do mundo se dá pelo que

chama potencialização da experiência, o que envolve uma forma peculiar pela qual o

poeta deve abordar os objetos. Potencializá-los significa tomá-los para além de sua

existência limitada, tirá-los de seu contexto de determinação – na poesia romântica,

significa o ato de conferir qualidades sobrenaturais ao natural, retomar a imaginação de

um mundo mágico ou um passado longínquo, i.e., transformar o ordinário em

extraordinário. Mas, por outro lado, a romantização do mundo supõe, para além da

atividade de potencialização dos objetos, a realização do caminho inverso: tratar o

infinito – o misterioso, o fantástico, o grotesco – como natural e próximo – transformar

o extraordinário em ordinário (Hiebel, 1947:516-517)10.

Aqui, pretende-se superar a cisão kantiana entre o mundo fenomênico e o mundo

da racionalidade pura que circunscrevia seu idealismo transcendental através da

afirmação de um idealismo mágico (Kleingeld, 2008:277). Para Novalis, assim como

para Kant, o absoluto não pode ser alcançado pela razão, mas a experiência do

extraordinário ganha significado precisamente enquanto tentativa de se atingir o

suprassensível pela via imaginativa e, assim, ao caráter negativo da Crítica se opõe o

aspecto positivo da criatividade artística romântica. Em GuL, o ideal da romantização

do mundo encontrará sua materialização no Estado poético (Stoljar, 1997:17). Os

fragmentos ali reunidos denotam uma preocupação com a recepção dos ideiais

revolucionários na Prússia e seu potencial atomista e desintegrador, e pintam um retrato

da família real prussiana – efetivamente distante da realidade - como encarnação

daqueles valores que, a seu ver, guardavam a possibilidade de recuperação da harmonia

política no contexto moderno.

“The conduct of the state depends upon the public ethos. The ennoblemente of

this ethos is the only basis for genuine reform of the state. The king and queen as such

can and must be the principle of public ethos” (GuL, #28, p. 43) O amor que une os

10 Diz Novalis: “O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma potenciação qualitativa. O si-mesmo inferior é identificado com um si-mesmo melhor nessa operação. […] Na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo – Inversa é a operação para o superior, desconhecido, místico, infinito – através dessa conexão este é logaritmizado – Adquire uma expressão corriqueira. Filosofia romântica. […] Elevação e rebaixamento recíprocos” (Fragmentos I e II, #105, p.142).

11

monarcas a seu povo, e a fé que os liga a Deus, são os alicerces do Estado – um símbolo

vivo, que se imprime no imaginário dos membros da comunidade política com força

incomparavelmente maior do que a letra de qualquer contrato de subordinação das

vontades em nome da integridade física e da canalização dos diversos interesses11.

Distintamente de uma pluralidade de interesses que se enfrentam em uma esfera pública

neutra, pensa-se aqui em um compartilhamento de valores e afetos, os quais se

sintetizam no Estado. No questionamento do registro racional do contrato, à

racionalidade geométrica das teorias contratualistas, “uma máquina artificial e muito

frágil” (PS,#122, p.84), Novalis contrapõe a ideia do Estado poético enquanto uma terra

de “livre florescer”:

If this machine could only be transformed into a living, autonomous creature, then the greatest problem would be resolved. The unruliness of nature and the forced order of artifice would interpenetrate one another and be resolved into spirit. It is spirit that makes them both fuid. Spirit is always poetic. The poetic state is the true perfect state (PS,#122, p.84).

O ponto que pretendemos a partir daqui demonstrar é que os modelos de

sociedade e Estado proclamados pelos românticos não somente partem de uma noção

abstrata acerca do indivíduo que lhes é peculiar como têm como objetivo essencial a

produção dessa mesma subjetividade. O ideal estético romântico, veremos, é

coextensivo a seu imperativo político (Beiser, 2003). Este é tanto dependente quanto

produtor de um determinado tipo de personalidade. Um recuo é, entretanto, necessário:

será em Schiller que encontraremos o vínculo entre a dignidade humana kantiana e os

significados políticos de uma educação estética.

Graça e dignidade: o significado da educação estética

A bela alma de Schiller

11 Chamamos atenção para dois trechos particularmente inspirados: “How would our cosmopolitans be amazed if the time of eternal peace dawned upon them and they saw the highest and most developed humanity in its monarchic form? Then the stale pare that now sticks humanity together will dissolve into dust, and the spirit will scare off all the ghosts that now appear in dead letters and go forth dismembered from pens and press. All humanity will melt together like a pair of lovers” (GuL, #16, p.38). “Those who nowadays declaim against princes as such, who affirm salvation only in the French manner, who recognize even a republic only under a representative form, and who dogmatically maintain that there is a republic only where there are primary and elective assemblies, directories and committees, municipalities and liberty trees – they are miserable philistines, empty in spirit and poor in heart, and mere pedants who conceal their shallowness and inner weakness behind the colourful banner of the latest pompous fashion and under the imposing mask of cosmopolitanism[…]” (GuL, #23, p.41). Neste último, a retórica virulenta de Novalis expressa sua convicção de que valores e pressupostos filosóficos distintos teriam de ser formulados em linguagens distintas. Isso parece reduzir, no pensamento romântico, discussões quanto a formas de governo e formatos institucionais a uma posição secundária.

12

O período que se estende da Revolução até por volta de 1796 marca o estudo

sistemático da obra crítica kantiana por parte de Schiller. Precisamente desse período

são o ensaio Sobre Graça e Dignidade, o conjunto de cartas sobre a educação estética

do homem e a correspondência trocada com seu amigo, o escritor e jurista Christian

Gottfried Körner. Trata-se de reflexões que terão profundo impacto sobre o pensamento

dos primeiros românticos e que em diversos sentidos serão incorporadas a seu modelo

de subjetividade. Sobre Graça e Dignidade, de 1793, traz a marca do desconforto

schilleriano com o aspecto coercitivo do imperativo categórico, isto é, com a

determinação do agir moral em termos de resistência às inclinações apetitivas, em nome

do imperativo do dever. A subjetividade cindida postulada por Kant, na interpretação de

Schiller, teria afinidade com a filosofia analítica própria ao Iluminismo, a qual via a

razão como exclusiva responsável pela elevação moral do homem e que, por isso,

determinava uma ética do dever rigorosamente ascética, monástica.12 Será, pois, pela via

estética que Schiller pretenderá solucionar o dualismo inerente à filosofia prática

kantiana.

Graça e dignidade correspondem, segundo Schiller, a dois modos distintos

através dos quais a “subjetividade moral livre” pode se realizar. Quando fala em

dignidade, Schiller tem em mente precisamente o caráter impositivo que o dever possui

no âmbito da filosofia moral de Kant: uma modalidade específica de ação moral, que é

aquela que se dá quando os desejos e inclinações são humilhados pela razão, vergados

por força da obediência ao imperativo categórico. Um ato moral distinto, entretanto,

define-se na idéia de graça, introduzindo então o elemento original da reflexão

schilleriana. A graça, para Schiller, é a modalidade de liberdade moral realizada,

praticada, por uma alma bela. Dirá: “Un alma se llama bella cuando el sentido moral ha

llegado a asegurarse a tal punto de todos los sentimientos del hombre, que puede

abandonar sin temor la dirección de la voluntad al afecto y no corre nunca peligro de

estar en contradicción con sus decisiones.” (SGD: 64). Diferentemente do que ocorre no

ato moral que se deriva do agir com dignidade, a graça supõe uma disposição

espontânea, um impulso, que não se dá através de um empenho de refreamento em

nome do dever, mas por uma tendência natural, na qual o ditame da razão, de tal forma

absorvido pelo sujeito, se encontra em harmonia imediata com o que atrai sua

12 “En la filosofía moral de Kant la idea del deber está presentada con una dureza tal, que ahuyenta a las Gracias y podría tentar fácilmente a un entendimiento débil a buscar la perfección moral por el camino de un tenebroso y monacal ascetismo” (SGD:59).

13

sensibilidade. Diz-se do sujeito que assim age dotado de uma alma bela precisamente

porque o seu agir é expressivo de uma unidade harmônica: quando razão e sentimento

não entram em conflito, o ato moral não é apenas bom, mas belo, isto é, não se

manifesta enquanto constrição ou determinação exterior, mas como expressão da plena

liberdade do sujeito, de sua completa autonomia. Do mesmo modo, podemos dizer que

quando há total afinidade entre os anseios da alma e sua manifestação concreta na

conduta – sua aparência - o agir moral adquire uma dimensão estética.

Não, a rigor, como se conformidade a fins e conformidade a regras fossem em si incompatíveis com a beleza; todo produto belo tem que antes submeter-se a regras: e sim porque a influência notada de um fim e de uma regra se anuncia como coerção e traz consigo heteronomia para o objeto. É lícito e é preciso que o produto belo seja até conforme a regras, mas ele tem de aparecer como livre de regras (Schiller, 2002:69, grifos no original).

Tal vinculação entre as esferas prática e estética ganha maior elaboração nas

Cartas, nas quais Schiller expõe seu projeto pedagógico de formação dos indivíduos

através do refinamento da apreciação estética, isto é, do desenvolvimento do gosto.

Trata-se de fazer da contemplação do belo artístico uma estratégia para se estabelecer

no sujeito aquela disposição apropriada, de forma que seu agir seja determinado não

somente pelo dever, em sentido kantiano, mas por um impulso lúdico, fruto do

equilíbrio entre razão e sensibilidade. Nas palavras de Schiller: “[...]o homem joga

somente quando é homem no sentido pleno da palavra, e somente é homem pleno

quando joga” (Carta XV, p.80). Daí que a educação estética é a via para o

estabelecimento desse livre jogo; é o projeto de desenvolvimento das “potencialidades

intelectuais e sensíveis” do sujeito, através da elucidação de conceitos e da purificação

das paixões – é a tarefa de formação da alma bela. Por isso, para nosso objetivo de

investigação de uma estética da dignidade no pensamento moderno, própria à tradição

alemã, gestada pela confluência de princípios entre o individualismo ético de Kant e a

noção romântica de subjetividade, Schiller deve ser trazido à discussão. Mas não é a

concepção schilleriana de dignidade per se que nos interessa – porque elaborada em

termos ainda eminentemente kantianos– mas suas noções peculiares de graça e alma

bela, pois são aquelas que evidenciam o esforço de reelaboração estética da filosofia

prática kantiana por parte de Schiller, apontando para a direção geral na qual

prosseguirão os primeiros românticos pós-kantianos.

A alma bela de Schiller, conceito nuclear de SGD e ideal a ser buscado pela

educação estética proclamada nas Cartas, supõe, por sua vez, uma noção de belo que é

diversa daquela definida por Kant na Terceira Crítica. A preocupação central de

14

Schiller referente à crítica de nossa faculdade de julgar consiste em estabelecer uma

dedução objetiva do gosto sem a qual os juízos acerca do belo permaneceriam limitados

a asserções de validade meramente subjetiva13. Isso significaria uma teorização acerca

do belo profundamente distinta da kantiana, uma compreensão específica por parte de

Schiller acerca do que entendia como complementação necessária ao que teria

considerado uma tarefa inacabada deixada por Kant (Suzuki, 2002:09).

Segundo a Crítica do Juízo, o que chamamos de belo é aquilo que, uma vez

intuído por nossa sensibilidade, nos proporciona uma forma específica de prazer,

distinta de outras experiências agradáveis associadas aos sentidos14. O prazer do belo se

dá quando as faculdades do intelecto são mobilizadas sem que, entretanto,

conhecimento seja produzido. Diferentemente do que ocorre no processo descrito na

Crítica da Razão Pura, no qual a experiência fornece aqueles dados sensíveis que são

esquematizados pela imaginação e submetidos às categorias a priori do entendimento,

resultando em atividade conceitual, no juízo estético o que ocorre é uma forma de

prazer decorrente da simples mobilização dessas duas faculdades. O belo é, pois, o

objeto que evoca tal tipo de prazer contemplativo, desvinculado da produção de

conceitos, conseqüente tão somente do livre jogo das faculdades da imaginação e do

entendimento.Tal mobilização, “desonerada” de qualquer tarefa, liberada para a pura

contemplação (Barbosa, 2002:21), suscita um determinado estado de deleite

contemplativo específico, não associado à dimensão apetitiva. Sendo tais faculdades

inerentes a todos os indivíduos, o juízo de gosto é passível de universalidade, ou seja, de

validade intersubjetiva – é portanto, comunicável. Mas é ainda referido não ao objeto

em si, mas às possibilidades subjetivas da própria atividade de julgar (Barbosa,

2002:27).

Daí que o empreendimento schilleriano de superação das limitações kantianas

pode ser compreendido em dois aspectos interligados: no de sua busca por uma

determinação objetiva do belo e na vinculação entre o gosto e a dimensão moral15. O 13 À diferença do que diz Kant na Analítica do Belo: “O juízo de gosto não é, pois, um juízo de conhecimento, portanto não é lógico, mas estético, pelo que se entende aquele cujo fundamento de determinação não pode ser outro do que subjetivo.Toda referência das representações, mesmo a das sensações, porém, pode ser objetiva (e significa então o que é real em uma representação empírica); só não pode ser a referência ao sentimento de prazer e desprazer, pela qual absolutamente nada é designado no objeto , mas em que o sujeito, assim como é afetado pela representação, sente a si mesmo” (AB:209, grifos no original). 14 “Gosto é a faculdade de julgamento de um objeto ou de um modo de representação, por uma satisfação, ou insatisfação, sem nenhum interesse. O objeto de uma tal satisfação chama-se belo”. (ICJ: 215, grifos no original).15 “A beleza [...] é objeto para nós, porque a reflexão é a condição sob a qual temos uma sensação dela, mas é, ao mesmo tempo, estado de nosso sujeito, pois o sentimento é a condição sob a qual temos uma

15

livre jogo que rege o juízo de gosto para Kant se distingue daquele impulso lúdico de

que nos fala Schiller no sentido de que cada qual supõe um locus específico da

liberdade. Na crítica kantiana, este é associado à livre representação das faculdades da

imaginação e do entendimento. Para Schiller, por sua vez, a liberdade se manifesta pela

conciliação entre razão e sentimento, e a beleza é característica daquele ato que aparenta

(faz aparecer) tal disposição espontânea do sujeito. O belo enquanto objeto é o ato

moral belo – associado às noções de graça e bela alma - ; logo, seu âmbito é o da

prática (Schiller, 2002:55). A beleza, para Schiller, é liberdade do fenômeno, em ação,

ou seja, se liga à liberdade moral de agência no mundo.

No impulso lúdico, o homem não desfruta de uma liberdade moral stricto sensu, mas de uma liberdade em meio ao mundo sensível. Isso acarreta uma conseqüência importante: para Schiller, sempre que contempla um objeto belo, o homem está ao mesmo tempo projetando simbolicamente sua própria liberdade nesse objeto [...] Visto dessa perspectiva, o homem em sentido pleno – o homem lúdico – não busca apenas retirar-se à “clausura” da moralidade, mas empenha-se exatamente em dar vida às coisas que o cercam, em “libertar” os objetos que habitam sua sensibilidade, tornando possível um cultivo cada vez maior desta. O homem assim destinado a aperfeiçoar a realidade – seja ele o gênio que cria obras de arte ou o indivíduo de gosto que contempla o belo – é chamado por Schiller de nobre [...] (Sukuzi, 2002 :13).

É esta premência da dimensão ética, associada à reflexão estética, que supomos

estar presente nos primeiros românticos. A formação de um caráter nobre revelará os

pressupostos da romântica filosofia da vida, isto é, a interconexão entre seu ideal de

personalidade e uma ética da individualidade.

A modernidade e a romântica filosofia da vida

O giro teórico a que Schiller submete a filosofia kantiana significará um novo

entendimento quanto ao sentido da educação estética. Como esclarece Beiser (2003:96),

os românticos são atentos ao fato de que a pedagogia schilleriana do refinamento do

gosto não se referia a pretensos efeitos moralizantes que certas obras de arte poderiam

vir a exercer sobre o caráter. A postulação de Schiller é mais incisiva: ao estabelecer a

beleza como qualidade objetiva do fenômeno e ao definir a alma bela como aquela que

aparece como dotada de graça, o que Schiller está afirmando como imperativo estético

é que cada um de nós faça de si próprio uma obra de arte, isto é, um todo harmônico,

livre de constrições. A educação estética encerra em si, portanto, um ideal de

representação dela. Ela é, portanto, forma, pois que a contemplamos, mas é, ao mesmo tempo, vida, pois que a sentimos. Numa palavra: é simultaneamente nosso estado e nossa ação” (Carta XXV, p.127, grifos no original).

16

personalidade que é, fundamentalmente, um ideal de perfectibilidade, de empenho

consciente em um projeto de autoformação (Bildung). Por ser a bela alma, em si, fonte

daquele tipo específico de prazer suscitado pela contemplação da plena liberdade do

fenômeno, podemos dizer que

[…] there is an aesthetic pleasure inherent in human excellence, which serves as an incentive to attain and maintain it.The stimulant to moral perfection does not derive from any work of art but simply from the pleasure involved in the exercise of characteristic human activities. Like most moralists, Schiller maintains that virtue brings its own reward, a unique kind of pleasure […] (Beiser,2003:97, grifo meu).

É como se Schiller operasse um curioso encaixe-desencaixe-reencaixe: a

princípio, une as dimensões da ética e da estética, desafiando o postulado kantiano da

autonomia das faculdades da razão (i.e., contra a noção de que o belo não poderia ser

motivação para ação moral, uma vez que, sendo a moralidade derivada unicamente do

imperativo do dever, subordiná-la a qualquer outra determinação seria contradizer seus

próprios termos); em seguida, desagrega o julgamento de gosto e a esfera prática,

negando que o estímulo para o agir moral pudesse advir de qualquer elemento

provocativo exterior ao sujeito; e, finalmente, as reintegra em um nível mais profundo,

fazendo da formação da bela alma enquanto plena harmonia e autodeterminação um

correlato à virtude. Reunindo o belo ao bom, a educação estética schilleriana aponta

ainda mais uma característica comumente associada aos românticos: sua reverência ao

mundo clássico, tido como ideal de integração harmônica (Beiser, 2003:27). Vimos

anteriormente, em Novalis, uma idealização do passado medieval e o elogio da

organicidade da monarquia católica, em contraste com a fragmentação espiritual,

filosófica e política característica da incipiente sociedade mercantil moderna.

Similarmente, também o mundo greco-romano será criticamente evocado pelos

românticos e incluído em sua reflexão acerca da modernidade.

A grecofilia é elemento usualmente apontado como característico dos trabalhos

filológicos de Schlegel (Izenberg, 1992; Seligman-Silva, 2002; Beiser,2003). Ao

dedicar-se ao estudo comparado das poesias clássica e moderna, Schlegel interessa-se,

primeiramente, pelas transmutações cronológicas em termos daqueles princípios que

governavam a atividade do poeta16: um senso de unidade com a natureza e uma

preocupação em manter-se coerente a regras fixas marcavam a arte greco-romana,

conquanto uma cisão com mundo natural e a inclinação a subverter regras de

composição em nome da liberdade criativa do artista davam a tonalidade

16 Schlegel emprega poesia e seus correlatos em sentido amplo, referindo-se às artes em geral.

17

especificamente moderna. De um lado, portanto, preocupação formal e o interesse em

retratar o universalmente válido, de um ponto de vista objetivo; de outro, desprezo pela

pureza da forma em nome da expressividade do conteúdo (admitindo, no caso do

romance moderno, a mescla de gêneros narrativos), fascínio pelo singular, pelo

excepcional, e a infusão da subjetividade do autor (Lovejoy,1917:66). Curiosamente,

entretanto, essa investigação histórica foi aos poucos cedendo a uma análise filosófico-

normativa: tratava-se, agora, de perceber naqueles princípios que regiam uma relação

estética com o mundo a existência de distintos campos morais.

“A poesia romântica é uma poesia universal progressiva” (Athenäum, #116,

p.64), escreverá Schlegel em 1796. Essa dupla adjetivação guarda o sentido final de sua

interpretação da modernidade. O primeiro termo, universal, pode causar estranheza, se

pensamos em sua aplicabilidade à estética clássica. Mas então o segundo lhe é

acrescentado e lhe infunde sentido: a poesia romântica é a poesia tipicamente moderna

porque mira progressivamente, elipticamente, por aproximação, o reestabelecimento da

universalidade, a partir da singularidade (Rush, 2006:180). Como Novalis, Schlegel

reabilita a modernidade em sua tarefa utópica: para o primeiro, a romantização da

sociedade cavalheiresca significava, para além de um arroubo nostálgico, um intuito

provocativo, um apelo para que os homens de seu tempo tomassem pra si o controle de

seu destino e que fizessem materializar-se aquele conjunto de valores que permitiria o

resgate de uma unicidade perdida; para o segundo, o classicismo reverencial dava lugar

à aposta na possibilidade de se concretizar, tanto no plano da estética como na vida,

formas inéditas de pertencimento e de individuação.

Se a arte – forma superior de relação do homem consigo mesmo e com o mundo

– será distinta na modernidade, será também distinta, portanto, a modalidade de

realização da moderna virtude. Tal preocupação aparece, exemplarmente, na obra ética

de Schleiermacher, cujas ambições enquanto teórico da moral combinavam-se tanto a

seus estudos em teologia quanto a seu interesse pela filosofia grega clássica, de modo a

inspirar o que Louden (2002:ix) chamou o “projeto de conciliação entre, de um lado,

uma doutrina deontológica do dever e, de outro, uma doutrina teleológica da virtude”.

Assim dirá Schleiermacher em um de seus ensaios sobre ética: “With the ancients, the

highest good and virtue; with the moderns, virtue and duty.These [latter] two are in

opposition:if virtue is given, duty stops; as long as one must inculcate duty, virtue is not

yet there” (apud Louden, 2002:ix).

18

Uma vez mais, em vocabulário e sentido similar ao empregado por Schiller,

Novalis e Schlegel, vemos a ética do dever kantiana posta à prova: no caso de

Schleiermacher, o afastamento do individualismo ético kantiano centrado na noção

coercitiva do dever em direção a uma ética da individualidade que sintetizasse dever e

virtude é narrado, em seus Monologen (1800), nos termos de um testemunho de

conversão religiosa:

For a long time I was content to have found only reason; and honouring the universality of one and the same being as its only and highest aspect, I believed that there is only one right thing to do in every circumstance, that action must be the same for everyone, and that it is only because of situation and place that people differ from one another. I though that humanity reveals itself differently only in the multiplicity of external deeds, and that a person is not an individually formed being but made of one element that is the same everywhere (Monologen II, p.174).

O que Schleirmacher trará para o centro da reflexão é o modo como cada sujeito

individual realiza a humanidade que carrega em si através da síntese entre virtude e

dever. Isto significa perguntar-se como cada um mobiliza aquelas tendências, desejos e

inclinações que lhe são idiossincráticas e como as submete a um valor universal; e como

realiza o movimento inverso, inspecionando o que há de intrinsecamente humano em si

e realizando-o como genuinamente individual (Izenberg,1992:23).

To contemplate humanity in oneself, and when found never to divert one’s gaze from it, is the only certain means never to stray from its sacred real. This is the inner and necessary connection between action and contemplation, which is inexplicable and mysterious only to the foolish and slow of heart. A truly human action creates the clear consciousness of humanity in me, and such consciousness permits no other action than one worthy of humanity (Monologen II,p.172).

Vemos ação e contemplação novamente unidas, remetendo à articulação entre o

estético e o moral típica aos românticos; mas é preciso destacar que a Schleiermacher -

que não é um poeta e que afirma não ter intenção de sê-lo - não interessa a obra de arte

em si enquanto forma privilegiada de se expressar a individualidade, mas a

possibilidade de que qualquer indivíduo atinja aquela forma de expressão que o artista

alcança através de sua arte. E esta é, para Schleiermacher, a sociabilidade como síntese

interior/exterior. Sockness (2004:490) chama a atenção para a idéia de reflexo/reflexão

mobilizada por Schleiermacher para operar a conexão entre interioridade e

exterioridade. De um lado, envolveria a noção de capacidade de auto-inspeção, relativa

ao que se dá quando o sujeito mira a própria imagem refletida em um espelho e

questiona a harmonia de sua forma - o que implica não só a existência de uma

consciência (reflexão) como tal, mas de uma consciência de si (de seu reflexo). De

19

outro lado, a mesma idéia estaria vinculada ao reflexo aos olhos alheios e evidenciaria a

importância atribuída por Schleiermacher ao outro – aos amigos, em especial, i.e.,

aqueles a quem nos associamos por afeto – no processo de auto-cultivo de uma

personalidade singular.

Hence I cannot develop myself in isolation, as the artist does. In isolation all the juices of my mind dry up, and the course of my thought is arrested. I must get out and join a community with other spirits, to see the many forms of humanity and what is alien to me, to know what I can become of myself, and to determine more securely through give and take my own nature (Monologen II, p.178).

A filosofia da vida romântica traduz-se, portanto, em uma ética da

individualidade, que tem seu núcleo na mútua troca entre o indivíduo e a comunidade.

A virtude romântica é uma síntese em sentido duplo: refere-se à harmonização das

esferas da razão e da sensibilidade, no interior do indivíduo, e entre as partes e o todo,

no seio da vida comunitária.

The real meaning of the objective ideal of beauty emerges as the ideal of a radically free, yet psychologically and socially integrated, personality and the republican polity that is both its political expression and its precondition. If Greek individualism was more wholesome than modern individuality, it is because it did not deform the personality one-sidedly in the direction of sensuousness or intellect or allow one personality to develop at the expense of others, and this in turn was possible because Greek individualism was the product of social arrangements that provided for the development of the whole man, and of all men […] (Izenberg, 1992:92).

A filosofia da vida romântica é, portanto, aquela de uma forma peculiar,

moderna, de virtude cívica. Sua linguagem matricial é a do afeto, secundada pela

linguagem da razão – esta, por sua vez, aqui despida de pretensões totalizantes ou

instrumentais. A perfectibilidade - que no plano do interesse só poderia ser pensada

como controle artificial exercido pela razão sobre os desejos perniciosos ao equilíbrio

societal e que no plano da racionalidade kantiana só encontrava possibilidade de

realização na espécie humana e jamais no indivíduo empírico – aqui é a chave de um

ideal de personalidade, em perpétuo movimento aproximatório. Na linguagem dos

sentimentos, da qual o primeiro romantismo é exemplar, podemos então afirmar que

Cada homem é cupiditas em exercício, é pura potência e o nó anelante de uma complexa e mutante trama de relações com os outros homens e a natureza. O desejo é posto como a nossa potência, que recusa e dobra a eficácia dos modelos de pura disciplina e repressão, e que só pode ser exercido nas nossas relações sociais (Barboza Filho, 2008:26).

Considerações finais

20

Na investigação de um ideal estético de dignidade, inserido no panorama do

pensamento moderno enquanto normatividade alternativa, capaz de dar forma a outros

modelos de vida social e política que não aqueles pautados por uma racionalidade

maximizadora e instrumental, encontramos a romântica filosofia da vida, tal qual

elaborada pela primeira geração do Romantismo alemão. De forma geral, três eixos de

aproximação entre Kant e os escritos políticos dos primeiros românticos puderam ser

observados, e analisados em sua complexa e intrincada relação: (i) em primeiro lugar, o

individualismo qualitativo romântico vem a realizar, a seu modo, uma negação da

lógica da equivalência presente na linguagem do interesse, similar à realizada por Kant

ao postular, no âmbito de sua filosofia ética, a noção de que é digno aquilo que não

possui preço (cada sujeito é particular e único; logo, não há intercâmbio possível); (ii)

em segundo lugar, no âmbito do pensamento romântico, a individualidade é afirmada

aos modos de uma metáfora estética, na qual a construção de si, tomada enquanto

produção de uma obra de arte, encerra a noção de um todo coerente assim como de algo

que é um fim em si (um objeto de contemplação e fruição, alheio à lógica da

instrumentalidade), o que é consistente com os postulados da filosofia prática kantiana;

e, finalmente, (iii) a noção de que a realização moral do indivíduo só pode ser

concebida por sua relação com o outro, por sua imersão em uma vida comunitária

pensada não como mera agregação de uma multiplicidade de unidades isoladas e

competitivas, mas como relação interativa entre o indivíduo e o mundo - noção que

perpassa as reflexões de Kant sobre a realização do reino dos fins enquanto tarefa ética

e que se faz presente, em termos próprios, no ideal tipicamente romântico do auto-

cultivo (Bildung), segundo o qual é precisamente da interação com o meio que o sujeito

adquire o substrato necessário à formação de si.

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