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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA Das visage e das latumia de Elomar Figueira Mello Alessandra Bonazza Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profª Drª Lênia Márcia de Medeiros Mongelli São Paulo 2006

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA

Das visage e das latumia de Elomar Figueira Mello

Alessandra Bonazza

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profª Drª Lênia Márcia de Medeiros Mongelli

São Paulo 2006

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

PORTUGUESA

Das visage e das latumia de Elomar Figueira Mello

Alessandra Bonazza

São Paulo 2006

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DEDICATÓRIA

Ao Sílvio, companheiro e malunga, domador de lubião!

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AGRADECIMENTOS

Márcia Mongelli, por ter acreditado que era possível.

Geraldo Augusto Fernandes, Ana Paula Machado D’Ávila e “Seu” Ivanísio, pelo apoio incondicional.

Regina Célia Tocci Di Giuseppe, pelos “sopros” bíblicos.

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RESUMO

Pretende-se, neste estudo, analisar e discutir as obras Cancioneiro, o poema épico

Fantasia leiga para um rio seco e o Auto da Catingueira, de Elomar Figueira Mello, um

artista brasileiro, cantador, operista, arquiteto e criador de bodes, que utiliza em seus textos

poético-musicais imagens do universo medieval “relidas” pelo sertanejo. Com uma

linguagem singular, permeada de arcaísmos, variantes dialetais e neologismos, suas

produções transitam entre o erudito e o popular, demonstrando valores artísticos baseados

na estética européia tradicional e recriados segundo modelos nordestinos, revelando a

diversidade brasileira e, principalmente, o mundo do sertanejo. A análise centra-se no

imaginário religioso do catingueiro e suas confluências com o imaginário medieval, em

aspectos da espiritualidade como a peregrinação e a escatologia. Assim, objetiva-se pensar

na produção elomariana como representante da cultura popular brasileira e partícipe na

construção da identidade nacional.

Palavras-chave: Elomar, cultura popular, espiritualidade, imaginário, identidade

nacional.

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ABSTRACT

The purpose of this study is to analyse and discuss the works of the Brazilian artist,

singer, opera composer, architect and goat breeder Elomar Figueira Mello. The pieces to be

studied in this essay are his Cancioneiro, the epic poem Fantasia leiga para um rio seco

and Auto da Catingueira, which poetic and musical images of the medieval universe are

“re-read” by the inlander Elomar. Using singular language, full of archaims, dialectic

variants and neologisms, his works are found between erudition and popularity, showing

artistic values based on the European aesthetics, and recreated according to Brazilian

northeast models It also reveals revealing the Brazilian diversity, and mainly the inlander

world. The analysis focuses on the “catingueiro” religious imaginary and its connections

with the medieval imaginary, considering some aspects of spirituality, such as pilgrimage

and scatology. Thus, the purpose is to think of the elomarian production as an exponent of

the Brazilian popular culture and participant of the construction of the national identity.

Key-words: Elomar, popular culture, spirituality, imaginary, national identity.

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SUMÁRIO

1. Introdução 01 2. Capítulo I – Elomar Figueira Mello: um poeta cantador 09

2.1. O homem e o artista 09

2.2. A obra 15

3. Capítulo II – Espiritualidade elomariana 25

3.2.O Cancioneiro 29

3.3.Fantasia leiga para um rio seco 51

4. Capítulo III – Caminhos da cultura brasileira 62

4.2.O Brasil no Auto da Catingueira 62

5. A língua utilizada por Elomar 97 6. Conclusão 104

7. Discografia 112 8. Bibliografia 113 9. Antologia 125

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NOTA PRÉVIA

Três elementos devem ser esclarecidos antes da leitura deste trabalho, pois

certamente influenciaram sua produção.

O primeiro deles diz respeito ao acesso às obras do artista. Houve grande

dificuldade na aquisição das gravações, uma vez que boa parte delas é rara, teve pequena

“tiragem” ou foi produzida por Elomar de forma independente. Apenas cinco álbuns são

comercializados pelas principais lojas, mas, mesmo assim, em pequenas quantidades.

Algumas dessas gravações foram adquiridas por meio da Internet, em um momento de

“sorte”, quando um ouvinte resolveu vendê-las. Outras foram adquiridas em alguns sebos

do centro da cidade de São Paulo.

O segundo refere-se também a outra dificuldade: conseguir entrevistas com o

artista, que se mostra bastante avesso à exposição – não admite filmagens e gravações. Não

possui um canal aberto com o público. Portanto, durante a execução desse trabalho, não foi

possível uma “visita” à sua fazenda no interior de Vitória da Conquista, apesar das

inúmeras tentativas. Como o contato já fora estabelecido com seus familiares e Elomar deu

anuência à recepção, o encontro com o artista pode dar-se mesmo após o término da

Dissertação.

O terceiro aspecto, igualmente limitante, é a escassa produção crítica sobre o

assunto e a dificuldade de acesso ao material existente, do qual muita coisa pertence ao

arquivo pessoal de Elomar. Informações foram obtidas de forma esparsa, por meio de

entrevistas do artista aos principais jornais das cidades, quando de alguma apresentação

pública. Há muitas divergências entre elas.

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1. INTRODUÇÃO

Cultura popular e constituição da identidade cultural do Brasil é um tema que

suscita interesse em muitos pesquisadores de várias partes do mundo. Mas, o que há de

intrigante neste país e sua identidade cultural? Certamente, alguns fatores chamam a

atenção de imediato – a extensão do território, sua diversidade geográfica, sua forma de

colonização, a evolução sócio-econômica ao longo dos séculos, a jovialidade, a mestiçagem

de raças, o sincretismo religioso, os diferentes costumes e formas de pensamento expressos

nas diversas localidades, a variedade de artistas e suas manifestações na música, na

literatura, na pintura, na escultura, no teatro, no cinema.

Nesse mosaico sócio-histórico-cultural brasileiro, vive Elomar Figueira Mello, um

artista polivalente, nordestino, que respira um Brasil plural, fazendo sua arte a partir de uma

unidade – o Sertão. Ele é cantador, operista, poeta, arquiteto e criador de bodes. Suas

produções musicais foram gravadas a partir da década de 70. É um artista bastante

significativo, porta-voz de uma tradição ibérica relida pelo sertanejo, representante da

cultura popular brasileira. Transita entre o erudito e o popular, buscando, como fonte de

inspiração, o modo de vida do catingueiro1, mais precisamente o de sua região, o sertão

baiano (sudoeste da Bahia), assim como as histórias tradicionais que circularam na Idade

Média e principalmente os fundamentos cristãos presentes nas Sagradas Escrituras. Com

toda essa riqueza de fontes, esse cantador expressará os temas – sagrados e profanos – por

meio de uma linguagem própria, mesclada ao dialeto catingueiro – fato bastante relevante

para este estudo.

Outro elemento que chama a atenção a respeito de Elomar é a prática de uma

diversidade genológica – ele faz óperas, concertos, sinfonias, poemas, cantorias, roteiros e

ensaios, assunto que será apresentado nos capítulos seguintes. Segundo Cláudio Novaes:

“O texto musical de Elomar torna-se a ponte para várias travessias: do

cancioneiro sacro medieval ao canto profano das festas coletivas e do cotidiano

1 Entende-se “catingueiro” como aquele que habita a região ocupada pela caatinga – vegetação que ocorre nos sertões semi-áridos do Nordeste. “São matas secas, abertas, deciduais, que se desenvolvem em clima cuja estação de chuvas é bem marcada e cujo volume anual de umidade está abaixo de 700 mm”. ROSS, Jurandyr L. Sanches (Org). Geografia do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. p. 173.

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individual; do refinamento barroco às chulas e parcelas. Portanto não existe a

possibilidade de uma leitura que se exima de uma noção de fronteiras atemporais

e universais na enunciação. São obras/ discursos; formas/ conteúdos que

compõem o texto da diversidade no fichário geral da contemporaneidade”. 2

Assim, estudar criticamente a poética elomariana é transitar e ultrapassar diversas

fronteiras, concretas e abstratas, o que torna o caminho árduo, porém instigante. É

necessário passar pelo artista e suas concepções, por seu meio, por seus personagens, por

sua forma de criação, por suas fontes, pelo social, pelo universal, pelo nacional e

internacional. Nesse sentido, o que se propõe nesta Dissertação é o estudo de algumas das

produções de Elomar, com vistas aos elementos que compõem o imaginário de seus

catingueiros, bem como o tratamento dado a eles, para situá-los no contexto brasileiro,

perscrutando o caminho que assumem dentro da cultura, tentando descobrir que espaço é

esse, se é que há esse espaço.

Escolheu-se como tema central da Dissertação a religiosidade manifesta em suas

composições, pois é marcante a presença de muitos fundamentos judaico-cristãos nelas, o

que pode revelar o imaginário religioso do Nordeste brasileiro, que muito deve ao Barroco,

tão corrente no período colonial. Segundo Afrânio Coutinho, “o barroco ficou sempre

congenial ao espírito brasileiro”.3 Tentam-se estabelecer confluências entre o imaginário

do catingueiro elomariano com o do homem medieval, buscando revelar os pontos comuns,

o porquê deles e qual o significado disso para a cultura brasileira. Para tanto, há a

necessidade de estudos sobre História das mentalidades, Idade Média, principalmente no

que se refere ao imaginário popular religioso, História do Brasil e História cultural,

enfocando a construção da identidade nacional.

A História cultural brasileira começou a ser teorizada apenas no final do século

XIX, a partir de comparações com o mundo europeu, que há muito se preocupava com o

assunto buscando, por meio da tradição popular – histórias, lendas, contos etc –,

identidades nacionais. Renato Ortiz, pesquisador do assunto, estudando o caso europeu,

principalmente o alemão, afirma que, conforme a visão herderiana, “os costumes, as lendas,

2 NOVAES, Cláudio. “Sertania (en)cantada”. Iararana: Revista de arte, crítica e literatura. Salvador, 2001. p.58. 3 COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era barroca e era neoclássica. São Paulo: Global, 1997. v3. p. 34.

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a língua são arquivos de nacionalidade, e formam o alicerce da sociedade” 4. Desta forma,

Herder propõe que os intelectuais alemães se voltem para as tradições e nelas encontrem o

“substrato de uma autêntica cultura nacional”5.

Renato Ortiz expõe que “toda identidade se define em relação a algo que lhe é

exterior, ela é uma diferença”6. Ele situa a problemática da cultura brasileira no âmbito

político, mostrando que a identidade nacional está ligada à construção do Estado, assim

como ocorreu com os países da Europa, defendendo que não existe uma identidade

autêntica, mas sim uma pluralidade de identidades, construída por diferentes grupos sociais

em diferentes épocas.

Nas teorias raciais do século XIX, produzidas por Sílvio Romero, Euclides da

Cunha e Nina Rodrigues, a questão racial assumiu um contorno racista, ao se apoiar nas

teorias do positivismo de Comte, no darwinismo social e no evolucionismo de Spencer,

pois tais teóricos consideraram o assunto sob um único aspecto – o da evolução histórica

dos povos. Assim, aceitar essas idéias implica em ver o Brasil em um estágio civilizatório

“inferior” em relação aos países europeus, sobretudo porque o país pertence ao Novo

Mundo, ou seja, é jovem e colonizado, não possuindo a tradição do Velho Mundo,

mostrando-se defasado. Os intelectuais da época precisavam resolver o dilema de

compreender a defasagem entre realidade e teoria, “hiato entre intenção e realização”7 –

necessidade de modernização, de evolução e inexistência de condições materiais para isso,

“o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional”8. Buscam respostas

para a questão do atraso do país nos conceitos de Raça e Meio, traduzindo dois elementos

imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular.

O Brasil é visto como a fusão de três raças – o branco, o negro e o índio. No

entanto, à raça branca é atribuída uma posição de superioridade, enquanto que “o negro e o

índio se apresentam como entraves ao processo civilizatório”9, segundo os estudos de Nina

Rodrigues, pois tais raças se mostram incapazes de assimilar os elementos da civilização

européia. A mestiçagem “moral e étnica” possibilitou a aclimatação dos europeus nos

4 ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Editora Olho d’Água, s.d. p.22. 5 Idem, ibidem, p.22. 6 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 7 7ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.29. 8 Op. cit. ORTIZ, 2003. p.15. 9 Op. cit. ORTIZ, 2003. p.20.

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trópicos. O mestiço encerraria em si os “defeitos e as taras transmitidos pela herança

biológica”. Ortiz afirma que, nos estudos sócio-biológicos de Manuel Bonfim, as relações

entre colonizador e colonizado eram vistas como semelhantes às relações entre parasita e

parasitado, considerando-se o Brasil herdeiro de duas características funestas: “o

conservantismo” – apego às tradições e rechaçamento de mudanças sociais; e a falta de

“espírito de observação” – incapacidade de apreender a própria realidade. Assim, a

inferioridade racial explicaria o atraso brasileiro e a idéia de mestiçagem apontaria para a

formação de uma possível unidade nacional.

Essas teorias raciais ficaram obsoletas a partir das primeiras décadas do século XX,

em virtude do processo de urbanização, industrialização e o aparecimento do proletariado.

Caio Prado Jr e Sérgio Buarque são considerados “fundadores” de uma nova linha, gestada

dentro de universidade, para entender a realidade social. Ocorre mudança do conceito de

raça em relação ao de cultura, ou seja, há um distanciamento entre o biológico e o social.

Ainda conforme Ortiz, o mito das três raças torna-se plausível – “o que era mestiço torna-

se nacional”10.

Com a Revolução de 30 e o surgimento do Estado Novo, ocorre transformação na

estrutura econômica e, conseqüentemente, surge a “necessidade de se pensar a identidade

de um Estado que se moderniza”11. Houve expansão de instituições culturais, como o

Serviço Nacional de Teatro e cursos de ensino superior. O ano de 1964 foi um marco na

história brasileira, pois houve internacionalização de capital, concentração de renda,

crescimento da classe média e do parque industrial, criação de um mercado interno que se

contrapõe ao exportador, desenvolvimento desigual das regiões e concentração da

população em grandes centros urbanos. Tudo isso gerou, paralelamente, segundo Ortiz, um

mercado simbólico de bens – a área cultural. Nesse momento, Elomar, ao término de seu

curso de graduação, preparava-se para voltar à sua terra natal e sistematizar sua produção

artística.

Assim, novas teorias foram surgindo e acabaram por mudar o foco de teorização das

questões culturais brasileiras. Em 1966, Castelo Branco cria o CFC – Conselho Federal de

Cultura, cuja ideologia é marcada pelo Brasil mestiço. A mestiçagem assume duplo sentido

10 Op. cit. ORTIZ, 2003. p.41. 11 Op. cit. ORTIZ, 2001. p. 130.

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– questão racial (mistura de três raças) e questão da heterogeneidade (diversidade

brasileira). Logo, a identidade brasileira é definida como “unidade na diversidade”. Dessa

forma, para Ortiz, a integração e a interpenetração de esferas, erudito/ popular, econômico/

cultural, escrito/ oral, ocorrida ao longo do século XX, contribuiu de maneira muito

positiva para o desenvolvimento dos bens culturais brasileiros.12

Nesse sentido, as obras de Elomar são elucidativas do processo histórico de

construção da identidade discutido por Ortiz, na medida em que nelas percebem-se

elementos que constituem uma “unidade” na diversidade brasileira, quando o artista, por

meio do trânsito entre variadas esferas (erudito/ popular; escrito/ oral etc.), expõe aspectos

sócio-político-econômico-culturais de uma determinada região, no caso o nordeste

brasileiro.

O trabalho foi organizado do seguinte modo: no Capítulo I, “Elomar Figueira Mello:

um poeta cantador”, há a exposição de dados relevantes a respeito do artista – sua

biografia, suas concepções de vida, de arte, do Brasil, de religião, sua preocupação com as

manifestações culturais, com a língua portuguesa e suas expectativas. No segundo item,

faz-se uma descrição de suas principais produções, com as fontes, os principais temas e os

gêneros.

No Capítulo II – “Espiritualidade elomariana”, estuda-se essa espiritualidade, por

meio da análise crítica dos textos poético-musicais, com vistas ao imaginário cristão de

seus personagens, verificando se esse artista recupera, mantém, continua, rompe ou inova

os elementos que compuseram o ideário cristão da Idade Média ocidental, repensando a

cultura brasileira à luz da européia. Foram enfocados os sub-temas “Peregrinação”,

“Escatologia” e “Além”. No item 1, analisam-se quinze cantigas que compõem o

Cancioneiro, com tema preponderante do religioso, que perpassa praticamente toda a obra

do artista. 13 No item 2, há o estudo do poema épico Fantasia leiga para um rio seco. Neste

capítulo, são delineadas as manifestações de uma espiritualidade muito próxima das

práticas medievais, no que concerne à religiosidade popular.

No Capítulo III, “Caminhos da cultura brasileira”, há a análise de uma extensa

ópera de Elomar: Auto da Catingueira. Em virtude dessa extensão, encontra-se, na

12 Op. cit. ORTIZ, 2001. p.210 13 Essas cantigas foram organizadas na Antologia, apresentada ao final da Dissertação.

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Antologia, apenas um excerto, o 1° Canto, escolhido por tratar da protagonista, Dassanta.

Houve o cuidado de descrever e analisar, por meio das ações dos personagens, os valores,

as práticas, os mitos, os elementos sócio-histórico-culturais do Brasil subjacentes às suas

atitudes e falas.

O capítulo IV discute brevemente os processos lingüísticos adotados e criados por

Elomar, devido ao fato de que, de certa forma, para leitor e ouvintes principiantes na arte

elomariana, tais processos causam um entrave na compreensão, pois há a necessidade,

inclusive de uma “educação” auditiva para se penetrar nesse universo.

É necessário salientar que essa pesquisa não faz estudo da Música, ainda que

Elomar seja um cantador. Considera-se o texto verbal, denominado confortavelmente de

“poesia”, pois:

“(...) quando a letra de música se sofistica, extrapolando os limites entre

alta e baixa cultura e confundindo as distinções usualmente feitas entre cultura

erudita e popular, ela alcança um plano esteticamente superior e pode, então, ser

tomada como uma modalidade de poesia: a poesia cantada (uma forma de poesia

de música, em contraposição à poesia literária, de livro)”. 14

Pode-se perceber a sofisticação presente em Elomar por meio da sintaxe, da escolha

lexical e da forma como constrói as analogias, fazendo de seus textos um poema:

“lua nova sussarana vai passá seda branca na passada ela levô ponta d’unha lua fina no céu a onça prissunha a cara de réu o pai do chiqueiro a gata comeu”15

Nos versos acima, “sussarana” é a onça que levou, na semana anterior, um bode

reprodutor, “seda branca”. Com isso, o poeta cantador já avista no céu a lua nova,

comparada à unha. “Prissunha” é a onça que tem uma unha a mais. Outro exemplo que

elucida construções que associam som, imagem e palavra é a cantiga “História de

14 OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. (et al.). Literatura e música. São Paulo: Editora Senac SP e Instituto Itaú Cultural, 2003. p.53 15 “Arrumação”. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1978.

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vaqueiros” 16, na qual o poeta cantador relembra histórias de vários companheiros de

vaquejada, no sentido de homenageá-los. O trecho escolhido refere-se à morte de Bragadá

que, por um momento de distração, olhando para sua amada, é ferido pelo boi e vê a

mancha de sangue de seu ventre refletida na pupila da “morena”:

“pelo triz de um momento da peleja in certa altura viu nos olhos da morena ispelhada u’a mancha iscura faca na venta o boi morreno Bragadá caiu no chão Cum vazí rasgado ‘stremeceno Parava o saingue cum as mão Amô nun sei pru modi quê Facilitei olhei você Foi pur teus olhos pur a fulô Pegava o boi boi me pego É dura a sorte do pegado Morrê da morte chifrada amô”

Segundo Ezra Pound, há três modalidades de poesia:

“1 – Melopéia. Aquela em que as palavras são impregnadas de uma

propriedade musical (som, ritmo) que orienta o seu significado (Homero, Arnaut

Daniel e os provençais). 2 – Fanopéia. Um lance de imagens sobre a imaginação

visual (Rihaku, i.é, Li T’ai-Po e os chineses atingiram o máximo de fanopéia,

devido talvez à natureza do ideograma). 3 – Logopéia. ‘A dança do intelecto entre

as palavras’, que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não

se pode conter em música ou em plástica (Propércio, Laforgue)”. 17

As produções elomarianas respondem positivamente às questões colocadas por

Pound, podendo ser consideradas poesia. O que se considera nesta Dissertação, certamente,

são os aspectos orais presentes na poética elomariana, muito característicos dos textos

tradicionais, dos textos dos trovadores, menestréis e cantadores, pelo modo como foram

16 MELLO, Elomar Figueira Cartas catingueiras. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da Amazônia indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1983. 17 POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 11.

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transmitidos – pela voz, “da qual a poesia constitui o lugar eminente”18, sem, contudo,

trabalhar os gêneros, acordes, ou seja, os aspectos musicais.

Após a explanação das páginas anteriores, observa-se que estudar Elomar Figueira

Mello é uma forma de valorizar e divulgar uma obra que utiliza, de modo singular, o

mundo do sertão, do catingueiro, do nordestino, elementos arraigados na cultura do Brasil,

para recriar o imaginário cristão da Idade Média ocidental. Também é forma de trazê-la

para o meio acadêmico, apesar de seus textos não comporem, necessariamente, um cânone

literário. Indubitavelmente são valiosos, consolidados e raros, uma vez que o artista é,

possivelmente, o único a revelar o universo sertanejo por meio de óperas19, fazendo uma

obra erudita, poético-musical, com elementos populares. Suas composições expressam

artisticamente a cultura e os valores que permeiam um universo arcaico20, constituído de

práticas espirituais judaico-cristãs, de histórias tradicionais de reis, princesas e cavaleiros,

do modo de vida singular do sertanejo, entre outros.

Pretende-se, ao término da Dissertação, responder às seguintes questões: penetrar

no universo elomariano, por meio da análise da espiritualidade apresentada em seus textos,

permite conhecer o imaginário do sertanejo nordestino? Sua obra representa a identidade

cultural nos sertões, essencial para se pensar a nação brasileira? Do ponto de vista cultural,

em que espaço está inserido Elomar Figueira Mello?

18 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.140 19 Uma prática artística dita erudita e pela qual o artista nutre grande apreço e estabelece vínculo com a religiosidade. Segundo ele, faz ópera, “porque a ópera dignifica o sertão, o sertanejo. Por que só o europeu pode dignificar sua música, sua história e seu povo por meio da ópera, que é um dos gêneros mais completos que existem? Na ópera, você tem dança, música e teatro. É esse o melhor gênero para cantar a história do sertão, que não é bufa, é épica, é trágica”. Entrevista de Elomar à CHAGAS, Paula. “Elomar deixa a Bahia para mostrar ao Brasil a sua ópera do sertão”. Jornal da Tarde, s.d. 20 Há também, em paralelo, as composições de Antônio Nóbrega, violinista, compositor e menestrel. Foi membro do Quinteto Armorial de Ariano Suassuna. Esse assunto é discutido ao longo da Dissertação.

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2. Capítulo I - Elomar Figueira Mello: um poeta cantador

“Ninguém pode adquirir o que não possuía ao nascer, nem desejar o

que lhe é estranho”.21

2.1. O homem e o artista

“Não faço shows, faço concertos e cantorias”.22 “A minha fazenda, que se chama

Duas Passagens, fica no meio do sertão baiano, bem perto do céu. Lá crio bodes, cabras e

carneiros. O belo não se inventa, não se pesquisa, o belo vem da alma, do criador, de

Deus”.23 “Eu não sou religioso. Sou um servo de Cristo, dos piores; por uma questão de

cultura, de tradição, sou luterano, protestante”.24 “O sertão é auto-suficiente, não pede nada

para ninguém”. “Há no sertão um enorme manancial cultural que deve ser cantado, tocado e

escrito. Muitos como João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa e José Lins do Rego

já fizeram isso na literatura. Eu sigo essa tradição com minha música e minhas óperas”.25

O parágrafo acima, bastante elucidativo, foi construído no sentido de transmitir, por

meio das palavras do próprio artista, elementos que revelam costumes e valores cultuados

por ele, um artista nordestino, cantador, poeta, operista, ensaísta e arquiteto, e suas

peculiaridades. A primeira delas refere-se ao tratamento que esse cantador dispensa à

língua. Admirador do português, expressa de maneira intensa as manifestações lingüísticas

correntes no sertão baiano, criando o que ele chama de língua “sertaneza” (sic), 26 opondo-

21 Ariano Suassuna citando Thomas Mann. In: SANTOS, Idelette M.F dos. Em demanda da poética popular – Ariano Suassuna e o movimento Armorial. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p.287. 22 Elomar em entrevista a Mônica LOUREIRO, Cliquemusic, 08/04/03. 23 Entrevista a Paula CHAGAS – “Elomar deixa a Bahia para mostrar ao Brasil a sua ópera do sertão”. Jornal da Tarde, s.d. 24 Entrevista a Mauro DIAS, “Elomar povoa canções com deuses e maldições”. O Estado de São Paulo, 21/06/97. 25 Idem, ibidem. 26 Encontrar-se-ão, no quarto capítulo, discussões a respeito dos processos lingüísticos adotados por Elomar.

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se ao emprego de palavras estrangeiras, apenas inglesas, no léxico do Brasil.27. Segundo

Simone Guerreiro:

“Elomar participa de uma linha de compositores que se definem como

‘resistência latino-americana’, numa postura que questiona o processo econômico

de globalização, como uma voz sertaneja que resiste em preservar a sua cultura,

os seus valores, chegando, mesmo, a criar uma total antipatia pela cultura norte-

americana, constantemente batida em seu discurso: me recuso a falar inglês,

afirma”.28

Apesar de Elomar mostrar-se avesso à cultura norte-americana, sobretudo no que

diz respeito à língua, salienta-se que é preciso acautelar-se ao usar determinadas expressões

e idéias como “proteção ou preservação” da cultura sertaneja, como foram usadas na

citação acima, já que se pode cair no saudosismo romântico, achando que a “verdadeira”

cultura é fechada e expressa por um material primitivo que não sofre adaptações,

transformações e aquisições. Nesse sentido, corrobora-se, neste trabalho, a idéia de Idelette

Santos, de que, de certo modo, não há necessidade de “proteger” as manifestações culturais

brasileiras:

“A literatura popular não precisa de defensores, de intelectuais

engajados no seu resgate e salvaguardas; ela assumirá sozinha essa função

enquanto tiver poetas e cantadores cantando, a partir de sua alegria e de seus

sofrimentos, histórias de que o povo gosta”.29

Acredita-se também que esta seja a opinião de Elomar Figueira Mello, confirmada

por sua fala, citada no primeiro parágrafo: ”O sertão é auto-suficiente, não pede nada para

ninguém”. Na verdade, Elomar demonstra somente resistência à cultura e aos valores norte-

americanos, impostos por motivos político-econômicos. Reconhece que o Brasil se

27 “Gosto de citações em francês, espanhol, latim e grego. Mas língua inglesa é abominável por uma questão cultural. Sua proposta imperialista é asquerosa. A Inglaterra se acha porreta, se considerava a rainha dos mares. De uma hora para outra, seu filho bastardo tomou o poder” Elomar em entrevista. Op. cit. LOUREIRO, 2003. 28 GUERREIRO, Simone da Silva. Elomar Figueira Mello e a arte sertaneza. Salvador, 2001. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia. p.20. 29 Op. cit. Santos, 1999. P. 272.

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constitui em um mosaico cultural, do qual fazem parte inúmeras outras culturas de outros

povos; condena o ufanismo praticado por alguns intelectuais:

“É só saudosismo ufanista. Isso é horrível! Sabe o que é? Estão

limpando o bolor de velhas peças. Você tem de pegar a velha peça, limpar o bolor

e botar ela pra funcionar e acrescentar alguma coisa, sem alterar a estrutura. Ou

então, pegue a velha peça, se inspire na beleza dela e crie um trabalho novo”.30

A segunda particularidade refere-se ao fato de o artista não abrir mão de morar no

campo. Nascido no sertão da Bahia, em Vitória da Conquista, no ano de 1937, é filho de

tradicional família de fazendeiros da Zona da Mata do Itambé e de Mata-de-Cipó, passando

toda a infância na fazenda São Joaquim, no mesmo município. Assim demonstra seu grande

amor pela Natureza – fonte de inspiração – e também pelo trabalho rural, pois desenvolve

atividades de vaqueiro e peão – ferra marrãs, alimenta bodes, tira leite das cabras, faz

manutenção geral em sua propriedade, coordena o trabalho de seus funcionários.Viaja

esporadicamente pelo Brasil para fazer suas apresentações, mas de alguma forma leva algo

da terra para aliviar seu desconforto.31

Outra particularidade desse artista, ligada à anterior, é a transposição de experiências

pessoais, associadas à cultura local, para suas produções. Nesse sentido, ele mantém em

circulação numerosas histórias tradicionais, crenças e práticas. Seu pai era sanfoneiro, o

que possibilitou a Elomar conhecer grandes cantadores, como Zé Crau, Zé Guelê, Zé

Tocador e Vivi do Angico, que tocavam as modas tradicionais e típicas do universo

nordestino, convivendo com os “causos”, com as histórias, com o cordel, com os vaqueiros,

com os tropeiros, com a caatinga, com os animais, com a seca, ou seja, com todos os

elementos que serão apresentados, de maneiras variadas, ao longo de sua obra, seja ela uma

ópera, uma cantiga, uma antífona, um poema épico. Nesse sentido, Elomar pode ser

considerado um “fazendeiro do ar”, como se referia Carlos Drummond de Andrade aos

30 Entrevista de Elomar a RIBEIRO, M. J. “Elomar: um criador de bodes no teste da cabra-cega. Revista Íris. São Paulo, outubro de 1982, nº353. p.76-77. 31 “Eu não gosto de cidade grande, não gosto de muita gente junta, gosto mesmo é de ficar no meio do mato, de lidar com a terra, com os bichos e de fazer a minha música. Agora, é claro que me utilizo dos confortos da luz, da descarga, como todo mundo. (...) Quando tenho de viajar para fazer concertos, eu só fico em flat para poder cozinhar eu mesmo minhas comidas. Trago carne de bode, meus biscoitos de polvilho, minha farinha.” Op. cit. CHAGAS, s.d.

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escritores que tiveram uma infância rural e “procuraram em sua obra inventar e recriar

terras e reinos imaginários”32. Segundo Idelette, os escritores armoriais são todos

“fazendeiros do ar”:

“(...) a maioria dos escritores pertenceram a famílias rurais, latifundiárias

ou não, o que explica a infância passada no mundo fechado da fazenda. Infância

livre num ‘reino’ que a protege, infância rural que propicia um contato cotidiano

e familiar com a natureza, com a terra e os animais, com um povo de servidores,

vaqueiros, trabalhadores rurais, agregados e afilhados, que revelam à criança o

imaginário popular, os contos e as histórias de fazer medo, os romances cantados

e os folhetos, o mamulengo, as festas de São João etc. A revelação poética na

infância deixa marcas profundas no adulto (...). Essa infância obsessiva pode ser,

para alguns, fonte mágica, para outros, realidade atual, para os demais busca

permanente, mas constitui para todos a via obrigatória de acesso à cultura

popular”.33

Um terceiro tema que, indubitavelmente, será explorado em suas produções com

veemente força é o religioso. Apesar de Elomar não estar filiado a alguma instituição

religiosa, tem em sua formação muitos fundamentos judaico-cristãos, advindos do

protestantismo e transmitidos, sobretudo, por sua mãe, lembrando que o pai era pastor

protestante e fundara a primeira Igreja Batista conquistense. Ver-se-á em sua obra, por

meio de seus personagens, que a palavra de Deus é considerada a maior autoridade;

também a convicção de que todo ser humano é perdoável e a salvação é oferecida como

graça, dom, e que a Bíblia é tida como fonte de autoridade de fé, que não é só crença, é uma

resposta do sertanejo a todas as situações da vida, pois é ilimitado o poder de Deus na

mente, na vontade e nos afetos, ou seja, fé é um fenômeno pessoal. Esse artista aprendeu

esses fundamentos, desde muito jovem, com os cânticos do hinário cristão e do culto

batista, com a leitura das Sagradas Escrituras, dos profetas hebreus, dando especial ênfase a

alguns livros bíblicos, como Apocalipse, Êxodo, Joel, Jó e outros. Segundo Simone

Guerreiro:

“Afirma sua crença antes da religião, referindo-se sempre ao criador como

expressão de infinita bondade e amor dedicado aos homens, mas também

32 Op. cit. SANTOS, 1999. p.97. 33 Idem, ibidem, p.97-98.

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entendendo a sua lei como uma lei seca e severa, como o deus do Velho

Testamento. Faz a leitura da palavra bíblica como investigador e pensador, vendo

nela a expressão de uma verdade superior, muitas vezes contrária à verdade

sociológica, mas se colocando oposto ao fanatismo isento de uma postura

pensante, assumindo o papel de um intelectual cristão, cuja crença, como ele

afirma, é intelectiva”.34

Elomar demonstra sua erudição não só por meio de leitura de livros sagrados, mas

também de clássicos da literatura inglesa, francesa, espanhola, portuguesa, grega, latina,

aos quais teve acesso ao ingressar no colégio. Diz ele: “sempre fui tarado por essas belezas.

Então, aos 20 anos eu já tinha lido o que interessa, o essencial”35. Também estudou música

clássica, a partir de 1954, no Conservatório da Bahia, em Salvador, e em 1960, iniciou o

curso de arquitetura, formando-se em 1964. Desenvolveu alguns trabalhos arquitetônicos,

como o templo da 2ª Igreja Batista, em Vitória da Conquista. Assim, é um artista culto que

recorre a objetos culturais populares, adotando-os como “material”, recriando-os e

transformando-os segundo sua inventividade lingüística, poética e musical. Pode-se afirmar

que, apesar de o artista não ter participado do Movimento Armorial36, suas concepções

sobre Arte estão muito próximas às idéias defendidas por Ariano Suassuna: “O Movimento

Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa

cultura”37.

34 Op. cit. GUERREIRO, 2001. p. 30. 35 MELO, Rita Maria Costa. Elomar Figueira Mello: uma poética do sertão baiano. Recife, 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. p. 51. 36 Movimento artístico, fundado por Ariano Suassuana em 1970, no Recife. Iniciou-se com um concerto realizado pela Orquestra Armorial e uma exposição de artes plásticas. No ano seguinte, o Movimento se firmou, apresentou grande número de publicações, concertos, exposições. Reuniu diversos artistas, de músicos a ceramistas, e tinha como dogma a originalidade da criação, acima da teoria. Ver SANTOS, 1999. 37 Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, nº 10, p.32.

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Elomar, na qualidade de importante músico brasileiro38, pode ser definido como

cantador, trovador e menestrel, pois mantém as imagens do universo medieval presentes no

sertão por meio de uma linguagem clássica, mesclada ao dialeto catingueiro. Observa-se a

presença das “literaturas da voz”, assunto explorado por Paul Zumthor39, que se

perpetuaram pela memória e afloraram nos textos, demonstrando valores artísticos

baseados na estética européia, recriados por Elomar segundo modelos nordestinos. Sua obra

transita entre o erudito e o popular, revelando a diversidade brasileira e, principalmente, o

mundo do sertanejo:

“O primeiro contato com Elomar paralisa nossos olhos e nossos ouvidos,

pois sentimos que encontramos, neste representante do semi-árido do nordeste,

referências culturais que parecem surgidas anteriormente ao descobrimento do

Brasil. Sua linguagem, seu comportamento, sua aparência, somados à dolência

dos aboios e à poesia trovadoresca, nos remetem a um Brasil único, que brota na

caatinga para ser um dos galhos mais viçosos da música brasileira”.40

Não é conhecido do grande público porque não faz concessões a redes de televisão

nem tampouco a gravadoras. Segundo ele, “essas sociedades são o poder autoritário,

despótico e opressor dos direitos autorais”41. Tem a perspectiva de fazer com que as

pessoas percebam a riqueza cultural brasileira e isso, segundo ele, só se dá pela educação.

38 Sem dúvida não conhecido por boa parte dos brasileiros, mas reconhecido como artista por vários estudiosos, em trabalhos como dissertações, teses, artigos, monografia e citações em enciclopédias musicais. O primeiro trabalho acadêmico é uma dissertação de Mestrado, defendida na Universidade Federal de Pernambuco, em 1989, por Rita Maria Costa Melo, que tem como objetivo desvendar os mitos fundadores da cultura por meio da produção de Elomar, canções e óperas gravadas até 1986. Nessa pesquisa, a estudiosa faz análise antropológica, baseada nas teorias de Gilbert Durand. O segundo, também uma dissertação de Mestrado, defendida na Universidade Federal da Bahia, em 1998, por Cláudio Novaes. A pesquisa discute a migração e a identidade sertaneja a partir da cooptação de três artes diferentes – literatura, cinema e música, propondo intertextualidades entre Os sertões, de Euclides da Cunha, Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e as canções gravadas no disco Na quadrada das águas perdidas, de Elomar. Simone Guerreiro, em 2001, também da Universidade Federal da Bahia, defendeu sua dissertação de Mestrado sobre Elomar. O trabalho aborda temas como arte, tecnologia, mídia, sociedade arcaica e global. Seu objetivo é apreender criticamente o discurso elomariano. Há outras produções de Darcília Simões a respeito da linguagem utilizada pelo artista (ver bibliografia a respeito do autor). Atente-se ao fato de não haver citações a Elomar Figueira Mello em um estudo realizado por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, trabalho que faz retrospectiva crítica dos 85 anos de música no Brasil. SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H de. A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Editora 34, 1998. 2v. 39 Op. cit. ZUMTHOR, 2001. 40 VELLOSO. J. “Elomar – cantor e compositor”. In: THOMPSON, Mario Luiz. Bem-te-vi: música popular brasileira: 70, 80, 90, a MPB em três décadas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. 2v. p.205. 41 Entrevista a SANCHES, Pedro. “Elomar se aproxima do erudito e do desencanto”. Folha de São Paulo, s.d.

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Tem três filhos, todos “estudados”, todos envolvidos com música, fatos de que se orgulha

muito – Rosa do Prado estudou comunicação; João Ernesto é médico e João Omar é

regente. Mantém aceso dentro de si um desejo:

“O que quero legar para eles e para o mundo com meu trabalho é a

possibilidade de construirmos uma realidade específica, nossa. Que eles tenham

orgulho de serem do sertão, do Brasil. Minha música quer mostrar um povo que é

forte, que é lutador, que constrói obras maravilhosas”.42

2.2. A obra

Elomar possui uma obra bastante volumosa e diversificada. Têm-se notícias de

mais de 10 óperas, 11 antífonas, 4 galopes estradeiros43, 2 concertos para violão e piano, 12

peças para violão solo, um caderno com mais de 80 canções, 3 ensaios e alguns roteiros

cinematográficos. Nem todas elas estão concluídas. Na verdade, é bastante difícil obter

informações de maneira organizada. Conhecem-se esses dados por meio de informações

esparsas, encontradas em entrevistas e em alguns trabalhos acadêmicos, as quais, muitas

vezes, são divergentes – fato já explicado na nota introdutória. As fontes das descrições

que estarão presentes nos próximos parágrafos serão devidamente citadas em nota de

rodapé.

Sua primeira gravação foi um compacto, em LP, sem produtora, em 1968, com

apenas duas faixas: “O violeiro” e “Canção da catingueira”. No mesmo ano, outra

gravação, também um compacto, produzido por Israel Silveira, com arranjos de Remo Usai,

contendo apenas duas canções: “Mulher imaginária” e “O robô”. Esses dois LPs são

42 Op. cit. CHAGAS, s.d. 43 São sextilhas de decassílabos, muito próximas ao martelo (cantado nos desafios). A singularidade elomariana fez dessa construção uma sinfonia.

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bastante raros. Conta-se, hoje, com algumas produções gravadas em CD44: Das barrancas

do Rio Gavião (1973) – primeira produção com 12 canções, a qual o inseriu no

“movimento regionalista” da MPB, comprometido com o imaginário do sertão. Maria

Amélia G. de Alencar o considera precursor:

“da geração que se seguiu a ele, à qual pertencem, por exemplo, em

Minas Gerais, Dércio Marques, em Goiás, Nars Chaul (...), além de inúmeros

compositores e cantadores nordestinos.”45

Outras produções gravadas são: Na quadrada das águas perdidas (1978), Parcela

malunga (1980), Fantasia leiga para um rio seco (1981), ConSertão (1982), Cartas

catingueiras (1983), Auto da catingueira (1984), Cantoria 1 e 2 (1984), Conserto sertanez

(sic) (1985), Dos confins do sertão (1986) – obra gravada na Alemanha – , Elomar em

concerto (1989), Árias sertânicas (1982), Cantoria 3: canto e solo (1995). Em LP, conta-se

com o álbum Sertania (1985), trilha composta para o filme Boi Aruá.

Há menção em uma entrevista46 de uma produção, não gravada, intitulada

Nordestilhas, que consiste “em cânticos equatoriais, litanias de cegos andarilhos sobre ecos

de coros de cavaleiros malucos”. Há, ainda, relato de algumas antífonas – “Loas para um

Justo”, que Elomar fizera para seu filho, “Balada do filho pródigo”, Incelensa ad

moribundum solem. Ele relata que:

“Prometi a Deus uma coleção, a Antifonaria Sertani (o certo seria

‘antifonarium’, mas não gostei do som e ninguém mais sabe latim, então ficou

‘antifonaria’), com 11 peças. Mas fiz mais”.47

44 Os dados completos encontram-se na Discografia. 45 ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. “Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações na música popular. Actas del III Congresso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estúdio de la Música Popular, Santa Fé de Bogotá, Colômbia, agosto de 2000. p.9. 46 SOUZA, Jô. “Nordestilhas – cantos equatoriais por renitentes cavaleiros do setentrião. Jornal A Tarde. Salvador, Caderno 2, 04/10/94. 47 Op. cit. DIAS, 1997.

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Quanto às óperas, nem todas estão concluídas. A primeira delas, já completa, é o

Auto da catingueira, que relata a história de Dassanta, do nascimento à sua morte (ver

Capítulo III). Quanto à segunda, Elomar divide-a em 5 óperas, dando o nome geral de

Bespas esponsais sertanas, ou seja, vésperas de casamento no sertão. Todas elas

apresentam teor trágico, passam-se no mês de junho, mês de casamento, mas as

personagens não se casarão por motivos diversos. São elas: A carta, A casa das bonecas, O

peão mansador, Faviela e Os poetas são loucos, mas conversam com Deus.

Em A carta, já concluída48, há os seguintes personagens – Maria, uma moça do

sertão, Diudurico, seu noivo, Tuzinha, prima da moça, Pleibói (sic), filho do dono da

fábrica de tecidos, Gerente da fábrica e sua filha, Professora, Mãe (de Maria), coro de

moças, rapazes, peões e peonas (sic). O enredo desenvolve-se em 4 atos:

Cena (ato) I – Na véspera de São João, em um terreiro fronteiro a uma pequena casa

branca de porta e janelas azuis, em volta da fogueira, ao anoitecer, Maria, Diudurico,

parentes e amigos conversam, comem, bebem e se divertem. Moças e rapazes, em grupos,

brincam de roda, em trajes humildes, alternando estrofes. Chegando de São Paulo,

luxuosamente vestida na última moda, entra Tuzinha e compara a pobreza do lugar com o

esplendor da cidade; Maria lembra a antiga simplicidade da prima e esta lhe pergunta sobre

o casamento. Ao saber dos noivos que a pobreza os impede de casar, Tuzinha, assumindo o

papel de salvadora, sem o conhecimento de Diudurico, propõe que Maria fuja para São

Paulo. Maria, vendo ser essa a única saída, chora. Acabada a festa, Maria, sozinha em um

canto do terreiro, lastima ter de deixar a “Patra vea du Sertão”, em um dos momentos mais

líricos do texto.

Cena (ato) II – Numa sala de máquinas de uma antiga fábrica de tecidos, cinco

peonas e dois peões solistas são acompanhados por um coro complementar. A primeira

peona informa aos demais que o salário vai aumentar; secundados pelo estrépito das

máquinas, todos cantam e fazem planos: repor o que o ladrão levou, inscrever-se no judô,

musculação e “jéz” (sic – grafia fonética da palavra inglesa jazz) etc. O primeiro peão

informa da nova funcionária que virá trabalhar na fábrica e chega Maria. Todos se admiram

de sua beleza e seu toque ingênuo faz com que os demais se lembrem de seus sertões: um

48 Entre 8 a 24/10/04, foi apresentada no CCBB – Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília, sob a regência de Henrique Morelenbaum e direção de André Paes Leme.

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fala de um sonho da noite anterior, no qual se transportava ao Sertão; outro, de uma mulher

que rompeu a promessa de casamento. Maria fala de sua saudade e do peito ferido por ter

deixado seus amados sem aviso. As máquinas, que haviam diminuído o ritmo para Maria

cantar, voltam ao estrépito normal e o coro dos peões fecha a cena.

Cena (ato) III – A Novilha e o Jaguar - Uma grande ala num apartamento luxuoso.

Móveis, mesas postas, com pratos, talheres, bebidas. O cenário de uma grande festa. O filho

do dono da fábrica, o pleibói (sic), termina os preparativos, dando os últimos retoques no

cabelo, mirando-se num espelho de parede, arrumando a vestimenta, ajeitando os óculos.

Aguardando o gerente, a filha e Maria. Enquanto aguarda, o pleibói canta a “Ária do

Apartamento”, na qual esboça alguma indecisão, ansiedade, resquícios de remorso, ou seja,

uma crise de identidade. Abre-se a porta e entram o gerente, a filha e Maria. Após alguns

minutos, o gerente e a filha desaparecem. Maria pergunta pelos demais convidados e o

pleibói lhe responde que eles chegarão mais tarde. A conversa continua – Maria cada vez

mais desconfiada – e o patrão arma o bote: tenta seduzi-la, mas, a cada frase, Maria

responde com um “Não senhor”; rejeita-o, ele tenta estuprá-la, Maria puxa uma faca e

encosta-lhe no peito dizendo “Sim senhor!” várias vezes. O patrão finge dar-se por vencido,

mas insiste para que ela beba uma taça de vinho. Maria, a princípio, recusa, mas, ante a

insistência do patrão, querendo livrar-se logo, aceita. O vinho fora narcotizado e Maria,

acreditando estar diante de Diudurico, entrega-se ao pleibói.

Após esse episódio, como será lido na carta, Maria entrega-se ao vício e à

prostituição e, degradada, perdida a honra, culturalmente morta, não volta ao Sertão.

Cena (ato) IV – Leitura da carta – No mesmo cenário da cena inicial, anos depois,

mas na mesma data da partida de Maria, todos estão aguardando sua volta, enquanto

festejam a véspera de São João. A noite avança e nem sinal de Maria. De repente, o coro

masculino se alvoroça com alguém que se aproxima de mala na mão. Não é Maria, é uma

mensageira trazendo uma carta de Maria para a mãe. A mãe manda chamar uma professora

que inicia a leitura da carta – este é o clímax e a cena final da ópera. Maria conta suas

vicissitudes, narra sua desgraça e despede-se: 49

“ Adeus mamãe

49 Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 55.

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estou morta para sempre e nunca mais”50

Essa obra evidencia, idealisticamente, a ingenuidade das moças do sertão ante a

“sociedade imunda dos imundos urbanóides” 51. Nela, a beleza física, como se verá também

no Auto da catingueira, é tratada como geradora de desgraça –

Por que fui ser tão bonita oh sorte por que me feres se eu seria em melhor dita a mais feia das mulheres52

Nessa ópera, há evidente distinção entre o sertão e a cidade, tema também

comum nas obras de Ariano Suassuna. Quando a cena acontece no sertão, há tranqüilidade,

proteção divina e linguagem catingueira, porque é o local de nascimento, de criação, de

aquisição de valores morais e culturais do sertanejo. Quando os fatos ocorrem na cidade, há

tensão, presença do diabo e linguagem culta, uma vez que Maria recebeu instrução ao se

mudar. Assim, os personagens, quando são retirados de seu meio, mesmo que aprendam a

dinâmica básica que rege os habitantes citadinos, acabam sofrendo agruras, pois seu ideal

de vida, sua essência não combinam com o mundo urbano.

Outra ópera com praticamente a mesma temática, do homem sertanejo que sofre

desventuras no contato com a cidade, é Casa das Bonecas, com pequena parte escrita e

também gravada em Árias Sertânicas (1992). Há os personagens: Vaqueiro, Noiva,

Boneca, malandros perversos urbanóides (sic), parentes do noivo, empregados da empresa

de ônibus e figurantes. Conta a história de um vaqueiro, noivo de uma moça – no alto

sertão – que vivia de fazer bonecas de pano e de vendê-las nas feiras. Diante das

dificuldades em conseguir o mínimo para um casamento e após insistências da noiva e dos

pais dela, visto que os anos se passavam, o peão cria coragem e migra para São Paulo. Na

época da partida, a Noiva conta ao Peão estar fazendo uma boneca de pano em tamanho

50 “A leitura” (faixa 7). 51 Encarte de Elomar Figueira MELLO, CD Árias Sertânicas, 1992. 52 “A leitura” (faixa 7).

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natural, que estará pronta quando ele regressar.53

Na cidade grande, trabalha na construção civil por quatro anos, economizando para

voltar a seu cariri. Completado o tempo, o protagonista mune-se do dinheiro, economizado

a custo, e de presentes: um facão, um rosário com um par de brincos, um violão e o vestido

da noiva; pega um ônibus “de linha” e inicia a volta. Numa das paradas obrigatórias, desce

para tomar café, sempre agarrado ao seu tesouro: todo o dinheiro pelo qual alugara a alma.

Entretanto, malandros perversos colocam narcótico na bebida do Peão; quando acorda,

enlouquece ao descobrir que todo seu dinheiro fora roubado. Dias depois, perambulando

pela cidade, é localizado pelos empregados da empresa de ônibus, que o recambiam ao

rincão natal.

O Peão não reconhece mais parentes, Noiva e amigos; os pais choram o triste

estado do filho que retorna. Na cena seguinte, um diálogo entre a Noiva, o vaqueiro (louco)

e a Boneca, mostra o estado de confusão mental dele, que não distingue, na verdade, a

boneca da amada.54

Novamente, há a evidência de que personagens “nascidos” no sertão não saem

ilesos ao tomarem contato com a vida citadina. Muitos deles alimentam o sonho de

migrarem para as cidades, em busca de bens matérias, geralmente trabalhando na

construção civil, o que possibilitaria a melhora de vida no sertão, mas muitos são

explorados, ficam doentes ou loucos, e outros morrem atropelados, como o vaqueiro

Remundo na cantiga “Chula no terreiro”, ou perdem a memória.

Em Faviela, ópera que faz parte de Bespas esponsais, na qual também não ocorrerá

o sonhado casamento, tem-se um ato e três cenas, com os personagens Aparício (um

vaqueiro), Madrinha, Pai, Mãe, Caçula, Primas, figurantes (comadres ajudantes na

cozinha).

No primeiro ato, as primas e a Caçula conversam na cozinha durante a azáfama dos

preparativos de festa, a “Bespa” – véspera de São João; falam de um parente que foi para o

Paraná. Aparício ronda pela cozinha, o Pai pergunta-lhe da noiva, cede-lhe uma boa égua e

o manda buscar Faviela.

53 Esse enredo lembra uma passagem de Odisséia, de Homero, quando Penélope, ardilosamente, tece uma mortalha para Ulisses, desmanchando-a todos os dias, com intuito de enganar aos pretendentes, retardando a possibilidade de casar-se com outro, já que o marido demora demasiadamente para retornar da guerra. 54 Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 53.

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No segundo ato, Aparício, montado na égua Catarina, atravessa a Caatinga e expõe

seus anseios, seu amor por Faviela, suas esperanças e temores.

No terceiro e último ato, Aparício chega à casa da Madrinha enlutada, com “o olhar

petrificado no horizonte”. Segundo o costume, toma a bênção, lava o rosto e as mãos e

pergunta por Faviela. A Madrinha conta-lhe do misterioso homem que ali tivera pousada,

na lua minguante anterior, e que consigo levou Faviela. Aparício chora sua dor. 55 Portanto,

esta é mais ópera que está ligada às demais pelo fio temático – casamento que não será

realizado em virtude de acontecimentos trágicos.

Não foi possível obter, com confiabilidade, detalhes a respeito das outras duas

óperas que compõem a pentalogia – O peão mansador e Os poetas são loucos mas

conversam com Deus. Sabe-se da existência de outras em andamento, como De nossas

vidas vaporosas, Os pobres, Os miseráveis, Os desvalidos, Os lanceiros negros e D. Pedro

II .

A sétima ópera, pela ordem de Elomar, é intitulada O retirante – (Prólogo): Um

pequeno fazendeiro do sertão penhora a um banco sua fazenda e todos os seus bens, como

garantia de um empréstimo para beneficiamento da propriedade e da lavoura. As chuvas

não vêm. A casa bancária envia-lhe os avisos de vencimento de prestações e juros. A cada

aviso que recebe, mais aumentam os temores de perder a terra ou de ir para a prisão. Os

dias vão passando; com a lavoura perdida, o banco penhora os bens do fazendeiro.

Numa noite, em seu quarto, na esperança de sentir o vento Norte anunciador da

chuva, recebe uma lufada de ar quente. Esperançoso, fala: “eis que chega o vento Norte” e,

do fundo, uma voz responde: “Não! É o Anjo da Morte”. Após o ocorrido, o fazendeiro

ouve o canto prolongado e firme do sapo cururu na barranca do Rio, donde conclui que a

chuva estava próxima. Levanta-se, convidando todos a se alegrarem, preparando as terras

para o plantio, pois assim poderiam saldar as dívidas. A chuva prometia. Atravessa a sala

escura e depara novamente com o Anjo da Morte, o qual toma pelo boi encantado, o boi

Aruá; decide pegá-lo com vara de ferrão. Persegue a “visagem”, mas não consegue

capturá-la; ela desvanece ao amanhecer.

Ouve-se uma buzina, é o dia da execução da penhora. Chega uma comitiva enviada

pelo banco para a leitura da “Carta de Arrematação”, na qual dão a saber ao fazendeiro que

55 Idem, ibidem. p. 56.

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seus bens foram arrematados em leilão.

Ao término da leitura da Carta, na sala repleta de mulheres, crianças e vaqueiros,

estão todos tristes, desapontados. Um jovem vaqueiro, ainda adolescente, adianta-se em

direção ao Porteiro dos Auditórios (encarregado dos ritos jurídicos), reclamando da grande

injustiça. Um policial trespassa-o a baioneta. Ao cair morto, vem o grande clamor dos

presentes, que guardam o corpo pelo resto do dia e pela noite adentro, em fúnebre ritual

roçaliano.56

Nessa ópera, o autor chama a atenção para uma situação comum, vivenciada pelos

pequenos proprietários de terra, criadores de gado miúdo. Com a falta de chuva, que deixa a

terra seca, os sertanejos não conseguem plantar e nem alimentar o gado, fontes de sustento.

Recorrem aos bancos, à procura de financiamento, mas não têm condições de saldar a

dívida, pois não têm trabalho. Dessa forma, o exílio é favorecido, porque não possuindo

mais suas terras, migram para outras regiões em busca de serviço.

A partir da rápida descrição destas óperas57, percebe-se a constante preocupação do

artista em retratar problemas que afetam o sertanejo: a seca, a falta de recursos financeiros,

a execução de bens, as alternativas, que só geram outros problemas, como a migração para

o Sul e o empréstimo em bancos, as mulheres exploradas ou enganadas. Dessa forma,

Elomar dá um tom sociológico às composições, mas com o sentido de expor a vida do

catingueiro, como mesmo afirma o próprio artista:

“Minha música não tem cores sociais, tem cores sociológicas. (...)

Social, pelo que eu entendo, tem de estar ligado, tem de ter uma conotação

política. E minha música não tem nada a ver com política, nem pela direita, nem

pela esquerda, nem para cima, nem para baixo. Minha música fala do homem

como um ser, como uma criatura de Deus. Ela não tem nada a ver com o homem

como uma deformação, uma construção política. É uma criatura de Deus, que

veio à Terra e está aqui travando a luta da vida, mas sempre com esperança de

vencer”.58

56 Op. cit. SIMÕES, 2006. p.51 57 Paráfrases cuja finalidade é apresentar ao leitor uma obra de difícil acesso. 58 Entrevista a VAL, Clarice. “Elomar fala do ‘Cenas brasileiras’, dos seus projetos, da sua obra”. 1998. disponível em http://www.facom.ufba.br/elomar. Acessado em 17/01/2006.

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Existem também os roteiros cinematográficos. Entre os já concluídos está

Sertanílias:

“(...) tem um personagem chamado Sertano. A câmera nunca pega seu

rosto, ele está sempre de perfil, é um anti-herói, uma figura ética que viaja pelos

sertões. Ele anda a cavalo, calça botas, tem uma pistola e porta um facão, mas a

grande arma dele é a palavra, seu discurso passa por todo o conhecimento

histórico do homem. Trabalho entre a ficção e a realidade: na abertura tem cinco

jornalistas que me entrevistam sobre minha obra e vida. Após cada pergunta e

resposta, escorrega para Sertano, viajando por meus personagens; indo e vindo. É

20% de realidade e 80% de imaginário. Já estou esboçando “Sertano visita a

cidade grande”.59

Acrescenta-se, segundo depoimento do autor60, Os vaqueiros, Os escravos e A casa

dos sete candeeiros, todos escritos há mais de 20 anos, além de O cerco de São Sebastião

do Rio de Janeiro, que, segundo o artista, está em sua mente!

Elomar, em 2001, por meio de três ensaios: “Na mira do meu fuzil”, “O enigma da

década defunta” e “A ira de Alá”, posiciona-se criticamente com relação à política e à

economia mundiais, questionando a globalização e os valores que dissemina, tendo como

alvo para seu fuzil os Estados Unidos, tido por ele como uma “besta devoradora” que arrasa

os pobres do planeta. Faz uso do dialeto catingueiro, junto a uma linguagem rebuscada e

arcaica, recorrendo ao latim e ao recurso alegórico, além de figuras bíblicas. Esses ensaios,

veiculados em seu site61, foram objetos de estudo de Simone Guerreiro, que dedicou a eles

um tópico de sua dissertação62, decifrando as parábolas utilizadas pelo artista, facilitando a

compreensão deles por meio de paráfrases.

Observa-se que Elomar se mostra um artista profícuo, com grande quantidade de

trabalhos e, principalmente, diversidade genológica, transitando confortavelmente e com

59 Op. cit. LOUREIRO, 2003. 60 Op. cit. LOUREIRO, 2003. 61 MELLO, Elomar Figueira. Na mira do meu fuzil. Semanário Estado do Sertão, 05 de julho de 2001. O enigma da década defunta (17/08/2001) e A ira de Alá (12/10/2001). Todos disponíveis em http://www.elomar.mus.br 62 Op. cit. GUERREIO, 2001. P. 58-76.

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propriedade por todos os gêneros praticados. Lamenta-se que existam muitas outras

produções “guardadas”, que não vêm a público por razões diversas, principalmente a

financeira. O artista também lamenta, mas conforma-se:

(...) O que tem de verso meu sendo comido por rato e cupim lá em casa...

Outro dia abri uma sala lá na Casa dos Carneiros e vi um rato saindo com um

pedaço de um poema na boca. Dei um chute nele e disse: ‘rato não come poema

meu’! 63

“(...) No mais, me conformo em partiturá-las, não só as óperas como as

antífonas, os galopes estradeiros e os concertos, guardando-os num velho baú, em

‘campa antiga’, monobloco passageiro do tempo até estação futura, bem vinda

quadra remota onde lhe aguarda uma geração que por justiça e por certo haverá

de ouvir e amar minha música, tão fora de moda nestes dias. Ó tempora! Ó

mores!64

63 Op. cit. LOUREIRO, 2003. 64 Op. cit. SOUZA, 1994.

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3. Capítulo II – Espiritualidade elomariana

“Pelo lado de dentro o Homem não muda”.65

Para se fazer um estudo a respeito da espiritualidade elomariana, selecionaram-se

duas de suas produções – o Cancioneiro66 e o poema épico Fantasia leiga para um rio

seco. Primeiro dado a salientar, sem dúvida, é o conceito de espiritualidade seguido neste

trabalho. Assim se entende espiritualidade, conforme explica Vauchez:

“A espiritualidade não é encarada como um sistema codificador das

regras da vida interior, mas antes como uma relação entre certos aspectos do

mistério cristão, particularmente valorizados numa dada época e certas práticas

(ritos, orações, devoções), elas próprias privilegiadas relativamente a outras

práticas possíveis no interior da vida cristã”. 67

Portanto, o conceito diz respeito ao aspecto religioso da vida interior dos homens,

visando ao estabelecimento das relações pessoais com Deus, por meio de práticas

consideradas sagradas e valorizadas por uma determinada sociedade, ou seja, “uma

unidade dinâmica do conteúdo de uma fé e da maneira pela qual é vivida por homens

historicamente determinados”. No caso desta Dissertação, são considerados os aspectos

65 CASCUDO, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1985. p. 305. 66 As cantigas que serão analisadas encontram-se na Antologia ao final da Dissertação. 67 VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média Ocidental. Lisboa: Estampa, 1995. p. 12.

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ligados à religiosidade cristã, expressos pelo catingueiro elomariano, tais como ecos do

discurso bíblico, o que demonstra a valorização de alguns fundamentos judaico-cristãos e a

constante preocupação em manter, de várias formas, relações com os ensinamentos divinos,

pois os gestos, a maneira de pensar, as crenças, as festas, o modo de viver do sertanejo

retratado na obra de Elomar têm como modelo a Sagrada Escritura. Segundo o artista, na

palavra bíblica há uma verdade superior, inquestionável e absoluta. Guy Lobrichon,

medievalista, pesquisador do assunto “religiosidade”, reforça:

“Os escritos da Bíblia constituem a lei dos cristãos, um código ou norma

intangível, inexpugnável, marcada por um sinal sagrado. Sobre o livro santo

pronunciam-se juramentos, compromissos de fé, promessas essenciais (...)”. 68

A vida, em consonância à palavra de Deus, não é um “estado, mas um estilo de

existência”69. Nos textos de Elomar, é recorrente a idéia de superioridade divina, e a

posição assumida pelo catingueiro é sempre de resignação ao Criador, mesmo ante os

flagelos, uma vez que eles foram determinados por Ele, no sentido de ser um estágio

probatório. Assim, o sertanejo tem a possibilidade de purgar os pecados e completar o

caminho que leva à salvação.

Uma das maiores provações do sertanejo elomariano é a “retirada”, a necessidade de

sair de suas terras, principalmente em virtude da seca e, conseqüentemente, da fome,

passando a peregrinar por lugares insólitos, procurando e aguardando melhores

condições de vida. Esse momento favorece ao peregrino a reflexão sobre sua vida e

alimenta seu anseio pelo encontro com o divino. Esse “retirar-se” do sertanejo, dentro de

uma perspectiva espiritual, funciona como caminho para a ascese, pois a peregrinação é

considerada como:

“O deslocamento de pessoas a lugares em que possam entrar em contato

com o sagrado (...) a peregrinação é um fenômeno quase universal na

68 LOBRICHON, Guy. “Bíblia”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v 1. p. 108. 69 Op. cit. VAUCHEZ, 1995. P. 139.

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antropologia religiosa (...). Supõe uma viagem, uma caminhada, isto é, uma prova

física do espaço.

A provação do espaço faz com que o peregrino seja um estrangeiro por

onde passe. Ele é estrangeiro aos olhos dos outros, mas estrangeiro em relação ao

que era antes de se colocar a caminho. A peregrinação é uma prova espiritual.

A caminhada tem um fim específico, que confere sentido complementar

à prova física e espiritual da viagem. (...) é um tempo de festa e celebração. (...) o

peregrino obtém com sua viagem benefícios espirituais e físicos: o perdão dos

pecados e a cura de seu corpo”. 70

Esse “fenômeno universal” pôde também ser observado na Idade Média. O

homem medieval embrenhava-se em caminhos difíceis, com o objetivo de entrar em

contato com elementos divinos por meio de sacrifícios físicos, acreditando que ganharia

a remissão dos pecados. A peregrinação era considerada, naquela época, como um

“exercício ascético e uma forma de penitência”71.

Os personagens retratados por Elomar vivem na aspereza, na penúria, submetidos

às forças da Natureza, desenvolvendo árduos trabalhos e assumindo uma perspectiva

escatológica em relação ao futuro, mantendo-se à espera do Juízo Final. Töpfer, estudioso

das atitudes escatológicas do homem medieval, explica que

“na tradição cristã, o termo ‘escatologia’ (do grego eschata, ‘as últimas

coisas’) designa as idéias concernentes ao fim do mundo ou aos eventos que

atingirão seu termo com o Juízo Final. (...) Em sentido mais amplo, entende-se

por elas (idéias) todas as esperanças, todas as aspirações de conotações religiosas

prevendo o surgimento sobre a terra de uma ordem perfeita, de certa forma

paradisíaca”. 72

70 SOT, Michel. “Peregrinação”. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v. 2. p.353. 71 Op. cit.VAUCHEZ, 1995. p. 139 72 TÖPFER, Bernhard. “Escatologia e milenarismo”. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v 1. p.353.

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Nesse ponto, elucida-se a conjunção de fundamentos cristãos e judaicos, atualizados

na obra elomariana, pois segundo Sol Biderman, “a escatologia tem sido considerada um

princípio básico da fé judaica”73.

Brian Daley afirma que a escatologia é a fé em soluções finais, representa para o

cristão o estágio final na salvação humana, a espera da recompensa por ter vivido dentro

dos preceitos ético-morais e religiosos pregados pela palavra de Deus. Ele afirma que

“Para pessoas vivendo sob opressão ou perseguição, a esperança

escatológica freqüentemente significou simplesmente o sobrepujante,

radicalmente otimista, sentimento que a intolerável atual ordem de coisas está

para acabar. Expressavam esses sentimentos por imagens apocalípticas. (...) A

escatologia inclui a tentativa de construir uma teodicéia: a justificação da fé em

Deus, uma esperança na revelação final da atividade sábia e amorosa de Deus

através da história, com uma aspiração pelo último ajuste de contas”. 74

Apesar da certeza de que serão salvos, de que conquistarão a Jerusalém Celestial,

pois padeceram, foram pobres, peregrinaram, ou seja, seguiram os caminhos que levam à

salvação, os personagens elomarianos vivem em um clima de angústia constante, porque o

tempo cronológico não é sincrônico ao escatológico. Assim, a vida tem caráter transitório, é

apenas uma passagem para o Reino dos Céus. Esse modo de sentir o futuro é bastante

semelhante ao modo como o sentia o homem medieval nas sociedades cristãs. Segundo Le

Goff:

“(...) sobretudo na Idade Média, o futuro não tem apenas um sentido

cronológico, mas primeiro e principalmente um sentido escatológico. Natureza e

sobrenatureza, no mundo e no além, ontem, hoje, amanhã e sempre, a eternidade,

são unos, feitos de uma mesma trama, não sem acontecimentos (o nascimento, a

morte, a ressurreição)”. 75

O catingueiro retratado por Elomar, assim como o homem medieval, é movido pela

esperança de, um dia, por vontade divina, existir na Terra a Ordem perfeita, ou seja, o 73 BIDERMAN, Sol.Messianismo e escatologia na literatura de cordel. São Paulo, 1970 Tese de Doutorado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP. p.10. 74 DALEY, Brian. Origens da escatologia cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p.13-14. 75 LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1995. p. 251.

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sonho de os homens livrarem-se dos pecados e conquistarem novamente o paraíso terrestre

ou celestial. Mais forte na poética elomariana é o fato de o sertanejo “dispensar” o Paraíso

terrestre, partindo diretamente para a busca da felicidade no Céu, ou seja, no Paraíso

Celestial, ao lado de Deus. Segundo Delumeau, isso é um traço do pensamento cristão

protestante76, o que poderia estar relacionado à formação religiosa de Elomar.

Nas cantigas elomarianas, justamente pelo objetivo final do sertanejo ser o alcance

do reino dos céus, há a negação do mundo, dos elementos terrenos. A vida é apenas uma

passagem, uma travessia, um caminho de purgações ao qual a morte dará um fim. Esse

tema é bastante antigo e certamente está calcado na Bíblia, precisamente no Livro de Jó e

no Eclesiastes, mas também na civilização greco-romana77. Retoma a temática do

contemptus mundi – “o mundo é vão porque é passageiro”78. As idéias e imagens de um

Além também habitam o imaginário desse sertanejo, que o imagina como lugar paradisíaco,

construído a partir dos ensinamentos bíblicos imiscuídos à realidade nordestina, certamente

sem as agruras vividas no sertão.

O Além do homem medievo era o Além pregado pelo cristianismo. Havia

extrema preocupação com o pós-morte, pois, acreditando-se na ressurreição dos corpos,

aceitava-se a vida após o perecimento do corpo. Essa vida seria plena, em um local seguro,

no qual não haveria enfermidades ou fome. Seria uma terra farta de leite e mel, onde os

cristãos poderiam contemplar a face de Deus. As pessoas viviam à espera do fim do mundo

e do Juízo Final – aos bons era garantido o reino dos céus e aos maus, o inferno A

preocupação com o Além fazia com que as pessoas negassem o mundo, ou seja, o mundo

terrestre, utilizando-o apenas como passagem, lugar onde havia a chance de remissão dos

pecados.

Na análise das cantigas serão enfocados estes aspectos centrais – a peregrinação, a

negação da vida na terra e a espera do Juízo Final – elementos que fazem parte do

76 “(...) os numeroso sermões protestantes que anunciaram aos fiéis o fim próximo do mundo: perspectiva aterrorizante para os pecadores, horizonte exultante para os eleitos. Mais freqüentemente essa pregação afastou-se do esquema milenarista e não profetizou nenhum reino de Deus sobre a terra. Ela abria diretamente para a explosão do julgamento final.” DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo – a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003. v. 2. p. 372. 77Idem, ibidem. . v. 1. p. 19 78 Idem, ibidem. v.1. p. 25

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imaginário religioso nordestino. E igualmente alimentaram o imaginário medieval, num

paralelismo de valores – guardadas as distâncias – que se vem tentando demonstrar.

3.1. O Cancioneiro

Em seu conjunto de canções, denominado Cancioneiro, Elomar explora numerosos

gêneros de cantoria – “incelença”79, “puluxia”80, moirão81, martelo, desafios, louvações,

cantos de amarração e outros. Utiliza elementos trovadorescos de tradição ibérica, imagens

lírico-religiosas traduzidas pelo modo de vida sertanejo. Segundo o artista, “é preciso que

se entenda que já está selado o caderno do cancioneiro elomariano, que fica com mais ou

menos cento e vinte músicas”82.

Nas cantigas selecionadas para representar o Cancioneiro, há, como já mencionado

acima, traços de espiritualidade bastante marcantes e teor religioso evidente. No entanto, é

difícil separar esse dado dos outros elementos que compõem a poética de Elomar, tais como

os costumes regionais.

Em “Noite de Santo Reis” (1)83, têm-se claramente traços da oralidade e da tradição,

tão marcantes na cultura nordestina. Essa cantiga ressalta os valores religiosos subjacentes

à prática do canto na festa de Reis:

“Foram festas populares na Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica,

Alemanha e Itália) dedicadas aos três Reis Magos em uma visita ao Deus

Menino, e ainda vivas em vestígios visíveis. Na península ibérica, os reis

continuam vivos, comemorados, sendo a época de dar e receber presentes, ‘os

reis’, de forma espontânea ou em grupos, com indumentária própria ou não, que

visitam os amigos ou as pessoas conhecidas, na tarde ou noite de 5 de janeiro

79 Excelência - canto entoado à cabeça dos mortos durante o velório. Cf. CASCUDO, Luís da.C. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.378. 80 “Puluxia” (apologia) – canto de homenagem. Cf. Elomar. Op. cit. Ribeiro, 1982. p.76. 81 “Moirão”, mourão ou trocado – versos dialogados que exigem uma resposta imediata do segundo cantador, obedecendo ao esquema de rimas escolhido pelo primeiro cantador. Cf. CASCUDO, s.d. p.878. 82 Op. cit. SOUZA, 1994. 83 O número em negrito, entre parênteses, refere-se ao texto na Antologia.

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(véspera de Reis) cantando e dançando ou apenas cantando versos alusivos à data

e solicitando alimentos ou dinheiro”. 84

A cantiga é estruturada em três partes: I – Entrada, II – Louvação e III – Aleluia.

Na entrada, o poeta cumprimenta os donos da residência que tiveram sua casa visitada

pelos cantadores – costume no Nordeste brasileiro – e pede permissão para anunciar o

Santo Reis. Nessa entrada, o cantador mostra-se resignado e bastante respeitoso:

“Meu patrão minha senhora Meu patrão minha senhora Cum licença de meceis” (...)

Esses versos fazem um paralelo aos versos tradicionais, muito antigos, cantados em

diversas partes do Brasil:

“Ó de casa, nobre gente, Escutai e ouvireis, Lá das bandas do Oriente São chegados os três Reis”!85

Na Louvação, há descrição de São José e da Virgem Maria, que estão em um

jumento, peregrinando nas estradas de Belém, rumo a uma lapinha. Nesse momento do

poema, o poeta-cantador transmite uma mensagem aos donos da casa: a de que anunciará o

nascimento de Jesus:

“O sinhô com sua Dona Tem nessa casa um tisôro (...) Os filhos qui estão durmino (...)

84 Op. cit. CASCUDO, s.d, p. 774. 85 Esse canto foi citado por CASCUDO e retomado pelo grupo brasileiro MAWACA, que estuda músicas e manifestações tradicionais do Brasil e de várias partes do mundo. Em seu álbum Astrolábio tucupira. com.brasil, há a reprodução desse versos e uma nota explicativa: “A cantora portuguesa Né Ladeiras introduz a sessão que une o sagrado e o profano, procedimento comum na tradição musical européia que caracteriza a maioria das manifestações populares brasileiras. Reis é um canto de saudação melismático, de forte influência moura, que celebra o nascimento de Jesus.” In: MAWACA. Astrolábio tucupira. com. brasil. (CD). Curitiba: MCD World Music e Ethos Music, 2000.

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Vale mais qui prata e oro”

Em seguida, descreve os três Reis Magos, acompanhados da estrela-guia, em

direção a Jesus. Neste ponto, é evidente a referência ao texto bíblico, quando os

astrônomos, a pedido de Herodes, seguem a caminho da Judéia, acompanhando a estrela, e

encontram uma criança nascida, enrolada em faixas, dentro de uma manjedoura:

“(...) dizendo: ‘Onde está aquele que nasceu rei dos judeus? Pois vimos a

sua estrela quando estávamos no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.’ (...)

Tendo ouvido rei (Herodes), partiram; e eis que a estrela que tinham visto quando

estavam no Oriente ia diante deles, até que se deteve por cima do lugar onde

estava a criancinha. Ao verem a estrela, alegraram-se muitíssimo. E, ao entrarem

na casa, viram a criancinha com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, prestaram-lhe

homenagem. Abriram também seus tesouros e presentearam-lhe com dádivas:

ouro, olíbano e mirra”. (Mt 2, 2-11)

Em “Aleluia” (cântico de alegria ou ação de graça), o poeta-cantador narra a

homenagem que os animais prestam ao Menino Jesus e a louvação que os pastores fazem a

Deus pelo nascimento do Salvador, lembrando que eles foram os primeiros a saber desse

acontecimento, avisados pelos anjos:

“Havia também no mesmo país pastores vivendo ao ar livre e mantendo

de noite vigílias sobre os seus rebanhos. E, repentinamente estava parado ao lado

deles o anjo de Jeová, e a glória de Jeová reluzia em volta deles, e ficaram muito

temerosos. Mas o anjo disse-lhes: ‘Não temais, pois, eis que vos declaro boas

novas duma grande alegria que todo o povo terá, porque hoje vos nasceu na

cidade de Davi um Salvador, que é Cristo, o Senhor’”. ( Lc 2: 8-11)

É o momento da cantiga que narra o nascimento de Cristo; no entanto, nos versos

finais, há um salto no tempo e Jesus já opera os milagres, restituindo a visão ao cego (Mt 9:

27-30), a fala ao mudo (Mc 7: 31-33) e o andar ao paralítico (Mc 2: 5-11):

“Aleluia ... aleluia... aleluia O cego viu o coxo caminhou O mudo de nascença falou Quando Jesus andou aqui

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Jesus o Bom Pastor da casa de David”

Outra cantiga que pode estar ligada a esta é a “Estrela maga dos ciganos” (2), que

opera praticamente dentro da mesma temática – esperança trazida pela crença em Jesus, a

dádiva de seu nascimento. Nela, o poeta catingueiro expressa sua vida difícil, de

sofrimento, permeada de dívidas e esforços vãos:

“Já num tenho mais costado Prús baque dêsse rojão É tanta coisa pur dever tanto pagar Sem receber tanto que dar”

Diante do sofrimento, do tempo do “quetaí”86, busca esperança na notícia dada

pelos ciganos, verdadeiros peregrinos que erram por diversas regiões, de que uma estrela

mágica vai pousar no sertão, estrela esta que pode ser considerada a de Davi, que eliminará

as penúrias, a tristeza e os elementos que tanto oprimem o poeta catingueiro – “sussarana

seca rapina e ciganos”. Assim, resta a retirada, a peregrinação por outras terras onde a

estrela terá seu raio de alcance:

“Só tô isperano é a promessa dos ciganos Que na terra inda êsse ano Vai devagarin pôsar U’a istrêla maga N’ua aparição istranha Da Serra da caratonha Inté os gerais eu vô prá lá”

Enquanto a promessa não se cumpre, o catingueiro, consciente do que o aflige, pois

se sente submetido ao próprio homem, busca refúgio, alívio para seus tormentos na

peregrinação pelo caminho de São Tiago, em companhia dos Reis Magos:

“E inquanto na face da terra havê tiranos Vassalos e susseranos

86 Expressão usada no sentido de um tempo em que todos vão ficar onde estão, porque não há mais solução terrena, não há mais lugar de paz. Entrevista de Elomar a CHAGAS, s.d.

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Sinhorio e servidão fico lá encima hospedado com os Reis Mago nos camim de São Tiago num boto os pé nesse chão”

O cantador mostra um mundo dominado por um poder tirânico, destruidor, que

impulsiona o homem ao desespero, pois acredita não haver limites.Também o homem do

medievo nutria esses sentimentos, conforme explica Cohn, medievalista pesquisador da

religiosidade na Idade Média:

“A tirania desse poder tornar-se-á cada vez mais ultrajante e o

sofrimento das suas vítimas cada vez mais intolerável – até que, de súbito, soará a

hora em que os Santos de Deus se levantarão e o derrubarão”.87

Para o cantador, esse “retira-se” tem a função de entrar em contato com o divino,

para fugir dos elementos que o afligem na terra. Percebe-se aqui a presença de um aspecto

que se tornará topoi na poética elomariana – a peregrinação. Interessante salientar que o

poeta catingueiro, nessa cantiga, descreve onde ele se encontra – Bahia, Serra da

Caratonha, mas quer seguir o caminho a Santiago de Compostela (Espanha), lugar sagrado.

O caminho de Santiago teve importância muito grande para homem medieval, que vivia

situações similares – fome, pestes, opressão, exploração dos dominantes – às do catingueiro

de Elomar e rumavam em direção ao santuário em busca de purificação e

conseqüentemente da salvação. Segundo Hilário Franco Jr, o que move as pessoas a esses

lugares sagrados é a crença de que no Céu há um lugar perfeito a que só é permitida a

entrada dos bons que padeceram na terra, elemento recorrente nas canções elomarianas:

“De fato, a perspectiva escatológica leva o cristão a se aproximar de um

local onde a intercessão a seu favor seja mais fácil de obter, agradando

diretamente ao Senhor e colocando-se, assim, numa posição propícia para a

Salvação: ‘todo aquele que tiver deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou

mãe, ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais,

e herdará a vida eterna’ (Mt 19:29)”. 88

87 COHN, Norman. Nas sendas do milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Porto, 1981. p. 17. 88 FRANCO JR, Hilário. Peregrinos, monges e guerreiros. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 80.

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Desse modo, o catingueiro escolhe Santiago porque sabe que seu poder de

intercessão junto a Deus é grande: “Tiago sem dúvida tinha sido um dos apóstolos mais

importantes. Filho de Zebedeu e Maria Salomé – esta, segundo a tradição, irmã da Virgem

– ele era primo-irmão de Jesus”89. Pode-se estabelecer relação entre elementos que são

mencionados nas duas cantigas analisadas até esse momento e que foram considerados

verdadeiros símbolos de ligação entre o peregrino e Deus, por meio do santuário, com as

idéias de Franco Jr:

“(...) todo tipo de milagre acontecia no santuário: ‘a saúde é dada aos

doentes, a vista é devolvida aos cegos, a língua dos mudos é desatada, a audição é

concedida aos surdos, um andar normal é dado aos coxos, os possessos são

libertados (...)’”. 90

“A pergunta” (3), fortemente marcada pelo dialeto catingueiro, é narrativa e

reproduz o diálogo entre dois personagens: o tropeiro Gonsalin e o Quilimero. Nesse

diálogo, o leitor-ouvinte toma conhecimento das agruras na vida dos sertanejos. A primeira

delas, assustadora, é a fome, a “da cara fêa”. Quilimero, estando no sertão na época da seca,

encontra o amigo, o tropeiro Gonsalin, que havia viajado para buscar farinha, e lhe conta os

últimos acontecimentos:

“Adispois de cumê tudo Cumêr precata surrão Cumêr côro de rabudo Cumêr cururu rodão”91 (...)

Também lhe fala da terrível morte, a “véa”, que assolou a região em função da seca

e da fome. Assim, o poeta cantador atravessa as adversidades impostas pela seca e não vê

outra saída que não seja a retirada, chamada por ele de “peregrinação”, questionando-se a

respeito do porquê de Deus permitir tanto sofrimento. Dessa forma, não é explícito o teor

espiritual da peregrinação, mas dentro do contexto elomariano, essa é a saída para a

eliminação dos dissabores:

89 Idem, ibidem. p. 84. 90 Idem, ibidem, p. 86. 91 Respectivamente: couro das alpercatas, rato catingueiro e sapo anunciador da chuva.

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“só a terra que você dexô quinda ta lá num ritirou-se não os povo as gente os bicho as coisa tudo uns ritirou-se in pirigrinação os ôtro os mais velho mais cabiçudo voltaro pru qui era pru pó do chão (...) será qui Deus do céu aqui na terra do nosso povo intonce se isqueceu”

“Retirada” (4) pode ser ligada à cantiga anterior em função de sua temática. O poeta

cantador narra, consternado, uma peregrinação de sertanejos que rumam à cidade, fugindo

da seca, sofrendo as dores do exílio. Aqui, novamente o retirar-se tem o sentido de ser

estrangeiro, o caráter de exilado. Sot explica que, etimologicamente, a palavra “peregrino”

(peregrinus) significa o exilado ou o expatriado, ressaltando que “o peregrino em todo

lugar é um estrangeiro, desconhecido dos homens, desprezado pelos sedentários, privado

dos recursos de uma coletividade determinada” 92.

“Vai pela estrada enluarada Tanta gente a retirar Levando só necessidade Saudade do seu lugar...”

Mas o catingueiro sabe que esse mundo é destinado ao sofrimento, para que os

pecadores cumpram penitências: “A rota é uma dura ascese. Aí sente-se a fadiga do corpo,

o sofrimento provocado pelos pés doloridos, a tensão dos músculos, a sede e a fome. Aí

sofre-se o rigor das intempéries”93, portanto, o exilar-se tem o sentido de purgar os pecados

“desse mundo de ilusão”:

“Se eu tivesse algum querer Nesse mundo de ilusão Não deixava que a saudade Sociada com o penar Vivesse pelas estradas

92 Op. cit. SOT, 2002. p. 354. 93 Idem, ibidem. p. 354.

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De sofrer a mendigar Vai pela estrada enluarada Tanta gente a retirar Levando nos ombro a cruz Que Jesus deixou ficar”

Aqui é possível fazer outro paralelo com o pensamento medieval, pois, segundo

Delumeau, que analisou discursos pessimistas de alguns mestres espirituais do medievo,

“(...) o desprezo de si mesmo está associado a uma lamentação sobre a

miséria da condição humana e o caráter transitório das parcas satisfações deste

mundo. (...) Todos os seus bens são ‘transitórios e incertos, frívolos e misturados

com misérias infinitas’. Deus não quer que os homens durmam ‘na paz e no

repouso’ que prejudicariam sua salvação. Assim ele permite que eles (os

pecadores) sejam freqüentemente perturbados e molestados (...)”.94

Nesta cantiga, o cantador exerce o papel de cronista, ou seja, funciona como um

mensageiro social – figura comum desde antanho, em várias partes do mundo – e tem

consciência disso:

“Eu não canto por soberbo Nem canto por reclamar Em minha vida de labuta Canto prazer, canto a dor E as beleza devoluta Que Deus no sertão botou”

Esse papel será retomado em outra cantiga – “O violeiro” (5). Nela, encontramos o

poeta valorizando sua profissão e acentuando-se como mensageiro, nunca movido pelo

dinheiro, mas como se tivesse recebido um dom de Deus e a missão de transmitir as

palavras sagradas, sem tirar disso seu sustento, como Cristo pregou aos apóstolos –

“ensinar” de mãos vazias (Mc 6:7-8):

“Vô cantá no cantori primeiro As coisa lá da minha mudernage Que me fizeram errante e violeiro

94 Op. cit. DELUMEAU, 2003. p.58.

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E falo sero e num é vadiage (...) Apois prá o cantadô e violeiro Só há treis coisa neste mundo vão Amô, furria, viola, nunca dinheiro (...) sem um tustão na cuia o cantadô canta até morrê o bem do amô”

Nessa missão de mensageiro, ele canta a fugacidade do mundo terreno, o caráter

transitório da vida na terra e o ideal cristão de “beleza na pobreza”, de desapego dos bens

materiais, apoiado no discurso bíblico:

“O Reino pertence aos pobres e aos pequenos, isto é, aos que o

acolheram com um coração humilde. (...) Declara-os bem-aventurados, pois “o

Reino dos Céus é deles” (Mt 5,3); foi aos ‘pequenos’ que o Pai se dignou revelar

o que permanece escondido aos sábios e aos entendidos. Jesus compartilha a vida

dos pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede e a indigência.

Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo para

com eles a condição para se entrar em seu reino”. 95

Essa negação da vida faz com que o poeta cantador assuma uma posição cordata

ante as fatalidades e adversidades, vistas como vontades do Criador:

“Já vi escrito no livro sagrado Qui a vida nessa terra é u’a passage E cada um leva um fardo pesado É um insinamento que derna a mudernage Eu trago bem dentro do coração guardado”

O que possibilitou a visão que o poeta cantador adquiriu a respeito da vida terrena

foram suas reflexões no “exílio”, suas andanças nas estradas ermas, na solidão, ou seja, um

terreno fértil para a ascensão espiritual. Segundo Sol Biderman, o deserto parece oferecer

condições propícias à pureza religiosa, pois é uma extensão desmedida da terra e do céu.

Lembra que:

95 Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Vozes, 1999. p. 154.

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“A fé que brotava da solidão desértica era por demais pura e simples

(...) os judeus passaram pelo deserto. Moisés aí viveu, além de João batista e

Cristo. São Paulo e São João Crisóstomo prepararam-se para suas vocações no

deserto”.96

Pelo fato de o mundo ser cheio de ilusões e ocasiões de pecado, “mais vale

renunciar às criaturas e viver nesta terra como peregrino e como estrangeiro: é pelo exílio

que se ganha o Reino, já que Deus representa todo bem, é vão tentar perseguir realidades

terrestres, as quais decepcionam e apresentam riscos de pecados”97.

“Tive muita dô de não tê nada Pensando qui esse mundo é tudo tê Mais só adispois de pená pela estrada Beleza na pobreza é qui vim vê vim vê na procissão lovado seja O malassombro das casa abandonada Côro de cego nas portas das igreja E o ermo da solidão das istrada”

Em “Homenagem a um menestrel” (6), têm-se a repetição dos elementos discutidos

na canção anterior e a inserção de uma nova atitude – a introspecção. O “eu” poético, já

idoso, faz um retrospecto do que praticou em vida. Chega à conclusão de que fora pecador,

cometera muitos erros, mas viveu na retidão. Exilou-se, peregrinou por terras insólitas,

passou por sofrimentos e provações diversas, mas por meio da misericórdia divina aguarda

a morte, sua esperança de ganhar o reino dos céus.

“faltoso confesso erros e pecados (...) perdido andei na noite longa com porcos pastei bem distante do lar mil febres me queimaram o peito (...)

96 Op. cir. BIDERMAN, 1970. p. 117. 97 Op. cit. VAUCHEZ, 1995. P.48

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vendi meus dias em instâncias medonhas meu tempo querido numa terra estranha”

É marcante nesta canção o discurso bíblico, pois o próprio cantador cita o

Eclesiastes, ao lamentar o modo vão e dispendioso como viveu, o que fornece pistas para

esta análise. As idéias apresentadas no livro dos Eclesiastes versejam a respeito do

significado da vida, enumerando os “tempos” destinados para cada etapa ou meta, e lança a

pergunta crucial a que todo cristão deve responder, provocando, assim, reflexões interiores:

“Para tudo há um tempo determinado, sim, há um tempo para todo

assunto debaixo dos céus: tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para

plantar e tempo para desarraigar o que se plantou (...) Que vantagem tem o

realizador naquilo em que trabalha arduamente”? (Ec 3: 1-9)

A resposta é dada – não há vantagens:

“E eu, sim, eu me virei para todos os meus trabalhos que minhas mãos

tinham feito e para a labuta em que eu tinha trabalhado arduamente para realizar,

e eis que tudo era vaidade e um esforço para alcançar o vento, e não havia nada

de vantagem debaixo do sol”. (Ec 2: 11)

“São longos dias e bem grande é o tempo Oh como lamento o estiolado em vão Fui perdulário em gastar dissoluto Horas e minutos que no Eclesiastes Em derradeiro canto estrofou Salomão (...) e a mim resta a Esperança ainda minha Noiva já és benvinda Ó Morte eu vou pra Deus”

Portanto, a vida na terra não “é uma arena de ganho; não há retribuição que seja

satisfatória”98. Assim, só resta buscar a morada celestial, mas é preciso completar os quatro

graus da humildade que consistem na negação do indivíduo enquanto ser superior por meio

98 WILLIAMS, James G. “Provérbios e Eclesiastes”. In: ALTER, Robert e KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1997. p. 287.

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do reconhecimento de suas fraquezas, tornando-se submisso, sujeitando-se a Deus. O

peregrino precisa ter consciência de sua vileza; precisa decompor-se e enxergar todos os

motivos que o transformaram em pecador. Somente dessa maneira será possível viver

espiritualmente, pois “a vida espiritual não é uma aquisição, mas uma demolição”.99

A cantiga (7), “A meu Deus um canto novo”, também é marcada pelos fundamentos

cristãos e pelo discurso bíblico. No título já se tem um indicativo. A expressão “canto

novo” faz alusão aos Salmos – cânticos de agradecimento:

“Gritai de júbilo, ó justos, por causa de Jeová. O louvor da parte dos

retos é próprio. Daí graças a Jeová com a harpa. Entoai-lhe melodias num

instrumento de dez cordas. Cantai-lhe um novo cântico; fazei o melhor ao

tocardes com gritos de alegria”. (Sal 33: 1-3)

O poeta cantador, nessa cantiga, está narrando sua chegada de uma viagem, uma

peregrinação, e descreve os elementos que foi encontrando pelo caminho e que o fizeram

chegar a determinadas conclusões a respeito da vida, coadunando com as reflexões do

cantador da canção “Homenagem a um menestrel”, analisada anteriormente. No entanto,

esta cantiga 7 apresenta um teor mais positivo perante a vida. O peregrino descrito porta-se

como homo viator – vem de lugares distintos, buscando, por meio de provações, a

purgação de seus pecados. Usam-se termos como “grande viagem” e “jornada”, para

mostrar que essa “andança” não é mero caminhar, mas trajetória espiritual. O tom otimista

é revelado ao leitor-ouvinte quando o cantador mostra que veio de paragens protegido pelas

mãos de “Elmana” – que remete a Emanuel, ou seja, a junção de Deus com a criação:

“Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho, e dar-lhe-ão o

nome de Emanuel, que quer dizer, traduzindo: ‘Conosco está Deus’”. (Mt 1: 23)

No caminho, cansado de ensinar “justiça ao mundo pecador”, o peregrino encontra

um deficiente físico que não possuía as pernas; fica comovido com a atitude dele, que pediu

a Deus abençoasse o viajante e nada lhe faltasse:

99 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. p.178.

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“Topei in certa altura da jornada com um qui nem tinha pernas para andar comoveu-me em grande compaixão voltano o olhar para os céus recomendou-me ao Deus Senhor de todos nós rogando Nada me faltar”

Depois, conclui que as pessoas praticam atos ilícitos, causando sofrimentos, porque

faltam três princípios básicos:

“Resfriando o amor a fé e a caridade Vejo o semelhante entrar em confusão”

O sofrimento no mundo existe, porque falta a prática das chamadas virtudes

teologais:

“As virtude humanas se fundam nas virtudes teologais que adaptam as

faculdades do homem para que possa participar da natureza divina. Pois as

virtudes teologais se referem diretamente a Deus. (...)”

“As virtudes teologais fundamentam, animam, e carcterizam o agir

moral do cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas

por Deus na alma dos fiéis para torná-los capazes de agir como seus filhos e

merecer a vida eterna. São o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas

faculdades do ser humano. Há três virtudes teologais: a fé, a esperança e a

caridade”. 100

Logo, se o cristão abandona o princípio da fé, que age pela caridade, e caridade é

amor, dispensa a palavra de Deus: “Este é meu preceito: Amai-vos uns aos outros como eu

vos amei” (Jo 15:12) e se perde no mundo terreno, afastando-se de Deus e da salvação

eterna, pois a caridade tem

100Op. cit. Catecismo. p. 488.

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“como frutos a alegria, a paz e a misericórdia; exige a beneficência e a

correção fraterna; é benevolência; suscita a reciprocidade; é desinteressada e

liberal; é amizade e comunhão”. 101

O poeta peregrino, ante a situação de afastamento das pessoas dos preceitos divinos,

desempenha uma importante missão, a de ser mensageiro da palavra de Deus, porque ele

pratica as virtudes teologais – tem fé, tem caridade e esperança,

“pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos Céus e a Vida

Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em

nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo”.102

“Fadigado e farto de clamar às pedras De ensinar justiça ao mundo pecador”

A Esperança é representada por meio da peregrinação e da crença em Cristo, na

ressurreição dos corpos e na vida eterna, logo faz um canto novo a Deus, expressando sua

gratidão pela possibilidade de salvação:

“Na manhã da estrada E começar tudo de novo Boas novas de plena alegria Passaram dois dias da ressurreição (...) Vô prossiguino istrada a fora Rumo à istrêla canora E ao Senhor das Searas a Jesus eu lôvo Levam os quatros ventos Ao meu Deus um canto novo”

Seguindo na perspectiva da crença na salvação e na morada no Reino dos Céus,

apresenta-se um grupo de 8 canções, de teor eminentemente escatológico, ligadas às

temáticas das outras 7 canções anteriores. São elas: “Campo Branco” (8), “Cantiga do

101 Op. cit. Catecismo, p. 492. 102 Idem, ibidem. p.489.

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Estradar” (9), “Corban” (10), “Um cavaleiro na tempestade” (11), “O cavaleiro da torre”

(12), “Cavaleiro de São Joaquim” (13), “Seresta sertaneza” (14) e “Chula no terreiro” (15).

“Campo branco” apresenta-se como um canto de comunhão do homem com a

Natureza, de conteúdo escatológico, construído com imagens de acentuada plasticidade e

com discurso bíblico. Professa a chegada da chuva no sertão. Segundo análise de Rita

Melo, tem-se

“(...) a noção da totalidade do homem sertanejo e dos elementos

constituintes deste processo: homens, bichos, natureza e divindade integrados em

um mesmo processo de sobrevivência”. 103

“Campo branco” significa “caatinga”, nome de origem indígena. O poeta cantador

faz um verdadeiro cântico à terra, mostrando que os tempos estão difíceis em função da

seca:

“Campo branco minhas penas que pena secou Todo bem qui nóis tinha era a chuva era o amor Num tem nada não nóis dois vai penano assim Campo lindo ai que tempo ruim Tu sem chuva e a tristeza em mim”

Diante dos obstáculos impostos pela natureza, não conseguindo vencê-los, alimenta-

se da esperança de uma nova era, melhor, ao lado de Deus. Portanto, só lhe resta clamar ao

Senhor. O cantador faz uso da gradação para demonstrar a intensidade de seu desejo: “peço

a Deus a meu Deus grande Deus de Abraão”, demonstrando a virtude da fé e o alcance do

bem por meio da devoção. Por isso, em apenas quatro versos, a palavra Deus foi usada seis

vezes:

“Todo bem é de Deus que vem Quem tem bem lôva a Deus seu bem Quem não tem pede a Deus qui vem”

103 MELO, Rita Maria Costa. Elomar Figueira Mello: uma poética do sertão baiano. Recife, 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. p. 125.

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A cantiga mostra a possibilidade de analisar os elementos de duas maneiras – uma

literal, chuva simbolizando fertilidade no campo, renovação da vegetação, o trovão como

anunciador dessa chuva; outra simbólica, por meio da alegoria, com a chuva aludindo ao

dia do Juízo Final e o trovão, à voz de Deus. Essa segunda possibilidade, apesar de Elomar

não a explicitar em seus comentários104, é vista nos versos:

“Esse tempo da vinda tá perto de vin Sete casca aruêra cantaram prá mim”

“Tempo da vinda” refere-se ao momento em que Jesus descerá à terra e promoverá

o julgamento dos justos. O número 7 (“sete casca aruêra cantaram prá mim”) é bastante

significativo, representa a combinação do número 3, número de Deus, com o número 4,

número dos homens, da criação, ou seja, número de Emanuel, Deus com os homens105,

confirmando a ligação do Senhor com a humanidade perdida. Também sua referência faz

ecoar o texto bíblico, o Apocalipse, o Livro Revelação, no qual cita a abertura dos 7 selos,

a presença dos 7 candeeiros, 7 congregações, 7 anjos, 7 estrelas, 7 lâmpadas, 7 espíritos, 7

olhos, 7 trombetas, 7 flagelos, 7 trovões, 7 chifres, 7 cabeças, 7 taças da ira de Deus, 7

dias, 7 cores do arco-íris.

Tem-se o elemento 7 também na “Cantiga do Estradar” – 7 tempos, 7 reinos, 7

dedais de venenos e a crença na promessa divina de haver o tempo da volta, possibilitando

aos bons a contemplação da “face ogusta” de Deus. O cantador expressa nessa cantiga todo

o sofrimento pelo qual já passou e mostra que tem ciência de que ainda faltam muitas

provações a cumprir até ganhar o reino dos céus. Acreditando na vida como passagem para

um Bem maior, essas provações aparecem ao longo da jornada peregrinatória, cumprida

segundo as palavras das Sagradas Escrituras:

“ele insino qui nois vivesse a vida a qui só pru passá “

104 “A estrutura da letra e da melodia é um cântico da vinda da chuva”. In: LESSA, Cláudia. “Elomar das antigas”. Salvador: Folha da Bahia, 26/12/05. “Campo branco, por exemplo, é cantado em igrejas, no interior do Paraná. Fala dos talos da vegetação da caatinga que, na seca, se revestem de branco, para resistir à seca e não morrer” Op. cit. DIAS, 1997. 105CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. P. 826-831.

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“Pois, no meu caso, viver é Cristo, e morrer é ganho”. (Fil 1: 21)

“nois intonce invitasse o mau disejo e o coração nois prufiasse pra sê branco inda mais puro qui o capucho do algudão qui num juntasse dividisse nem negasse a quem pidisse” “Em resposta ele lhes dizia: ‘Aquele que tiver duas peças de roupa interior partilhe com aqueles que não tiver nenhuma, e aquele que tiver coisas para comer, faça o mesmo’”. (Lc 3:11) “Dá ao que te pede e não te desvies daquele que deseja tomar emprestado de ti”. (Mt 5:42)

Assim, o poeta-cantador expressa os ensinamentos divinos de não acumular

riquezas, não se macular com a ambição de possuir bens terrestres, pois neles não se

encontra a felicidade eterna. Somente pelo perecimento do corpo, concretizado pela morte e

pela purificação do espírito, realizada pela purgação das falhas, é que se pode alcançar a

Morada celestial.

Em “Corban” (10), puramente de matiz escatológico, também há referência à

numerologia 7: 7 mil léguas, 7 vacas magras, 7 cravos. Corban “seria uma abnegação, que é

o sacrifício voluntário do que há de egoístico nos desejos e tendências naturais do homem,

em proveito de uma pessoa, causa ou idéia”106. Além de, no próprio título, o autor fazer

alusão a um tipo de atitude pela qual o crente se mostra resignado com um destino a ele

reservado, esperançoso e confiante no projeto divino da salvação, narra a passagem dos

cavaleiros do Apocalipse.

Como Jerusa Pires Ferreira descreve:

“Em hebraico korban, o culto sacrificial do período bíblico, que envolvia

oferendas. Aqui esta oferenda se faz diferente: como em outros textos de Elomar,

106 Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 39.

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a obsessão da travessia, da vida como caminho, o percurso perigoso. Aqui se

oferece o Apocalipse, sob o texto bíblico, a morte faz seu caminho no sertão.

Texto de prestação de contas do tempo e do milênio que envolve homem e

natureza, através de toda uma tradição”. 107

Também nesta canção, o cantador-peregrino narra as adversidades existentes na

terra, mostrando que é preciso superá-las por meio da remissão dos pecados e erros

cometidos.

“Só vejo na terra a morte a rondá Peste mil enfermidades Fome e guerra ai de mim Mil ventos da morte Estrôncios letais (...) lastimo meus êrros de grande pecado”

Os flagelos existem porque

“A vida aqui em baixo é um combate, um combate pela salvação, por

uma vida eterna; o mundo é um campo de batalha onde o homem se bate contra o

diabo, quer dizer, em realidade contra si mesmo. Pois, herdeiro do Pecado

Original, o homem está arriscado a se deixar tentar, a cometer o mal e a se

danar”. 108

O poeta cantador, para reforçar a circunstância de penúria, prevendo que o fim do

mundo está muito próximo, faz um paralelo dos versos “sete vacas magras/ tragam as

gordas nos currais”, com o discurso bíblico, ou seja, com uma passagem do Gênesis que

relata o sonho do faraó que José interpretou como sendo 7 anos de fartura, seguidos de 7

anos de carestia na terra do Egito, por desígnio de Deus.

107 Op. cit. FERREIRA, 2001. P. 170-171. 108 LE GOFF, Jacques. “Além”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v.1. p. 22.

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“E eis que subiam do rio Nilo sete vacas de aparência bela e de carnes

gordas, e elas pastavam entre as canas do Nilo. E eis que após elas subiam do rio

Nilo, mais sete vacas de aparência feia e de carnes magras, e elas se postavam ao

lado das vacas à beira do rio Nilo. Então, as vacas de aparência feia e de carnes

magras começaram a devorar as sete vacas de aparência bela e gorda. Nisso o

faraó acordou”. (Gen 41: 2-4)

Por fim, o cantador descreve, demonstrando sua crença na palavra divina, o

momento em que ocorrerá a ressurreição dos corpos, a anunciação dos cavaleiros do

Apocalipse, indicando a vinda de Cristo à terra para presidir o julgamento, no qual se

decidirá quem receberá a salvação e a quem restará a condenação:

“Geme a terra ao rebentá das covas (...) quatro cavaleiros de olhares cruéis prontos pra peleja já cavalgam seus corcéis de olhos para os céus só ispero Cristo vin”

Essa descrição do momento do Juízo Final também é encontrada em “Um Cavaleiro

na tempestade” (11).

“Quem é quem chega a estas horas Que insiste e demora Na porta a bater? (...) Abri-me a porta ó senhora Um instante é a demora Não ouves cá fora o rugir do trovão Por armas não porto Nem punhais nem dardos letais Só a espada de luz “

Uma donzela pergunta quem bate à porta em hora tardia e um cavaleiro responde

que não é preciso ter medo, pois o “perigo é a descrença”. Esse cavaleiro remete o leitor-

ouvinte a uma passagem do Apocalipse, quando Cristo bate à porta de um fiel:

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“Eis que estou em pé à porta e estou batendo. Se alguém ouvir a minha

voz e abrir a porta entrarei na sua [casa] e tomarei a refeição noturna com ele e

ele comigo. Àquele que vencer, concederei assentar-se comigo no meu trono,

assim como eu venci e me assentei com meu Pai no seu trono”. (Re 3: 20-21)

Portanto, somente pela fé na promessa do retorno de Cristo é que o poeta cantador

encara os obstáculos como um meio, sempre suportando-os à espera da recompensa que

valha a retidão e a prática das virtudes. Os versos finais de “O cavaleiro da torre” (12)

demonstram esses elementos:

“Vivendo da fé A minha crença não se cansa Preso ao fio desta esperança Não tiro os olhos dos céus Confiante na Balança Que julga o inocente e o réu”

As três últimas canções repetem a mesma temática – o catingueiro vive agruras,

sofre os flagelos, mas enxerga-os como provações a cumprir, já que a vida na terra é

combate, é meio e não fim, acreditando que chegará o dia em que Jesus procederá ao Juízo

Final e dará aos justos o Reino dos Céus. No entanto, elas trazem a concretização desse

reino. O catingueiro tem em seu imaginário a descrição e a idéia, segundo seus desejos e

aspirações, de como é esse Paraíso celestial. Em “Cavaleiro de São Joaquim” (13), o poeta

cantador é um cavaleiro que está em peregrinação, sozinho, viu sua terra queimada pelo sol

e vê a salvação:

“Sonho que na derradeira curva do caminho Existe um lugar sem dor, sem pedras, sem espinhos”

Portanto, o Paraíso é um local onde não há sofrimento, não há seca, não há fome:

“E enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem

haverá mais pranto, nem clamor, nem dor. As coisas anteriores já passaram”. (Re

21:4)

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Na cantiga 14, “Seresta sertaneza”, o cantador descreve sua viagem ao reino de

Deus com um tom de torpor, pois ainda não conseguiu conquistá-lo. Descreve regiões

azuis, imensidões, vias estelares e o reino dos cristais, que corresponderia ao Paraíso.

Também é uma canção que denota preocupação na purificação da mente e do corpo, pois o

cantador foge da tentação da “carne”, não desejando perder a castidade, o que exige o

domínio de si mesmo, conseqüentemente de suas paixões, para a busca da paz interior. Faz

um apelo à donzela:

“Donzela fecha esta janela e não me tentes mais”

Por fim, a cantiga 15, “Chula no terreiro”, é um canto saudoso que relembra os

amigos que participavam da “chula” (canto, festa) e que morreram por diversos motivos –

um foi a São Paulo trabalhar e morreu atropelado; o segundo, em uma retirada, foi levado

por um redemoinho; o terceiro morreu esfaqueado pelo marido da moça por quem havia se

apaixonado e o último foi levado pela correnteza ao fazer a travessia de bois. Diante desses

acontecimentos, o poeta cantador considera a vida como combate e a morte, como prêmio,

acreditando que todos os seus companheiros estão no céu. Um de seus companheiros relata

que vida feliz é aquela que é vivida em um lugar celestial, de paz, de amor, com

“U’a função noite e dia qui a vida fosse Regada cum galinha vin queijo e doce”

Neste sentido, faz-se um paralelo com a Terra Prometida, mencionada nas Sagradas

Escrituras:

“E estou para descer, a fim de livrá-los da mão dos egípcios e para fazê-

los subir daquela terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana

leite e mel (...)”. (Ex 3: 8)

“E naquele dia terá de acontecer que os montes gotejarão vinho doce, e

os próprios morros manarão leite, e os próprios regos de Judá correrão todos

cheios de água. E da casa de Jeová procederá um manancial e terá de irrigar o

vale da torrente das Acácias”. (Jl 3: 18)

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Segundo Hilário Franco Júnior, em um texto sobre as utopias medievais109, para a

Idade Média, o Paraíso foi uma das grandes utopias, pois constitui o primeiro mito da

humanidade: “condição perfeita perdida”. Esse mito aparece nos dias de hoje, nas mais

diferentes sociedades110, movidas pelo anseio de um lugar melhor do que a realidade

vivenciada.

Assim, as três cantigas, cada qual à sua maneira, trazem os sonhos do catingueiro a

respeito do Paraíso. Essa visão é o produto das adaptações dos ensinamentos da Bíblia aos

elementos que compõem seu universo na caatinga, e de um substrato ancestral que

alimenta o imaginário nordestino.

3.2. Fantasia leiga para um rio seco

Fantasia leiga para um rio seco, obra gravada em 1981, foi orquestrada pela

Sinfônica da Bahia e regida pelo maestro Lindenbergue Cardoso111 . Apresenta-se na forma

de CD, acompanhada de um livreto-encarte, escrito por Ernani Maurílio, que faz

apresentação da obra, das letras e esclarece o vocabulário. É um poema narrativo

monologado, em primeira pessoa, no tempo presente, no qual Elomar chama a atenção para

a seca de 1890, que não é relatada pela História com a devida importância, segundo suas

concepções:

“Levas e mangotes de conformados retirantes, errantes abandonados por

caminhos e vales desertos como nos quadros do rei Davi, nus morrendo de fome

109 FRANCO JR, Hilário.As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992. 110 Sobre o assunto, consultar os estudos de PATCH, Howard Rollin. “Viajes al Paraíso”. In: El outro mundo em la literatura medieval. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 2000. 111 Importante músico baiano, nascido em Livramento em 1939. Formado em música pela UFBA, foi orientado por Ernst Widmer. “Certa vez confessou-se ‘uma pessoa do interior. Minhas raízes estão na roça e eu não posso negar essas raízes’”. Apesar de não ter ultrapassado os cinqüenta anos, tem mais de 90 obras elaboradas. Aos 49 anos apenas e dono de uma linguagem musical bem sua, sincera e representativa, faleceu subitamente em Salvador, a 23 de maio de 1989. In: VASCO, Mariz. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 401-404.

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e sede, e trespaçados (sic) pelo dardo do fogo de muitos sóis (sem referência

ignoramos quantos foram, pois os românticos historiadores daqueles dias, mais

cronista do salão político, não se tinham dado por conta de que o homem é a

primeira grande essência do universo criado por Deus)”. 112

Jorge A. F. Dantas, estudioso das secas que abalaram o Nordeste, após

levantamento de dados, faz menção à seca de 1890, mas somente em situações ocorridas no

Rio Grande Norte. Explica que uma horda de famintos invadiu as cidades em busca de

refúgio e alívio dos flagelos:

“(...) esta capital presenciou a cena mais comovente, desoladora e triste

que se tem visto nos tempos calamitosos que atravessamos. Uma multidão

compacta de três mil famintos reuniu-se em frente ao consistório da igreja matriz,

à praça da Alegria (...), e ali pedia pão para si, suas mulheres e seus filhos”. (A

fome e os seus horrores. Gazeta do Natal, Natal, n°128, p.4, 27 jul.1889). 113

Ernani Maurílio, na introdução do encarte, traz alguns esclarecimentos a respeito do

que ficou conhecido como “A fome do Noventinha” ou a seca do “Noventinha”. Explica

que todo o polígono da seca, com 7 Estados do Nordeste, estava sendo assolado desde

1887, mas os governos estavam preocupados com questões políticas e não se voltaram aos

flagelados:

“Quem pode se preocupar com a seca no sertão, com milhares de

indivíduos incultos, caladões, cabisbaixos e aparentemente resignados, e que

trazem como marca ferrada o sofrimento em seu semblante?” 114

Relata, ainda, a angústia de muitos habitantes, ao analisar o céu e não conseguir

vislumbrar possibilidade alguma de chuva. Foi uma época de grande sofrimento para os

sertanejos, o que deixou marcas profundas em sua memória. Nesse sentido, Elomar fez

essa obra “num esforço imenso de sessenta pessoas e mais, para que pudéssemos prestar

esta homenagem aos Mortos da Fome do Noventinha”. 112 Encarte que acompanha o CD. 113 DANTAS, George A. F. “Os ‘indesejáveis’ na cidade: representações do retirante da seca (Natal, 1890-1930)”. Revista Scripta Nova. Barcelona: Universidad de Barcelona, n°94, 1 ago de 2001. 114 MAURÍLIO, Ernani. Encarte de Fantasia leiga para um rio seco.

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Fantasia 115 conta a saga de um retirante que sai de suas terras em busca de vida

melhor, longe da seca, deixando os filhos e a mulher mortos. Esse retirante, em sua jornada,

só encontra infortúnios e acaba morrendo. Mesmo sabendo da possibilidade de insucesso, o

retirante abandona sua terra, pois é o único modo de escapar da seca. A obra é dividida em

5 cantos: “Incelença pra terra que o sol matou”, “Tirana”, “Parcela”, “Contra-dança” e

“Amarração”. A retirada descrita nessa obra sugere a comparação entre o catingueiro e o

povo judeu que passou pela Diáspora, ambos com destino de peregrinação e sofrimento,

mas movidos pela idéia da terra prometida. O sertão funciona como o deserto, um lugar que

permite a ascese, que possibilita a salvação do sertanejo por meio do padecimento, como no

tempo de Jesus, de Abraão e dos monges do deserto, que peregrinavam com o intuito de

estabelecer o contato com Deus, promovendo a purificação. O poeta-retirante faz uso dos

fundamentos judaico-cristãos em seu discurso, aceita a transitoriedade da vida, tem

preocupação com o Juízo Final, busca a Jerusalém Celestial e mostra resignação ante os

desígnios de Deus, além de descrever cenas apocalípticas.

O primeiro canto traz uma abertura, apenas musicada; entretanto, no encarte, há um

texto que situa o leitor quanto aos fatos que se seguirão:

“(...) a seca, a linguagem musical da região, o sofrimento, a desolação e

o abandono são claramente perceptíveis, embora permaneça a crença e a fé do

catingueiro nas disposições do Eterno. A abertura constitui um vasto painel do

Noventinha, um quadro geral da fome, da seca, ao silêncio da desolação, enfim,

uma coisa muito próxima embora utilizando um outro código de percepção, aos

‘retirantes’ de Portinari”. 116

Após essa abertura, inicia-se “Incelença pra terra que o sol matou”, com 57 versos.

Nessa “excelência” ou “inselência”, canto que incita o horror ao pecado e favorece o

arrependimento, entoado à cabeça dos moribundos ou dos mortos117, a terra e o sertanejo

115 Peça instrumental livremente composta, em que uma idéia musical conduz a outra sem muita rigidez de forma, sugerindo assim a improvisação. HORTA, Luiz Paulo (ed.) Dicionário de Música. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985. p. 121. 116 Op. cit. MAURÍLIO, s.p. 117 Op. cit. CASCUDO, s.d. p.378.

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são os moribundos. Texto fortemente marcado pelo dialeto catingueiro, descreve a

desolação com a qual o sertanejo depara118.

“Qui disolação E u’a ossada branca Fulorano o chão E o passu-Rei, rei do manjá Deu bença à morte prá avisá (...) Mais o sol malvado Quemô os imbuzêro Os bode e os carnêro Toda criação”

O poeta retirante vê que não lhe resta nada – o gado está morto; a terra está seca,

portanto não pode plantar. O imbuzeiro, geralmente resistente às secas, é importante forma

de vegetação para o catingueiro, pois possui raízes profundas, funcionando como uma fonte

de sobrevivência, já está morto, indício de situação calamitosa. Com essa descrição, é

possível fazer um paralelo com o texto bíblico, precisamente com os versículos de Joel:

“O que a lagarta deixou sobrar, o gafanhoto comeu; e o que o gafanhoto

deixou sobrar, a larva do gafanhoto comeu; e o que a larva de gafanhoto deixou

sobrar, a barata comeu”.

“O campo foi assolado, o solo pôs-se de luto; porque o cereal foi

assolado, o vinho novo se secou, o azeite desvaneceu”. (Jl 1: 4, 10)

O sertanejo-narrador atribui esses acontecimentos – fome, seca, morte – à

proximidade do Juízo Final, sedimentando sua crença nas afirmações dos textos bíblicos:

“Ai do dia; porque está próximo o dia de Jeová, e ele virá como assolação da parte do

Todo-Poderoso”. (Jl 1: 15). Dessa forma também procedia o homem medieval quando era

abatido por flagelos, como a fome, a peste, as guerras, as intempéries, interpretando essas

situações como um aviso dos Céus, mostrando que o dia da Vinda estava próximo. O poeta-

retirante trata esse momento de assolação como um “tempo de perdedêra”:

118 Poema que lembra o Severino retirante em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: “Desde que estou retirando/ só a morte vejo ativa,/ só a morte deparei/ e às vezes até festiva;/ só morte tem encontrado/ quem pensava encontrar vida,/ e o pouco que não foi morte/ foi de vida severina/ (...)”. In: MELO NETO, João Cabral. Morte e vida Severina: e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 35-36.

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“É qui tão as era Já muito alcançada A palavra vea Reza qui havera De chegá um tempo Só de perdedêra”

Continua a descrição da penúria que enfrenta – em sua casa há fome, silêncio,

tristeza, seca, morte de toda a criação, inclusive do cachorro. O poeta-sertanejo culpa o

Diabo, que está fazendo a “festa”. Mas não se abate, não comete ato apostático algum,

continua crendo em Deus e em seu Julgamento:

“Mais não há de sê nada Na função das bêsta Purriba da festa Pirigrina a fé”

Sente-se, nesse momento, ecoar o texto bíblico novamente, pois o retirante, mesmo

abatido por flagelos, não perde a fé em Deus, não desiste de lutar por dias melhores ou

lugares melhores:

“Ainda que a própria figueira não floresça e não haja produção das

videiras, o trabalho da oliveira realmente resulte em fracasso e os próprios

socalcos realmente não produzam alimento, o rebanho seja separado do redil e

não haja manada nos currais. Ainda assim, no que se refere a mim, vou rejubilar

com o próprio Jeová, vou jubilar com Deus da minha salvação”. (Hab 3: 17-18).

Findado o 1°Canto, inicia-se “Tirana”. O poeta-narrador só vê uma saída: a retirada

para o Sul da Bahia, mas reconhece sua fragilidade ante o tempo de Deus, ante seus

desígnios, ou seja, busca uma saída temporária para continuar remindo seus pecados na

terra, sabendo que, na verdade, o único caminho para eliminação dos flagelos é a salvação

divina:

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“Num vô rimá suzim contra o tempão de Deus Todos qui foro num voltaro tão nos céus”

Despede-se do corpo da mulher e do filho, marcando um encontro no céu. Tem

ciência de que, retirando-se, está fadado à morte, pois essa é a conseqüência corrente de

quem vai ao “Reino-do-vai não-torna”, mas não há outra forma. Jerusa Pires Ferreira

explica:

“O Reino do Vai não Torna” é um motivo que comparece no conto e na

literatura popular em geral, ligando-se ao ‘Irás y no volverás’ e a própria noção

de Inferno, de onde não se torna. Na tradição oral nordestina, tanto está

comprometido com esta acepção como associado ao sentido que tem no universo

arturiano: um desafio a enfrentar”.119

Jerusa P. Ferreira, estudando a literatura arturiana, mostra que, nesse reino, há o

encontro com o outro mundo, no qual a espiritualidade é fortemente manifestada, mas o

percurso é longo, é preciso viajar e transpor os obstáculos. Esse percurso propicia o ganho

da paz e felicidades eternas, que, para o catingueiro, dá-se com a morte120. Nesse caminhar,

com sentido de peregrinação, conforme discutido na análise do Cancioneiro, o poeta-

narrador está nu, com fome e com os pés queimados em virtude do calor do chão. Está

descalço porque comeu as sandálias, que eram de couro, pelo desespero da fome: “nem

mias precatas se iscaparo das panela”; contudo, mostra-se desapegado de todo e qualquer

bem material, porque sua busca é espiritual. Dessa forma, vê a vida como passagem, já que

a terra é efêmera, ela perece, está moribunda, queimada pelo sol, mas é ela que dá a

identidade ao homem, é nela que cumpre as etapas da vida – nascer, crescer e morrer – por

isso o catingueiro mostra-se entristecido ao ter de abandoná-la, ainda que espere a vida feliz

no céu.

Esse “enraizar-se”, presente nos textos elomarianos, fundamenta-se nos princípios

judaico-cristãos, pois segundo Régine Azria, a temática da terra, do território, do apego ao

solo, presentes no Velho Testamento, são o fulcro da tradição judaica:

119 FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. São Paulo: Ateliê, 2003. p. 129. 120 Idem, ibidem. p. 131-132.

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“O tema da terra tem uma função mobilizadora que expressa sob a forma

da utopia. Esta está no mito fundador e no projeto escatológico judeus. Ela é seu

fermento, o elemento efervescente. Presente desde o pacto da Aliança, é ela que,

efetivamente, permitirá ao mito desdobrar-se ao longo da história. Pela tradição

proveniente da Bíblia, a terra é concebida como compromisso existencial e

simbólico. Por meio do vínculo espiritual periodicamente renovado entre ‘terra

prometida’ e ‘povo eleito’ encontram-se reunidos os elementos necessários ao

desenvolvimento de uma ‘história santa’ e à emergência de uma concepção

particular do sagrado. Por um rigoroso trabalho de elaboração, a Bíblia se esforça

por instaurar a ruptura com o mundo pagão que sacraliza a natureza e liga o

homem à terra por um elo fusional muito forte”. 121

No 3°Canto, “Parcela”122, o retirante já fugiu de sua terra, e está em peregrinação.

Estabelece um monólogo, tirando conclusões da situação a partir de sua experiência. Sabe

que está se retirando para o “Vai-num-torna” e que, em cada “canto”, encontrará a “foice

armada do Anjo da Morte”. Segundo Jerusa, esse canto expressa o leitmotiv da obra e foi

bastante acolhido na tradição oral do Nordeste, manifestando-se

“(...) não apenas no romanceiro nordestino, que se expressa pela

literatura tradicional de folhetos populares, conhecida como literatura de cordel,

mas no próprio espaço da fala cotidiana de certos cantos do sertão, nos ditos e

estórias que ainda se contam, e reutilizado e transformado por criadores como

Elomar ou Suassuana”. 123

“Pode-se então recuperar o tema do ‘Vai não torna’, motivo de tradição

popular como o suporte de uma interpretação alegórica do doloroso fenômeno

das migrações que significam o enfrentamento de todos os perigos, de inimigos

visíveis, de tantos fantasmas deste mundo a combater. A morte aqui fantasiada

não é alegoria de alguma coisa distante. É o dia-a-dia (sic) trágico que se

presencia, na cidade e no campo”. 124

121 AZRIA, Régine. O Judaísmo. Bauru: EDUSC, 2000. p. 25-27. [apud GUERREIRO, 2001, p.82] 122 “Fórmula poética entre os cantadores do Nordeste do Brasil, muito empregada nos grandes desafios que se tornaram famosos”. Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 673. “A parcela serve para fazer penetrar no clima dos maus presságios (...)”. Cf. FERREIRA, 2003. p.143. 123 Op. cit. FERREIRA, 2003. p. 137. 124 Idem, ibidem., p. 145

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O catingueiro lamenta-se, faz uma triste comparação: “Té a chuva torna cum passá

dos anos”, porém continua prosseguindo, quando ouve o barulho no céu e tem a certeza de

que é Jesus que está vindo para julgar os homens:

“Os istei do céu istralô Já vem vino sem demora Cãs voiz dos truvão O Rei da Glora Rei da Glora Muitos mili anjo in grande preparação Nos alto céus Vem vino sobre essa Terra Prá julgá os homes maus Qui ofendêro a Deus Oco o toco dos Rubin trombetêro Atraiz dos véus”

Novamente, têm-se versos escatológicos, fazendo referência direta ao texto bíblico,

repetindo uma característica comum dos textos elomarianos:

“E eu vi, e ouvi uma voz de muitos anjos em volta do trono, e das

criaturas viventes, e dos anciãos, e o número deles era miríades e milhares de

milhares”. (Re 5:11)

“E os sete anjos com as sete trombetas prepararam-se para tocá-las”. (Re

8:6)

Em “Contra-dança”, 4° Canto, não houve o canto da “letra”, apenas a harmonia dos

instrumentos musicais transmitem a mensagem. Segundo Elomar, isso ocorreu por motivos

estruturais de marcação da orquestra; no entanto, traz o texto de abertura original no encarte

e uma explicação prévia feita por Ernani Maurílio. O retirante estabelece um discurso com

os três anjos anunciadores de flagelos – a Seca, a Fome e a Morte. Os personagens, após

reflexões, intuem que a seca é uma imposição de Deus, em cumprimento ao determinismo

profético da Vinda de Cristo, após um largo tempo de fome, miséria e dor125. Expressa, de

125 Cf. MAURÍLIO, em encarte que acompanha o CD.

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maneira breve e tácita, a perecibilidade do corpo, a fragilidade da vida humana na terra, que

faz com que o catingueiro ponha “os olhos” no céu:

“Num dá pur conta qui u’a vida humana Aspena dispena no chão dos imbuzêro Será o Anjo nunciadô da seca Qui vem pra improibí a rapacuia De cantá pra alegrá o coração O ariri a asa branca e a marreca De assentá nas terra do sertão? De ferro estão os céus Lajedo imenso é o chão”

Finalmente, encontra-se o último canto, “Amarração”, mais extenso musicalmente,

apresentando entretanto 13 versos, dos quais apenas quatro aparecem transcritos no CD. Na

gravação fonográfica, ao final, são cantados 8 versos que serão explorados mais adiante.

“Amarração” é um gênero de cantoria bastante raro nos dias atuais: é cantada após o

trabalho, quando o catingueiro repousa de sua labuta. Zumthor, estudando o cantus

gestualis, cita:

“(...) escreve Jean de Grouchy (...) ‘Este canto se destina a ser executado

em presença de velhos, de obreiros e do vulgo, quando eles repousam de seu

trabalho cotidiano, a fim de que a audição das infelicidades experimentadas pelos

outros os ajude a suportar as suas e de que cada um deles retome em seguida,

mais alerta, sua tarefa profissional. Por isso, esse gênero de canto é útil à

conservação do Estado’”.126

Portanto, “Amarração” pode assumir dois sentidos em Fantasia leiga para um rio

seco – o primeiro, de ser um canto que transmite os infortúnios do catingueiro após seu

périplo pelo sertão, com o intuito de “educar” os demais a respeito dos “assuntos”

celestiais, fazendo com que os outros não desistam de alcançar o Reino dos Céus; o

segundo, de ser apenas um canto finalizador na obra, servindo para “amarrar” os fatos

cantados até o momento, fechar o ciclo – o poeta retirante, abatido por flagelos (cantos 1 e

126 Op. cit. ZUMTHOR, 2001. p. 156.

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2), sai em retirada (cantos 3 e 4) e termina seus dias recebendo a morte salvadora, porque

ganhará o reino do Céu (canto 5).

Nesse canto final, o retirante já está próximo às terras do Sul, e em um canto

saudoso, lamenta, por meio de recordações, a perda de seu pequeno universo, gerado na

caatinga. Sente-se expatriado, mas consciente do fim da jornada, da aventura de um

retirante herói-peregrino, que partiu em busca do cumprimento de seus objetivos – expiar

os pecados por meio do sofrimento imposto pelos flagelos, com anuência divina; suportar

firmemente, manter-se fiel aos preceitos bíblicos e obter a vitória, que é o reconhecimento

de Deus de que fora um bom cristão, merecedor da salvação eterna.

“Cadê os pé dos imbuzêro Qui florava todo ano Nas baxada e nas vereda mana mĩa Cadê os pé d’imbú meu mano Adeus pé dos imbuzêro O vai-num-torna já vamo avistano É como um céu trancado e sem luar Na noite imensa vamo margulhano Sem esperança de um dia voltar Mas de repente nos olhos ardentes Vejo na frente um chapadão sem fim Um céu aberto e uma luz de Deus Santos e anjos cantando pra mim”

Assim é terminada Fantasia leiga para um rio seco, com o retirante chegando,

desolado, às terras estrangeiras, das quais sabe que não haverá retorno; contudo,

surpreendentemente, percebe que recebera a dádiva de habitar a morada celestial, tão

esperada após longo tempo de sofrimentos. Tem-se nesses versos a concepção do sertanejo

tem a respeito do Paraíso: um chapadão, elemento prosaico para os catingueiros, um lugar

com a luz divina e os anjos cantando, dados que são encontrados no discurso bíblico.

Após a análise do Cancioneiro elomariano e de Fantasia leiga para um rio seco, é

possível concluir que existe uma “voz” ancestral, transmitida pela memória, pelo canto, que

diz aquilo que está latente no ser humano quanto à espiritualidade, que aproxima, por

exemplo, os peregrinos de antanho, principalmente os medievais, e o catingueiro de

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Elomar. Em suas obras, acontece a atualização de um antes, em um movimento de releitura,

de ação e de transformação de uma matriz, de uma fonte comum – noção de travessia,

espera de um futuro, busca de algo perdido – alimentada, sobretudo, pelas Sagradas

Escrituras, que é relida, continuada à maneira nordestina, singularizando relações sócio-

histórico-culturais de um sertão vivo que se move, que é característico de uma região, mas

que carrega elementos universais.

As descrições do Paraíso Celestial, as relações entre Céu e Terra, o caráter

obsedante de uma busca por meio de uma vida transitória, as provações, os sinais divinos, a

promessa de salvação, as histórias bíblicas são elementos que, de forma tácita ou não,

povoam o imaginário do sertanejo e povoaram também o do homem medieval, entendendo

imaginário segundo as concepções de Le Goff e Hilário Franco Júnior, que o definem como

um conjunto ou sistema de decodificadores e representantes culturais, historicamente

variáveis, de um complexo de emoções e pensamentos, ou seja, de um inconsciente

coletivo127. Ainda conforme Franco Júnior:

“(...) os imaginários, formas próprias de os homens verem o mundo e a si

mesmos, criam elos, geram e mantêm grupos, despertam consciência social. Ao

expressar valores coletivos, os imaginários dão ao homem a sensação de

pertencer não apenas ao seu momento, mas de fazer parte de uma história”.128

“(...) os sentimentos de qualquer imaginário não são específicos dele, e

sim expressões de uma sensibilidade que o ultrapassa, que é anterior a ele, mas

manifestada de acordo com a escala de valores vigente. Necessariamente, todo

discurso, sonoro, visual ou verbal, é uma certa leitura histórica do social. São os

imaginários que dão sentido ao existir humano”.129

Portanto, a partir da análise de Fantasia leiga para um rio seco, é possível pontuar

alguns elementos que constituem o imaginário espiritual dos personagens de Elomar, o qual

pode ser visto como um “espelho” do imaginário do sertanejo nordestino, já que as cantigas

desse artista, funcionam como uma leitura histórica da sociedade onde são veiculadas.

127 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu – Reflexões sobre a mentalidade e o imaginário”. Signum, 2003. p.73-116.

128 Idem, ibidem, p.106-107. 129 Idem, ibidem, p.113-114.

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4. Capítulo III – Caminhos da cultura brasileira

4.1.O Brasil no Auto da Catingueira

Auto da Catingueira, ópera130 em análise neste capítulo, foi concluída em 1969 e

gravada em 1984, mas, desde 64, Elomar trabalha em sua construção. Veio a público em

forma de vinil, acompanhado de um livro. Posteriormente, foi comercializada a versão em

CD131.

Esse Auto foi escolhido como ponto central dessa Dissertação, porque encerra em si

praticamente todos os elementos que compõem a poética elomariana (teor religioso,

aspectos lingüísticos peculiares, práticas culturais sertanejas etc.), inseridos no contexto

brasileiro, exemplificando e legitimando características sócio-lingüístico-histórico-culturais

de há muito apontadas por inúmeros estudiosos de diversas áreas do conhecimento, na

tentativa de definir a identidade ou identidades do Brasil por meio de produções artísticas.

O autor define essa produção como uma:

130 Pode ser considerada uma obra com traços da ópera barroca, que era chamada de “ópera séria, de assunto mitológico, cavalheiresco (sic) e histórico, além de temas bíblicos... O que importa é que a trama vá se complicando e dê lugar a cenas de grande efeito, como naufrágios, tempestades, incêndios, aparições de divindades, no mar, no céu, grutas mágicas, jardins encantados, cidades fantásticas. Sabemos que o barroco se caracteriza por seu gosto pelo pitoresco, pela mistura e pela complicação”. Em sua estrutura, há, como no Auto de Elomar, “uma abertura, sem função dramática (...) o recitativo, em que predomina a palavra, pois nele se desenvolve ou se explica a ação. O núcleo é a ária”. In: FRAGA, Fernando; MATAMORO, Blas. A ópera. Rio de Janeiro: Angra, 1991. p. 7-16. 131 Elomar dedica o Auto a Marcus Pereira, “brabo e valente na defesa de nosso Patrimônio Musical”; a Ismar Silveira, “grande Menestrel”; a seus pais e irmãos. Traz introdução e comentário crítico dos cantos com autoria de Ernani Maurílio e Adelina Renault, além de ilustrações de Juarez Paraíso e capa de Juraci Dórea. Apesar de apresentar alguns problemas de impressão e também de revisão textual, é uma bela produção, impressa em 1984 por BIGRAF, com patrocínio do Governo Estadual da Bahia, Secretaria de Fazenda, Fundação Cultural do Estado da Bahia e Odebrecht Harrison Engenharia de Minas Ltda, com tiragem de apenas 3000 exemplares.

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“ópera sertânica com estrutura de um auto da Idade Média. Não tanto

pelo formato, bem mais pelo assunto: os autos medievais tratavam dos santos,

suas vidas, seus martírios. No Auto da Catingueira não há um santo, mas a

personagem central chama-se Dassanta”.132

Elomar escolhe o auto como forma de expressão, porque a religiosidade, por meio

das diversas formas de manifestação, é recorrente, senão o fulcro de suas produções.

Segundo Massaud Moisés, o auto:

“Vinculado aos mistérios e moralidades, e talvez deles proveniente, (...)

designa toda peça breve, de tema religioso ou profano, em circulação durante a

Idade Média: equivaleria a um ato que integrasse espetáculo maior; daí o

apelativo que recebeu: auto. (...) Com o tempo, mesclando-se de ingredientes

culturais indígenas e africanos, acabou por tornar-se manifestação popular e

folclórica, em que o enredo propriamente teatral, além de reduzido ao elementar,

vinha acompanhado de danças e cantos”. 133

Segundo Lorenzo Mammi, foi na época de D. José I que a ópera foi transplantada

para o Brasil colônia; com teor religioso, exuberante em alegorias e de coloração

claramente barroca, é ligada ao teatro jesuíta e aos mistérios processionais. No século XIX,

torna-se uma forma musical litúrgica, mas leiga, com elementos sociais convencionais,

aliados a arcaicos, que interessam a diferentes camadas sociais – da elite à popular. Assim,

não pode ser considerada mera transposição européia, pois fórmulas nacionais já haviam

sido incrustadas nessa prática músico-teatral, o que, para Mammi, torna o caso brasileiro

singular:

“(...) a música para a cena lírica brasileira, pela mistura de elementos

modernos (europeus) e arcaico (autóctones), longe de ser um fenômeno

periférico, torna-se, a meu ver, exemplar”.

132 DIAS, Mauro. “Elomar capta a essência do Brasil”. O Estado de São Paulo, 21 de junho de 1997. 133 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1995. p. 49.

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“(...) uma mistura de música de salão, operística, devocional e folclórica

forma o caldo de onde surgirá, no fim do século, a música popular brasileira”.134

O auto tornou-se um gênero praticado por outros artistas brasileiros, uma forma de

teatro considerado como um resquício dos chamados autos sacramentais. Verifica-se essa

prática em Ariano Suassuna. Em boa parte de suas obras, como exemplo, O rico avarento,

A farsa da boa preguiça, Auto da Compadecida e O castigo da soberba, encontram-se

lições de moralidade e cenas do Juízo Final como conclusão. Ligia Vassalo, pesquisadora

das relações entre cultura medieval e o teatro de Suassuna, esclarece:

“Cronologicamente, a última manifestação de teatro religioso é o auto

sacramental. (...) Trata-se de uma representação profano-litúrgica em uma jornada

ou ato, encenada por ocasião de Corpus Christi e referente ao sacramento da

Eucaristia (...). Ou seja, o auto sacramental atualiza elementos dramáticos já

existentes na procissão de Corpus Christi, saídos da tradição teatral da Idade

Média. (...) Outro tema próprio do auto sacramental é a fugacidade da vida (...)”. 135

Nesse sentido, Elomar recebe essa “herança”, de forma (música e teatro) e de

conteúdo (religioso e laico) para praticar sua ópera, expressando o universo do catingueiro.

O texto introdutório de o Auto da Catingueira é divido em 2 partes: I – “O homem e

a terra” e II - “O auto como narrativa histórica ou o auto como história narrada”. Na

primeira parte, os autores trazem breves informações a respeito de Elomar, de maneira

poética, denominando-o um “cronista de um tempo e de uma cultura”136. Em seguida,

descrevem como foi o trabalho de Elomar para compor essa obra – “Fruto de verdadeiro

‘garimpo’, que esse catingueiro realizou em grande parte de sua vida, entre os deserdados e

humildes de sua aldeia sertaneja”. Explicam ainda as fronteiras geográficas e culturais

134 MAMMI, Lorenzo. “Teatro em música no Brasil monárquico”. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. p. 39 e 52. 135 VASSALO. Ligia. O sertão medieval – origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1993. p.113. Ver também informações de práticas no Brasil desde o século XIII em CASCUDO, L da C. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p. 115-116. 136 FIGUEIREDO, Ernani M. da R; RENAULT, Clementine. Auto da catingueira – Elomar Figueira Mello. Não consta número de página, mas tal citação encontra-se no livro referido.

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apresentadas no Auto - Sertão da Ressaca, sudoeste da Bahia, a partir do Mato-Cipó, mas

advertem que não é possível limitá-las, pois essas fronteiras se expandem, por ser o

Nordeste brasileiro um “grande mosaico cultural e humano”. Trazem também elementos

importantes a respeito da linguagem empregada nesses cantos, atribuindo à criação

lingüística de Elomar o caráter lúdico:

“Na caatinga devolve-se à palavra a dignidade perdida nos grandes

centros urbanos; uma idéia é pensada, pesada, construída e só então transmitida.

É fácil sentir que atrás da palavra há uma idéia; atrás da idéia um sentimento;

atrás do sentimento, uma construção mística e mágica. Aqui, a palavra reencontra

sua verdadeira vocação: a de dizer”.137

Chamam atenção ao fato de a construção ser barroca, mas com elementos

medievais, de raízes ibéricas, com temas sertanejos, com histórias ambientadas em uma

terra inóspita:

“Tão terra que às vezes torna-se difícil falar e viver nela; uma terra onde

as pessoas são simples, se encontrando em torno de uma ‘função’ qualquer,

discutindo o tempo, ferrando marrãs, com as mãos comprometidas com o fazer do

leite o alimento, do barro o tijolo, da voz um testemunho, dos passos uma

caminhada, da vida uma forma de espera, da morte uma ressurreição”.138

São histórias ouvidas nas feiras, transmitidas pelos cantadores, “historiadores

depositários dessa cultura ainda não codificada e que, por isso mesmo, é tão forte, tão

integral, porque construída com memória e imaginação”139.

Na segunda parte, os autores trazem um breve resumo do que será cantado no Auto,

ressaltando que nada fora inventado. Nas palavras de Elomar:

“Eu aperto minha memória, me lembro do acontecido, mas ao expô-lo eu

faço com uma carga de emoção que está no fundo de meu eu e da minha

137 Idem, ibidem, primeira página. 138 Idem, ibidem, segunda página. 139 Idem, ibidem, segunda página

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memória, do tempo em que vivi e que ouvi, e até mesmo do tempo em que não

vivi 140”.

O livro também traz a redação dos cantos, esclarecimento de alguns vocábulos,

biografia dos autores e ainda as partituras de “Tirana da pastora” e “Bespa”.

O Auto da catingueira é composto por 790 versos, divididos em cinco cantos: “ Da

Catingueira”, “Dos labutos”, “Das visage e das latumia”, “Do pidido” e “Das violas da

Morte”. Canta a história de Dassanta, a catingueira, do nascimento à morte. Moça de

exuberante beleza, cuidava de arrebanhar as cabras e de ajudar na roça. Com a seca, ela e a

família retiram-se do sertão com destino ao Sete Istrêlo, em véspera de São João, quando

conhece um tropeiro e apaixona-se por ele. O clímax e o desfecho da narrativa acontecem

no canto quinto, quando um cantador nordestino convida o tropeiro, Chico das Chagas,

marido de Dassanta, para um desafio. O duelo acirra-se, a briga acontece e os três acabam

morrendo.

Apresenta um prólogo intitulado “Bespa” – corruptela da palavra véspera141. Nele,

o narrador esclarece que a história de Dassanta, protagonista e tema central do auto, foi

retirada da memória, de um tempo longínquo, e transmitida às gerações por meio dos

cantadores. O violeiro-narrador pede bênção a Deus e licença aos donos da casa para cantar

a história. Essa atitude faz parte da estrutura de praticamente todo início de cantoria, pois o

violeiro acredita que não pode desenvolver seu canto sem a inspiração divina:

“Sinhores dono da casa o cantadô pede licença prá puchá a viola rasa aqui na vossa presença (...) iantes porém eu peço a Nosso Sinhor a bênção Pois sem Ele a Idea é pensa pru cantá e pru tocá é mensa a mão” ... 142

140 Idem, ibidem, terceira página. 141 Aspectos referentes à construção lingüística em Elomar serão discutidos em páginas seguintes. 142 CD Auto da Catingueira – (Faixa 1). Dados completos estão na Discografia. As próximas citações apenas trarão o número da faixa entre parênteses.

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O cantador mostra a preocupação de cumprir sua missão – perpetuar as histórias por

meio do canto, característica muito comum em sociedades de cultura oral, que têm a

tradição de contar “boca a boca”. Esse cantador funciona como instrumento do pensamento

coletivo e da memória popular:

“Sinhô me seja valido inquanto eu tivé cantano prá qui no tempo currido cumprido tenha a missão...” (Faixa 1)

Mark Curran, pesquisador americano que se dedicou ao estudo da literatura

brasileira, principalmente do cordel, em um trabalho intitulado “A sátira e a crítica social na

Literatura de cordel”, ressalta a importância dos folhetos de comentário social, mostrando a

capacidade de o poeta narrar acontecimentos históricos, o que o torna um elemento

primordial para a sociedade, pois, segundo ele, está ligado ao povo, compartilha os

problemas, a tradição cultural e sua condição social. Portanto “oferecem ao historiador, ao

sociólogo, e ao antropólogo cultural indicações verdadeiras do pensamento do povo”143. O

pesquisador afirma com exatidão que esse artista sente a obrigação de buscar seus temas

nos problemas sociais. Assim, ao poeta são delegadas duas funções: a de artista – entreter o

povo; e a de comentarista social – informar sobre os acontecimentos passados e atuais.

Segundo Manuel Diegues Junior144, a tradição de contar histórias de “pai para filho”

é corrente no Brasil. Tal fato é explicado por condições culturais e sociais peculiares a

regiões como o Nordeste brasileiro, com organização patriarcal, distantes dos meios de

comunicação, isoladas dos grandes centros urbanos, com dificuldades econômicas e

analfabetismo:

“A própria vida familiar no Nordeste contribuiu para o “serão”, a

reunião noturna em família. Em torno de um candeeiro, depois do jantar, na sala

143 CURRAN, Mark J. “A sátira e a crítica social na Literatura de cordel”, In: DIÉGUES JÚNIOR, Manuel et al. Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. p.311. Esse texto pode ser bastante valioso a pesquisadores que se detêm no tema da cultura popular, pois suscita novos olhares, nada ingênuos, sobre a Literatura de Cordel, chamando atenção de estudiosos de vários campos para uma rica fonte. Também demonstra o mecanismo artístico utilizado pelos poetas populares que constituem a chamada literatura de denúncia, por meio da qual revelam a ideologia do povo. 144 DIÉGUES JR, Manuel. “Ciclos temáticos na Literatura de cordel”. In: DIÉGUES JR, Manuel et al. Literatura popular em versos – Estudos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Rio de Janeiro: Fundação da Casa de Rui Barbosa, 1986. p. 40.

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de visitas – fosse um engenho, uma fazenda, um sítio, também não raro uma casa

na cidade – reuniam-se os membros da família. A falta da eletricidade fazia o

candeeiro o ponto de convergência dos familiares: pais, filhos, irmãos, primos

etc. (...) E assim a história se divulgava.”145

Nesse prólogo, também aparece a explicação do narrador quanto ao fato de

conhecer a história de Dassanta justamente por “herança” familiar:

“Dindinha conto cuan meu avô morreu E hoje eu canto para os filhos meus E eles amanhã para os filhinhos seus”... (faixa 1)

Esse canto introdutório, narrado em 1ª pessoa, tem a função de trazer ao leitor-

ouvinte elementos que o situem no tempo e no espaço, mostrando essas indicações e os

motivos a que veio o cantador:

“Foi lá nas bandas do Brejo (...) num tempo qui num vivi (...) viveu Dassanta a Fulô”

Em “Da Catingueira”146, por meio de 91 versos, o narrador, agora fazendo uso da 3ª

pessoa, apresenta a personagem principal – Dassanta. Conta seu nascimento, suas

características e sua sina. Ela nasceu no sertão, em noite de lua minguante, com relâmpago

e chuva. Os pais saíram com ela em busca do batismo e do registro. Essa cena, de teor

sombrio, já que os versos denotando “perigo” são os únicos repetidos (por três vezes),

talvez funcione como antecipadora de fatos sobrenaturais, que aparecerão ao longo do auto:

“Nũa quadra iscura de janêro Nũa noite de chuva e de truvão”

145 Idem, ibidem, p.41. 146 Esse canto, na íntegra, encontra-se na Antologia.

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A “quadra iscura” construída pelo violeiro-cantador tem a função de indicar o

tempo, o tempo marcado por elementos da Natureza, no caso a Lua. O fato de Dassanta ter

nascido sob a lua minguante, ou seja, “sem” lua no céu, reforça o caráter sombrio147.

O próprio nome atribuído à personagem revela seu caráter sagrado. O nome

Dassanta pode ser entendido de duas formas: da Santa (preposição + artigo + substantivo) –

ser de uma Santa; ou dá Santa (verbo + Santa) – pode vir a ser uma Santa. Importante

lembrar que:

“Santo é aquele que se dá a Deus “heroicamente”. E esta oferenda, esta

apaixonada entrega de si mesmo a Ele que é a própria Santidade, independe de

circunstâncias tais como status, educação, temperamento, habilidades naturais ou

falta delas. (...) A santidade – ou qualquer outro grau da verdadeira vida cristã –

não é alcançada por ninguém sem auxílio divino. (...) Homens e mulheres se

tornam santos por “viverem em Cristo”, em qualquer das condições de vida a que

são chamados. Os santos são aqueles que aceitam e cooperam com a graça de

modo mais entusiástico e menos egoísta do que os outros e em grau superlativo,

tornando-se semelhantes a Cristo através do auxílio que Cristo dá a eles.”148

Ela e a família chegam à Vila do Poção para que se possa realizar o batismo e o

registro. A criança está molhada pela chuva, estão todos com fome e com pouco dinheiro,

que será dado ao padre. Dassanta não será registrada por falta de recursos financeiros, mas

o batismo deve ser, a todo custo, realizado, pois é símbolo de purificação.

Há um “salto” no tempo, pois são oferecidos dados de Dassanta já adulta. Do verso

36 ao 48, há sua descrição física – já é “moça feita”, de beleza exuberante. São versos que

revelam elementos de sensualidade:

“Qui Dassanta era bunita que mitia medo

147 “As fases da lua mostram o astro da noite submetido à lei da morte e devir cíclicos. (...) Nas representações escatológicas, o obscurecimento da lua é símbolo do juízo. (...) Na teologia primitiva cristã, o sol e a lua tornam-se portadores e imagens de grandes mistérios”. LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993. p. 141. Ainda a respeito da lua, encontra-se: “A Lua é também o primeiro morto. Durante três noites, em cada mês lunar, ela está como morta, ela desapareceu... (...) A vida noturna, o sonho, o inconsciente, a lua são todos termos que têm parentesco com o domínio misterioso do duplo”. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 561-565. 148 ATTWATER, Donald. Dicionário dos Santos. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. p.10.

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Tinha nos ólho a febre perdedêra Qui matava mais qui cobra de lajedo Os pé piqueno e os cabelo cumprido Imbaixo do vistido um bando de segredo” (Faixa 2)

Há uma característica bastante relevante apresentada nos versos acima: ter nos olhos

a “febre perdedêra” – um olhar sedutor, profundo e faceiro, que arrebata o coração dos

homens, traço que acaba provocando situações de ciúmes e desavenças, por isso

“perdedêra”. Essa beleza será sua fonte de perdição, já que está associada à morte, a duelos,

aos “trincá dos ferro”. Pode-se considerar Dassanta como uma variante do arquétipo da

mulher fatal149: bela, sedutora, fascinante, que intriga as pessoas, provocando medo, pois

ao envolver-se com ela, corre-se o risco de cair em danação. Tem-se, nesse auto, o vínculo

entre amor e morte, bastante recorrente nos textos “literários” da Idade Média, como, por

exemplo, em Tristão e Isolda.

“Mais o pió qui era qui sua buniteza virô u’a besta fera naquelas redondeza in todas brincadêra adonde ela chegava as mulé dançadêra assombrada ficava já pois dela na fêra os cantadô dizia qui a dô e as aligria na sombra dela andava e adonde ela tivesse a vea da foice istava”... (Faixa 2)

A expressão “vea da foice”, registrada nos versos acima, demonstra que a morte foi

personificada pelo cantador por meio de uma imagem muito recorrente na Idade Média:

uma caveira, com seus tributos atemorizantes, carregando a foice que ceifa as vidas,

funcionando como uma “intermediária entre Deus e o diabo, entre bem e mal (...)”.150

A associação entre beleza e desgraça remete a alguns valores do medievo, como o

medo de ser belo, pois a beleza, expressa no corpo (fonte de impulsos irrefreáveis) incitava 149 “São inúmeros os exemplos de uma feminilidade temível e noturna na maior parte das mitologias. É o caso de Ártemis e de Circe, na mitologia greco-romana: elas personificam uma fatalidade inquietante e exercem o poder maléfico sobre o homem. (...) Além do físico, ela (a mulher fatal, no caso referindo-se a Carmem) reunia todos os símbolos nictomorfos segundo uma perspectiva diurna: lindos cabelos negros, (...) olhar forte, olhos de lobo penetrantes, pele acobreada como a de mouro. (...) Sua beleza e graça ao mesmo tempo fascinam e intrigam, excluindo toda pureza”. BRUNEL, Pierre. Dicionários de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio. p.146. 150 WILLIAMS, G.S. “A morte como texto e signo na literatura da Idade Média”. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner (eds.). A morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996. p. 134.

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a ocorrência de pecados, como a concupiscência da carne e conseqüente perda da pureza,

expressando um espírito enfraquecido e dominado pelas paixões, o que inviabilizava a

reconquista do Paraíso perdido. Podem-se observar essas idéias em A demanda do Santo

Graal, por exemplo, precisamente com o personagem Galaaz, que, por ser extremamente

belo, é submetido à provação de não cair na tentação e infringir o princípio da castidade ao

ser assediado pela filha do rei Brutos. Gerhild Scholz Williams, estudando a morte como

texto e signo na Idade Média, aponta que “a luta pelo poder entre grupos da nobreza, a

poesia e o canto, o culto à mulher, o ‘amor cortês’ são apresentados como vazios e

condenados como perigosos para a alma”151. Assim, o fato de a Catingueira ser bela,

provocará galanteios e rivalidades, expressos primeiro pelos cantos, por meio do gênero

“desafio”, e depois com armas, que resultará na morte de Chico das Chagas e um Cantador

do Nordeste, que se deixaram levar pela luxúria, um dos pecados capitais, impossibilitando

que Dassanta receba a salvação, por ter sido, justamente, o motivo da danação dos

pretendentes152. Isso pode ser percebido pelo fato de ela ter-se transformado em pássaro ao

morrer:

“Conta os antigo quela dispois da morte viro Passo das asa marela jaçanã pomba-fulô Fulô rôxa do Panela só lá tem essa fulô Dispois da morte viro passo japiassoca assú” (Faixa 2)

A Catingueira é transformada em uma jaçanã 153. Segundo Darcília Simões, a

jaçanã, “por sair somente à noite e viver em pântanos, caminhando sobre as ninféias, essa

ave é identificada pelo povo com as almas penadas, que cumprem um castigo na terra, até o

151 Op. cit. WILLIAMS, p. 133-134. 152 Segundo os ensinamentos cristãos, “temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando neles cooperamos: - participando neles direta e voluntariamente; mandando, aconselhando, louvando ou aprovando esses pecados; não os revelando ou não os impedindo, quando a isso somos obrigados; protegendo os que fazem o mal. Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a violência e a injustiça”. Op. cit. Catecismo. p. 500. 153 Jaçanã = Bras. Zool. Ave caradriiforme, jacanídea (Jacana spinosa jacana), espalhada por todo o Brasil, de dorso vermelho-castanho vivo, uropígio e cauda mais escuros, rêmiges da mão verde-claras, com pontas pretas, e cabeça, nuca e parte inferior pretas; nhaçanã, nhançanã, nhanjaçanã, piaçoca, piaçó, japiaçoca, japiaçó, cafezinho, marrequinha, ferrão. [Aurélio, s.u].

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juízo final”154. Ernani Maurílio, estudioso que apresenta a obra em questão, afirma que,

pelo fato da transformação em pássaro,

“... percebe-se a intenção do poeta: pessoas bonitas, ‘marcadas’ pelo

sensitivo, morrem apenas fisicamente, transformando-se rapidamente em seres

igualmente bonitos que podem perpetuar em outro corpo, em outra vida o mesmo

tipo de beleza”. 155

Semelhante a personagens da mitologia greco-romana, como Jacinto, jovem de

notável beleza, que depois de morrer precocemente foi transformado por Apolo em flor, na

flor-de-Jacinto, essa imagem da transformação em pássaro, uma jaçanã, pomba-flor, é

muito significativa para explicar que há em Dassanta elementos sagrados, como pureza e

outras virtudes, não só a visão de mulher faceira, possuidora da “febre perdedêra”. Os

pássaros representam a ligação entre o céu e a terra, sendo considerados animais sagrados.

Segundo Chevalier,

“(...) os Imortais adotam a forma de aves para significar a leveza, a

libertação do peso terrestre. (...) Os pássaros noturnos são freqüentemente

associados às almas dos mortos que vêm gemer durante a noite perto de sua

antiga morada”.

“Ao longo de toda a simbologia judaico-cristã, a pomba – que, com o

Novo testamento, acabará por representar o Espírito Santo – é,

fundamentalmente, um símbolo de pureza, de simplicidade (...) é lícito dizer que

ela representava a sublimação do instinto e, especificamente, do eros. Essas

acepções, (...), fazem com que a pomba represente muitas vezes aquilo que o

homem tem em si mesmo de imorredouro, quer dizer, o princípio vital, a

alma.”156

No próximo canto, em “Dos labutos”, o narrador apresenta a prática de atos de

verdadeira resignação aos “bons” princípios – Dassanta acorda bem cedo, abre a porteira do

chiqueiro, faz suas orações matinais, prepara o café, arruma seus apetrechos de costura e

vai pastorear o gado miúdo o dia todo, além de ajudar na roça. 154 SIMÕES, Darcília (Org). Língua e estilo de Elomar. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. p.106. 155 Op. cit, FIGUEIREDO, s.p. 156 Op. cit. CHEVALIER, p.687, 689 e 728.

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Com a seca, Dassanta tem sua rotina modificada: depois de guardar o rebanho e

juntar as ferramentas necessárias (cocho, malha e prancha), junto à família, retira-se do

sertão com destino ao Sete Istrêlo, local onde se fabrica farinha, para procurar trabalho.

Chega em véspera de São João. Todos se juntam no terreiro, em torno de uma fogueira,

para comemorar a festa de São João, quando Dassanta avista um tropeiro bonito, bem

vestido e atraente. Os versos seguintes descrevem a entrada apoteótica do tropeiro,

expressando a intensa paixão sentida pela catingueira:

“Já a foguêra acesa Todo mundo no terrêro Festejava São Juão Foi cuan intrô o tropêro Feito um prinspe feiticêro Foi aquele quilarão O danado foi riscano No terreno feito um raí Dassanta junto dos pai Prele foi se paxonano Pois o turuna pachola Qui tinha pauta cum Cão” (Faixa 3)

O dia em que ocorreu esse encontro é significativo – 23 de junho, véspera de São

João. Trata-se de um dia especial e comemorado em diversas partes do mundo. Há alegria,

dança, bebida, comida, fogueiras e cantoria, além de numerosos prognósticos para o futuro,

conhecidos no Nordeste como “simpatias” ou adivinhações. Grande número delas visa ao

conhecimento do futuro marido ou da data em que ocorrerá o casamento.157

Dassanta e o tropeiro ficaram juntos, mas o narrador não sabe dizer se houve

casamento.

O 3º canto, “Das visage e das latumia”, traz um aspecto relevante para esse auto – é

o momento “cantado” em 1ª pessoa, ou seja, por Dassanta – tema central da obra e também

momento em que a personagem entra em contato com o mundo sobrenatural, tem-se o

depoimento por sua “voz”. É dividido em “Tirana da Pastora” e “Recitativo”. Esta parte do

157 “Santo católico, primo de Jesus Cristo, nascido a 24 de junho (...) São João é festejado com as alegrias transbordantes de um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, música, danças, bebidas e uma marcada tendência sexual nas comemorações populares, adivinhações para casamento (...) Portugal possuiu no espírito de sua população todas as superstições, adivinhações, crendices e agouros amalgamados na noite de 23 de junho (...)” Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 477-478.

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auto é extremamente hermética, de difícil compreensão, não só pela estrutura sintática,

muito semelhante às construções barrocas – há, por exemplo, inversões violentas – mas,

sobretudo, pelo entrave lingüístico: o poeta utiliza neologismos e o dialeto catingueiro,

sustentado muitas vezes pela fonética, adotando uma grafia particular:

“cás boca d’istambo imbruiada barrão de fogo alevantado Pé-sêco e os anjo na rêde Armada na incrizilhada Sete anjin morto de sêde Horas morta madrugada Tatú-peba cumeu as mágua Qui choro na mamona do oro Pelos banco da meágua As alma de Chico Bizôro”

Percebem-se no texto acima, a título de exemplificação, as palavras “istambo”

(estômago), e “imbruiada” (embrulhada), claramente grafadas de acordo com a fonética

regional. Estas e outras construções aparecem ao longo das produções de Elomar, inclusive

no próprio auto em questão; no entanto, é nesse 3º canto que praticamente todos os

processos lingüísticos praticados pelo poeta aparecem juntos.

“Tirana da Pastora” é um canto de lamento, um desabafo da protagonista. Não

ocorrem as aparições que habitam o mundo sobrenatural com o qual Dassanta entrará em

contato, mas é o momento de preparo para que elas se apresentem. A catingueira descreve

suas principais ações diárias e o lugar onde faz o pastoreio das cabras, o cerrado, inóspito,

solitário, um lugar de iniciação, pois há provações a serem cumpridas:

“sina cigana vida de onça vida tirana é essa só de andança e de vivê prissiguino a criação mĩunça iê... (...) vida mais danada inda to pra vê pelas parambêra desses socobó vai mia vida intêra já murcha a fulo Cuma se eu tivesse penas a pagá

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pra sê prisionêra nesse caritó ê vida tirana essa de pastora”158

A palavra “tirana” pode, nessa parte do auto, assumir dois significados – o

primeiro, o de uma composição musical:

“... son canciones para solistas, que pueden ser acentuadas por un

zapateado. Se originaron en las Azores, y en el Brasil se cantan y bailan e

festividades rurales, y también – para animarse en el trabajo – por lavanderas y

piragüeros”.159

O segundo, de sofrimento – vida tirana, vida sofrida. Este lugar de sofrimento, de

solidão, como o deserto para o homem de antanho, é feito de “realidades espirituais e

materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre o geográfico e o simbólico

(...)”160, portanto é nele que Dassanta vê os entes maravilhosos. As duas acepções

combinam-se, pois a catingueira canta seus versos no momento em que está trabalhando e a

temática deles é justamente a explanação de sua vida “difícil”.

É no “Recitativo” que o leitor-ouvinte presencia a maior parte e diversidade de

elementos que compõem o maravilhoso, termo derivado de mirabilia (raiz mir, olhar) –

“coisas que o homem pode admirar com os olhos, coisas perante as quais se arregalam os

olhos”161, o que pressupõe uma metáfora visiva. Esse maravilhoso, para os homens da

Idade Média, compunha um universo e era caracterizado “pela raridade e pelo espanto que

suscita, em geral admirativo. Ele afeta o olhar e implica qualquer coisa de visual”.162 É

produzido por “forças ou por seres sobrenaturais, que são, precisamente, inumeráveis”163,

expressos por meio da aparição – noção suscitada justamente pelo maravilhoso – ou da

“visage”, ou seja, visagem – “assombração, fantasma, alma de outro mundo, aparição

158 Todas as próximas citações referentes ao Auto da Cantigueira pertencem ao terceiro canto, “Das visage e das latumia”, faixa 3. 159 WECKMANN, Luis. La herencia medieval del Brasil.México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 226. 160 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983. p.43. 161 (Idem, ibidem, p. 18) 162 LE GOFF, “Maravilhoso”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v.2, p.107. 163 Op. cit, LE GOFF, 1983, p.22.

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sobrenatural”.164 Portanto, nesse canto, tem-se a expressão do maravilhoso catingueiro,

demonstrado por Dassanta ao longo dos versos.

Há, nessa parte, dois topoi presentes em textos medievais: as maravilhas são

reveladas em local ermo, quando a pessoa está sozinha, acontecem à noite, mais

precisamente à meia-noite, nas chamadas “horas abertas”, que também incluem o meio-dia,

as Trindades, o anoitecer e o amanhecer. Segundo Cascudo, são horas das visões, da

manifestação dos entes sobrenaturais, “hora estranha, parada, com arrepio sinistro nas

folhas.”165 Dassanta as chama de horas mortas, de “hora inselente” e por meio da

enumeração, expõe diversos entes, criando um clima de suspense:

“toda mêa noite na hora inselente do tempo e do vento e toda criação já vi ũa noite apois ela num mente pôro os ramo as fôia no capão cigarra grilo cururu rodão cobra gibóia cascavé serepente lambú treis-pote mãe-da-lũa cancão tatú mucüim toda alma vivente té a cachuêra ispindurô pendente prêsa na pedra sem caí no vão tudo in memora da hora inselente qui hai toda noite derna a criação”

A noite é uma hora concedida aos mortos, aos revenants166 , às almas penadas, pois

é “negra como o pecado; é negra também como as trevas do além que elas prolongam na

terra, as trevas povoadas pelas almas privadas da iluminação da visão de Deus”167.

Dassanta encontra-se com as almas penadas justamente à meia-noite:

“pela mêa noite alevantei da rêde (...) fui bebê água pert na aguada

164 Op. cit, CASCUDO, s.d, p.911. 165 CASCUDO, Luís da C. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1985. p.418 166 Op. cit. WECKEMANN, p.169. 167 SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.199.

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(...) cuano cheguei pert foi qui dei pur fé fiquei toda ripiada da cabeça aos pé (...) topei Chico Nicolau mais Manezim Serrado eu vi Naninha sentada pidindo ismola cujos difunto nas viola cantava uns canto de horrô”

A pastora mantém contato direto com as maravilhas, apresentando algumas delas ao

leitor-ouvinte. A primeira é descrita como “um barrão de fogo alevantado”, o que remete ao

Fogo-fátuo, Fogo-Corredor ou Boitatá. Segundo Cascudo, era uma cobra de fogo que

matava incendiados aqueles que faziam queimadas nos campos, um antigo mito registrado

pelo Padre Anchieta em 1560. Corresponde à ronda-dos Lutinos, na França e à Luz-louca

(Inlicht) na Alemanha168 . Em seguida, Dassanta relata o Pé-Seco – espécie de demônio –

junto a um anjo, deitados na rede, montada em uma encruzilhada; “lugar clássico de

invocações e encantamentos para todos os povos”169, e depois 7 anjos mortos de sede.

Apresenta o “Lubizome”, ou seja, o lobisomem – representando os mischwesen170 , seres

metade homem, metade animal. Estes Constituem uma manifestação típica do maravilhoso,

por meio da metamorfose, “angustiante para os cristãos que acreditam ter sido criados ‘à

imagem de Deus’, e que então a perdem”171 ao se transformarem em lobo. A imagem

carrega uma acepção moral bastante forte, pois passa pela transformação quem é fruto de

uma relação incestuosa ou

“... é o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos treze

anos, numa terça ou quinta-feira, sai de noite, e topando com um lugar onde um

jumento se espojou, começa o fado. Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras,

de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando

sete adros (cemitérios) de Igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo,

sete outeiros, sete encruzilhadas, até regressar ao mesmo espojadouro, onde

readquire a forma humana”. 172

168 Op. cit. CASCUDO, s.d, p.171. 169 Idem, ibidem, p.371 170 Op. cit. LE GOFF, 1983, p. 31. 171 Op. cit. LE GOFF, 2002, p. 115. 172 Op. cit. CASCUDO, s.d, p. 518.

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Danielle Pitta173, ao analisar os ritos de passagem no folclore pernambucano,

aponta que esse mito tem grande repercussão no Brasil, e a imagem do lobisomem

visitando cemitérios e sangrando crianças povoa a imaginação do nordestino.

Outras maravilhas reveladas por Dassanta são Uriinha, Boa-Tarde e Mão-Pelada,

que “malungaram”, ou seja, fizeram amizades com o Lobisomem. É bastante recorrente

nesse “Recitativo” a presença de almas penadas, de mortos conhecidos ou não. Em uma

noite, “muito dispois das ave-maria”, Dassanta ia à beira do rio, quando se encontrou com

uma bando de almas penadas, que costuravam e mediam tecidos, umas chorando e outras

gemendo, arrependidas por terem cometido o delito de roubar:

“Inquanto ũas mídia ôtras custurava Dum lado ũas gimia já ôtras chorava rismungan qui era os peso e midida Os retai dos pan qui cuan in vida tomava prá cuzê e cum alei ficava”

Nesse episódio, é nítida a função moralizante, pois quem comete pecados e não

pratica a confissão antes de morrer fica vagando pelo mundo dos vivos, em busca de

remissão das falhas, portanto é preciso cumprir a lei divina para se obter a salvação. Ao

explicar o objetivo do exemplum para o homem do medievo, o medievalista Jean-Claude

Schmitt aponta que

“morte e os mortos estão igualmente presentes muito concretamente em

um grande número de relatos para dar esperança (mostrando, com o apoio de

exemplos, que até o último suspiro nunca é tarde demais para arrepender-se dos

pecados) ou para despertar o medo (descrevendo com grande luxo de detalhes os

castigos infernais)”174

Le Goff175 mostra como uma das funções do maravilhoso justamente a didático-

moralizante, que aparece também em outro episódio do canto em questão, não em uma

visão de Dassanta, mas sim de sua mãe:

173 PITTA, Danielle P.R. O imaginário e a simbologia da passagem. Recife: Massangana e Fundação Joaquim Nabuco, 1984. p. 51. 174 Op. cit, SCHMITT, 1999, p.145. 175 Op. cit, LE GOFF, 2002, p.117.

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“minha mãe me insinô qui o dismarzêl a sujêra e o dismantêl tombém é pecado contô qui há muito na Lagôa Torta morava ũa mulé , falo in vida da morta dismantelada dos pé te os cabelo cuns dente marelo e os vistido rasgado varria a casa catano os farelo e adispois amuntuava o cisco dum lado”

Depois de falar a Dassanta a respeito do pecado do “dismarzêl”, “sujêra” ou

dismantêl”, que é um dos pecados capitais (preguiça ou acídia), contou-lhe que o “Cão”

apareceu à porta e matou a mulher, “apois trazia ua pá de lixo e um ferrão na mão”, ou seja,

não cuidar de si próprio, do corpo onde habita a alma e do local onde mora, fere os

preceitos divinos, aproximando o homem do Mal. Há outra referência ao diabo no final do

canto – “istripulia de Rumão”.Cascudo explica que o “Romãozinho” é um “diabinho”,

“uma entidade zombeteira, inquieta e malévola – faz ruído, joga pedra nos telhados e areia

nas janelas, assobia nas fechaduras...”176. Sua presença justifica o uso, pelo poeta, das

palavras “latumia”, corruptela de latomia, que significa algazarra, zoada, ruídos e o

neologismo “pantumia”, designando esse conjunto de sons e “diabruras” realizadas pelo

Romão.

A presença do Diabo esteve associada, “na mentalidade comum, à espera do fim do

mundo”177, pois era preciso proteger-se das tentações para ir ao Paraíso depois que

ocorresse o Juízo Final. Muito presente na cultura brasileira, seus atos atrapalham a ordem,

fazendo com que as pessoas usem “de mil artifícios para afastar a sua perturbadora

presença”.178 Dassanta, para livrar-se das “coisas do malassombro”, utiliza-se da frase:

“eu te arrenego arma pantariosa eu te arrenego e arrequêro”

Cascudo, ao explicitar como é feito o encontro entre os vivos e os mortos, cita:

176 Op. cit, CASCUDO, s.d, p.790. 177 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. p. 243. 178 PONTES, Mário. “A presença demoníaca na poesia popular de Nordeste”. Revista Brasileira de Folclore. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, setembro de 1972, nº 34, p.261.

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“Os mais corajosos e destemidos, porém ousam falar-lhes, e para

saberem o que pretendem, dirigem-lhes esta conhecida frase: ‘Eu te requeiro da

parte de Deus e da Virgem digas o que queres.’ E então faz a alma o seu pedido,

geralmente de missas e orações para sua salvação e entrada na celestial

mansão.”179

A Pastora também faz uso da bênção – “voltei corren olhan prá traiz e benzen”. Há

outros elementos de proteção, como o batismo, objetos sagrados como a cruz e a hóstia,

jejuns e orações. “Há um gesto de poder infalível, que salva de todos os perigos: o sinal da

cruz”.180

As maravilhas apresentadas no Auto da Catingueira têm algumas funções

evidenciadas. Uma delas é fazer um “contrapeso à banalidade e à regularidade do

quotidiano”181, porque a Catingueira depara com tensões diárias: é pastora, cuida de bodes

e cabras, vive a “retirada” de suas terras, em virtude das secas, sente saudades de um

tropeiro que conheceu no Sete Istrêlo. Por isso, o maravilhoso seria um modo de atenuar a

realidade, obnubilar a violência, a frustração, a solidão. Dassanta conta as “visage” após ter

reclamado imensamente da sina que acredita ter, de viver peregrinando, acompanhada de

cabras:

“sina cigana vida de onça, vida tirana é essa só de andança (...) e assim se vai meus dia tardes e mĩã disperdiçado nesse labutá disapartada de mĩas irirmã sem o carin dos ôtros irirmão menó”

179 Op. cit, CASCUDO, s.d, p. 63. 180 BASCHET, Jèrôme. “Diabo”. Em: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, v.1, p. 326. 181 Op. cit. LE GOFF, 1983. p.24

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Outra função do maravilhoso, evidenciada no texto, é a didático-moralizadora, que

reforça os ensinamentos cristãos por meio da sedução, ao desvendar realidades com

elementos assombrosos. Entretanto, há uma outra, implícita, que se contrapõe à didático-

moralizadora – a de contestar a ideologia cristã, à medida que mostra seres que não são

feitos “à imagem de Deus”182, ou seja, entes grotescos, deformados ou animalescos,

características que os aproximam do Mal. Há, ainda, a função estética, a de surpreender o

“leitor-ouvinte”, provocando uma dilatação do mundo e da psique até o desconhecido,

estimulando o “abrir bem os olhos para a criação e o imaginário”.183 Elomar desenvolve

com maestria essa última função.

O maravilhoso sertanejo, conjunto importante na constituição do imaginário, já

discutido no Capítulo II deste trabalho, indubitavelmente se alimentou de maravilhas

anteriores, conhecidas por meio de histórias bíblicas, de material da Bretanha, da Península

Ibérica e do Oriente, elaboradas inclusive na Idade Média. Circulam pelo Brasil desde o

século XV, por meio de folhetos e dos cantadores, sofrendo adaptações, continuações ou

transformações de acordo com as estruturas, o funcionamento, a cultura e os valores da

sociedade brasileira ao longo de sua formação. Assim, é possível o diálogo entre esses

elementos medievais e os da modernidade, como, por exemplo, com as maravilhas da

poética elomariana, pois como precisamente aponta Hilário Franco Júnior, historiador das

“mentalidades”,

“mesmo entre sociedades distanciadas no espaço e nas trajetórias

históricas, existem similitudes entre as respectivas culturas intermediárias –

devido ao substrato profundo da psicologia coletiva, a mentalidade – ainda que

possam ser enormes as diferenças entre suas culturas de elite”184 .

A partir do exame das maravilhas contidas em “Das visage e das latumia”, é

possível perceber que essa parte do auto é muito significativa para o conjunto, pois ela faz a 182 “Embora se diga que cada homem é criado ‘à imagem de Deus’, o entendimento mais corrente é que ele não é esta ‘imagem’ nem em seu corpo visível nem na totalidade de sua alma, mas somente na parte superior da alma (a razão: noûs ou mens). É nesse sentido que o homem, embora pecador, não deixa de levar a marca do divino, mesmo que o corpo, pelo sofrimento e pela morte, e que a alma, por sua fraqueza temporária, sofram tais limites como conseqüência do pecado Original”. SCHMITT, Jean-Claude. “Corpo e alma”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v. 1. p. 255. 183 Op. cit. LE GOFF, 2002, p. 119. 184 FRANCO JR, Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. p.35.

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articulação entre o sagrado e o profano. Também facilita o “mergulho” nos elementos que

constituem o imaginário elomariano, o que reforça as idéias discutidas no Capítulo II.

O quarto canto, “Do pedido”, é o menor deles, com apenas 53 versos cantados por

Dassanta, acompanhada apenas de violoncelo. É um monólogo lírico, de matiz descritivo e

narrativo, com presença de refrão e paralelismo, com invocação ao amigo e estado

sentimental da pastora expressando ternura, singeleza e vaidade feminina, fatores que

fazem o leitor-ouvinte relacioná-la às cantigas trovadorescas medievais, mais precisamente

às de amigo. Já com relacionamento amoroso estabelecido com o tropeiro que conhecera

no Sete Estrelo, a catingueira faz pedidos de compra, uma vez que ele vai à feira. Esses

pedidos são simples produtos de gênero feminino e alimentícios, mas da forma como

Dassanta se reporta ao amado, parecem verdadeiros “mimos”, pois ela o faz de maneira

manhosa, chamando-o de “meu amigo”:

“Já qui tu vai lá prá fêra Traga de lá para mim Água da fulô qui chêra Um nuvêlo e um carrin Trais um pacote de misse meu amigo ah se tu visse

(...)”

Segundo Manuel Viegas Guerreiro, esse gênero de cantigas persistiu por muito

tempo e continua “na boca do povo”185; está presente nos cancioneiros do século XV e

XVI, portanto um exemplo bastante representativo da literatura popular do medievo.

Nos primeiros 12 versos, já se têm informações que corroboram a idéia de Dassanta

ter um destino marcado pelo “sensitivo”, quando o leitor-ouvinte fica ciente da “visão” de

um cego-cantador:

“Meu amigo ah se tu visse Aquele cego cantadô! Um dia ele me disse Jogano um mote de amô Qui eu haverá de vivê

185 GUERREIRO, M. Viegas. Para a história da literatura popular portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura de Língua Portuguesa, 1983. p.43

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Pur esse mundo E morrê aina em flô”

A figura do cego terá papel fundamental no clímax do auto, no 5º canto, quando

Dassanta pressente o perigo em um momento e expõe a sina cantada por este cego.

Também confirma informações apresentadas no canto 2, quando o narrador afirma que a

“Velha da foice”, a Morte, acompanhava a catingueira em seu dia a dia, prevendo que a

morte seria precoce. Com esses versos, percebe-se mais um elemento arraigado na cultura

popular e fortemente cultuado no Nordeste brasileiro – o cego cantador. Idelette Muzart

Fonseca dos Santos, que realizou importante pesquisa a respeito de poética popular e do

Movimento Armorial de Ariano Suassuna, afirma:

“Existe ainda outro aspecto da poesia improvisada, a poesia cantada

pelos cegos, poesia oral por excelência – os cegos estando, segundo a expressão

de Paul Zumthor, para sempre liberados da escrita. (...) O cego e seu

acompanhante, personagens picarescos do romance, adquirem rapidamente uma

dimensão profética, de vidência, testemunhada pelo romance de loa (louvor) (...)

A cegueira desempenha um papel de passagem para o território do mito: permite

a profecia, (...) e garante a genialidade poética, através da referência a

Homero.”186

Paul Zumthor, citado acima por Idelette Muzart, fazendo uma incursão pelos

intérpretes que utilizaram e utilizam a vocalidade187 ao longo dos séculos, afirma:

“Vários desses ‘cantadores de gesta’ pertenceram à classe,

aparentemente numerosa, dos ‘jograis’ cegos, notáveis em toda Europa até os

séculos XV, XVI e XVII, da península Ibérica à Sicília, dos Bálcãs à Irlanda, da

Hungria à Alemanha e à Rússia – detentores de um repertório tão fortemente

tipificado que, na Espanha e em Portugal, lhes deram um nome, arte de ciego,

romances de ciegos. (...) Essa especialização dos cegos constitui um fato

186 SANTOS, Idelette M.F dos. Em demanda da poética popular – Ariano Suassuna e o movimento Armorial. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p. 122-123. 187 Zumthor utiliza o termo “vocalidade” em lugar de “oralidade”, pois entende que “vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso Uma longa tradição de pensamento, é verdade, considera e valoriza a voz como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes.” ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz – A “Literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 21

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etnológico marcante, que se pôde observar, ainda em nossos dias, em todo o

Terceiro Mundo. Sem dúvida, numa sociedade em que nenhuma instituição

assegura nem o cuidado nem a reinserção do cego, a solução mais óbvia de seu

problema é a mendicância, e o canto pode ser o meio. Mais fortemente do que as

motivações econômicas, porém, atuaram as pulsões profundas que para nós

significam, miticamente, figuras antigas como Homero ou Tirésias: aqueles cuja

enfermidade significa o poder dos deuses e cuja ‘segunda vista’ entra em relação

com o avesso das coisas, homens livres da visão comum, reduzidos a ser para nós

só voz pura”. 188

A citação acima certamente se encaixa em casos brasileiros, casos de cantadores

que, a princípio, por necessidades econômicas, passaram a experimentar a “voz” e suas

habilidades em improvisar os versos, transformando-se em “grandes” nomes de poetas

populares, conhecidos nacionalmente, talvez não ganhando a “simpatia” de todo o público,

mas certamente daqueles que habitaram e habitam sua região, como é o caso do Cego

Aderaldo, poeta-cantador, nascido em 1878 em Crato. Ficou cego aos 18 anos, 10 dias

depois de perder o pai. Assim, teve de assumir o sustento da família, encontrando na

cantoria um meio para isso189.

Ainda no 4º canto, Dassanta, junto aos pedidos, traz imiscuídos a eles outros

elementos que compõem os costumes da região – os pratos típicos, como paca, panelada e

brevidade; a importância da feira como ponto de comércio, onde se encontram muitos

gêneros de produtos.

Nos versos de 25 a 38, têm-se novamente elementos maravilhosos e religiosos, que

compõem o imaginário nordestino, já discutido no Capítulo II e retomado no canto anterior.

Dassanta menciona, mais uma vez, o batismo190 como fonte de salvação, a figura do

lobisomem e dos canguinhos191. Os versos abaixo têm a função de antecipar fatos, por meio

188 Idem, ibidem, p. 58. 189 Para informações completas – biografia, obras, repercussão nacional – consultar ADERALDO, Cego. Eu sou o cego Aderaldo. São Paulo: Maltese, 1994. 190 “O batismo e a eucaristia – praticados pelos crentes, através do espírito, uma parte na própria vida em memória do Jesus ressuscitado – vieram a ser promessas, também, de uma salvação final que ainda permanece à frente, além da morte e do colapso da história humana: tipos ou símbolos da vida do mundo vindouro”. Op.cit. DALEY, 1994. p. 17 191 “Canguinhos” são “diabinhos” cultivados em garrafas, que realizam desejos de seus donos. Segundo explicação de FIGUEIREDO (Op. cit, s.d. sem página) no livro a respeito do auto, são “entidades demoníacas que ‘pautam’ com os gananciosos, propondo-lhes fausto e riquezas temporais (terrenas) às custas da prisão eterna de suas almas na vida extradimensional”.

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de elementos sobrenaturais (noite de lua cheia, a festividade acontecendo na casa de um

feiticeiro que se transforma em lobisomem, porque os pais não o batizaram), que ocorrerão

no próximo canto, quando Dassanta e Chico das Chagas comparecerão a uma festa onde se

iniciará a “desgraça” do casal.

“Apois sim vê num isquece Quinda nessa lũa chêa Nós vai brincá na quermesse Lá no Riacho D’Arêa Na casa daquele home Feiticêro e curadô Qui o dia intero é home Filho de Nosso Sinhô Mais dispois da mêa noite É lubisome cumedô Dos pagão qui as mãe isqueceu Do batismo salvadô E tem mais dois garrafão Cum dois canguin responsadô”

O canto é findado com mais alguns pedidos e a súplica:

“Meu amigo trais Essas coisinha para mim”

O quinto e último canto do Auto da catingueira, intitulado “Das violas da Morte”, é

o maior deles, com 582 versos. No livro que acompanha os CDs, há um texto introdutório

situando o leitor quanto aos acontecimentos vindouros. Dassanta e seu companheiro

chegam à festa mencionada no 4º canto, em noite de lua cheia. Os convivas estão reunidos

cantando “Clariô”, o casal junta-se a eles. Um cantador nordestino profissional interrompe

a cantoria ao se sentir tocado pela beleza de Dassanta, intima algum dos convidados para

um desafio na viola. Como ninguém aceita o convite, o tropeiro, companheiro de Dassanta,

obriga-se a entrar na disputa, já que os convidados pressionam-no com olhares.

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“Clariô”, canto de abertura, é utilizado para “esquentar” a função192, descrevendo

fatos simples e concomitantes ao momento da mesma, como a chegada da lua, o anúncio do

início da festa, as expectativas dos participantes:

“Ai clariô ai ai clariô Ai clariô ai ai clariô Ai clariô ai ai clariô Purriba do lajêdo o lua chegô Já cá na Cabicêra a função pispiô Amiã cedo a lũa já entrô E eu qui vim só Só prá vê meu amô Sei qui vô ficá só Pois ela num chegô”

Nos versos seguintes, o desafio será iniciado entre o tropeiro, companheiro de

Dassanta, e o cantador. Estruturalmente, os desafios iniciam-se com uma saudação aos

anfitriões. Dos versos 1 ao 50, esse cantador faz essa saudação e também se apresenta,

dizendo que veio do Norte, que vem cumprindo sua sina – ilusão da vida ou a faca da morte

– deixando a escolha para a sorte! Faz o convite para o duelo, mas avisa que sua viola

quando “não mata, aleija”, parodiando um provérbio popular. Continua expondo seu breve

mas denso currículo de vitórias em diversas cantorias e dá uma mostra de seus dotes, com

15 versos que funcionam como complexos trava-línguas, com uma combinação fonético-

articulatória bastante difícil. Nos versos abaixo, é possível perceber a inventividade de

Elomar ao “brincar” com as palavras:

“Só na iscada dũa igreja Labutei cũa duza um dia Cinco morrêro d’inveja Treis de avêcho, um de agunia Matei os bicho cum mote Qui já me deu treis mulé É a histora dum cassote Cum cuati e cum saqüé O cassote com um pote Cuô pru cuati um café

192 “Antiga denominação das nossas festividades religiosas e das familiares de batizados, casamentos e aniversários. (...) Usa-se também deste termo para designar festa ou festim em casa ou nos templos.” Op. cit. CASCUDO, s.d, p. 416.

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Iantes ofreceu um lote Num saco prá o saqué O saqüé secô o pote Dexô o cuati só cũa fé Di qui dent do tal pote Inda tinha algum café E xispô sambano xote O inxavido do saqüé Qui cuati quá qui cassote Boto o bico bato um bote O qui é qui o saqüé qué Ĩantes porém aviso Sô malvado num aliso Triste ô fliz é o cantadô Que eu apanhá pra dá o castigo Apois quem canta cumigo Sai difunto ô sai dotô”

Ser valente, acumular vitórias em cantorias e conquistar várias mulheres são

símbolos de status entre o grupo de cantadores e vaqueiros, lembrando o vaqueiro descrito

por Euclides da Cunha193. Cascudo descreve o cantador com bastante propriedade:

“É um representante legítimo de todos os bardos, menestréis, gleen-men

trouvères, meistersängers, minnesingers, escaldos, dizendo pelo canto,

improvisado ou memorizado, a história dos homens famosos da região, os

acontecimentos maiores, as aventuras de caçadas e derrubadas de touros ,

enfrentando os adversários nos desafios que duram horas ou noites inteiras, numa

assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional.

Analfabetos ou semiletrados, têm o domínio do povo que os ama e compreende.

(...) Curiosa é a figura do cantador. Tem ele todo o orgulho de seu estado. Sabe

que é uma marca de superioridade ambiental, um sinal de elevação, de

supremacia, de predomínio.”194

A partir dos cantos do desafiante, o tropeiro tem a responsabilidade de “responder”,

logicamente na forma de cantoria, ao cantador do nordeste, pois essa é a função do desafio

– medir forças por meio da habilidade de formular versos nos mais variados gêneros de

cantoria, sempre respeitando o mote imposto. O tropeiro não se intimida e canta:

193 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, s.d. 194 Op. cit. CASCUDO, s.d. p.236-237.

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“Falta o iluste cumpanhêro Marcá o lugá da prufia Se lá fora no terrêro Ô aqui mêrmo no salão”

Com os versos acima, é possível estabelecer relações entre a prática do “desafio”,

chamado pelo tropeiro de “prufia” (porfia), e os torneios ou combates, representados pelas

justas medievais, que Franco Cardini195 afirma serem resquícios de práticas guerreiras da

Ordem da Cavalaria, que conheceu a decadência quando foi transformada em um estrato

inferior, uma vez que seus alicerces (terra e arma) não interessavam a uma monarquia em

vias de se tornar absolutista. Essa cavalaria passou a ser um meio de promoção social para

um grupo de guerreiros sem recursos, em busca de sobrevivência. As justas eram pequenas

contendas, como forma de diversão, no entanto carregando em si valores como lealdade e

valentia e a intenção de conquistar uma dama ou limpar sua honra. Segundo Jean Flori, as

justas contribuíram na criação de uma ética própria da cavalaria, que valorizava o “culto da

coragem e do heroísmo, respeito ao código deontológico que poupa, por interesse ou por

ideal, o homem desarmado ou caído por terra; respeito à palavra dada; zelo pela reputação,

ampliada pela bravura de uns e pela generosidade de outros”196. Cardini afirma que a

cavalaria encontrou seu fim enquanto grupo combatente, mas enquanto mito não, ela ainda

vive através da literatura, inclusive no mundo contemporâneo, como, por exemplo, no

desafio do catingueiro, que também respeita uma ética própria, valorizando a desenvoltura

nos cantos e a valentia, com interesse de fama e conquistas amorosas.

Ao longo de todo o 5º canto, o duelo ocorrerá na forma de cantoria, o desafio.

Importante ressaltar que o gênero “desafio” é uma prática comum entre os cantadores

brasileiros, definido como:

“Disputa poética, cantada de improviso e parte decorada, entre os

cantadores. É gênero que recebemos de Portugal e conhecido em todo o Brasil,

mantido especialmente no nordeste brasileiro, mais no sertão do que na orla

195 CARDINI, Franco. “O guerreiro e o cavaleiro”. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa; Editorial Presença, s.d. p. 57- 78. 196 FLORI, Jean. “Cavalaria”. In: LE GOFF, G. & SCHMITT, J. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. (Coord.) Hilário Franco Júnior. São Paulo: EDUSC e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. 2v. p. 196.

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litorânea. Os instrumentos de acompanhamento são a viola e a rabeca no Norte, a

sanfona e o violão no Sul, sem que se possam fixar preferências”. 197

Nos cantos 65 a 86, o cantador expõe os gêneros de cantoria dominados por ele,

exigindo o uso dos mesmos pelo tropeiro nesse desafio – “mourão, martelo, tirana, ligeira,

parcela, obra de nove, oito, sete e seis pés em quadrão”. O tropeiro oferece no mote,

alicerçado em sua experiência de vida com humildade, as frustrações e a busca pela

felicidade:

“Apois para entender parcela Martelo ô côco tiran Tem que baté mil cancela Na istrada dos disingan E ainda purriba tem Qui sabê sofrê e isperá Mêrmo saben qui num vem As coisa do seu sonhá Na instrada dos disingano Andei de noite e de dia”

O tropeiro, crente nas palavras divinas, mostra que a vida é uma “istrada dos

disingan”, mas que é preciso passar pela mesma para se conhecer a felicidade, pois é nela

que se padece, que se faz a remissão dos pecados.

Desejando complicar a situação do companheiro de Dassanta, já que ele havia

cumprido os versos e ganhado a simpatia dos ouvintes, o cantador do Nordeste lança um

mote que exige erudição: a Noite de Reis, tema já discutido no capítulo anterior. Mais uma

vez, o tropeiro responde à altura do cantador profissional, que o elogia:

“De tá sem honrado assim

197 Op. cit. CASCUDO, s.d. p. 349. Consultar também CASCUDO, L.da C. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 177-181. Nessa parte da obra, o autor faz uma retrospectiva histórica a respeito do gênero, desde a Antigüidade à Idade Média, citando que o Brasil recebera a tradição de Portugal. Cita muito brevemente, duas palavras, a respeito dos árabes, fato que intrigou o pesquisador Luis Soler, que afirma a origem do desafio como sendo árabe: “Desafio, diálogo contrapontado mais ou menos agressivo, questionário adivinhatório etc., que foram (e são) características marcantes da tradição poético-musical dos árabes em seus aspectos de espetáculo e de relacionamento humano, motivo pelo qual não podemos estranhar que seja precisamente chamado de “mourão” um tipo de cantoria baseada no diálogo.” SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do sertão brasileiro. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1995. p. 104.

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Cantan cum gent letrado?”

Continua o exercício de erudição e a tentativa do desafiador em terminar com a

peleja. Nos versos 171 a 180, o cantador continua com o tema bíblico, mas não explicita

esse fato, apenas pede ao tropeiro que interprete o sonho que teve acordado:

“Tava o tempo assim parad Na maió comodação De repente num istralad Vêi um raí e um truvão Chuveu fogo e azeite quente Curria pur toda a gente Na maió das aflição?”

Sem hesitar, o companheiro de Dassanta responde com uma ordem para que o

cantador do Nordeste busque nas Sagradas Escrituras, em Lucas, 21198, a interpretação para

seu sonho, frisando que, nesse capítulo, encontraria as palavras do Mestre a respeito do fim

dos tempos.

É corrente a aceitação entre diversos pesquisadores de cultura popular que a Bíblia é

uma importante fonte, quando não a principal, de conhecimento e inspiração. Da mesma

forma são as histórias tradicionais, como História da donzela Teodora; História do grande

Roberto, duque da Normandi; História da princesa Magalona; História da Imperatriz

Porcina; História de João de Calais e, ainda, História do imperador Carlos Magno e os

Doze Pares de França. Câmara Cascudo, em um estudo a respeito da novelística no

Brasil199, recorre a documentos do Santo Ofício para especular sobre o que os brasileiros

liam no século XVI e XVII. Verificou que não há referência, nesses documentos, às

novelas tradicionais e que, certamente, eram lidos volumes de orações, hagiolários, sermões

e livros de exemplos, lembrando que os livros eram destinados aos mercadores e fidalgos,

enquanto os folhetos, ao povo alfabetizado. Liam-se também o Lunário perpétuo - uma

espécie de almanaque com conhecimentos de astronomia, astrologia, agricultura e cuidados

198 “Então prosseguiu a dizer-lhes: ‘Nação se levantará contra nação e reino contra reino; e haverá grandes terremotos, e, num lugar após o outro, pestilências e escassez de víveres; e haverá vistas aterrorizantes e grandes sinais do céu’.” Lc 21:10-11. 199 CASCUDO, Luís da C. Cinco livros do povo – Introdução ao estudo da novelística no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1953. p.10-13.

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medicinais200 – algumas novelas, a Bíblia e a cartilha. Como a vida familiar era intensa, em

virtude do isolamento das fazendas, da falta de jornais, de rádios e de televisão, os serões,

as leituras de novelas e folhetos, após o jantar, eram freqüentes201.

Continuando o desafio, nos versos 211 a 222, o leitor-ouvinte percebe que o tom

amistoso, mantido até então, começa a desaparecer em função da ousadia do cantador do

Nordeste, que claramente se declara a Dassanta, exigindo que o tropeiro pague o mote com

o gênero “parcela”202, que é tido como um canto causador de desgraça e infelicidade,

indicando ao leitor-ouvinte a intenção de lutar pela Catingueira, sabendo que pode haver

morte com essa luta:

“Todo cantadô de errante Trais nos peito ũa marzela Nas alma lũa minguante Istrada e som de cancela Fonte qui ficô distante Qui matava a sêde dela E o coração mais discrente Dos amô da catinguêra Ai o amô é ũa serepente Esse bicho morde a gente Vamo pois cantá parcela Daindá daindá daindá”203

O tropeiro recusa-se a cantar “parcela”, dizendo que é cantador de “coco” e

demonstra que quem a canta “morre doido cantan ela”. Então o cantador pede o gênero

200 Antonio Nóbrega, que foi membro do Movimento Armorial, conforme nota explicativa no Capítulo I, gravou um CD intitulado Lunário Perpétuo, por Brincante Produções Artísticas Ltda, no qual traz algumas cantigas com elementos existentes no Lunário Perpétuo. 201 Nesse aspecto, Cascudo confirma as informações já citadas em nota anterior. Ver DIÉGUES JR, 1986. p.40. 202 Já explicado em nota no Capítulo II. 203 “O grupo de elementos musicais autenticamente raciais dos árabes, historicamente documentados e ainda marcantes nos povos muçulmanos de hoje, poderíamos resumi-los no seguinte enunciado de tendências: (...) 6) Um apreço muito maior pelos valores do verso que pelos valores propriamente musicais. Razão que explica a rude maneira de cantar dos violeiros; dentro da qual os elementos musicais, mais do que valerem por si mesmos, servem sobretudo para sonorizar o recitado poético e ajudá-lo a chegar aos ouvintes : um sistema de impostação de voz, em suma. (...) ocorre-nos que tudo o que teria de surpreendente tem de coerente ao supormos a sobrevivência do h’idá beduíno (ye hedia... ye yada...), nos “ai, d-a dá” das ligeiras que são cantadas nos desafios”. Op. cit. SOLER, 1995. p.101-104.

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“perguntação”. O tropeiro aceita, dando um mote misto, com realidade e dados

sobrenaturais, exigindo do cantador experiente as respostas:

“Fazeno a priguntação Quantas pena tem a treis-pote Quantos dente tinha o pente Qui canguin pintiava o cão No meio de tanta gente”

O cantador do nordeste, vendo-se encantoado, dirige-se de maneira bastante

ofensiva ao tropeiro, aumentado o grau de dificuldade da cantoria, pois exige inúmeras

informações biográficas do companheiro de Dassanta em apenas um “fôlego” respondido:

“O colega adversaro Num tem o canto apurado Se cantasse pur salaro Há muit qui era finado (...) agora feito um feitiço ta meu colega imbuiado apois quero tudo isso num só folgo respostado”

O tropeiro consegue pagar o mote dos versos 320 ao 343. Esse momento do desafio

é importante para o auto, porque é a partir dele que se obtêm dados sobre o tropeiro. Chama

Chico das Chagas, nascido no sertão da Bahia, no distrito de Brumado. Faz uma bela

declaração de amor a Dassanta, pressagiando como trágico seu próprio fim, pois decidiu

ficar ao lado dela.

“E essa aqui do meu lado Essa é minha cumpanhêra Minha vida é meu bucado Minha viola gemedêra Japiassoca dos brejo Minha sina é ũa perdedêra Derna que vi ela eu vejo Qui andano andano e andejo Violêro malsinado Vô morreno a vida intera”

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Chico sabe que morrerá, pois Dassanta é considerada, como explicado

anteriormente, uma fonte de desgraça aos homens, já que tem nos olhos a “febre

perdedêra”. Relacionando-se com ela, o tropeiro comete o pecado da luxúria,

concupiscência da carne. Interessante notar que a situação de “profia” entre o tropeiro e o

cantador do Nordeste provoca também outros pecados, como a soberba, já que os

cantadores desejam fama; a ira, porque gera ódio e desavenças; e a luxúria, já que

“combatem” para conquistar a Catingueira.

O cantador do nordeste muda o gênero, pede uma louvação. Chico das Chagas

aceita, mas diz que só faz louvação a Dassanta. São 20 versos, do 368 ao 386, de puro

lirismo, de dedicação, de resignação e endeusamento da amada, é um legítimo louvor a

Dassanta, uma promessa de honra e fidelidade, lembrando em demasia o culto à Virgem

nas Cantigas de Santa Maria, que atribuem à mulher as idéias de elevação e pureza, de

devoção espiritual, como um “serviço” prestado à dama celestial. Há uma imagem poética

tocante, quando o tropeiro afirma que seu amor incondicional faz até violão sem corda ou

sem “craviela” (“pescoço”) emitir sons:

“Num sei cantá lôvação Pra ôtra qui nun sej ela Quano vô na iscuridão Me guia duas istrêla Minha istrada é um quilarão Me alumia os olhos dela Num sei cantá lôvação Pra ôtra qui não sej ela Pru mod ela no sertão No rito do coração Sem corda sem craviela Geme as viola e os violão Geme os batê das cancela Nas baxa nos chapadão Geme as porta e jinela Num sei cantá lôvação Pra ôtra qui num sej ela”

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O cantador do Nordeste, de maneira explícita, diz-se apaixonado e interessado por

Dassanta, gerando grande rivalidade entre os contendores. Nesse momento, deixa de ser um

desafio por meio da cantoria, apenas uma competição “verbal”, para progredir para uma

contenda física, com auxílio de armas. Chico das Chagas expõe seus pressentimentos e

conta um sonho de sua mãe, que o viu envolvido em briga:

“Hoje aqui nessa função Eu to prissintin um chêro De sangue morte e de dô (...) ela sonho qui tú tava nũa função nas Cabicêra decente e nũa buniteza qui fazio gosto inté intonce quando acordei vi moiado o cabicêro apois te via acuado num canto de um terrêro trançando cum violêro facão viola e mulé”

O cantador não se assusta com os cantos de Chico e continua afirmando que facão

(morte), sua forma violenta de solucionar os combates; viola (diversão), instrumento que

mostra como é habilidoso e astuto, mas que é também meio de arrumar confusões; e

mulher (amor), motivo de suas desavenças, sempre foram sua perdição. Exibe que não

sente medo de morrer, pois já sofrera muito, confirmando sua sina de viver na ilusão ou

buscar os “cutelo da morte”:

“Já nem sei mais o qui minhas alma qué Pra quem viveu penano a vida intêra Tant faiz morrê nũa boca de fêra Cumo acuad no canto dum terrêro Trançad cum violêro, facão, viola e mulé”

Os dois pelejadores já estão conformados que deverão travar uma luta com armas,

cada um assumindo um motivo para esse ato – o cantador quer Dassanta e Chico das

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Chagas, respeitando o código de valentia, quer honrar sua dama. Portanto, o motivo da

porfia é Dassanta, o que corrobora a descrição da personagem em cantos anteriores:

“Qui as dô e as aligria na sombra dela andava E adonde ela tivesse a vea da foice istava (...) ĩantes dela chegava na frente as aligria dispois só se uvia era o trincá dos ferro”

Depois de ouvir Chico das Chagas dizer que sua morte estava próxima, que naquela

noite, antes da aurora já teria partido, Dassanta, preocupada, tenta amenizar a situação e

recobrar o bom senso do tropeiro. Interessante notar que esse fato remete aos cavaleiros das

gestas medievais, que também sabiam que morreriam. Esse conhecimento ou intuição era

adquirido em sonhos ou em outros sinais tidos como anunciadores da morte. No caso do

Chico das Chagas, houve o sinal do galo e o sonho de sua mãe. Philippe Ariès, em seus

estudos a respeito da morte, denomina essa situação de “morte domada”, o que revela certa

aceitação dela.204 É o único momento em que Dassanta participa da cantoria, ocupando a

estrofe com o maior número de versos (52). Ela relembra ao companheiro o que deixaram

em casa – três filhos dormindo, desprevenidos de roupas e alimentos, um filho enterrado no

dia anterior, natimorto, o roçado aberto, o telhado sem telhas, a aproximação da chuva, a

esperança que ela tem de vê-lo rico.

“Pra que tanta disavença (...) viola cum violença é plantá na terra quente de mĩa ispaia a semente de noite coi incelença”

O tropeiro não atende a seu apelo e o certame acontece, findando com a morte dos

três. É importante ressaltar que a atitude do tropeiro, Chico das Chagas, não é mera

teimosia, mas a expressão de um código de conduta praticado entre os vaqueiros

204 ARIÈS, P. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 26-27.

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nordestinos. Idelete M. F. dos Santos mostra que o vaqueiro representa o herói popular por

excelência205, ligado

“naturalmente a um cavaleiro”, (...) herói e símbolo do sertão, associado

à figura do cantador para representar e ‘significar’ o Nordeste (...) mostra sua

coragem lutando com peixeira numa briga, conservando uma vida livre e dura,

mas sem realizar aventuras extraordinárias nem missões heróicas. O vaqueiro é o

símbolo de um modo de vida, um pouco à margem de uma sociedade fechada,

posição que permite conservar uma relativa liberdade.” 206

O narrador entra ao final do auto com a mesma justificativa que utilizou no canto

introdutório, “Bespa”, e legitima sua história recorrendo à memória de seus antepassados,

como transmissores de histórias por gerações:

“Minha vó conto Cuan meu avô morreu Dindinha conto Cuano vovô morreu Qui foi triste aquela função”

Aqui chegado, é perceptível que a obra Auto da catingueira é bastante rica do

ponto de vista temático – encontram-se o tema da terra, da seca, do Sertão como um local

adverso, onde o sertanejo desenvolve sua vida, estabelece sua identidade e se submete às

forças da Natureza; das práticas culturais nordestinas, como as formas de cantoria; das

manifestações espirituais: a morte, como salvação e não punição; a vida como passagem; o

amor carnal, que leva à corrupção dos homens pelo pecado da luxúria; as crenças, apoiadas

nos princípios judaico-cristãos e nos elementos profanos, como nos entes sobrenaturais.

Tem-se, ainda, o tema da memória, que resgata o canto ancestral. Muitos desses temas

estão associados a motivos desenvolvidos na Idade Média, conforme explicado nos

parágrafos supra citados. Nesse auto, ainda, ocorre a recuperação de algumas histórias do

sertão que expressam dados histórico-culturais do catingueiro de Elomar. Ocorre também a

205 Aqui se incluiu o tropeiro, que apesar de conduzir as tropas e ser responsável por transações comerciais, também lida com o gado e convive no mesmo ambiente sócio-cultural. 206 Op. cit. SANTOS, 1999. p. 91-93.

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transformação de histórias e costumes arcaicos, que permearam o imaginário do homem

por séculos, nas mais diversas culturas.

Também é rico seu aspecto formal, por se apresentar em forma de “auto/ ópera”,

promovendo transformações dentro do gênero e aclimatando-as aos “gostos” brasileiros por

meio de linguagem musical nacional, ao fazer uso de instrumento popular, como a viola,

associada a outros considerados eruditos, como a flauta transversal e o violoncelo; ainda

por meio de uma linguagem verbal singular, ao imiscuir o dialeto catingueiro ao léxico

culto, aos neologismos e aos arcaísmos.

5. Capítulo IV – A língua utilizada por Elomar

Nos textos poético-musicais de Elomar Figueira Mello, encontra-se uma

diversidade particularizada de formas lexicais e construções lingüísticas, o que atribui

a eles valor artístico acentuado, pois a forma de expressão distancia-se da linguagem

padrão, fixa e automática. Alguns exemplos de processos lingüísticos adotados pelo

autor, analisados neste capítulo, foram retirados não só do Auto da Catingueira, mas

também de seu Cancioneiro e do poema épico Fantasia leiga para um rio seco,

discutidos no capítulo II. Esse assunto, complexo, não dispõe de um número

suficiente de estudos. Na verdade, tem-se notícia de apenas três trabalhos publicados

pela mesma pesquisadora, Darcília Simões, da Universidade Estadual do Rio de

Janeiro, que muito contribuiu para as reflexões e confecção desse capítulo.207

207 SIMÕES, Darcília. “Elomar e a língua sertaneza”. V SENELEP, Erechim, RS, 2002. “Parcela da língua sertaneza de Elomar Figueira Mello”. Atas do VI Congresso Nacional de Lingüística e Filologia. Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2002.

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Segundo a pesquisadora,

“Uma língua é identidade de um povo que, por sua vez, atualiza essa

língua de formas diferenciadas, em decorrência de sua distribuição no tempo, no

espaço e na organização social. Logo, num país com as dimensões do Brasil, a

variante do português aqui praticada sofre influências das mais diversas, gerando,

assim, um leque de concretizações lingüísticas que precisam ser conhecidas,

sobretudo pelo povo brasileiro.”208

Elomar faz uso tanto do estilo formal, ou seja, uso padrão da língua, imiscuído a

formas antigas, como também da fala regional, praticada no sertão baiano, uma fala

espontânea, particular, pretensamente fonética, apoiada no cotidiano do catingueiro. A

título de exemplo, tem-se a cantiga “Arrumação”:

“Josefina sai cá fora e vem vê olha os forro ramiado vai chovê vai trimina reduzi toda a criação das banda de lá do ri Gavião chiquera pra cá já ronca o truvão futuca a tuia, pega o catadô vamo plantá feijão no pó (...) diligença pega panicum balai vai cum tua irmã, vai num pulo só vai culhê o ái, ái de tua avó (...) lũa nova sussarana vai passá seda branca na passada ela levo (...) a onça prisunha a cara de réu o pai do chiquero a gata comeu foi num truvejo c’ua zagaia só (...)”

Nesta cantiga, o poeta-cantador conversa com Josefina, dando-lhe ordens quanto

SIMÕES, Darcília (Org). Língua e estilo de Elomar. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. 208 Op. cit. SIMÕES, 2006, p.13. A pesquisa realizou uma investigação de cunho léxico-semântico-semiótico, levantando as unidades léxicas de todos os textos poético-musicais de Elomar. Como meta final, elaborou um pequeno dicionário da linguagem sertaneja.

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aos serviços que devem ser executados antes da chegada da chuva. São tarefas corriqueiras,

desenvolvidas em um cenário rural, sertanejo, portanto a linguagem empregada pelo

cantador faz uso de regionalismos e vocábulos com traços orais: “forro ramiado” (céu que

anuncia chuva); “reduzi” (reduzir, com sentido de juntar o gado); “balai” (balaio – cesto de

palha, de talas de palmeira, ou de cipó); “chiquera” (prende no chiqueiro, local onde se

criam bodes, cabras e porcos); “panicum” (panacum – cesta de boca larga); “prisunha”

(animal com a anomalia genética de ter uma unha a mais, indicando ser um bom animal de

caça ou reprodutor); “seda branca” (bode reprodutor); “sussarana” (Suçuarana – mamífero

carnívoro, felídeo, comum em toda a América nos tempos coloniais. Sua coloração é

amarelo-avermelhada queimada, mais escura no dorso, amarelo-claro na parte ventral, seus

filhotes nascem pintados com manchas escuras no corpo, também conhecido como

puma)209; “ai roxo” (alho roxo, o alho roxo demora de 5 a 7 meses, enquanto as outras

lavouras demoram menos); “culhê” (colher, redução do infinitivo); “cum” (com); “trimina”

(termina – metaplasmo de transposição); “tuia” (forma vocalizada para tulha, grande arca

usada para guardar cereal.210 Trata-se também, na zona rural, de um cômodo da casa

utilizado como depósito para guardar ferramentas, sementes e suprimentos).

O poeta faz uso da variante211 sertânica de maneira consciente e com propriedade,

deixando claro a seu público o apreço que sente pelo idioma nacional, mas também sabe da

dificuldade que esse emprego pode gerar àqueles que não têm a vivência lingüística do

nordestino:

“(...) em face da dificuldade da compreensão das nossas estrofes, nossos

versos, uma vez que canto em linguagem dialetal sertaneza (sic), toda vez que eu

vou cantar uma canção assim de pouco conhecimento do público, eu costumo

fazer uma ligeira preleção para dar assim uma chave melhor para penetrar na

história que a gente tá propondo”. 212

209 Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d. 210 Idem, ibidem. 211 “Chama-se variação o fenômeno no qual, na prática corrente, uma língua determinada não é jamais, numa época, num lugar e num grupo social dados, idêntica ao que ela é noutra época, em outro lugar e em outro grupo social. (...) De acordo com L. Hjelmslev, a variante é uma forma de expressão diferente de outra quanto à forma, mas que não acarreta mudança de conteúdo em relação a essa outra.” Em: DUBOIS, Jean et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 609. 212 Prólogo à apresentação da ária “Faviela” no CD Cantoria 3 – Elomar canto e solo. (apud, SIMÕES. Darcília. “Elomar e a língua sertaneza”. V SENELEP, Erechim, RS, 2002).

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As obras do autor apresentam um potencial expressivo em língua portuguesa

latente, que clama por desvendamentos, sem os quais a compreensão de uma simples

canção fica comprometida, o que exige do leitor-ouvinte uma postura ativa ante o ritmo,

musicalidade, construções, imagens e vocabulário. Sua forma de composição sintático-

lingüística e escolha lexical estão fortemente atreladas às opções temáticas. Quando a

opção temática recai no mundo do sertanejo, há utilização da forma dialetal213 sertaneja,

como já visto em “Arrumação”. Em cantigas cujo tema remonta ao medievo, trazendo

histórias de reis, donzelas e cavaleiros, e também nas de teor religioso, há

predominantemente presença da forma padrão da língua, expressões antigas e arcaísmos,

como se pode observar em “Cantiga de amigo”:

“Lá na Casa dos Carneiros onde os violeiros vão cantar louvando você

em cantiga de amigo, cantando comigo somente porque você é minha amiga mulher lua nova do céu que já não me quer. Dezessete é minha conta vem amiga e conta uma coisa linda pra mim conta os fios dos seus cabelos sonhos e anelos conta-me se o amor não tem fim madre amiga é ruim me mentiu jurando amor que não tem fim”

Nessa cantiga, são perceptíveis elementos de cunho medieval, sobretudo por meio

da escolha lexical, pois o cantador traz marcas da lírica trovadoresca, como nas cantigas de

amigo: “cantar”, “cantiga de amigo”, “amiga”, “mulher”, “madre”, “cabelos”, “anelos”. O

vocabulário usado aqui transita entre o arcaico e o palaciano; por exemplo, a palavra

213 “Dialetal: por oposição a corrente, clássico, literário, escrito, o adj. dialetal serve para caracterizar uma forma de língua como variedade regional sem o status e o prestígio sócio-cultural da própria língua. (...) Uma língua se dialetaliza quando toma, segundo as regiões onde é falada, formas notadamente diferenciadas entre si; a noção de dialetação pressupõe a unidade anterior, pelo menos relativa, da língua em questão.” Op. cit. DUBOIS, 1997. p. 183

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“anelos” tem seu uso datado em 1657 e com pequena freqüência de utilização.214 Em outras

cantigas, encontram-se várias expressões e vocábulos eruditos, que também remontam à

Idade Média, como “donzela”, “murzelo”, “tresloucado cavaleiro andante”, “infindas

sendas”, “cerúleas regiões” e tantos outros. Assim, o poeta-cantador, por meio de

estruturas gramaticais normativas, seleção vocabular e temática voltada ao medievo,

demonstra requinte em seu texto, próprio de usuários da língua culta. 215

Esse modo particular de construir seus poemas, usando tanto a forma dialetal quanto

a culta, faz com que

“sua música seja como meio documentador e propagador da exuberância

da língua portuguesa, em especial a praticada nos sertões, para os quais quase

sempre resta apenas o rótulo de problema brasileiro, sintetizado na palavra seca.

Elomar faz jorrar a cultura do nordeste”216.

Segundo Darcília Simões, as atitudes quanto ao tratamento dado à língua e sua

criação em Elomar são muito semelhantes às de Guimarães Rosa, pois os dois artistas

possibilitaram que suas produções funcionassem como um

“ registro da variedade idiomática nacional e documento histórico-

antropológico da cultura brasileira. Elomar, consciente de sua proposta artística,

apropria-se do material lingüístico disponível no Português do Brasil e, ao lado

do recolho de amostras de falas de brasileiros representantes dos mais esquecidos

rincões, renova a língua com construções neológicas, em que aproveita até

material pertencente às línguas aborígines que teimam em sobreviver no território

brasileiro, a despeito de ações modernizantes comprometedoras de nossa

cultura.”217

Encontram-se também, nos textos elomarianos, vocábulos de origem indígena e

214 Cf. Houaiss [s.u] 215 Op. cit. SIMÕES, 2006. p.36. 216 Op. cit. SIMÕES, 2006. p.18. 217 Idem, ibidem. p.18

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africana, como a palavra “zagaia” (africanismo – azagaia com aférese – qualquer lança de

arremesso) e os versos “Uiúre iquê uatapí apecatú piaçaciara / Unheên uaá uicú arauaquí

ára uiúre Ianêiara” (formas indígenas218), na introdução da cantiga “O canto do guerreiro

Mongoió”, que desenvolverá a temática referente às origens dos primeiros povos que

habitaram Vitória da Conquista. Quanto aos neologismos, em outras cantigas, há

“cavandante” (cavaleiro + andante), “pantumia” (pan + latomia), “deserança” (des +

herança), “improibi” (não + proibir).

Vários metaplasmos sugerem evolução vocabular, manutenção de um estágio

arcaico da língua ou evolução fonética. No domínio lexical, ocorre um processo

denominado monotongação – resultado de uma tendência fonética histórica de apagamento

da semivogal nos ditongos crescentes ou decrescentes. Tal tendência já era observada no

latim vulgar. Observa-se esse processo, por exemplo, em “iscapô” (escapou); “trombetêro”

(trombeteiro). Também ocorre a desnasalação – apagamento do som nasal – “ofendêro”

(ofenderam). Encontra-se a epêntese, fenômeno que consiste em intercalar em uma palavra

ou grupo de palavras um fonema não etimológico por motivos de eufonia, de comodidade

articulatória, por analogia etc., como – “voiz” (voz), “péis” (pés). Verifica-se uma

recuperação do português arcaico, como “lũa” (luna), “intonce” (enton), “in” (em), “mili”

(mil), “homes” (homẽs). É possível apontar a ocorrência de anaptixe ou suarabácti –

epêntese especial que consiste no desfazer de uma dificuldade de pronúncia decorrente de

grupo consonantal ou travamento silábico, como em “irirmão” (irmão). Tem-se ainda a

aférese – supressão de fonema no início de vocábulo, a exemplo de “rubin” (querubim). A

vocalização das palatais, que trata de uma mutação fonética na aproximação articulatória

entre um fonema consonantal e um vocálico, via de regra, dá-se no contato com a vogal

palatal /i/, verificável em “fio” (filho), “chucaiá” (chocalhar), “tuia” (tulha). Em “istei”

(esteios) ocorre uma apócope, uma supressão de fonema no final do vocábulo..

No domínio dialetal, tem-se a redução da marca de plural – “dos ano”, “nas minha

andança”; redução do gerúndio – “ritirano” (retirando), “cantano” (cantando); opção pela

variante –im, em lugar de –inho: “camin” (caminho), “carrin” (carrinho); perda do travador

consonantal vibrante velar /R/ - “isperá” (esperar), “dô” (dor). Esses processos estão

218 Esses versos não são traduzidos por Elomar em nota explicativa presente no encarte do CD Na quadrada das águas perdidas.

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ligados à oralidade, revelando o uso espontâneo, familiar e “econômico” da língua. Jerusa

Pires Ferreira, na elaboração do encarte do CD Cartas catingueiras, discutindo o dialeto

utilizado por Elomar, explica:

“É no dialeto catingueiro que se constróem algumas destas cartas.

Sentem-se toda uma expressão captada e viva. É como falam as pessoas dali, e é

conforme se expressa, no dia a dia o corpo de personagens desta saga tão grande,

quanto à passagem de mil léguas a caminhar. Este dialeto não precisa de retoques

e se presta para comunicar com solenidade ou graça; não carece de mais atavios e

tanto expressa sutilezas da rotina como as tentativas de superar as limitações da

condição humana. Esta é a própria medida de quem, numa intensa procura de

conversão ao seu chão inicial, foi chegando àquele que seria a linguagem das

linguagens. É como registro de uma fala própria, um apoio na linguagem bíblica,

a partir de uma também espécie de “barroco brasileiro”, que paira na força da

grande tradição da letra ao ouvido”. 219

Por meio de tais recursos é possível traçar as preferências temáticas de Elomar,

documentar o uso de algumas formas regionais, outras eruditas e arcaicas, preservadas e

integradas ao universo expressivo do catingueiro, apontando o “perfil dos tipos humanos

representados pelos personagens que povoam a obra do trovador baiano”220. Importante

lembrar que a riqueza existente nas obras elomarianas não é expressa somente por criações

sintático-lingüísticas, que funcionam como uma ferramenta na criação de expressões

poéticas, mas também por carregarem, subjacentes, conteúdos sócio-histórico-culturais

amplos, fazendo de Elomar um artista singular, representante de sua região e partícipe do

“universo literário nacional”.221

219 FERREIRA, Jerusa Pires. Encarte do CD Cartas Catingueiras, 1982. 220 Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 25. 221 Op. cit, SIMÕES, 2002.

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6. Conclusão

“Elomar concentra em si séculos de cultura que o sertão soube processar

a partir da tradição ibérica, e que entre nós se aclimatou, misturou, amalgamou-se

para formar a face mais profunda dos sentimentos nordestinos. Quando canta sua

aldeia, Elomar retrata antes de tudo a condição humana, os temas essenciais que

fazem a grande arte: a vida, a morte, o amor, o sofrimento, a esperança e o

incomensurável. As paisagens sertânicas, tão bem descritas em suas canções, são,

antes de tudo, o palco para que as forças primordiais que regem o drama da

existência possam se manifestar em toda sua plenitude. A seca como provação, a

fartura “nas águas” como renovação do ciclo da vida se integram, como pólos

diferentes, o mesmo tempo de espera e expiação. Movido pela necessidade

interior de retratar com maior densidade o drama da existência, e, especialmente,

a busca constante do diálogo humano com a divindade, Elomar Figueira Mello

foi se aproximando cada vez mais da cultura erudita, da música de concerto.

Porém, aqui mais uma vez se manifesta a genialidade do criador: não se trata de

imitar as formas já estabelecidas por seus grandes irmãos em arte como

Palestrina, Bach, Mozart ou Bethoven. As suas óperas, as suas cantatas, tomam

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novamente como matéria-prima os seus próprios elementos culturais, a pátria do

sertão e o trânsito do sertanejo na diáspora, seu sonho, suas esperanças. São os

peregrinos errantes, arrancados da sua terra, em busca de paz e pão. É a nossa

própria tragédia cotidiana” 222.

A partir da citação acima, que resume com acuidade a arte de Elomar, discutem-se

alguns pontos para concluir essa Dissertação. Elomar, representante da cultura popular

brasileira, promove o livre trânsito entre erudito e popular, oral e escrito223, sem que haja

polarização de um ou outro termo, considerando as perspectivas assumidas neste trabalho.

Assim, compartilha-se das idéias de Paul Zumthor quando afirma que cultura popular

refere-se aos usos de determinados elementos e não a sua essência224.

“Na verdade, o que a palavra erudito designa é uma tendência, no seio

de uma cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade

vivida, à instauração de condutas autônomas, exprimíveis numa linguagem

consciente de seus fins e móvel em relação a elas; popular, a tendência a alto

grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados na

experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente

cristalizada.”225

Tomando-se o Auto da Catingueira como exemplo, tem-se como elemento erudito,

que atende a uma “necessidade isolada”, a ópera, e como elemento popular, todos os usos e

costumes que se mostram conhecidos, aceitos e praticados pelos nordestinos: crenças,

histórias, linguagem, gêneros de cantoria. No entanto, esses elementos não estão separados,

mas misturados a partir de seleções e adaptações efetuadas por contextos históricos

diferentes ao longo do tempo226. Segundo Elomar:

222 LISBOA, Cezar. “Elomar Figueira Mello – o canto mágico do sertão”. Jangada Brasil, abril 2001, Ano III, nº 32. 223 Pode-se estabelecer semelhança entre Elomar e Ariano Suassuana, que recorreu e recorre a essa ambivalência oral-escrito ao estabelecer fundamentos da arte poética armorial. Cf. SANTOS, 1999. 224 Consultar BATANY, Jean. “Escrito/oral”. In : LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. v1. p. 383-395. 225 Op. cit. ZUMTHOR, 2001. p. 118-119. 226 A respeito do conceito de “Cultura intermediária”, consultar FRANCO JR, Hilário. “Meu, teu, nosso – reflexões sobre o conceito de cultura intermediária”. In: A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 1996. p. 35-41.

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“Tem gente que acha que minha música é popular, tem gente que acha

que é regional, outros acham que é erudita. Minha música não é popular, ela está

situada entre o erudito e o regional, pois o regional, quando é puro, tende à

universalização. (...) Mas a música regional, do universo que faço parte, é aquela

que não é urbana e que traduz os sentimentos mais ligados à vida campestre: as

tragédias, os romances, as dificuldades pela sobrevivência. Via de regra, o que

impera é o meteorológico em si, a seca, a enchente, as retiradas.”227

Segundo Idelette Santos, para o termo “popular” existem inúmeras definições;

entretanto, todas elas pressupõem a complexidade da palavra “povo” – o que é relativo ao

povo, feito pelo povo ou amado pelo mesmo. Assim, encontra-se uma “noção movediça”

para o termo. Citando-a:

“(...) a emergência de uma expressão popular na literatura manifesta-se

como fato literário: concretiza-se pela presença de romances ou cantos

tradicionais citados numa obra letrada, pelo papel poético e social assumido pelo

cantador num romance, pelo reconhecimento de um poeta erudito de sua dívida

com o cantador etc”. 228

E acrescenta:

“A maior originalidade da literatura popular nordestina reside, sem

dúvida, no intercâmbio estreito e permanente que se estabelece entre expressão

oral e escritura”. 229

Jerusa Pires Ferreira corrobora as idéias de Idelette, citando diretamente o caso de

Elomar:

227 Entrevista a Fausto Mattos Silva, em setembro de 1994. In: SILVA, F. M. “Música regional e indústria cultural”. Monografia apresentada no curso Relações Públicas, nas Faculdades Salvador. Salvador, dezembro de 1994. 228 Op. cit. SANTOS, 1999. p.17. 229 idem, ibidem, p.19.

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“Não se trata de construir pontes e relações como costumamos ouvir, e

sobretudo em outros casos, entre o erudito e o popular, mas é como uma travessia

interferente. É o grande texto oral de milênios. Escuta que transfigura elementos,

porções, segmentos e as remete, de novo, a um resultado da forma mais excelente

e elaborada. Aí tudo é perfeito e ressoa como se escutássemos ecos. Idade Média?

Sim e não. Porque há antes de tudo a força do dia a dia do sertão, suas práticas,

seus ritos, seus fazeres. Mas há o cancioneiro galaico-português, o mundo árabe e

judaico, o discurso bíblico, o universo e a gesta dos ciganos, seus mistérios, e a

presença forte de sua linguagem musical.” 230

Ao analisar as composições elomarianas, relacionando-as às citações acima,

percebe-se que é importante observar o intercâmbio entre diferentes elementos, pois aí

reside o fulcro da produção. Os estudos de Peter Burke apontam para essa noção,

mostrando que cultura é “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as

formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou

encarnados”231. Burke, ainda, chama atenção ao fato de estudar a cultura a partir da

interação entre culturas do povo e culturas da elite, não optando pela divisão, uma vez que a

fronteira entre elas é vaga. Introduz o conceito de “subcultura”, entendida como “um

sistema de significados partilhados; entretanto, as pessoas que participam dela também

partilham os significados da cultura em geral”232. Assim, existem muitas culturas populares

ou muitas variedades de cultura popular.

Tem-se, no Brasil, um histórico de colonização marcante, que legou à cultura a

mescla de elementos ibéricos, africanos, indígenas, árabes, que podem ser relacionados à

Idade Média, principalmente porque há uma “voz” que sustenta as permanências, as

continuações e as transformações desses elementos. Há um canto ancestral que relembra

fortemente os trovadores, não só pelo modo de trovar, mas por sua função dentro da

sociedade, e hoje nossos cantadores se apresentam como tais; nos temas abordados nas

manifestações artísticas – histórias tradicionais, relatos sobrenaturais, a crença em Deus, a

230 FERREIRA, Jerusa Pires. “Encontrando as Cartas catingueiras”. In: MATOS, C. N.; TRAVASSOS, E.; MEDEIROS, F.T. de. Ao encontro da palavra cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. p.171. 231 BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna – Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.15. 232 Idem, ibidem, p.69.

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espera pelo momento do Juízo Final, o uso de palavras arcaicas e vocábulos próprios,

preenchendo o imaginário nordestino com as justas (relidas no desafio entre Chico das

Chagas e o cantador do nordeste, em nome da honra da dama, a Dassanta), histórias de

princesas, reis, cavaleiros – elementos estes encontrados nas produções analisadas nessa

Dissertação.

Elomar Figueira Mello, inegavelmente, após a apresentação e discussão de suas

obras, pode ser considerado um caso particular da cultura brasileira. Representa, ou

expressa, sem dúvida, o Brasil, no que tange a aspectos sócio-histórico-culturais. O

primeiro argumento que explica essa afirmação é a interpenetração das esferas popular e

erudito, oral e escrito, regional e universal, salientada nos parágrafos anteriores. Um

segundo argumento é seu processo de criação lingüística, um processo artesanal, que

consiste em esculpir os sentidos por meio de ludicidade, plasticidade, atualização e

observação. Rachel de Queiroz depõe:

“Só comparo o Suassuna no Brasil a dois sujeitos: a Vila-Lobos e a

Portinari. Neles a força do artista obra o milagre da integração do material

popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência, com

toque pessoal de originalidade e improvisação.

A tendência de muitos será comparar Suassuna a Guimarães Rosa. Para

mim, não. Rosa era um inventor de pessoas e palavras, inclusive de nomes

próprios; criador de um idioma novo, às vezes belíssimo – mas evidentemente

manufaturado por ele no seu laboratório. Já Suassuna, a sua língua existe, existiu

sempre; pode ser em momento arcaica e preciosa, dando a impressão de

inventiva; porém tudo ali são palavras que hoje ou ontem, o uso poliu e afeiçoou;

e se a sua sintaxe não é a oficial, também não foi composta em banca de trabalho,

visando o efeito eufônico ou poético. É a sintaxe tradicional, poético-coloquial-

declamatória-literária a que recorrem os cantadores e repentistas e os contadores

de romances – naturalmente transfigurada pelo trato que Suassuna lhe dá”.233

Certamente, se Rachel de Queiroz tivesse tido acesso à obra elomarina, incluiria

Elomar nesta comparação, pois ele atende a todos os critérios de valorização da escritora.

233 QUEIROZ, Rachel. “Um romance picaresco?. In: SUASSUNA, A. Romance d’A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.16.

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O emprego lexical, bem como suas expressões poéticas, que conferem plasticidade à

obra, parecem confirmar uma brasilidade tênue ao ser fiel na explicitação do sertão

nordestino. Dessa forma, por meio da criação de um idioleto234, Elomar expressa sua arte,

com empenho à palavra, estabelece vínculos que atam a sociabilidade, pois a linguagem

literária não apresenta uma estrutura fixa, o artista é:

“livre para escolher e criar uma estrutura própria que proporcione a ele

uma clara expressão de seus sentimentos e idéias. Assim, construindo o texto de

acordo com seus próprios desejos, o escritor consegue que sua criação tenha um

novo valor – passa da simples utilização comunicativa da linguagem a uma

utilização artística da mesma (...). A linguagem passa a ter ‘sabor’”.235

Umberto Eco, que discute a idéia de idioleto, código próprio adotado e criado por

um indivíduo, afirma que este pode causar o efeito de estranhamento nos leitores que não

estão familiarizados com a obra. É o que acontece no caso de Elomar. Entretanto, Eco

ressalta que “o fim da imagem não é tornar mais próxima da nossa compreensão a

significação que veicula, mas criar uma significação particular do objeto”236. É aí que

reside a beleza das composições elomarianas e seu caráter singular, pois o procedimento

acaba re-significando elementos comuns do modo de vida do sertanejo, transpondo-os para

a universalidade.

Assim, Elomar, transitando por variedades lingüísticas – sertânicas, arcaicas,

poéticas, neológicas, com as quais dá voz a seus personagens –, por diversos gêneros –

dramático, lírico e épico –, pelo erudito e popular, por elementos do imaginário medieval,

pelo oral e pelo escrito, mescla saberes e sabores distintos, conferindo a sua obra uma

intensa completude, trazendo à tona elementos que:

“dão relevo à nossa paisagem cultural. (... ) Num misto de romântico –

cuja estética alia uma busca das fontes e origens nacionais – e moderno, a obra de

234 Idioleto entendido como um “conjunto dos enunciados produzidos por uma só pessoa, e principalmente as constantes lingüísticas que lhes estão subjacentes e que consideramos como idiomas ou sistemas específicos; o idioleto é, portanto, o conjunto dos usos de uma língua própria de um indivíduo, num momento determinado (seu estilo)”. Op. cit. DUBOIS, 1997, p. 329. 235 AMORIM, A.R. “ A literatura em busca de um conceito”. Urutaguá. Revista da Universidade Estadual de Maringá, Ano I, nº 2, julho de 2001. 236 ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 71.

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Elomar re-busca a paisagem cultural brasileira, cantando-a, ora com a

ingenuidade – por exemplo, cruzando variedades lingüísticas - e a pureza do

caipira sertanejo, ora com a eloqüência do poeta que conhece os clássicos da

literatura universal e que se embebe das fontes mitológicas e míticas que

emolduram a religião”.237

Um conjunto vasto e complexo de manifestações tradicionais, orais ou escritas –

autos, óperas, cantigas, antífonas, cantorias, romances, crenças e saberes – impõe-se por

meio das obras de Elomar. Assim, percebe-se a heterogeneidade, a pluralidade do Brasil em

termos culturais, possuidor de uma categoria de artista, incluídos Elomar e Ariano Suassuna

que, segundo Idelette Santos, referindo-se a Suassuna:

“em vez de se limitar a um regionalismo ou nacionalismo estreitos,

incentiva a uma viagem dentro das culturas brasileiras. O nacionalismo apresenta-

se, então, como uma busca da diferença, da multiplicidade cultural, e não como

uma exaltação unanimista nostálgica.”238

Nesse aspecto, acredita-se que o Brasil, de há muito, abandonou a idéia de um

saudosismo ou de um patriotismo utópico ao buscar sua identidade nacional e cultural,

herança dos intelectuais românticos, que viam no índio o elemento puramente brasileiro e

representativo do país239. Acredita-se que a identidade cultural deva ser estabelecida com o

que é corrente no país, com os meios disponíveis, com elementos e artistas com os quais a

comunidade possa se identificar, criando assim uma cultura original, ainda que feita com

elementos de raízes ibéricas, árabes, gregas, européias e outras, pois a peculiaridade está no

modo como o material foi recriado, adaptado, lido, expresso; nas transformações e nas

“seleções conscientes” ou inconscientes feitas pelos indivíduos – atos importantes

enfatizados por Peter Burke em seus estudos a respeito de diversidade cultural, nos quais

237 Op. cit. SIMÕES, 2006. p. 32 e 35. 238 Op. cit. SANTOS, 1999. p. 285. 239 A respeito do assunto, consultar ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Olho Dágua, 1985.

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defende a idéia de “viagem circular” de temas e fontes, mostrando que o que retorna jamais

é o mesmo que partiu”240.

A obra de Elomar é um amálgama, já que perpassa por diversos movimentos

literários: Barroco, Romantismo e Regionalismo. Isso é possível, já que

“(...) as épocas históricas não se separam umas das outras segundo

contornos nítidos, mas interpenetram-se, imbricam-se, à maneira das manchas de

óleo, pois os sistemas de normas que regulam sua vida não começam e acabam de

maneira abrupta”.241

Tem-se muito de Barroco, fato que o liga à Idade Média. Ao evidenciar o

imaginário religioso do sertanejo, Elomar trabalha com traços fortemente marcantes da

época em questão – nostalgia da religiosidade medieval, legitimidade da palavra bíblica,

ascetismo, dualismo, oposição, tensão, busca por uma vida no céu, desprezo pela vida na

terra, vista apenas como passagem e humanização do sobrenatural. Apresenta o catingueiro

como um peregrino que caminha por terras inóspitas, com o intuito de remir suas falhas,

mantendo-se crente às palavras das Sagradas Escrituras, temente a Deus e esperançoso por

alcançar o Reino dos Céus. Nesse caminhar, o poeta-peregrino-catingueiro revela práticas e

crenças que compõem a espiritualidade do mundo do sertão.

Para Werneck Sodré, o período colonial deixou marcas profundas na formação

histórico-econômico-cultural do Brasil, legando ao país um caráter eminentemente rural242,

o que torna esse solo fértil para receber elementos que compuseram o imaginário medieval.

Termina-se esse trabalho sem esgotar o assunto, que é bastante amplo e complexo,

concluindo-se que a identidade brasileira é formada a partir da unidade na diversidade, pois

há “pluralidades” de cultura, ou seja, existem vários conjuntos de valores espirituais e

materiais acumulados através dos tempos, integrando o patrimônio histórico. Conhecendo,

analisando e valorizando as produções elomarianas é possível enriquecer a História cultural

do Brasil.

240 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 193. 241 COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era barroca e era neoclássica. São Paulo: Global, 1997. v3. p.15. 242 SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2002.

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José e XANGAI. Parcelada malunga. LP, 1980.

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Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1981.

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_______________________Cartas catingueiras. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da

Amazônia indústria e Comércio Fonográfico Ltda., selo Rio do Gavião, 1983.

______________________. Cantoria 1. (CD). Kuarup Discos, 1984.

______________________. Cantoria 2. (CD). Kuarup Discos, 1984.

______________________. Auto da catingueira. (CD). Manaus: Sonopress – Rimo da

Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda., Editora e Gravadora Rio do Gavião,

1984.

_____________________ com SANTOS, Turíbio; XANGAI e MELLO, João Omar.

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