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Alex Mourão Terzi DISCURSO DA TOLERÂNCIA: UMA REPRESENTAÇÃO DO BUDISMO NA MÍDIA BRASILEIRA Programa de Pós-Graduação em Letras: Mestrado em Teoria Literária e Crítica da Cultura Agosto de 2006

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Alex Mourão Terzi

DISCURSO DA TOLERÂNCIA: UMA REPRESENTAÇÃO

DO BUDISMO NA MÍDIA BRASILEIRA

Programa de Pós-Graduação em Letras:

Mestrado em Teoria Literária e Crítica da Cultura

Agosto de 2006

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Alex Mourão Terzi

DISCURSO DA TOLERÂNCIA: UMA REPRESENTAÇÃO DO BUDISMO NA

MÍDIA BRASILEIRA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de

São João del-Rei, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da

Cultura

Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social

Orientador: Guilherme Jorge de Rezende

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Agosto de 2006

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Dedico esta dissertação a Viviane Cristina Almada de Oliveira, com quem divido

as alegrias, as esperanças e o amor em seu estado mais puro.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende, excelente orientador e grande amigo,

com quem tive a honra de conviver e com quem muito aprendi nos passos da

produção desta pesquisa. Agradeço por ter confiado em nosso objeto.

À Profª. Drª. Dylia Lysardo-Dias e ao Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção por todo o

auxílio a mim prestado, sempre com incomensurável solicitude e por suas valiosas

contribuições acadêmicas ensinando-me os caminhos da Lingüística e da Análise

do Discurso.

Aos Professores Doutores Alberto Ferreira da Rocha Júnior, Cláudio Correia

Leitão, Magda Velloso Fernandes de Tolentino e Suely da Fonseca Quintana por

estarem constantemente presentes e interessados pela dissertação.

Ao Prof. Dr. Hugo Mari, mestre presente, detentor de ímpar generosidade.

Às colegas do Programa de Mestrado em Letras da UFSJ, Adriana, Ana Lúcia,

Carla, Elisângela, Lílian, Maria Teresa e Renata pelo prazeroso convívio.

À querida Filó, por sua dedicação, atenção e carinho.

Ao Prof. Heberth Paulo de Souza. Agradeço pelos ensinamentos a mim confiados

e por sua singela e importante amizade.

A minha querida mãe Zélia, a minha querida tia Lilia, e ao meu querido irmão Eric.

Agradeço porque vocês são os melhores, os mais presentes e os mais amorosos

incentivadores.

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Ao meu pai Nicolangelo, por ter me mostrado, desde cedo, que a educação é uma

via segura.

Aos meus sogros, Aparecida e Hugo, por toda a ajuda. Sem eles eu não

conseguiria efetivar este trabalho. A eles, meu sincero muito obrigado.

A Viviane, pois, mais que esposa, é amiga, é companheira, é presente, é minha

luz e é a expressão mais singela do amor. Com ela, tudo tem mais poesia.

A minha pequena filha Ísis, por ser a fonte mais linda da minha inspiração e a

síntese da alegria mais indescritível em minha vida.

A todos os meus amigos, e em especial a Eduardo, Raquel, Rivael e David pelas

pertinentes considerações a respeito do budismo e da espiritualidade.

Ao Ishwara, ao Tao, a Bhrama, a Alá, a Júpiter, a Osíris, ou, simplesmente, a

Deus, pela misteriosa, insondável e efetiva presença.

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– Santidade, qual é a melhor religião?

Esperava que ele dissesse: “É o budismo tibetano” ou “São as religiões orientais,

muito mais antigas do que o cristianismo”. O Dalai Lama fez uma pequena pausa,

deu um pequeno sorriso, me olhou nos olhos – o que me desconcertou um pouco,

porque eu sabia da malícia contida na pergunta – e afirmou:

– A melhor religião é aquela que te faz melhor.

Leonardo Boff. Espiritualidade – Um caminho de transformação.

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RESUMO

Esta pesquisa busca identificar a representação do budismo na mídia

brasileira.

O corpus desta dissertação é composto por cinco revistas brasileiras:

Superinteressante (agosto de 2001); Época (16 de junho de 2003); Isto é (1º de

outubro de 2003); Qualidade de Vida – Budismo (abril de 2004) e SGI Quarterly

(abril – junho de 2005).

Utilizaremos como referencial teórico a noção de ‘Leitor-Modelo’ proposta

por Umberto Eco a fim de compreender como os textos postulam seus próprios

leitores. Igualmente tomaremos o conceito de ‘isotopia’ de Aldirdas Julien

Greimas, para analisar de que modo se opera a produção dos sentidos.

Outros conceitos serão importantes para a constituição da representação

daquela religião na mídia: ‘globalização’, ‘identidade’, ‘hibridismo’, ‘sincretismo’,

‘alteridade’, ‘compaixão’, ‘diálogo inter-religioso’.

Finalmente, a idéia de ‘vedetização’ extraída da obra de Edgar Morin será

relevante para entender o budismo enquanto um produto da mídia.

Analisando os textos poderemos perceber como será instituído um tipo de

‘leitor da apologia da tolerância’, quando as revistas veiculam matérias acerca do

budismo.

Palavras-chave: representação, mídia, budismo, tolerância

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ABSTRACT

This research aims at identifying the representation of the Buddhism in the

Brazilian media.

Five Brazilian magazines compose the corpus chosen to develop this

dissertation: Superinteressante (August 2001); Época (16 June 2003); Isto é (1

October 2003); Qualidade de Vida – Budismo (April 2004), and SGI Quarterly

(April – June 2005).

We will use Umberto Eco’s notion of ‘Model Reader’ to understand how the

texts postulate their own readers, as our theoretical support. We will also take

Aldirdas Julien Greimas’ concept of ‘isotopy’, to analyse in which way the meaning

is built.

Other concepts will be useful to describe the representation of this religion in

the Brazilian media, like ‘globalization’, ‘identity’, ‘hybridism’, ‘syncretism’,

‘otherness’, ‘compassion’, ‘ religions dialogue’.

Finally, the Edgar Morin’s idea of ‘vedetização’ will be important to show

Buddhism as a media product.

By analyzing the magazines’ texts we will notice how it will institute a kind of

‘tolerance apology reader’, when they publish articles about Buddhism.

Keywords: representation, media, Buddhism, tolerance

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Sumário

1. Introdução................................................................................................... 1

1.1. Modelo teórico de interpretação e análise............................... 4

2. Globalização, Identidade e Tolerância ....................................................... 11

2.1. A multiplicidade do ‘Eu’ ........................................................... 15

2.2. Diferença e Alteridade.......................................................... 19

2.3. Tolerância............................................................................. 21

2.4. Diálogo inter-religioso: movimento ao sincretismo .............. 24

3. Comunicação Globalizada ........................................................................ 32

3.1. Tempo e espaço relativizados ............................................. 36

3.2. Vedetização ......................................................................... 41

4. Da análise .................................................................................................. 46

4.1 . O budismo espetacularizado ............................................... 46

4.2. As isotopias nas revistas ..................................................... 49

4.2.1. Sincretismo / Hibridismo ...................................... 49

4.2.2. Compaixão: a alteridade no budismo .................. 60

4.2.3. Diálogo inter-religioso .......................................... 67

4.2.4. Tolerância ............................................................ 82

5. Considerações Finais ............................................................................... 96

6. Referências Bibliográficas ........................................................................ 102

7. Anexos

- Superinteressante, agosto / 2001 (capa, p. 46 – 54)

- Isto é, 1º de outubro / 2003 (capa, p. 48 – 53)

- Época, 16 de junho / 2003 (capa, p. 06, 70 – 79)

- Budismo, abril / 2004 (capa, p. 03, 09, 15, 19, 22 – 25, 28)

- SGI, abril – junho / 2005 (capa, p. 10 – 12, 18, 19, 24 – 27, 29 – 31)

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1. Introdução

O panorama cultural brasileiro, no que concerne às manifestações religiosas, tem-se

mostrado marcado por uma característica preponderante: o fato da presença do sincretismo,

aqui considerado como a fusão e/ou conciliação de religiões e, necessariamente, de suas

tradições culturais.

Em que sentido a (pós-)modernidade leva a modificações e implica

interfaces entre as expressões religiosas; de que modo podemos conceber a

constituição de identidade em relação ao tema religião; como a globalização,

enquanto processo que relativizou drasticamente as noções de tempo e espaço,

faz-se presente nos valores culturais brasileiros e, mais proximamente a nosso

objeto de estudo e nossa hipótese central: pode, efetivamente, o budismo ser

representado como uma religião tolerante aos outros credos são questões que

perpassarão a análise de nosso trabalho.

Percebe-se que o budismo se popularizou na mídia escrita e culturalmente

isso deve ser levado em conta.

Conforme o censo realizado em 2000, o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística – IBGE – indicou que há 246 mil brasileiros que se autodenominam

budistas. Até que ponto ocorreu ou não uma conversão formal não é possível de

se verificar pormenorizadamente e talvez aí mesmo comece a residir um traço de

sincretismo. Ainda segundo a pesquisa, o crescimento desses budistas foi de 4%

de 1990 a 2000. Apesar de esse número ser considerável, não será encarado

como um dado imprescindível para a elaboração da dissertação.

Teremos, sim, o intuito de explicitar que importantes são os fatos de que (a)

o budismo tornou-se um “fenômeno-produto” da mídia e (b) existem categorias

discursivas, denominadas isotopias, tais como o Sincretismo, a Alteridade e o

Diálogo inter-religioso que podem ser estudadas no discurso sobre o budismo

veiculado na mídia brasileira. Ademais, falar em tolerância e diálogo inter-religioso

acarreta reflexões e atitudes sociais e culturais e, como veremos, os autores aos

quais nos filiamos têm promovido discussões teóricas a respeito do assunto. Por

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esses motivos, acreditamos que esses pontos, os quais serão analisados,

inserem-se na via da Crítica da Cultura e nas considerações sobre discurso e

representação social.

“Com aliados famosos e best-sellers, o Dalai Lama faz crescer a simpatia

pelo budismo no Ocidente”. Com esse subtítulo, a revista Época (jun. 2003, p.

71), cuja capa estampa a figura desse líder religioso, introduz uma matéria que

aborda o crescente interesse pela religião budista no Brasil. Aqui começa a se

esboçar um ponto que merecerá atenção no processo de nossa análise: como

uma religião, originalmente oriental, começa a influenciar ou, pelo menos, ser

mostrada, para tantos indivíduos brasileiros.

É necessário aclarar que o recorte que procuraremos dar preocupa-se

eminentemente com a cultura do país na atualidade. Não teremos por finalidade

descrever a trajetória da disseminação da religião budista no Brasil, visto que

nosso enfoque não tem pretensões etnográficas, tampouco daquelas da Ciência

da Religião, que pontua com dados estatísticos – quantitativos e qualitativos –

como o budismo se instaurou no território nacional. A delimitação de nosso

trabalho permeará uma crítica da cultura no Brasil, no que concerne à

representação do budismo na mídia, em alguns de seus diferentes meios, os quais

serão analisados adiante.

Especificamente com relação ao corpus, utilizamos matérias veiculadas em

cinco revistas brasileiras, de diferentes linhas editoriais. A escolha se justificou em

vista do intuito de corroborarmos as isotopias mesmo em suportes diversificados:

Superinteressante, de agosto de 2001 (p. 46-54); Época, de 16 de junho de 2003

(p. 70-79); Isto é, de 1º de outubro de 2003 (p. 48-53); Qualidade de Vida

(especial Budismo), a partir daqui nomeada apenas Budismo (34 páginas),

veiculada em abril de 2004 e SGI Quarterly, abril-junho de 2005 (sendo por nós

denominada SGI), sobre as atividades da instituição budista Soka Gakkai

International (Edição em português, 31 páginas ). No entanto, iremos tecer alguns

comentários a respeito de outros meios midiáticos, tais como cinema (e vídeo) e

mercado literário, que abordaram o tema budismo, pois pensamos que assim

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poderemos traçar um panorama de como ele é representado socialmente, sob o

nosso ponto de vista.

Nossos objetivos serão os seguintes:

a) geral:

Analisar a construção da representação social do budismo na mídia,

especificamente em textos veiculados em revistas nacionais, tomando por base a

crítica da cultura no Brasil.

b) específicos:

1) Compreender como o discurso, por meio da ativação de Autor e Leitor

como estratégias textuais, interfere na constituição da representação social

do budismo.

2) Analisar como os enunciados nas revistas e suas circunstâncias de

enunciação contribuem para a formação de uma identidade budista.

3) Verificar em que sentido o budismo na mídia e na cultura brasileiras pode

ser representado enquanto uma religião tolerante às demais nomenclaturas

religiosas.

Como perspectiva de análise, pretenderemos perceber como os textos, por

meio de seus autores, têm como característica a postulação de um destinatário,

ao qual chamaremos leitor-modelo e que isso implica estratégias textuais que irão

objetivar a construção desse mesmo leitor. Igualmente, há traços semânticos nos

textos que são recorrentes, apontando para as chamadas ‘isotopias’. Nas revistas,

o que tem mais pertinência para nosso trabalho é estudar o processo de

instauração de um leitor-modelo que nos remonta à isotopia do discurso da

apologia da tolerância. No momento de descrevermos a nossa metodologia,

mostraremos o arcabouço teórico ao qual nos filiaremos. Apesar de nosso foco ser dado ao modo como a representação budista

pode ser construída nas bases do discurso de tolerância, analisaremos como

outros discursos (por meio das isotopias) permeiam os enunciados ora escolhidos

para o trabalho, papel em que nos colocamos no processo de cooperação

interpretativa dos textos. Para Eco (2002, p. 36), o texto possui um ‘não-dito’, ou

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seja, o que não está mostrado na superfície e é isso que deverá ser atualizado em

nossa análise, pois valoraremos sentidos que nos remetem às isotopias do

sincretismo / hibridismo, da alteridade / compaixão e do diálogo inter-religioso,

convergindo para uma isotopia maior acerca da tolerância religiosa.

Para tanto, necessária e importante se faz a abordagem de concepções tais

quais: ‘globalização’, ‘comunicação intercultural’, ‘identidade’, ‘descentramento do

sujeito’, ‘tradição’ x ‘tradução’, ‘vedetização’ e ‘espetacularização’.

Nesse sentido, iremos nos filiar basicamente em Umberto Eco (1997, 1998

e 2002), Stuart Hall (2003), Michel Foucault (1997), Leonardo Boff (2001), John B.

Thompson (1998), Edgar Morin (1987), Roger-Gérard Schwartzenberg (1978),

José Jorge de Carvalho (1991 e 2000), passando ainda pelas considerações

teóricas de Jacques A. Wainberg (2005), Enrique Sánchez Ruiz (2000), Ben H.

Bagdikian (1993) e Douglas Kellner (2006).

1.1. Modelo teórico de interpretação e análise

O arcabouço teórico em que iremos nos filiar é proposto por Umberto Eco,

em Lector in Fabula (2002). Ao longo da obra, o autor explicita a aplicação de seu

quadro tendo como referência a noção de texto, não se restringindo somente à

categoria narrativa e por isso pretendemos utilizá-lo na análise dos textos

extraídos das revistas, ora recortadas como corpus para esse trabalho.

Segundo Eco (2002, p. 35), um texto representa uma cadeia de artifícios de

expressão que devem ser atualizados pelo destinatário. Nesse sentido, existe uma

mecânica de cooperação interpretativa do texto, por parte do leitor.

Para ele (op. cit. p. 36), um texto teria necessariamente uma maior

complexidade que outros tipos de expressão, principalmente pelo fato de ser

perpassado por um ‘não-dito’, que seria aquilo não manifestado em superfície, a

nível de expressão: mas é justamente este não-dito que tem de ser atualizado a

nível de atualização do conteúdo. Para tanto, necessários são os movimentos

cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor.

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O texto teria determinados “espaços brancos” a serem preenchidos por dois

motivos: primeiramente, pela característica de ser um mecanismo econômico que

vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu e em segundo

lugar, pelo fato de que o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa (op.

cit. p. 37). Será desse modo que postularemos nosso trabalho de interpretação

com relação aos enunciados e às matérias veiculadas nas revistas. Nossa busca é

por esse “não-dito”, que não foi expresso na superfície do texto, mas que traz seus

sentidos no âmbito do implícito.

Relevante é ainda mencionar que para Eco, um texto apontará o próprio

destinatário como condição indispensável não só da própria capacidade concreta

de comunicação, mas também da própria potencialidade significativa (op. cit. p.

37).

O texto teria, pois, a capacidade de prever o leitor, na medida em que o

produtor (emitente ou autor, para Eco) executará uma estratégia de que fariam

parte as previsões dos movimentos de outros (op. cit. p. 39).

Assim, os textos instituem, mesmo que implicitamente, o que Eco chama de

LEITOR-MODELO. Às vezes, aludida estratégia é clara. Ele fala que podemos

fornecer sinais de gênero que selecionam a audiência: / Queridas crianças, era

uma vez um país distante.../, podemos restringir o campo geográfico: /Amigos,

romanos, concidadãos!/ (op. cit. p. 40). A previsão do LEITOR-MODELO não deve

ser entendida apenas como a suposição de que esse leitor exista, mas refere-se a

mover o texto de modo a construí-lo (op. cit. p. 40, grifos nossos). Essa

perspectiva é fundamental para alcançarmos nossos objetivos na pesquisa,

sobretudo para entendermos em que sentido o budismo na mídia brasileira pode

ser representado como sendo uma religião que exerce a tolerância com relação a

outros credos, já que, a nosso ver, são instituídos LEITORES-MODELO, que nos

remontam ao próprio discurso de tolerância, bem como aos de alteridade,

hibridismo, sincretismo, pluralidade cultural e diálogo inter-religioso.

Tomando por base os textos das revistas, procuraremos, então, verificar de

que forma os enunciados ditos por Dalai Lama fixam o LEITOR-MODELO da

tolerância religiosa e, evidentemente, isso repercute na cultura como um valor

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simbólico. Pretenderemos compreender de que modo esse líder, os demais

dirigentes religiosos, os entrevistados e os próprios autores das matérias das

revistas vão instituindo esse tipo de LEITOR-MODELO.

No que concerne mais detidamente ao Dalai Lama, pretenderemos analisar

como ocorre essa construção de leitor. No caso dele, pensamos com Eco (op.cit.

p.41) que certos autores conhecem com perspicácia sociológica e com brilhante

mediedade estatística o seu leitor-modelo (...) e farão com que todo termo, que toda maneira de dizer, que toda referência enciclopédica, seja aquilo que previsivelmente o seu leitor pode entender. Empenhar-se-ão no sentido de estimular um efeito preciso.

Principalmente nas investidas que fizermos comparativamente das obras literárias

do Dalai Lama com seus enunciados nas revistas, observaremos de que forma se

dá a escolha das palavras e o já mencionado ‘não-dito’ que sinaliza a

possibilidade de inferirmos um discurso de tolerância e, muito correntemente, da

necessidade do diálogo inter-religioso. Isso porque nosso processo hermenêutico

irá fundamentar-se numa dialética entre estratégia do autor (dos textos e

enunciados explicitados nas revistas) e resposta do LEITOR-MODELO. Sendo

que, tanto aquele quanto este, serão considerados como estratégias textuais (op.

cit. p. 44). Eco cita um exemplo que pode auxiliar na análise: Vejamos este trecho extraído das ‘Investigações Filosóficas’, de Wittgenstein (...): Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Entendo com isto jogos de xadrez, jogos de baralho, jogos de bola, competições esportivas, e assim por diante. O que é comum a todos estes jogos? – Não diga: “deve haver alguma coisa comum a todos, porque, se assim não fosse, não se chamariam ‘jogos’ ” (...) Todos os pronomes pessoais (implícitos ou explícitos) não indicam absolutamente uma pessoa chamada Ludwig Wittgenstein ou um leitor empírico qualquer: representam também estratégias textuais. A interferência de um sujeito falante é complementar à ativação de um Leitor-Modelo cujo perfil intelectual só é determinado pelo tipo de operações interpretativas que se supõe ( e se exige ) que ele saiba executar: reconhecer similaridades, tomar em consideração certos jogos... Do mesmo modo, o autor não é senão uma estratégia textual capaz de estabelecer correlações semânticas: / entendo.../ (...) Neste texto, Wittgenstein não é outra coisa senão um ‘estilo filosófico’ e o Leitor-Modelo não é senão a capacidade intelectual de compartilhar este estilo, cooperando para atualizá-lo.

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Especificamente no que tange ao nosso corpus, buscaremos investigar o

processo no qual é representado o Dalai Lama e de que modo se instaura o

Leitor-Modelo da apologia da tolerância religiosa. Conforme Eco, a cooperação

textual é fenômeno que se realiza (...) entre duas estratégias discursivas e não

entre dois sujeitos individuais (op. cit. p. 46). Entretanto, como o próprio Eco

afirma, não podemos esconder o peso que adquirem as ‘circunstâncias de

enunciação’, levando a formular uma hipótese sobre as intenções do sujeito

empírico da enunciação, ao determinar a escolha de um Autor-Modelo (op. cit. p.

48, grifos nossos). Não é possível, nem indicado, que nos distanciemos do sujeito

empírico Dalai Lama e tampouco do contexto sócio-histórico em que se deram as

circunstâncias enunciativas dos textos que serão analisados. No que tange à

globalização, iremos enfocar como os poderes político, econômico e simbólico

fazem parte preponderante de nossa pesquisa, mesmo porque esse contexto

influenciará relevantemente na configuração do estudo sobre a crítica da cultura.

Por isso, ponto crucial para a elaboração da dissertação é entender essa dupla

sinalização:

a) análise das estratégias textuais, levando-se em conta o Autor-Modelo e o

Leitor-Modelo, com os resultados da valorização e atualização de novos

sentidos para os textos, momento no qual os sujeitos empíricos não são

considerados;

b) compreensão do modo como os discursos a que os textos se remetem

repercutem teórica e socialmente sob o ponto de vista de uma crítica da

cultura.

Dessa forma, levando em consideração o discurso e o contexto sócio-

histórico em que foram veiculadas as matérias das revistas, teremos o fim de

compreender a constituição da identidade budista e a conseqüente representação

social dessa religião na cultura brasileira.

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As isotopias de Greimas

Igualmente fundamentais para a metodologia utilizada nesta dissertação e

para o processo de análise são os estudos de Greimas (1966) e Greimas e

Courtés (1979).

Um texto não se configura por um emaranhado de palavras. Imprescindível

se faz que haja uma unidade de sentido, ou em outras palavras, um conteúdo

semântico global. Somente dessa maneira é possível afirmar que um texto pode

ser tratado como coerente. E é, pois, essa coerência semântica alcançada por

meio das chamadas ‘isotopias’.

Conforme Greimas (1966, p. 72,73), (...) uma mensagem ou uma seqüência qualquer do discurso só podem ser consideradas como isotópicas se possuírem um ou mais classemas2 em comum.

Pelo menos duas unidades são necessárias para existir o conceito de

isotopia, visto que ela se refere à recorrência ou redundância de traços

semânticos ao longo do texto (ou dos textos), uma vez que Greimas (op. cit. p. 73)

propõe que textos inteiros se encontram situados em níveis semânticos

homogêneos e nesse sentido, buscaremos explicitar como se dá a interação entre

os textos das revistas analisadas, com o objetivo de verificar como se operam as

isotopias). Característica intrínseca do discurso é a pluralidade de interpretações,

de leituras. Por esse motivo, Greimas (1975, p. 22) afirma que é justamente a

isotopia que permite superar os obstáculos opostos à leitura pelo caráter

polissêmico do texto manifestado.

Numa ampliação ao conceito de isotopia, Greimas e Courtés (1979, p. 246)

assinalam que é necessária a recorrência de categorias sêmicas, sendo estas

temáticas (ou abstratas) ou figurativas.

Nessa perspectiva, há, basicamente, dois percursos de construção do

sentido. No primeiro, existe a ocorrência de ‘figuras’ (um conteúdo dado, quando

este tem um correspondente no nível de expressão da semiótica natural (ou do 2 Na terminologia da análise sêmica, o conjunto de semas (traços semânticos, unidades mínimas de significação) genéricos que identificam a classe de conceitos à qual um conceito específico pertence.

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mundo natural), de acordo com GREIMAS e COURTÉS, op. cit. p. 187, 188). As

figuras são, pois, palavras concretas que fazem referência ao mundo ‘real’

(realidade esta do universo discursivo). Nesse nível de leitura, denominado

figurativo, tem-se o objetivo de representação da realidade. Como exemplo, se

fazemos alusão aos vocábulos ‘sol’, ‘ondas’, ‘mulheres de biquíni’, ‘homens de

sunga’, partimos para uma operação de abstração, que nos remete ao segundo

percurso de leitura, o temático (componente temático (ou abstrato), GREIMAS e

COURTÉS, op. cit. p. 188), o qual pode sugerir a possibilidade de ‘um dia de

praia’. Greimas e Courtés (op. cit. p. 188) citam outro exemplo: o tema “sagrado” pode ser assumido por figuras diferentes, tais como a do “padre”, do “sacristão” ou do “bedel”: nesse caso, o desdobramento figurativo da seqüência se encontrará afetado por elas; os modos de ação, os lugares e o tempo em que esta deverá realizar-se, de acordo sempre com a figura inicialmente escolhida, diferirão entre si nas mesmas proporções.

Dessa forma, podemos observar a isotopia, enquanto a reiteração de

‘figuras’ e / ou ‘temas’ no decorrer do (s) texto (s) e verificaremos nas revistas,

objeto do corpus de nossa pesquisa, em que sentido é possível, por meio de

leituras, ora no nível figurativo, ora no temático, ora em ambos, alcançarmos as

propostas isotopias do sincretismo / hibridismo, da alteridade, do diálogo inter-

religioso e da tolerância religiosa do budismo com relação a outros credos.

Não poderia deixar de ser citado nesta metodologia de análise o conceito

de ‘formação discursiva’ pela proximidade que guarda com a noção de isotopia.

Robin (1973, p. 88) menciona que o discurso é sempre relacionado a suas

condições de produção e que essa Lingüística do discurso integra ao seu objeto tudo o que ultrapassa a simples lógica da comunicação denotativa. Pretende estar atenta ao universo conotativo da linguagem, ao jogo das implicações e das pressuposições, a tudo enfim que está no campo da enunciação.

Na seqüência, Robin (op. cit. p. 95) retoma Michel Focault afirmando que o

discurso será o conjunto dos enunciados enquanto no âmbito da mesma formação

discursiva, definindo-se para cada empreendimento (discursivo) as regras de

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formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos e das

escolhas teóricas1.

Gregolin (2004, p. 90) aborda a questão trazendo o conceito de formação

discursiva, na concepção de Focault: Sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva.

No que concerne à nossa perspectiva de análise, serão, pois, propostas as

concepções teóricas de Umberto Eco (2002), Greimas (1966), Greimas e Courtés

(1979), Stuart Hall (2003), Leonardo Boff (2001), John B. Thompson (1998), Edgar

Morin (1987), José Jorge de Carvalho (1991 e 2000), bem como as obras de

Tenzin Gyatso, o Dalai Lama (1998, 2000, 2001 e 2004), que servirão de

referência para compreendermos pontos da doutrina budista, aos quais os textos

das revistas se remetem explícita e implicitamente.

2. Globalização, Identidade(s) e Tolerância

1 O assunto é tratado detalhadamente em FOCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

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Como religião, o budismo é milenar. Siddharta Gautama, o príncipe que

abandonou o palácio paterno na Índia Central, mais tarde considerado um Buda

(etimologicamente a palavra vem do particípio passado do verbo sânscrito budh,

que significa ‘iluminado’ ou ‘desperto’) nasceu em 563 a.C. e hoje influencia o

pensamento de um número aproximado de 400 milhões de pessoas.

No Ocidente, o budismo somente chegou no século XIX, via imigrantes chineses e

japoneses e, posteriormente, foi sendo difundido pelos mestres da corrente Zen. Outro fator

importante para o seu crescimento foi a invasão chinesa no Tibete, em 1959, em que muitos

mestres budistas migraram para a América e criaram centros de meditação.

Dessa forma, percebe-se que a religião, no Brasil, é relativamente recente. Com

relação ao nosso objeto de estudo, a representação do budismo na mídia brasileira,

observamos que, antes de 1999, a circulação do budismo não era muito extensa. Em março

de 1968, por exemplo, a Revista Mensal de Cultura – Enciclopédia Bloch – trazia em sua

capa um monge budista com o título Segredos e Mistérios do Budismo. Em seu interior, 8

páginas foram destinadas ao assunto. Destacamos o fato de, desde aquela época, haver

missionários budistas no Brasil, como era o caso do autor da matéria e monge Ven

Piyadassi Maha Thera, do Ceilão, que estava propagando a religião no Rio de Janeiro (p.

55)

Apesar de nosso foco ser o de abordar a representação do budismo na mídia na

contemporaneidade (iremos mencionar revistas que circularam a partir de 2001),

observamos que, já nessa matéria há um momento no qual podemos inferir um sentido de

tolerância nessa religião:

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Buda não fazia distinção de castas, clãs ou classes quando comunicava o Dhamma2. Homens e mulheres de diferentes setores da vida, o pobre e o necessitado, o mais baixo e o mais perdido, o letrado e o iletrado, aristocratas, brâmanes e parias, príncipes e mendigos, santos e criminosos – todos ouviam aquele que mostrava o caminho da paz e da iluminação (p.59)

Nesse momento histórico (1968), ainda não se podia falar em um budismo

brasileiro. Isso é percebido pela própria contextualização feita pelo monge, autor

do artigo: ele não fala da religião no país, mas sim da época de seu fundador.

Também a nomenclatura usada é típica da Índia: ‘castas’, ‘clãs’, ‘brâmanes’,

‘párias’, ‘príncipes’. Interessante é perceber como essa enumeração aglomera

diferentes setores da sociedade indiana, o que leva o leitor a já inferir que no

budismo há soma de diferentes posturas políticas e ideológicas e que tais

distinções não são importantes para os membros da religião. Em outras palavras:

‘não importa quem seja você, o que importa é conhecer o budismo’.

Somente a partir da década de 90 a religião começou a ter uma maior

circulação na mídia brasileira. Primeiramente, porque em 1989 Tenzin Gyatso, o

XIV Dalai Lama ganhou o prêmio Nobel da Paz. No ano de 1999, esse

representante do budismo tibetano e uma das figuras mais respeitadas por todos

os ramos da religião visitou o Brasil pela segunda vez (em 1992 ele participou da

Conferência ECO 92) e se transformou num fenômeno editorial no país. Aqui

começa, no nosso ponto de vista, um dos papéis cruciais da globalização:

promover a conexão, a mistura de diferentes povos. Somente seria possível que

um monge tibetano começasse a ser conhecido de forma expressiva no Ocidente

– e especialmente no Brasil – se considerarmos não a concepção do ‘local’, mas

do ‘global’.

Stuart Hall (2003, p. 67) afirma que o que estava tão poderosamente

deslocando as identidades culturais nacionais no fim do século XX era um

complexo de processos e forças de mudança, que, por conveniência poderia ser

sintetizado sob o termo globalização.

2 Dhamma ou Dharma refere-se à doutrina budista.

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Ao longo de nosso trabalho, procuraremos desenvolver a idéia de que a globalização

implica uma transformação da concepção de sociedade enquanto um sistema organicamente

delimitado de maneira fechada para um processo de comunicação e mistura de novas

comunidades, amplamente heterogêneas.

Especificamente tendo por base a cultura nacional, iremos fazer uma leitura da

mídia que representa o budismo (brasileiro) como religião que considera a

necessidade intrínseca do convívio plural, sobretudo com indivíduos de outros

credos e para isso faz uso de estratégias discursivas que serão estudadas na

elaboração do trabalho.

Ainda conforme Hall (op. cit. p. 69), desde os anos 70, a globalização

cresceu amplamente, acelerando os fluxos e os laços entre as nações o que nos

levou à conseqüência de que as identidades nacionais começaram a se diluir,

dando cabo a novas identidades – ‘híbridas’, fato que retomaremos

detalhadamente em nossa dissertação.

Percebemos que, hoje, fala-se de budismo, uma religião originalmente

oriental (iniciada na Índia, em seguida difundida na China, Vietnã, Coréia, Japão,

Tailândia etc) aqui no Brasil de uma maneira recorrente e isso se deve à agilidade

da informação e à conexão de comunidades e organizações em novas

combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em

experiência, mais interconectado (HALL, op. cit. p. 67)

Hall (p. 70) cita Harvey (1989, p.240), o qual diz que À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia “global” de telecomunicações e uma “espaçonave planetária” de interdependências econômicas e ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e à medida em que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais.

O importante nesse sentido de entender a globalização é que o budismo do

Tibete, tal qual concebido pelos praticantes desse país, não nos chega de forma

original, intocada.

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A questão do sincretismo (à qual iremos nos deter mais detalhadamente

adiante) é veiculada na mídia ao se representar o pensamento budista.

Repetidamente, os líderes dessa religião mencionam a necessidade de se

conviver de modo harmônico com os povos de diferentes credos. Embora nosso

estudo se concentre nas revistas, vemos essa preocupação de modo recorrente

em outros textos do Dalai Lama. Em Uma ética para o novo milênio (2000), ele

enfatiza que uma revolução se faz necessária. Mas não política, econômica ou

tecnológica. É proposta uma revolução espiritual, apesar de ele dizer que isso não

pressupõe uma solução religiosa. Meus encontros com inúmeros tipos de pessoas pelo mundo afora, porém, ajudaram-me a perceber que há outras crenças e outras culturas que, tanto quanto as minhas, podem fazer com que os indivíduos levem vidas construtivas e satisfatórias. E mais: cheguei à conclusão de que não importa muito se uma pessoa tem ou não uma crença religiosa (p. 29).

As palavras por ele escolhidas buscam a todo momento fazer alusão ao tema do

diálogo inter-religioso e, evidentemente, ele demarca a forma de ler e ativa o discurso da

tolerância.

Na revista Budismo (2004, p.24) há um texto em que se diz que,

diferentemente do que ocorre em algumas religiões, os ditos mestres budistas

acreditam que as pessoas não devem depender do monge, do lama ou do

budismo para ter fé – devem se voltar para espiritualidade por si só.

Essa é uma concepção que se remonta a discursos atribuídos ao próprio

Buda. Conforme a tradição, ele afirmava que, se praticados os seus

ensinamentos, o indivíduo deveria se fiar em si mesmo. Em A doutrina de Buda

(2000), Bukkyo Dendo Kyokai, responsável pela Fundação para propagação do

Budismo, menciona o que seria, supostamente, o último sermão de Siddharta

Gautama, no qual ele fala àqueles que o escutam: Fazei de vós mesmos uma luz.

Confiai em vós mesmos: não dependais de ninguém (p. 20).

Um outro livro do Dalai Lama, composto por uma compilação de

conferências, que levou o título de Amor, verdade, felicidade, aborda também essa

questão:

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A comunicação ou a troca constante com as outras religiões é necessária. Esta manhã na última Conferência Mundial sobre Religião, em Nova Délhi, eu disse que, para que a verdadeira harmonia se desenvolva, deveriam ser realizadas reuniões constantes (p. 93).

O sincretismo, entendido enquanto a conciliação e / ou fusão de diferentes

doutrinas, não é uma preocupação solitária dos discursos do budismo

representado em revistas. Laurence Freeman, monge beneditino inglês, abordou a

meditação, prática considerada unicamente de correntes orientais, em entrevista à

Superinteressante (novembro de 2002, p. 86,87). A jornalista Maria Fernanda

Vomero, dirigindo-se ao monge, afirmou: O senhor é um grande defensor do

diálogo inter-religioso. Um exemplo foi o programa The way of peace (O caminho

da Paz), com o Dalai Lama e, em seguida, perguntou: Como o senhor avalia a

experiência? Freeman disse que foi um programa que durou três anos, de 1998 a 2000. Queríamos explorar o diálogo entre budistas e cristãos, por meio da meditação, em três diferentes caminhos: uma peregrinação, um retiro espiritual e um trabalho conjunto pela paz. No primeiro ano, estivemos com o Dalai Lama em Bodhgaya, na Índia, um lugar sagrado para o budismo. No ano seguinte, o diálogo foi um retiro na Itália. E, por fim, fomos a Belfast, na Irlanda do Norte, refletir sobre a amizade entre as religiões e o processo de paz. Quisemos mostrar que a amizade espiritual entre budistas e cristãos, via meditação, podia colaborar para a solução dos conflitos entre católicos e protestantes. Em outras palavras, a amizade espiritual, em profundidade, contribui de modo poderoso para a paz entre as pessoas. Acho que fomos bem-sucedidos. Tivemos encontros com políticos, líderes religiosos, jovens e vítimas da violência. O Way of peace continua com encontros anuais, quando refletimos sobre a ligação entre a meditação e o processo de paz. Tentamos mostrar que a violência não leva a lugar algum.

Essas reflexões e manifestações de líderes religiosos e intelectuais são de algum

modo, discursos de resistência a regimes (sejam políticos, religiosos etc) que buscam

ditatorialmente se fazer valer pela força. Hall (op. cit. p. 91) afirma que

algumas pessoas argumentam que o “hibridismo” e o sincretismo – a fusão entre diferentes tradições culturais – são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura

e, desse modo, entendemos que essa representação atual do budismo pode colaborar para a

produção de discussões acerca de um novo processo cultural no Brasil: o de uma identidade

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budista dispersa, múltipla, a qual pode significar uma heterogeneidade típica de um sujeito

descentrado.

2.1. A multiplicidade do ‘Eu’

Hall (op. cit. p. 34) indica que as identidades modernas atualmente estão

fragmentadas e que isso se deve ao deslocamento do próprio sujeito, que ocorreu

através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno. Para

ele, houve cinco descentramentos do sujeito cartesiano, entendido como aquele

detentor da razão, localizado no centro do conhecimento. O primeiro refere-se às

tradições do pensamento marxista; o segundo à descoberta do inconsciente por

Freud; o próximo ao trabalho do lingüista estrutural Ferdinand de Saussure; o

quarto ao trabalho do filósofo e historiador francês Michel Foucault e o último ao

impacto do feminismo.

Interessa-nos a abordagem de Foucault para percebermos como opera seu

descentramento do sujeito associado às questões – discursivas – de tolerância.

Em A Arqueologia do Saber (1997), Foucault aponta para a necessidade de

nos libertarmos de toda noção que nos remeta ao tema da continuidade. Apesar

de ele tratar de práticas discursivas constitutivas do conhecimento em uma

ciência, mais precisamente nos discursos das ciências humanas (tais como a

medicina, a psiquiatria, a economia e a gramática), pensamos ser possível

perceber que o sujeito, segundo esse autor, deve ser entendido enquanto um

sujeito disperso, constituído por diversos ‘eus discursivos’. Dessa forma, não

podemos colocá-lo numa estrutura fixa, estática porque sua identidade tem de

levar em consideração sua historicidade. Ora, se o sujeito em si é disperso, não

podemos falar de uma identidade original, pura, que constitui e representa

somente um povo. Objetivaremos ver, como é possível tratar a questão da

identidade budista representada nos textos das revistas, inserida no contexto

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social brasileiro; formada por diferentes indivíduos que absorvem, de distintas

maneiras, os preceitos de uma doutrina.

Nosso objetivo não é, pois, estudar o conteúdo das normas religiosas, mas,

sim, perceber como o tema da tolerância é recorrente quando se faz alusão ao

budismo na mídia brasileira, embora sejam necessárias certas investidas nos

preceitos dessa religião a fim de compreendermos sua representação.

O cânone budista trata o ‘eu’ como uma ilusão criada pela mente. Kyokai

(2000) menciona que o homem, levado por sua ignorância, apega-se ao seu “ego”

e, conseqüentemente, entranha-se cada vez mais na própria tristeza e

lamentação, as quais também são produtos da mente. Continua dizendo que o

homem faz de seus atos o campo de satisfação do ego (p.47). Segundo o

budismo, tudo é transitório e a mente é também inconstância e sofrimento, nada

possui que possa ser considerado um ‘eu’ (p.48). A esse respeito, a revista

Galileu, de outubro de 2002, deu destaque ao assunto, e cuja matéria de capa

estampou o título Você é uma ilusão - as ciências da mente chegam à idéia central

do budismo.

Já no texto, assinado por Pablo Nogueira, o título faz alusão a Descartes,

parodiando sua célebre frase: Penso, logo não existo (grifo nosso).

O trecho a seguir ilustra essa questão da multiplicidade de eus: Na verdade, nossa mente abrigaria uma profusão de diferentes ‘eus’, que disputam espaço entre si, executam ações especializadas sem que saibamos e, mais impressionante, nos mantém na ilusão de que somos ‘apenas um’ (p. 14).

Essa assertiva é atribuída a cientistas e pesquisadores das áreas de

neurociêcias, psicologia, filosofia da mente e ciências cognitivas. Em seguida,

menciona-se que ensinamentos semelhantes sobre a natureza humana têm sido

difundidos por várias correntes do pensamento oriental e, especificamente, do

budismo.

Daniel Dennet, neurocientista americano, é citado neste artigo por Nogueira

que fala que temos uma falsa imagem pré-concebida da mente como uma espécie

de teatro; as imagens e idéias se sucedem em nossa cabeça e nós a olhamos “a

distância”, exatamente como faz o espectador na platéia. (p. 17) Haveria uma

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suposta organização nesse processo. Mas o que percebemos, segundo esse

texto, é que há uma constante sucessão de idéias, lembranças, sensações,

projetos, sentimentos. (p.17) que busca ter supremacia na nossa consciência;

tudo isso acontecendo de forma não linear. Esse EU unificado e racional seria

apenas um conceito.

O filósofo paulista João de Fernandes Teixeira, professor da Universidade

Federal de São Carlos, que trabalhou com Dennet, afirma que criamos esses

conceitos por diversos motivos: primeiramente pelo funcionamento do cérebro que

proporciona a sensação de que as coisas estão dentro de nós (embora as

imagens das coisas é que são geradas). Segundo, porque passamos

constantemente por transformações químicas, físicas e ambientais e essa

concepção de um EU único nos faz pensar que somos os mesmos, sempre.

Finalmente, porque a idéia de unificação do EU possibilita que pessoas sejam

responsabilizadas jurídica e eticamente por suas atitudes e isso viria a sustentar o

conceito de cultura.

Ao se pensar em um ‘eu’ contínuo e único, temos a forte propensão de

recair numa concepção de cultura única e isso, por si só, já beiraria ao risco de

xenofobia ou, até mesmo, a eugenia.

Ainda nessa matéria, o biólogo chileno Francisco Varela, estudioso das

ciências cognitivas, textualmente fala que: Todas as tradições reflexivas da história da humanidade – filosofia, religião, ciência, psicanálise, meditação – desafiaram o sentido ingênuo de ‘self’ (termo que significa senso de identidade). Nenhuma afirmou ter descoberto um ‘self’ independente, fixo ou unitário. Acreditamos que as doutrinas budistas da ausência de ‘self’ e do não-dualismo podem dialogar com as ciências cognitivas, pois a doutrina do ‘self’ retratado no cognitivismo. (p.20)

Professor de história da USP aposentado e reverendo budista da tradição

Terra Pura, Ricardo Mário Gonçalves, igualmente, vê uma similaridade entre

estudos das ciências cognitivas e o pensamento central do budismo, nessa revista

ele fala: A postura básica do budismo em relação ao Eu é que se trata de uma

ilusão resultante da união de vários fatores agregados e está em contínua

transformação. (p.20)

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Para a monja Coen, responsável por um espaço da corrente zen-budista e

personagem que será posteriormente retomada em nossa pesquisa, Aquilo que

chamamos de Eu é como uma colcha de retalhos feitas de coisas que fomos

pegando e criando e depois taxamos de nossa personalidade, nossa identidade”.

(p. 21)

Nesse ponto do nosso trabalho, a respeito do descentramento do sujeito ou do “Eu”

quisemos, não fazer uma aproximação identicamente coincidente entre ciência, filosofia e

budismo, mas simplesmente levantar hipóteses. Devido ao assunto ser relativamente novo

(Hall faz alusão ao primeiro descentramento remontando-se ao pensamento marxista, que

teve sua origem apenas no século XIX) não é nosso intuito esgotá-lo nem oferecer uma

conclusão definitiva, porém questionar a noção de uma identidade fixa, que pode tender a

considerar a si própria como a mais adequada ou a melhor. Remetemo-nos, desse modo, à

possibilidade de uma convivência plural, sobretudo religiosa, por ser o objeto de nosso

estudo a representação isotópica da tolerância no discurso da mídia, no que diz respeito ao

budismo.

2.2. Diferença e alteridade

No nosso ponto de vista, pensamos que somente é possível falarmos em

tolerância, se passarmos a uma reflexão do papel do outro, do diferente. Também

teremos o objetivo de perceber como há uma isotopia da alteridade em

determinados enunciados das revistas. Na medida em que se questiona noções

prontas e acabadas de identidade (seja ela cultural ou religiosa) e passa-se a

refutá-las para deixar emergir novas identidades heterogêneas, pode-se,

conseqüentemente, pensar em tolerância.

Para o budismo, toda verdade é relativa. Isso é veiculado na revista

Superinteressante (agosto de 2001), na qual Gimenez diz que para o Dalai, não

existem verdades absolutas (p.50) e, a seguir, há uma citação dele próprio: Não

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existe nada absoluto, tudo é relativo, por isso devemos julgar de acordo com as

circunstâncias (p.52). Gimenez alega que, segundo ele, a mente humana teria a

tendência de elevar as próprias idéias à condição de verdades incontestáveis e o

sujeito se enche de argumentos que o levam a tomar determinadas atitudes a

partir do seu ponto de vista unilateral, desconsiderando a trajetória dos outros

envolvidos (p.53)

O desejo de elevar as experiências ao patamar de verdades absolutas

tende a obstruir a pluralidade cultural a qual tem sido discutida neste trabalho.

Desse modo, para que se lance vistas à tolerância há o requisito imprescindível de

se levar em conta as diferenças e a noção de alteridade.

Ao falar sobre ‘identidade’, Hall argumenta que em vez de tratá-la como

uma coisa acabada, deveríamos falar de ‘identificação’ e considerá-la como um

processo em andamento. Diz ainda que a identidade surge não por sua plenitude

que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros (op. cit. p. 39, grifo nosso).

Eco (1998, p. 95) enfatiza que assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir, não é possível entender quem somos sem o olhar e a resposta do outro.

A preocupação de lançar a atenção ao “outro” é representada no discurso

budista. O Dalai Lama, na obra O mundo do budismo no Tibetano (2001),

expõe o que vem a ser a meditação para cultivar “Bodhcitta” ou a aspiração à

iluminação para o bem de todos os seres e diz que as técnicas para esse cultivo

são explicadas segundo o método que consiste em equiparar o “nós” e os “outros”,

e intercambiá-los (p. 127). Em seguida, cita a importância de dissolver a atitude

que considera a nós mesmos como sendo separados e distintos dos outros (p.

128). Nessa religião, acredita-se que há uma cadeia de causas e conseqüências

nos atos de todas as pessoas e que, nesse sentido, os outros são uma

continuação de nós a ponto de não haver separação entre nós e eles. Essa é a

visão radical que acentua a questão da alteridade: o outro não é apenas levado

em consideração, mas é parte de nós.

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Na revista O Globo, de 28/11/04, é tratada essa concepção da

alteridade. Com o título Lama à brasileira, a matéria de Márcia Cezimbra aborda

também a já mencionada ‘bodhcitta’, que estaria sendo considerada por

psicanalistas que vêm, tais como Jurandir Freire Costa e Benílton Bezerra Jr., que

vêm buscando no budismo novas maneiras de ser mais solidário e compreender

os outros.

Ex-professor de Física Quântica da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul – UFRS, o gaúcho lama Padma Samten se reuniu com dezenas de

psicanalistas no seminário “Em torno da questão do ‘self’”, num auditório da PUC,

do Rio de Janeiro (a data não foi divulgada pela revista). Ele comenta nessa

matéria que o ponto central do budismo consiste na capacidade de olhar para o

outro e oferecer alguma coisa (p. 22), haja vista que não temos existência

sozinhos, mas vivemos em processos de relação. Também lançou o livro O lama e

o economista, escrito em conjunto com o economista Vitor Caruso Jr., da

Universidade de São Paulo – USP, no qual criticam o sistema neoliberal e a

cultura contemporânea. Ele finaliza comentando que as escolas deveriam ter

disciplinas ‘psis’ como felicidade, como ser feliz nas relações com os outros e

consigo mesmo (p.23)

Não vamos entrar em juízos de valor sobre o que é ou não felicidade, pois

esse é tampouco o objeto de nosso estudo.

2.3. Tolerância

Entendemos a tolerância enquanto uma postura de aceitação, respeito e

reconhecimento das diferenças originadas pela presença do outro, ainda que haja

discordância acerca de sua maneira de pensar ou agir. Para Rouanet, tolerância é

uma passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio

das diferenças (FSP, 09/02/03).

A revista Superinteressante de março de 2002 (que não está

especificamente em nosso corpus) trouxe estampada na capa a imagem de Buda

em posição de meditação, tamanha a ênfase que quis ser dada ao tema. Nela,

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vemos a descrição da história do fundador da religião por Caco de Paula. À página

40, há uma frase em destaque: Não existe religião mais tolerante, nem menos

fundamentalista.

A monja Coen dá um depoimento à revista (p. 46), dizendo que como as técnicas (do budismo e, especificamente, da meditação) funcionam independentemente da religião de quem as pratica, tem despertado o interesse também dos judeus, cristãos e muçulmanos.

Observa-se uma representação – explicitada por uma religiosa – que o

budismo pode ser praticado por pessoas que professam outra religião. Isso

igualmente estampa a identidade como sendo um conceito perpassado pelo

hibridismo. Conforme o modo de construção do significado, não há, pois, uma

identidade budista porque não se pode enquadrar o praticante dessa religião de

um modo ortodoxo ou estanque. Ele não tem que abdicar de suas convicções

religiosas para praticar determinados procedimentos aí ensinados, mas, em vez

disso, incorpora-os ao seu cotidiano remetendo-se à idéia de heterogeneidade.

Um exemplo de como ocorre essa identidade híbrida é o caso da monja

zen-budista Adriana Thomaz que, de acordo com a matéria da revista Oi, de

outubro / novembro de 2004, de autoria de Ronaldo Villardo, gosta de forró, faz

‘spinning’, tem duas filhas, namora e é médica acupunturista pela Universidade de

Sorbonne, na França. Quem imagina um religioso 24 horas por dia em estado de

contemplação ou meditação poderia se surpreender com a figura da monja

Adriana. Hoje não há possibilidade de fixar uma identidade cultural (nem religiosa)

como sendo única, estável e imutável, não há que se buscar uma pureza, nem

originalidade para taxarmos de uma só maneira a questão da identidade.

Também capa da revista Isto é, de 1º de outubro de 2003, o assunto

budismo é posto em destaque. Com o título “Além do templo”, ela menciona que a

religião abrirá a primeira universidade budista da América Latina. Alguns

enunciados dessa revista serão retomados no momento do resultado das análises,

sob a perspectiva de estudar as isotopias percebidas nos outros textos

constituintes do corpus, já que aqui são citados apenas a título de exemplificação.

Segundo o especialista Frank Usarski, professor de pós-graduação em

Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica – PUC de São Paulo, é o

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caráter não proselitista do budismo que pode ser o responsável pelo seu

crescimento no Brasil e aí incluímos a notoriedade da concepção de tolerância.

Ele pensa que a falta de compromisso com uma única doutrina é uma

característica básica do budismo na cultura brasileira:

Muitas vezes, o praticante freqüenta um templo durante um ou dois anos, abandona por determinado período e volta a visitá-lo sem constrangimento. Milhares de brasileiros praticam meditação e adoram os livros do Dalai Lama, mas continuam indo a missas ou cultos (p. 51)

Existe, de alguma maneira, a veiculação de um discurso de preocupação

com a promoção do ser humano para que este venha a ter acesso a recursos nas

esferas sociais. Ainda conforme Isto é, há o exemplo da Associação Brasil Soka

Gakkai Internacional, considerada como o maior grupo budista do país, com

aproximadamente 120 mil associados (uma das revistas que compõe o corpus foi

editada por essa associação). Ela promove cursos gratuitos de alfabetização e

hoje conta com pré-escola budista.

O mesmo procedimento é utilizado no Mosteiro Zen Morro da Vargem, em

Ibiraçu (distrito de Vitória), no Espírito Santo, onde há retiros e aulas de educação

ambiental e solidariedade para policiais militares.

Nesse aspecto, também percebemos que se configura a hibridização da

identidade: como um policial, que em sua atividade, supostamente, convive com

conflitos de toda espécie e violência constante pode praticar meditação e aprender

a tranqüilizar a mente? Isso somente é mostrado face à mudança na perspectiva

de identidade que atualmente se mostra diversificada e multifacetada.

De acordo com Hall (op. cit. p. 62), em lugar de pensarmos as culturas

nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um

dispositivo discursivo que representa a diferença. As culturas nacionais, e aí

incluímos a brasileira, representada na mídia em estudo, são perpassadas por

profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através do

exercício de diferentes formas de poder cultural. Ora, não há possibilidade de

pensarmos em uma cultura ou em uma identidade nacional. Se assim

entendermos, estaremos acionando discursos hegemônicos, objetivando que se

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reiterem e, por conseqüência, mantenham a ‘ordem’ instaurada, a tradição

imutável e o senso de unidade. Não somos “um único povo”, puro, original. Somos

vários povos cujas fronteiras hoje são ultrapassadas com uma facilidade

estrondosa, possibilitando, assim, que sejamos (apenas) diferentes.

Eco (1998, p. 106) nos fala do conceito de melting pot (situation in which a

large number of people, ideas etc are mixed together. In: Oxford – Advanced

Learner’s Dictionary, 2000), em que diversas culturas coexistem. Esse fenômeno é

uma realidade atual no Brasil, especialmente, nessa questão da cultura religiosa e

no interior do budismo entendemos que isso é uma característica discursiva

fundamental para sua constituição.

Uma interessante contribuição para o que nos parece ser uma nova

proposta para a concepção de ‘identidade’ é aquela oferecida por Hall (op. cit. p.

76). Ele fala que sempre houve uma tensão entre identificações mais particulares,

locais e identificações mais universalistas (é citado o exemplo de uma

identificação maior com a “humanidade’ do que com a “inglesidade” (englishness))

e que a globalização teve um efeito sobre esse modo de pensá-las. Em vez de

considerarmos o global como substituindo o local seria mais acurado pensar numa

nova articulação entre “global” e “local”, não se entendendo, todavia, este “local”

enquanto velhas e imóveis identidades, mas sim atuando sob a lógica da

globalização. Esta irá, portanto, produzir novas identificações “globais” e novas

identificações “locais”, promovendo uma ruptura no conceito de identidades

fechadas para dar-lhes um efeito pluralizante, lançando mão de uma variedade de

possibilidades e novas posições de identificação.

Em lugar da ‘tradição’ funcionando como a tentativa de recuperar uma

suposta pureza e originalidade, apontamos para o que Robins (seguindo Homi

Bhabha), ambos citados por Hall (op. cit. p. 87), chama de ‘tradução’, ou seja, o

fato de que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da

representação e da diferença e, assim, é impossível que elas sejam outra vez

unitárias ou “puras”. A identidade teria de assumir um estado ‘traduzido’, plural,

híbrido e as pessoas inseridas na sociedade teriam de abrir mão irrevogavelmente

de qualquer tipo de absolutismo étnico ou religioso. Não haveria, nesse sentido, o

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budista original, isso seria uma ilusão, como o são os próprios conceitos de ‘eu’ e

‘identidade’.

2.4. Diálogo inter-religioso: movimento ao sincretismo

Acreditamos ser conveniente abordar, ainda que de forma panorâmica, o

cenário religioso no Brasil, uma vez que apontamos nosso olhar à mídia brasileira,

enquanto manifestação cultural, sobretudo porque queremos discorrer acerca do

diálogo entre as diferentes religiões.

Para José Jorge de Carvalho (1991, p. 2), a variedade de movimentos,

igrejas, seitas, cultos e grupos religiosos inseridos em nosso país apresenta graus

distintos de inserção na sociedade, entretanto, todos dialogam, fundamentalmente

- com maior ou menor possibilidade de compatibilizar suas visões de mundo –

com a religião até agora hegemônica no país: o catolicismo (por isso essa religião

é tomada por base em nossa dissertação). O autor menciona sua experiência

pessoal, de morador da cidade de Brasília (ele é professor de antropologia da

Universidade Nacional de Brasília – UnB), cidade na qual o campo das religiões é

particularmente vasto e cheio de invenções. Cita um exemplo (especulativo) do

típico adulto brasiliense que (op. cit. p. 3):

pode ser alguém que nasceu no interior do país, criado dentro de uma tradição católica ou protestante. Quer pratique ou não sua religião de origem, pode fazer uma terapia corporal rajneeshiana para desbloquear a libido; pode tomar “johrei” de vez em quando na Igreja Messiânica para repor as energias; e pode ainda freqüentar cursos ou seminários sobre Lamaísmo, Teosofia, Chakras, poder dos cristais, que qualquer tipo de espiritualidade ou de manipulação de forças e energias das tantas em voga.

É nessa esfera que Carvalho expõe suas convicções, buscando analisar a

questão geral da religiosidade sob uma ótica sincrética. Contudo, ele faz uma

digressão no tempo, mais precisamente referindo-se ao que chama de

modernidade ocidental, na metade do século XIX, período no qual se consolidou o

processo conhecido por desencantamento do mundo. Segundo ele (op. cit. p.4),

um primeiro sintoma presente desse desencantamento foi o estabelecimento de

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um certo agnosticismo, uma certa rejeição da religião estabelecida. Afirma ainda

que isso é uma característica básica do que denominamos modernidade.

Referindo-se, pois, ao catolicismo, o autor menciona que houve algum tipo de

crítica, de distanciamento, de repulsa ou de reavaliação da religião fundante da

civilização ocidental. Duas foram as posturas básicas adotadas: uma representada

por céticos e agnósticos e outra por aqueles que trouxeram à discussão outras

tradições religiosas, sem que fossem consideradas inferiores, sobre as quais

Carvalho (op. cit. p. 5) cita o Vedanta (no dicionário Houaiss, 2001, p. 2.835,

sistema filosófico surgido por volta do século VI a.C., e caracterizado pela

suposição de que o indivíduo, para que alcance a sua libertação final (mocsa),

deve superar a ilusão (maia) de que vive em um mundo material e múltiplo,

compreendendo o seu pertencimento à realidade original, única e absoluta

(brâman)), tão presente na obra de Schopenhauer, e o budismo, também presente

nas reflexões filosófico-religiosas de Nietzsche. A modernidade teria propiciado o

surgimento de diálogos com a religião dominante (op. cit. p. 5), ora com simpatia,

ora com rejeição.

Muitas vezes esse repúdio parte justamente daqueles que já estiveram no

interior do clero católico. Leonardo Boff, ex-padre, (em Espiritualidade – Um

caminho de transformação, 3.ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001, p. 20) faz uma

distinção entre ‘espiritualidade’ e ‘religião’. Aquela, citando ele próprio o conceito

do Dalai Lama, estaria relacionada com qualidades do espírito humano, tais como

amor, compaixão, paciência e tolerância (...) que trazem felicidade tanto para a

própria pessoa quanto para os outros. Esta, por sua vez, relacionar-se-ia com a

crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé (...) Associados a

isso estão ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações, e assim por

diante. Continuando, num capítulo intitulado Jesus pregou o Reino e em seu lugar

veio a Igreja (op. cit. p. 37 – 41), Boff tece sérias críticas à igreja que se coloca

como a própria salvação (p. 39), afirmando que não se pode confundir a figura do

Cristo com a instituição religiosa ou com as autoridades eclesiásticas.

Textualmente fala (p. 41):

(...) se ela (a religião cristã) não transforma a nossa interioridade, se continua a ser apenas a religião do consolo e meio de salvação por

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medo da perdição, ela se transmuta em ópio. Se permite que seus ritos e símbolos sejam usados e abusados no mercado religioso, especialmente pela grande mídia, para apenas suscitar comoção e não aquela transformação interior decorrente da experiência do Deus vivo e do engajamento pela justiça, pela paz e pela integridade do Criador, ela se transforma em simples fetiche.

Boff Também faz menção a épocas no Ocidente em que o poder sagrado

detinha a absoluta dominação e que, justamente, por isso, esses séculos de

aliança entre trono e altar, mas sob a hegemonia do altar tenham sido os de maior

violência no Ocidente, nos quais a religião queimou dois milhões de ‘bruxas’ na

Santa Inquisição. Finaliza (op. cit. p. 28) dizendo que, ao substantivar-se e

institucionalizar-se em forma de poder, seja sagrado, social, cultural e militar (...)

as religiões perdem a fonte que as mantém vivas – a espiritualidade.

Ex-sacerdote, professor de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas

pela American University por cinco anos (de 1946 a 1951) e, posteriormente,

fundador da Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, de cunho espiritualista,

Huberto Rohden também relata sua posição acerca da hegemonia da Igreja

Católica (os trechos a seguir foram extraídos de SANTOS, Verdi Gonçalves dos. O

pensamento vivo de Huberto Rohden, São Paulo: Martin Claret Editores, 1988).

Rohden (1988, p. 14) explica que o termo ‘católico’ advém do radical katholikós,

que significa “segundo o todo”, ou “total”, “universal”. Diz-se essencialmente

universalista e por isso alega não poder admitir um catolicismo não universal, o

que viria a ser um pseudocatolicismo. Segundo esse autor: O pseudocatolicismo do clero romano – salvo honrosas exceções – é a mais flagrante antítese da catolicidade do Evangelho do Cristo. E toda essa adulteração começou no século IV, quando o sacerdócio, de ideal apostólico, passou a ser uma profissão lucrativa, fonte de prestígio social, político e econômico (...) A grande alternativa é: Cristo ou clero!(...)

Ainda como padre, Rohden escreveu 25 livros, todos aprovados por D.

Sebastião Leme (arcebispo do Rio de Janeiro até 1942) ou por outros bispos.

Entretanto, conforme menciona à p. 15, não dizia uma só palavra contra o clero;

mas o simples fato de eu enaltecer o Cristo e silenciar o clero me granjeou

crescente antipatia e hostilidade no seio do clero romano. Após um mês da morte

do cardeal Leme, D. José Gaspar de Afonseca e Silva baixou uma circular

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condenando todos os livros de Huberto Rohden, taxando-os de perniciosos à fé

católica (op. cit. p. 15), ao que este rebate dizendo que isso ocorreu porque neles

(nos seus livros) proclamava eu a redenção pelo Cristo, quando a teologia romana

advoga a redenção pelo clero.

Retomando Carvalho (1991, p. 6), percebemos que outro movimento que

manteve uma relação conflitiva com o cristianismo foi o que o autor chama de

esoterismo. Resurgido no século XIX, inicialmente restrito à elite intelectual

européia, posteriormente influenciou muitos indivíduos que questionavam a falta

do caráter iniciático e hermético nas igrejas cristãs. Carvalho alude que considera

o esoterismo moderno como sendo um grande movimento, intelectual e espiritual,

constitutivo da religiosidade contemporânea.

Com relação ao simbolismo presente na arte, que poderia refletir um traço

esotérico-iniciático e importante para a constituição desse percurso teórico do

caráter sincrético, que culminou naquilo que nomeamos diálogo inter-religioso,

iremos comentar o exemplo citado pelo mesmo Carvalho (op. cit. p. 7, 8), sobre a

ópera Parsifal, de Richard Wagner, de 1882. Nela, Wagner retrata uma crise

sofrida pela sociedade do Graal (constituída por nobres responsáveis pela guarda

do cálice considerado sagrado pois teria sido utilizado por Jesus na Última Ceia).

Faz-se alusão a vários outros símbolos cristãos, como o batismo do personagem

Kundry (para Carvalho, a reencarnação de Herodes, visto que na ópera é culpado

pela decadência do Graal e, contraditoriamente a personificação de Maria

Madalena, visto que Kundry lava os pés de Parsifal, tal qual o fez aquela com o

Cristo); também a associação crística na figura do próprio Parsifal, uma vez que é

inocente e tem os poderes da purificação e da redenção. Outra aproximação seria

o pão e o vinho que são elementos de uma missa ‘pagã’ realizada em

Montsalvate.

Cabe lembrar que Wagner igualmente se interessava pelo budismo, e

chegou a esboçar uma ópera tendo como tema a vida do Buddha (op. cit. p. 7).

Em determinado momento da ópera Parsifal, há mulheres-flores do jardim de

Klingsor que tentam seduzir esse herói, ao que Carvalho pensa que elas lembram

uma tentação sofrida pelo Buddha em situação similar. Parsifal, pois, pode ser

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Cristo e pode ser ainda Buddha (...). Conclui dizendo (op. cit. p. 8): Vemos então

que, com a aparência externa do cristianismo, Wagner criou um drama que seria

uma síntese de concepções pagãs, celtas, cristãs, islâmicas e budistas.

Dessa forma, começa uma ascensão no Ocidente de vários movimentos à

margem do discurso cristão oficial, outrora silenciados, por serem considerados

heréticos – os templários, os maçons, os rosacruzes, os herméticos, os gnósticos,

os alquimistas etc. (op. cit. p. 8). Acreditamos que isso possa ter contribuído para

fazer emergir novos discursos, que possibilitaram e fizeram necessário o diálogo

entre religiões. No momento de análise das matérias das revistas abordaremos

mais detidamente como se dá essa representação no que concerne ao tema

budismo.

Uma pergunta formulada por Carvalho (op. cit. p. 8) torna-se imprescindível

nesse contexto e cuja resposta pode ser considerada um pressuposto teórico que

servirá de fio condutor para a compreensão de todos os conceitos que perpassam

nosso trabalho, ou seja, para melhor entendermos o porquê da constituição dos

discursos de sincretismo, de hibridismo, do próprio diálogo inter-religioso, da

alteridade, os quais culminam no discurso maior da tolerância religiosa: (...) por

que me parece ser esse movimento esotérico tão importante? A que o autor

responde: Porque ele enfatizou um hábito de olhar para todas as religiões

mundiais, em busca de equivalências, de complementações, de sínteses. (grifo

nosso).

Nesse sentido, é citada Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da

Sociedade Teosófica, a quem Carvalho destaca um lugar central no cenário

moderno. Ela percorreu o mundo no século XIX, analisando diversas tradições

espirituais e tecendo uma contundente crítica ao cristianismo então estabelecido,

justamente por considerar que este perdera seu cunho iniciático e seu lado

profundo, sobretudo se comparado às religiões indianas, as quais, segundo sua

concepção, continuariam uma espiritualidade mais plena e primordial.

A partir daí, novas idéias extraídas sobretudo de textos hinduístas, budistas

e sufistas vão se difundindo de um modo mais institucionalizado e alcançando uma gama cada vez maior de pessoas, abrindo campo para sucessivas

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tentativas de se recolocar, já não mais o “problema da religião”, como queriam os filósofos e teólogos mais ortodoxos, mas as chamadas tradições de espiritualidade, parte fundamentalmente viva de todas as religiões conhecidas. (op. cit. p. 9)

Relevante é a análise de Carvalho, com relação à maior conseqüência para

o cristianismo – e aqui acreditamos, para toda a sociedade ocidental,

especialmente para o Brasil – dessa presença cada vez mais expressiva das

tradições esotéricas e orientais, a qual transcreveremos literalmente:

(...) começa a surgir um deslocamento da figura de Jesus Cristo, na medida em que crescem as propostas de diálogo inter-religioso: o Cristo passa a ser entendido como um princípio divino (como a natureza búdica, o Ishwara) e Jesus como uma encarnação, um avatar, uma manifestação histórica da divindade, equivalente ao Buddha Shakyamunie, a Krishna, a Zoroastro, a Maomé etc. (op. cit. p. 9, grifos nossos).

José Jorge de Carvalho não está solitário nesse ponto de vista, de que há

um ‘princípio’ que se uniria aos chamados ‘mestres’ do caminho espiritual.

Rohden, já citado nesse trabalho, afirma em seu livro Assim dizia o mestre. 3.ed.

São Paulo: editora Alvorada (o ano de publicação não foi indicado), p. 14,15 que:

Todo o mal está na confusão de dois elementos distintos: Jesus e o Cristo. O Divino Logos, ou Verbo, se uniu inseparavelmente ao humano Jesus (...) O divino Logos encarnou-se em Moisés, em Isaías, em Jó, em Krishna, em Buda, em Zaratustra, em Maomé, em Gandhi, e muitos outros veículos humanos.

Nessa mesma perspectiva, há o pensamento do monge indiano

Paramahansa Yogananda, fundador Self-Realization Fellowship, organização que

hoje conta com aproximadamente 500 centros de meditação, espalhados em 54

países, conforme informação extraída de seu site oficial

(http://www.selfrealizationfellowship.com/aboutsrf/index.html).

Na Revista das Religiões (especial da Superinteressante), de julho de

2004, há uma matéria especial sobre o místico. À página 23, lemos que o iogue

indiano tinha uma profunda admiração por Jesus e apontava, em diversos textos

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bíblicos, a harmonia existente entre os ensinamentos cristãos e hindus. O

antropólogo José Jorge de Carvalho tece seu comentário na revista, afirmando

que a tradição hinduísta incorpora, sem nenhuma dificuldade, todas as outras.

Para os hindus, Cristo é um avatar, uma manifestação do Absoluto. Isso se

confirma na obra Autobiografia de um iogue, em que, no capítulo 33, denominado

Bábají, o Cristo-Iogue da índia Moderna, Yogananda associa o Cristo a outros

considerados mestres: Na vastidão da onipresença, como se poderia seguir o

Cristo, exceto em Espírito circunvidente? Krishna, Rama, Buddha e Patânjali

contam-se entre os antigos avatares.(...) Bábají vive sempre em comunhão com

Cristo (Yogananda, 1981, p. 284, grifo nosso). No prefácio à edição brasileira,

Premavatar (monge que o redigiu, op. cit. p. 11) fala que imerso em Consciência

Crística, ele (Yogananda) pronunciava palavras de encorajamento e de inspiração.

São feitas referências a um Cristo-Iogue, bem como à Consciência Crística, numa

clara alusão não ao Cristo histórico, mas a um princípio divino.

Também é feita menção aos indivíduos que são considerados fundadores

de religiões ou continuadores de uma doutrina espiritual, não colocando nenhum

deles numa posição hegemônica em relação aos outros, mas numa esfera de

convivência, de co-existência e, portanto, de diálogo. Boff, citado por Carvalho (1991, p. 9) como uma vertente de uma

espiritualidade letrada, extremamente viva e livre do peso institucional, afirma na

já mencionada obra (2001, p. 29) que os pais fundadores dos caminhos espirituais

– Buda, Isaías, Jesus Cristo, São Paulo (...) são sempre pessoas profundamente

carismáticas, que mergulharam de forma extraordinária no mistério do Ser (...).

Finalizando esse item acerca da revisão bibliográfica do diálogo e da

aproximação entre os credos, citamos um livro do Dalai Lama, cujo título é

Conselhos espirituais (2004), no qual em diversos momentos ele toca nessa

questão, como podemos verificar nos trechos a seguir selecionados: (...) sempre digo às platéias que o diálogo inter-religioso pode gerar um entendimento mais profundo entre as diferentes tradições religiosas. Um tipo de diálogo envolve um encontro de estudiosos, numa situação mais acadêmica, para esclarecer as diferenças e as semelhanças entre suas tradições (...) (p. 17, 18) Uma segunda espécie de diálogo é a peregrinação realizada por seguidores de diferentes tradições religiosas. Eles podem ir juntos, em

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grupo, numa romaria aos lugares sagrados das diferentes religiões (...) (p. 18) Um terceiro tipo de diálogo é um encontro como o Dia da Oração pela Paz, que se deu em Assis em 1986. Líderes religiosos se reuniram lá e trocaram algumas amáveis mensagens. (p. 18) Um quarto tipo de diálogo consiste num encontro entre praticantes genuínos de diferentes tradições religiosas (...) Um exemplo foi meu encontro com o agora falecido Thomas Merton. (sacerdote cristão)(p. 19)

Assim, no momento específico de análise do corpus, buscaremos perceber

como se dão, textualmente, as chamadas isotopias do diálogo inter-religioso.

3. Comunicação Globalizada

Segundo Thompson (1998, p. 135), a reordenação do espaço e do tempo

provocada pelo desenvolvimento da mídia faz parte de um conjunto mais amplo de

processos que transformaram (e ainda estão transformando) o mundo moderno.

Na mesma perspectiva de Hall (2003), tais processos são o que atualmente

chamamos de globalização. Para Thompson, necessário se faz que a entendamos

enquanto atividades que aconteçam numa arena que é global (op. cit. p. 135). E é

nesse sentido que estamos focalizando o budismo, não como uma religião

originada no Oriente, mas como um forte conjunto de valores simbólicos, os quais

passam a ser veiculados nessa escala global.

Invariavelmente, atrelamos o poder econômico como uma força sempre

emergente no processo globalizado. Esse fator não pode ser deixado de lado.

Todavia, concordamos com Thompson (op. cit. p. 136) que também identifica

outras formas de poder, tais como o político e o simbólico contribuíram para esse

processo e foram afetadas por ele. Especial atenção é dada pelo autor à

organização social do poder simbólico e nós procuraremos descrever de que

modo isso pode ser observado em nosso estudo sobre cultura.

A globalização possibilita que um monge tibetano, como é o caso do Dalai

Lama, possa passar a influenciar o estilo de vida de um sem-número de indivíduos

brasileiros. Não se pode considerar o local, a tradição pura do Tibete, mas sim

uma mestiçagem cultural, na qual um brasileiro venha a absorver práticas

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budistas, sem, necessariamente, ter uma conversão formalizada. A caracterização

religiosa começa a carecer de uma definição restrita, pois o que se verifica é uma

mescla de tradições, ideologias e maneiras de atuar.

Aqui, nosso intuito é o de pensar como a globalização, entendida no âmbito da

comunicação, influencia nesse processo, já que acreditamos em seu papel preponderante

para a circulação do budismo no Brasil e para a conseqüente compreensão de algumas

representações que serão discutidas nesta dissertação.

Conforme Thompson (op. cit. p. 143), o processo de globalização da

comunicação é um fenômeno tipicamente do século XX, visto que nesse período o

fluxo de comunicação e informação em escala global se tornou uma característica

regular e penetrante da vida social. Os canais de comunicação e os diferentes

recursos midiáticos tiveram um aumento considerável, o que possibilitou que a

informação passasse a circular rapidamente e a recepção de valores culturais de

diferentes povos tornou-se uma constante.

Podemos pensar na existência de um sistema cultural global, no qual as

idéias de pureza e originalidade têm necessariamente de ser descartadas.

Mencionamos a recepção da cultura e a observaremos como um fato que varia

para cada indivíduo. A esse respeito nos ateremos mais adiante.

Para Thompson (op. cit. p. 144), durante o século XX, os conglomerados de

comunicação começaram a produzir suas atividades em locais fora de seus países

de origem, o que ocorreu por meio de fusões e compras, promovendo, assim, o

“crescimento corporativo” e a presença massiva na “arena global do comércio de

informação e comunicação”. Esses conglomerados, na sua maioria, têm suas

sedes na América do Norte, Europa Ocidental, Austrália e Japão, o que provocou

a concentração do poder econômico e simbólico.

Os difusores do budismo no Brasil, estrategicamente, fazem uso desses

recursos de comunicação global. Numa matéria intitulada “Monja Coen – a porta-

voz brasileira do zen-budismo”, assinada por Maria Di Cesare, veiculada na revista

Budismo (2004, p. 15), a missionária é perguntada por que o número de pessoas

interessadas pelo budismo aumenta cada vez mais, ao que diz

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Há uma procura pelo desenvolvimento da espiritualidade e, dentro disso, o budismo é uma alternativa atraente no Brasil (...) 1Além disso, a imprensa dos EUA tem falado muito sobre a questão do Tibete e do Dalai Lama sempre pregando a compaixão e não-violência, o que acaba servindo de propaganda para o budismo. (grifos nossos).

O poderio americano passa a ser potencializado em prol da divulgação

dessa religião, fato que é divulgado numa revista do Brasil, como se verifica nos

dizeres da monja.

Existe substancial importância na descrição da influência de outro poder, o

político, para entendermos a relação globalização-budismo. Necessária se faz,

portanto, uma breve digressão ao cenário do Tibete.

Em 1950, o governo chinês invadiu o território tibetano, anexando-o ao

mapa chinês. A China justificara a invasão alegando que, até o século XVII, o

Tibete pertencia aos chineses. Todavia, o interesse efetivo pode ter sido a riqueza

mineral das terras tibetanas. Estima-se que mais de 6000 construções histórico-

culturais, como templos e monastérios, foram destruídas. O número de pessoas

assassinadas não é preciso, entretanto sabe-se que no final dos anos 40, havia

um total de 7 milhões de habitantes na região e atualmente, são 2,5 milhões,

dados informados pelo United States Census Bureau, órgão recenseador

internacional, com sede nos EUA, de acordo com a revista Superinteressante

(ago. 2001, p. 50).

Até 1959, o Dalai Lama permaneceu no Tibete, procurando uma solução

pacífica para o conflito. Não obstante seus pronunciamentos, o povo formou

guerrilhas contra os chineses, o que exaltou ainda mais os ânimos no local. As

ameaças ao monge criaram uma comoção social generalizada e a reação popular

foi intensa, fato que ele receou ser o possível desencadeador de um massacre.

Por isso, como relata em seu livro Minha terra e meu povo (1998), decidiu buscar

exílio na Índia.

Desde então, sua atuação política (e religiosa) não é menos intensa. O

próprio monge utiliza os distintos recursos midiáticos em prol de sua causa de

libertação do Tibete e também da propagação do budismo, apropriando-se, assim,

dos meios de comunicação globalizada. Perguntado, em entrevista concedida à

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revista Época (p. 75), sobre o que aconteceria com a liderança no exílio caso ele

morresse antes de regressar ao Tibete, respondeu: Meu retorno ao Tibete é irrelevante. Emocionalmente, os tibetanos me querem de volta. Mas, intelectualmente, gostam de minha presença no exterior. Eu divulgo a situação do Tibete, consigo apoio para nossa causa, difundo a cultura, converso com autoridades (...) (grifos nossos)

Propusemo-nos a falar brevemente a respeito do contexto tibetano, para

percebermos como o poder político influencia e é influenciado pelo processo de

globalização. No primeiro sentido, exerce influência, pois, ainda que no exílio, o

Dalai Lama é um representante político e chama a atenção de outros países com

maior hegemonia no controle dos meios de comunicação e, conseqüentemente,

na circulação de informações; e é influenciado, na medida em os líderes religiosos

budistas dependem do que as autoridades desses países farão pela causa

tibetana e pelo próprio budismo. Temos dois exemplos ocorridos no Brasil,

relatados por Lia Diskin, responsável pelas duas visitas daquele monge

(Superinteressante, ago. 2001,p. 51): Em 1992, na Eco 92, a delegação chinesa ameaçou não comparecer ao evento, realizado no Rio de Janeiro, se o Dalai Lama desembarcasse por aqui. Em 1999, em visita ao país, outra vez a burocracia brasileira complicou as coisas, diz Lia.

Karen Gimenez, autora da matéria, completa: Naquela ocasião, o presidente Fernando Henrique Cardoso não recebeu o Dalai Lama no Palácio da Alvorada. Só aceitou conversar com o Dalai fora do círculo oficial, em uma visita informal à casa do então senador Antônio Carlos Magalhães, na Bahia.

Ainda na mesma revista (p. 49), há uma informação alusiva ao ano de

2001, dizendo que o presidente americano, George W. Bush, recebe-o como líder

religioso e não como líder político, prometendo, contudo, ajudar na tentativa de

diálogo com a China.

Na entrevista de Época (p. 76), vemos a seguinte pergunta:

Incomoda ser recebido por líderes mundiais extra-oficialmente ou apenas

como líder religioso? Reconhecendo o status de seu poder político, o Dalai fala

Eles estão sendo realistas (risos). Não me importo com uma recepção mais ou menos oficial, o que me interessa é encontrar as pessoas.

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Claro, se um ministro me recebe no aeroporto, pode ser bom para a questão tibetana. No Ocidente, as pessoas levam muito em consideração o modo como alguém é recebido, como a pessoa sorri ou se veste. Para mim, isso não importa.

Dessa forma, vemos que a causa política da tentativa de libertação do

Tibete do julgo do governo chinês, promovida pelo Dalai Lama, só pode ter

alcance mundial devido à globalização. E ele sabe disso.

3.1. Tempo e espaço relativizados

O sub-título de Superinteressante (ago.2001, p. 46, 47) tem ao fundo uma

imagem do Dalai e traz os seguintes dizeres: Nunca se falou tanto sobre ele no Ocidente. Nunca se leram tantos livros seus no Brasil. Afinal, o que o pensamento desse monge tibetano tem de tão especial?

O conteúdo em si das mensagens do religioso não tem maior interesse

nesse ponto de nosso trabalho, mas sim como são dispostas as palavras pela

autora da matéria da mencionada revista, Karen Gimenez.

Os enunciados acima explicitados, da forma como foram ditos, funcionam

como uma ‘propaganda’ globalizada: Nunca o Dalai Lama foi tão falado no

Ocidente e também nunca suas obras foram tão lidas no Brasil. Ela conclui com a

pergunta sobre o que o pensamento desse monge tibetano teria de tão especial. A

disposição dos vocábulos une o Ocidente – e, especificamente, o Brasil – e o

Tibete. Não há distância geográfica, nem ideológica entre os locais: tudo parece

efetivamente global e o leitor sente-se aguçado a ler a matéria para conferir os

porquês do sucesso do personagem. Os “nuncas” garantem a valorização de

sentido e instituem o Leitor-Modelo para a caracterização de um fenômeno; não é

algo corriqueiro, que se daria a qualquer tempo, mas que acontece de modo

único, não antes presenciado pelas pessoas.

Interessante ressaltar outro enunciado dessa revista sobre o religioso, em

que se afirma: para os adeptos do budismo em suas mais diversas ramificações,

ele é Sua Santidade (p. 48), pelo fato de percebermos que os próprios budistas,

independentemente das diversas correntes existentes, consideram a figura do

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monge (do Budismo Tibetano) como um importante protagonista na difusão de

suas causas religiosas, tal qual o já mencionado exemplo da monja Coen, que

embora seja da nomenclatura zen, cita o Dalai Lama, como sendo uma influência

para o crescimento da religião no Brasil.

Esse líder sabe da importância de sua presença em distintos ambientes

para difundir suas idéias e, conscientemente, usa a mídia com o intuito de noticiar

sua forma de pensar e também as visitas efetuadas pelo mundo. Ainda na

Superinteressante (p. 48) diz-se que O Dalai Lama viaja muito e acaba ficando pouco tempo em Dharamsala (cidade indiana, na qual foi formada uma comunidade nos anos 60 por monges budistas e refugiados tibetanos e onde ele mora). As visitas ao Brasil foram agendadas com mais de dois anos de antecedência. Num dia, suas palavras encontram milhares de pessoas no Vale do Silício, o cérebro eletrônico da indústria tecnológica americana. No dia seguinte, ele conversa com comunidades isoladas nas montanhas do Nepal.

Em Época (p. 71) lemos que Ele passa quase seis meses do ano em viagens, encontrando-se com parlamentares e chefes de Estado, arrebanhando multidões em audiências públicas nas quais prega a paz, ensinando preceitos do budismo a platéias lotadas.

Mais uma vez vê-se o encurtamento de distâncias no mundo globalizado:

encurtamento no sentido espacial, físico e também no sentido da linguagem e da

ideologia. Antes da globalização, as idéias permaneciam mais isoladas num

território geográfico bastante delimitado. Atualmente isso não ocorre da mesma

maneira: um discurso religioso atravessa um continente em pouquíssimo tempo e

perpassa indivíduos conectados pela comunicação, não importando se estão na

América do Norte, no Nepal ou no Brasil, enquanto leitores de uma revista que

trata de uma religião oriental. É construída uma estrutura de apreensão dos bens

simbólicos e dos valores culturais que só pode ser analisada sob a luz do conceito

de hibridismo. Esse caráter mestiço é traço preponderante no processo

globalizado, pois o fluxo de informações e a circulação dos discursos se dão num

panorama internacional. Nesse sentido também buscamos o entendimento de

Thompson (op. cit. p. 146), o qual fala que Uma questão central da globalização da comunicação é o fato de que os produtos da mídia circulam numa arena internacional. O material

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produzido em um país é distribuído não apenas no mercado doméstico, mas também – e em níveis sempre crescentes – no mercado global.

Outro aspecto que merece ser mencionado é que o budismo – via Dalai

Lama – tem circulação que extrapola, em dimensões internacionais, os locais de

produção e edição das obras literárias desse monge autor. Segundo a já citada

matéria de Superinteressante (ago. 2001, p. 48), os discursos do Dalai

originaram mais de 200 livros – 20 deles traduzidos para o português. No Brasil,

seus livros venderam 500.000 exemplares. A revista Época, que foi publicada em

junho de 2003, traz números diferentes e de maior expressão: No Brasil, vendeu

quase 900 mil exemplares de cerca de 30 títulos nos últimos quatro anos. Embora

nosso objetivo não seja analisar o mercado editorial especificamente, vemos que

essas informações a respeito dos livros são veiculadas na mídia e, por isso,

acabam configurando traços da representação do budismo, enquanto bem

simbólico na cultura brasileira.

A própria Superinteressante (p. 48,49) faz menção à revista Veja: A arte da felicidade – um manual para a vida, editado pela Martins Fontes, cuja seqüência o Dalai está escrevendo neste momento em parceria com o psiquiatra americano Howard Cuttler, aparece há quase 70 semanas na lista do livros mais vendidos da revista Veja.

O fato de Veja publicar nessa lista uma obra escrita por um religioso budista

faz com que a religião passe a ser conhecida e independentemente de o leitor

sentir-se atraído ou não por esse tipo de literatura, suscita nele alguns

questionamentos dos porquês de tamanho sucesso editorial no Brasil. Em outras

palavras, se não fosse por intermédio da mídia (e da comunicação globalizada),

possivelmente os livros sobre budismo não seriam tão lidos.

Comentando a tese do imperialismo cultural promovido pelos EUA,

discutida na tese Mass Communications and American Empire, de Herbert

Schiller, Thompson (op. cit. p. 148-154) tece críticas à possibilidade de os

americanos imporem seus valores culturais aos países do Terceiro Mundo, os

quais, supostamente, teriam tradições intactas. A questão é mais complexa. No

presente trabalho, percebemos que os budistas utilizam a mídia, divulgando as

suas visitas aos dirigentes políticos de países do Primeiro Mundo, a fim de, como

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já dissemos, difundir o pensamento alusivo à sua religião. É interessante para

percebermos a representação social do budismo na cultura nacional o dizer de

Thompson (op. cit. p.152), que transcrevemos Muitas das formas culturais do mundo de hoje, em vários graus de extensão, são culturas híbridas em que diferentes valores, crenças e práticas se entrelaçam profundamente. (grifo nosso)

Apesar de acreditar que a globalização da comunicação através da mídia

eletrônica tenha promovido novas formas de dominação, o autor procura estudar

como se deu esse processo. No caso desta dissertação em especial, no qual a

análise tem basicamente por corpus cinco revistas brasileiras, necessário se faz

delimitar algumas questões:

a) quando se veiculam na mídia do Brasil, matérias cujo conteúdo diz respeito

a uma religião oriental, como é o caso do budismo, por si só já temos de

pensar na idéia de mistura cultural, a mestiçagem já falada, a cultura

híbrida.

Na matéria de Época (p. 78), podemos ver um traço relevante para a

representação social do budismo, no que concerne a esse hibridismo dos valores

culturais: (...) cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam

práticas budistas com suas próprias crenças.

Nessa reportagem (p. 79), o já mencionado cientista da religião Frank

Usarski, da Pontifícia Universidade Católica – PUC – de São Paulo e organizador

do livro O budismo no Brasil, editora Lorosae, fala a respeito do assunto: Nas

estatísticas, não se sabe até que grau o entrevistado segue sua fé (no budismo)

de maneira exclusiva ou em combinação com outras doutrinas e práticas.

Questionada sobre sua denominação religiosa, a advogada presbiteriana e

praticante regular do budismo, Perside Guimarães, responde: O budismo é uma

religião se você quiser que seja. É também uma filosofia e ciência;

b) nesse sentido, não se representa uma ideologia religiosa e portanto,

cultural, que seja dominante, nem que seja oriunda de um pensamento

hegemônico. Ocorre justamente o contrário: no Brasil, de maioria católica,

estão sendo veiculadas matérias que abordam o budismo, religião que

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emergiu no Oriente, mais precisamente na Ásia Central e que somente

chegou no Ocidente no século XIX, via imigrantes chineses e japoneses;

c) aos budistas não interessa se quem veicula essas matérias é uma revista

americana, ou tibetana, ou brasileira, o que importa é se falar em budismo.

Esse é, pois, o grande recurso que a globalização da comunicação oferece

aos líderes dessa crença.

Ainda em Thompson (op. cit. p. 153), encontramos que os processos de

recepção, interpretação e apropriação das mensagens da mídia são muito mais

complicados do que pressupõe o argumento de Schiller (sobre o imperialismo

cultural americano). Continua afirmando que diferentes grupos (étnicos) têm diferentes maneiras de entender um programa, diferentes maneiras de “negociar” seu conteúdo simbólico. O processo de recepção não tem sentido único, mas é antes um encontro criativo entre uma complexa e estruturada forma simbólica, de um lado, e indivíduos que pertencem a grupos particulares e que trazem seus próprios recursos e pressuposições para os apoiar na atividade de interpretação, de outro lado.

Thompson está mencionando de maneira mais enfática a mídia televisiva,

mas pensamos ser totalmente possível fazer as mesmas considerações com

relação às revistas explicitadas neste trabalho. O autor fala de grupos étnicos, e

por isso entendemos que a recepção também é completamente individualizada

entre os brasileiros, como receptores de valores culturais, visto que as pessoas

irão incorporar de modos distintos os preceitos e as práticas budistas. Alguns irão

procurar um aprofundamento numa determinada corrente, outros somente irão

apreender conceitos veiculados na mídia, sem nenhuma preocupação em

diferenciar uma corrente da outra. Para tantos outros, o budismo significará

apenas um recurso de moda, para se enquadrar numa “onda esotérica”, na qual

as religiões orientais são muitas vezes representadas, propiciando a confecção de

artigos industriais, como camisas, pulseiras, brincos, cordões e tudo o que pode

ser apropriado por meio do mercado cultural. Thompson (op. cit. p. 154-158)

acredita, então, que há uma difusão globalizada. Para nós, o que interessa é que

o conteúdo das matérias das revistas tem a sua apropriação localizada no espaço

brasileiro. E acreditamos, ainda, que essa apropriação torna-se especificamente

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individualizada, confirmando-se assim o caráter de hibridismo ainda mais pulsante

no que concerne ao estudo do simbolismo cultural.

Concluindo com Thompson (op. cit. p.153), os indivíduos dão sentido às

mensagens de uma forma ativa, as adotam com atitudes diversas e as usam

diferentemente no curso de suas vidas. Os enunciados transcritos nas revistas, a

respeito da apropriação do budismo por parte dos entrevistados, permitem que

percebamos como não se pode falar numa “identidade budista” única, passível de

uma análise, cuja categoria se torne fechada. A nosso ver, essa característica

múltipla, multifacetada faz parte do próprio processo de globalização.

3.2. Vedetização

Iremos abordar outra questão que, para nós, está intrinsecamente

relacionada à mídia e que ajudará a compreender a representação do budismo

veiculada nas revistas: a vedetização, considerada aqui como a associação das

matérias sobre a religião budista com alguma pessoa famosa no meio social.

Edgar Morin (1987, p. 28), ao tratar da indústria cultural (e por isso o

citamos por acreditar na possibilidade de aproximar seu pensamento ao nosso

estudo sobre a mídia escrita), menciona que o filme deve, cada vez, encontrar o seu público, e, acima de tudo deve tentar, cada vez, uma síntese difícil do padrão e do original: o padrão se beneficia do sucesso, mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar. É por isso que o cinema procura a vedete que une o arquétipo ao individual: a partir daí, compreende-se que a vedete seja o melhor anti-risco da cultura de massa, e, principalmente, do cinema.

Referindo-se em primeiro plano à política e logo ao cinema, Roger-Gérard

Schwartzenberg (1978, p. 7) fala acerca do star system, algo como o ‘sistema de

estrelas’, em que o que todos ambicionam é o personagem central, o papel

principal. Para esse autor antigamente, era o filme que impunha sua forma ao intérprete. Hoje, a estrela reduz a simples suporte ou veículo qualquer espetáculo em se apresente. Já não se avalia um ator pelo seu talento ao interpretar o filme. Avalia-se o filme por sua aptidão a favorecer o ator.

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O tema budismo não escapou das telas de Hollywood e, obviamente, as

produções americanas chegaram ao mercado brasileiro. As conclusões de Morin

e Schwartzenberg propostas acima são confirmadas se analisamos alguns desses

filmes:

a) lançado em 1994 pela Top Tape, “O pequeno Buda” (Little Buddha) conta

a história de um monge que morre em Butão e que se reencarna em três

crianças, as quais viviam em locais diferentes. A direção é de Bernardo

Bertolucci, consagrado e respeitado no meio cinematográfico. A ênfase

maior é dada (inclusive na capa da fita para vídeo) para os atores

principais: Keanu Reeves, que faz o papel de Buda já adulto, e Bridget

Fonda, mãe de uma das crianças. No ano de lançamento, ambos eram do

primeiro time de atores da indústria cinematográfica americana e, com

certeza, chamavam a atenção do público apenas por participar do filme;

b) filme de Jean-Jacques Annaud (o mesmo diretor de “O nome da Rosa”), em

1997, houve a produção “Sete anos no Tibete” (Seven years in Tibet – Top

Tape), inspirado em um episódio real que conta a trajetória de uma alpinista

que buscava escalar um dos picos mais altos do Himalaia, mas que foi

capturado pelos ingleses na Segunda Guerra Mundial. Depois de conseguir

fugir encontra-se com a figura do jovem Dalai Lama, com o qual convive por

sete anos. Quem vive esse papel principal é o ator Brad Pitt, até hoje um

dos mais famosos astros de Hollywood, que na época estrelara outro

grande sucesso: o filme “Seven – Os sete crimes capitais” (informação

estampada na capa da fita de vídeo de “Sete anos no Tibete”, em que

também vemos a foto de Pitt junto ao ator que interpreta o monge. A revista

Budismo (2004, p. 18) indica o filme para quem “quer conhecer um pouco

das tradições do budismo tibetano”).

c) Também em 1997, o grupo “Paris Filmes” lança “Kundun”, que traz a

história baseada na vida do próprio Dalai Lama e que teve quatro

indicações para o Oscar 98. O diretor foi o renomado Martin Scorsese.

Fator relevante que foi possível constatar é que o Dalai Lama admite a

presença dos famosos transitando nos meios budistas – talvez por ter consciência

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da importância disso para suas causas. O exemplo mais marcante é a

participação recorrente do ator americano Richard Gere. Com uma atuação ativa

na difusão do budismo, patrocinou a publicação de livros do Dalai, através da

Fundação Gere. Entre eles: Opening the eye of new awareness, The meaning of

life from a Buddhist perspective e O mundo do Budismo Tibetano (2001), no qual

foi o responsável pelo prefácio. Neste, Gere conclui A Fundação Gere orgulha-se em se associar a Sua Santidade e a sua mensagem de responsabilidade universal e de paz, e tem o prazer de apoiar a Wisdom Publications em seus esforços para promover esses ideais. Que este livro possa ajudar a trazer felicidade e causas de felicidade futura para todos os seres. (p. 10)

Morin (op. cit. p. 105) fala que No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário, situam-se as vedetes da grande imprensa, os olimpianos modernos. Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres (...)

Pode-se perceber que a mídia escrita – por meio das revistas ora

estudadas –também lança mão desse recurso, que aqui estamos nos referindo

como vedetização. Morin (op. cit. p. 35) igualmente faz menção a semanários

como o Paris-Match ou Life assinalando que tendem sistematicamente ao

ecletismo e que num mesmo número há espiritualidade e erotismo, religião,

esportes, humor, política, jogos, viagens, exploração, arte, vida prática de vedetes

ou princesas, etc.

Para Douglas Kellner (2006, p. 126): Na cultura da mídia globalizada, as celebridades são as divindades fabricadas e administradas. São ícones midiáticos, e deuses e deusas da vida cotidiana. Para se tornar uma celebridade, é necessário o reconhecimento como uma estrela o campo do espetáculo, seja com esportes, entretenimento, negócios ou política.

Podemos fazer alusão a aparições de pessoas conhecidas na mídia que se

atrelam ao budismo.

Isto é, de 1º de junho de 2005, cuja matéria de capa fala da relação positiva

entre fé e saúde, também associa uma pessoa do meio artístico brasileiro com o

budismo: a atriz Lucélia Santos, a qual aparece numa foto, com a seguinte fala:

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Filosofia – Lucélia é budista e faz ioga para cuidar da saúde da mente e do corpo

(p. 78).

A revista Cult, de janeiro de 2005 (p. 8-12), faz uma entrevista com a

apresentadora Soninha, que declara expressamente de sua conversão ao

budismo, a propósito do lançamento de seu livro “Por que sou budista?”, da

editora Jaboticaba. Segue trecho em que ela fala sobre o assunto (p. 12): O

budismo não prescinde de lógica, você examina e vê se faz sentido, testa na sua

experiência, se não faz não adota, só é preciso ter uma linha de conduta.

Num suplemento do Jornal O Globo, de 08/02/05, denominado Megazine,

há uma seção sobre crítica musical, assinada por Bruno Porto, em que é mostrado

o CD “Mantra Mix” (com o Dalai Lama na capa), trazendo os seguintes dizeres: Mix solidário – o CD duplo “Mantra Mix (Indie, R$ 29) reúne faixas de pesos-pesados do rock, do pop e da eletrônica como REM, David Byrne, Madonna, Chemical Brothers e Moby. Parte da renda do disco vai para uma organização que ajuda refugiados tibetanos. (p. 05)

Tal como a sinopse informa, astros internacionais da música associam sua

imagem à causa do Tibete e à pessoa do Dalai Lama.

Cabe ressaltar que outros veículos midiáticos também abordaram o tema

budismo. Para citarmos apenas dois exemplos, temos:

a) a telenovela Começar de novo, da Rede Globo, exibida entre agosto de 2004 a

abril de 2005, fez apologia do budismo com o personagem interpretado por Cássio

Gabus Mendes, o qual chamava-se ‘Sidarta’, mesmo nome do príncipe fundador

da religião. A referência tinha um cunho jocoso uma vez que Sidarta era filho do

‘Vô Doidão’ e da ‘Vó Doidona’, interpretados respectivamente por Luís Gustavo e

Marília Pêra, sobre os quais havia uma representação de prática da ‘onda

esotérica’, sempre em tom de comédia.

b) o programa semanal Fantástico, também da Rede Globo, fez uma síntese do

budismo na série de matérias intitulada Êxtase – Ritos Sagrados, exibida em 06

de novembro de 2005. Acerca da vida do fundador da religião, a monja Sherab –

brasileira nascida no Amapá que participava de ritos no Templo da Terra Pura, na

cidade de Três Coroas, no Rio Grande do Sul – contou que (...) Sidarta se iluminou e começou a ensinar os seguintes princípios aos discípulos: Estamos presos em um ciclo de existências. Então nós

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morremos e renascemos múltiplas vezes, devido a um estado (...) de ‘ignorância’, que significa não reconhecer o que é a nossa verdadeira natureza, ou verdadeira essência. O que nos impede de ver essa natureza são o que nós chamamos de ‘venenos da mente’, ou ‘paixões’: orgulho, inveja, ciúme, desejo, apego, aversão, ódio, raiva.

Buscaremos nos pautar nas aludidas bases teóricas e nesse processo

hermenêutico na análise do corpus de nossa dissertação.

4. Da análise 4.1. O budismo espetacularizado

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Vemos em Época (p. 75) a foto do já mencionado ator, Richard Gere, com

a legenda: Richard Gere – ajuda financeira. Também na mesma página, mais dois

astros americanos ilustram a matéria com fotos: Sharon Stone (apoio ao Tibete) e

Brad Pitt (filme com o Dalai Lama), referindo-se ao citado “Sete anos no Tibete”.

Desse modo, a revista Época não escapa da dinâmica do ecletismo garantindo

uma maneira de se construir o sentido: fala-se sobre a religião budista, mas com

uma ‘pitada’ de erotismo, simbolizado por célebres figuras que protagonizaram

cenas sensuais nos filmes hollywoodianos, tais como Gere, Stone e Pitt.

Nessa revista, retomando o tema, há uma outra matéria com o título “A

ascensão do budismo no Brasil”, que traz em um de seus enunciados (p. 79): Nos anos 90 a linha tibetana tornou-se mais popular, principalmente depois que o Dalai Lama recebeu o Nobel e da conversão de celebridades como o ator Richard Gere e Harrison Ford. No Brasil, atraiu famosos como as atrizes Cristiane Torloni, Cláudia Raia e Letícia Spiller.

De igual forma, há fotos de Cristiane Torloni e Letícia Spiller, esta em

posição de meditação, sentada ao estilo oriental (com as pernas cruzadas), tendo

como cenário o que parece ser um templo budista.

A revista Budismo (2004) traz, à p. 25, um Box, em cujo título se lê:

Adeptos famosos, seguido de uma lista, em que são citados: Betty Faria,

Christiane Torloni, Edson Celulari e Cláudia Raia, Gilberto Gil, Maitê Proença,

Maurício Mattar, Patrícia Marx, Patrícia Travassos, Paulo Ricardo, Rita Lee, Sílvia

Pfeifer, Soninha e Odete Lara.

A cantora Rita Lee ilustra a página, em que diz: Ontem fui dormir e fiquei

emocionada quando pensei: puxa, que coisa bonita, estou dormindo na mesma

cidade que o Dalai Lama! (falando sobre a visita do monge ao Brasil, em 1999).

Já citado em diversos momentos no decorrer dessa dissertação, Tenzin

Gyatso, o 14º Dalai Lama, parece ser a figura mais importante para conseguirmos

analisar culturalmente a representação social da religião budista veiculada na

mídia brasileira.

A capa de Época estampa os dizeres: Como o líder espiritual do Tibete

atrai milhões de pessoas que buscam a paz interior. Há uma estratégia de

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captação do leitor da revista. As opções lexicais querem denotar o suntuoso, as

proporções exageradas. O Dalai atrai. O verbo atrair, por si só, já garante a

atualização do sentido de algo que quase não se pode evitar, já que promove a

aproximação, conquista a atenção, desperta o interesse e provoca movimento,

atitude. E segundo a revista, isso não se dá apenas com alguns indivíduos, mas

com milhões de pessoas. O substantivo milhões igualmente expressa grandeza,

magnitude. E enunciado implica a pressuposição de não se tratar de um

acontecimento isolado ou sem expressão, mas de um fenômeno com números

densos. A seguir, temos a oração adjetiva que buscam a paz interior a qual se

converte num convite: “Se você busca a paz interior, leia essa entrevista com o

Dalai Lama!”.

Num segundo enunciado, na mesma capa, temos Por que o budismo

cresce no Brasil e conquista, mais e mais, fiéis de outras religiões, prometendo

explicar o motivo do fenômeno e trazendo explicitamente duas afirmações, que

funcionam como operadores argumentativos: cresce no Brasil e conquista, mais e

mais, fiéis de outras religiões.

Na Introdução deste trabalho, mencionamos que houve no cômputo do

Censo do IBGE do ano 2000, um aumento de 4% do número absoluto daqueles

que se denominaram budistas, com relação à estimativa anterior. Dissemos ainda,

que o número efetivo de membros da religião não seria o foco central de nossa

pesquisa, mas sim, de que maneira poderíamos caracterizá-la como um

‘fenômeno-produto’ da mídia. Época confirma isso, na medida em que afirma que

o budismo cresce no Brasil, não importando informar em que proporções. Basta

apenas dizer que cresce. Ainda com relação a números, à p. 71, menciona-se que

aqui, o líder já vendeu quase 900 mil exemplares de cerca de 30 títulos nos

últimos quatro anos, proporção considerável num país em que as pessoas lêem

pouco e numa época em que o livro tem que brigar por espaço, com outros

suportes, como a TV e a internet. Para a revista, não importa o que isso significa

em termos quantitativos, mas, sim, importa ser incisiva no fato de que a religião

cresce.

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Retomando o último enunciado, o advérbio mais e mais pontua o sentido de

uma ‘continuação’. Não há só a conquista de fiéis de outras religiões, mas isso

ocorre num progressivo movimento. Ocorre, de certo modo, uma contradição entre

o esse enunciado da capa e outro emitido pelo Dalai Lama no interior da matéria,

ao afirmar que Não quero converter ninguém ao budismo (o qual será analisado

oportunamente), uma vez que, ao invés de querer conquistar fiéis, o monge

assevera que cada indivíduo tem sua própria disposição mental e deveria escolher

uma religião apropriada a ela (p. 73). Isso nos remete, textualmente, mais à

questão da tolerância a outros credos, do que à conversão ao budismo.

Atentamos para o fato de que para a revista importa construir a representação de

um fenômeno espetacularizado, cuja grande estrela é o próprio monge budista.

Sobre ele, as descrições nas revistas estudadas não são contrastantes, ao

contrário, propõem idéias recorrentes. Em Época (p.71): Sua presença é menos etérea do que se esperaria de alguém apontado como uma encarnação de Buda. Os gestos são entusiasmados, o aperto de mão é enérgico e a risada sem censura faz até o que não tem graça soar divertido.

Já na Superinteressante (ago. 2001, p. 48), vemos: Ele tem o riso fácil, a cabeça raspada, usa óculos enormes (...). É alegre e curioso. Demonstra querer saber de tudo como se, aos 66 anos, ainda fosse uma criança descobrindo o mundo. Inquire seus circundantes a todo momento.

Esse ar de alegria e “riso fácil” é ratificado se analisarmos o aspecto icônico

apresentado pela mídia. Percebemos que nas imagens em que o Dalai aparece, o

sorriso é uma constante: Época traz 11 fotos do monge, em oito ele está sorrindo:

capa, índice (p. 06), página 70 (inteira), duas da página 71, com o Papa João

Paulo II (p. 72), numa conferência (p. 73) e na p. 76, ao lado de alguns de seus

preceitos; a Superinteressante (ago. 2001) expõe menos fotos, são cinco ao

todo. Todavia, em três (capa, página 47 (inteira) e p. 49) ele esboça um semblante

sorridente. O mesmo gesto ele tem nas duas fotos em que aparece na revista

Budismo (2004).

4. 2. As isotopias nas revistas

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Em itens passados já tivemos o cuidado de promover análises a respeito da

representação do budismo na mídia. Nesse ponto que agora iniciamos, mais detidamente

iremos abordar determinados enunciados (alguns serão retomados, numa perspectiva

diferente), lançando nosso olhar interpretativo, com o fim de verificarmos de que modo

podem se operar isotopias. Aqui, nosso foco é basicamente o corpus selecionado, muito

embora observemos outros suportes, a título de melhor aclarar nossas análises.

4.2.1. Sincretismo / Hibridismo

Consideramos nessa pesquisa a noção de sincretismo enquanto a fusão e / ou

conciliação de religiões e o desdobramento de suas tradições.

Na revista Época, p. 78, lemos que:

A cada ano, novos templos e centros das mais diversas linhagens são abertos no país. Há desde opções mais intelectualizadas, na linha zen, até opções mais devocionais, que privilegiam a figura do mestre ou lama (como na vertente tibetana), até o mais popular budismo de resultados, voltado para a solução de problemas de saúde ou financeiros. São 246 mil seguidores segundo o IBGE, número três vezes maior que o de judeus e duas vezes maior que o de seguidores do candomblé. Mais que isso, porém, cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam práticas budistas com suas próprias crenças. (grifos nossos)

A atmosfera budista é criada na matéria, pelo caráter narrativo que passa a se

instaurar. No nível figurativo, percebemos a construção desse sentido, com a utilização dos

termos templos, centros, mestre ou lama. Para a autora, é importante denotar uma idéia de

que templos e centros são erigidos, não de forma esporádica, mas A cada ano, ou seja, isso

garante o caráter espetacular do tema em questão.

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Segundo GREIMAS e COURTÉS (1979, p. 398), no interior do nível figurativo do

discurso, há dois patamares, o da figuração e o da iconização. Aquele se refere à

disposição, ao longo do discurso, de um conjunto de figuras; este busca, num estágio mais

avançado, “vestir” essas figuras, torná-las semelhantes à “realidade”, criando a ilusão

referencial.

Particular ao budismo é a figura do lama, ou mestre (como a própria matéria

explica). Lama seria, pois, o instrutor dos ensinamentos, aquele que transmitiria aos

devotos as práticas alusivas a cada corrente, o que não exclui a possibilidade de professores

leigos, sem professar os votos necessários para se tornar um lama (verificamos essa

atividade em textos de outras revistas, conforme veremos adiante). Essas palavras fazem

parte do cotidiano daqueles que conhecem o budismo e a utilização delas na figuratização,

certamente está inscrita na estratégia discursiva da enunciadora. No aspecto icônico, que

busca justamente essa ‘corporalização’ de uma figura (no caso, do lama) há uma foto de

quase meia página do lama brasileiro Michel Rimpoche, um rapaz de 21 anos que, aos 12,

foi indicado como a encarnação um importante mestre tibetano (Época, p. 78). A

encarnação e, com ela, a reencarnação são igualmente termos relevantes para a

caracterização temática, uma vez que são abordadas recorrentemente no universo budista.

O que nos faz perceber a presença de sincretismo, concebido enquanto a fusão e/ou

conciliação de tradições religiosas, é a representação da pluralidade de ‘budismos’ no

Brasil: A cada ano, novos templos e centros das mais diversas linhagens são abertos no

país. Discursivamente, em seu próprio interior, a religião é representada como sendo não

pura, não decretando dogmas inquebrantáveis a serem obedecidos por todos que a seguem;

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leva-se o leitor a verificar a idéia de diversas linhagens. Essa diversidade precisa ser

mostrada, no que tange à representação social do budismo na mídia. Opções são dadas, com

o uso de uma linguagem descontraída, que garante a proximidade com o leitor, podendo se

perceber algo do gênero: “Veja, o budismo traz a você várias alternativas, escolha a sua,

porque é muito fácil!”: zen, tibetano ou budismo de resultados. O artifício da linguagem

informal é muito usado em publicidades, em que é preciso levar as pessoas a consumir um

produto. De algum modo, a autora do artigo da revista quase se aproxima desses recursos

de persuasão publicitária, com essas múltiplas ofertas no texto.

Outro aspecto que permite-nos observar a isotopia do sincretismo é o enunciado

cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam práticas budistas com suas

próprias crenças. O próprio verbo misturar que remete o leitor ao significado de

heterogeneidade, diversidade, fusão. Qual é a identidade do religioso, dito budista, no

Brasil? Talvez não possamos ter, ao certo, uma resposta para isso, como já citado no

presente trabalho. Os atos de meditar ou de ler o Dhammapada (livro de aforismas de

Buda) não são um certificado de pureza religiosa, uma vez que os indivíduos, na sua

natureza multifacetada, não vêem inconveniente em misturar isso com aquilo que

acreditam na sua religião declarada ‘oficialmente’. O que é confirmado à página 79 de

Época: Nas estatísticas, não se sabe até que grau o entrevistado segue sua fé de maneira

exclusiva ou em combinação com outras doutrinas e práticas, esclarece Usarski, da PUC.

(Frank Usarski, professor da PUC de São Paulo).

O substantivo grau, em si mesmo, pressupõe níveis, os quais, obviamente, não

podem ser mensurados quando se menciona o tema religião. Também no enunciado aparece

o adjetivo exclusiva. Questionamos, o que pode ser chamado ‘exclusivo’ no que concerne a

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esse tema? O ser humano, na sua complexidade psicológica, não raro faz inúmeros

questionamentos sobre a dimensão religiosa. Não acreditamos ser possível professar

unicamente um pensamento religioso, muito embora, socialmente queiramos nos colocar

em categorias específicas, pela ilusão de uma identidade única.

Observamos o termo combinação, o qual se aproxima mais especificamente à noção

de sincretismo. O leitor vislumbra a possibilidade de atrelar diferentes modos de pensar,

ainda que possam parecer contraditórios (sobretudo se a fé ‘oficial’ se contrapuser aos

preceitos budistas). À continuação (Época, p. 79), lemos:

A advogada Perside Guimarães, por exemplo, foi presbiteriana por anos e hoje é praticante regular do budismo, mas hesita quando interrogada sobre sua denominação. “O budismo é uma religião se quiser que seja. É também filosofia e ciência”.

A entrevistada presbiteriana / budista hesita sobre a sua denominação e se justifica

ao classificar o budismo nas categorias da filosofia e da ciência. É quase que uma tentativa

de se sentir absolvida (caso seja pecado ser budista), pois, em seu discurso, demonstra sua

crença de que possa não ser religião. Independentemente do sentido que possamos inferir

com essa análise, textualmente se configura a reiteração do traço semântico do hibridismo,

do religioso sincrético, o qual não pode ter efetivamente apenas uma nomenclatura, mas é

inserido num patamar novo, do diverso.

Outro traço marcante, analisado na perspectiva do sincretismo, pode ser

representado a seguir (Época, p. 79):

Noções budistas, como a que enfatiza a possibilidade de aperfeiçoamento a partir da iniciativa individual, casam com o estilo de vida contemporâneo. A valorização da experiência pessoal era enfatizada pelo próprio Buda. Segundo o fundador da religião, cada pessoa deveria experimentar na pele o que ele dizia e não apenas aceitar as idéias do mestre como verdades absolutas.

Nesse sentido, são emparelhados dois momentos histórico-ideológicos

completamente distintos: o estilo de vida contemporâneo (leia-se o estilo ocidental, a que a

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autora do artigo faz referência, visto ser ela mesma ocidental, falando para o público

brasileiro) e o da época do fundador da religião. No plano figurativo, a presença de Buda se

mostra um importante recurso de captação do leitor. Representa-se que aquilo que foi

ensinado por ele continua atualizado até os dias de hoje, entretanto sejam necessárias

‘adaptações’ ao período histórico pelo qual passamos. Semanticamente, acreditamos que

isso só seja plausível diante da noção de sincretismo. O ocidental, inserido no século XXI,

‘experimentando’, ou seja, vivenciando, trazendo para sua realidade cotidiana, as prédicas

do ‘mestre’ maior do budismo. Evidentemente, essa prática não é realizada de modo

original, puro, exatamente como o fez Buda, há 2.400 anos atrás, mas numa manifestação

sincrética e híbrida.

A capa da revista Isto é tem como título O BUDISMO SAI DO TEMPLO, também

apresentando como processo de figuratização a palavra templo. Acima, há uma das tantas

representações da figura de Buda, completando esse processo em seu aspecto icônico,

associando o leitor ao universo cultural da religião.

Em seguida, um subtítulo é apresentado:

A religião fica mais próxima da realidade brasileira, se engaja em projetos sociais, ganha

mais adeptos e abrirá, no Brasil, a primeira universidade budista da América Latina. No

interior da matéria (p. 49), os autores Ana Carvalho e Camilo Vannuchi falam que

No Brasil, o budismo encontrou o “caminho do meio”. Além de não excluir seguidores de outras religiões e não ser fundamentalista, ele sai do monastério e começa a se “abrasileirar”, sem, no entanto, 2222222abrir mão de seus preceitos.

‘Caminho do meio’ é uma alusão a uma das prédicas budistas, referindo-se a

alcançar o equilíbrio. Há uma forte estratégia de instituição do leitor-modelo, no sentido de

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fazê-lo compreender que o budismo está irremediavelmente na cultura brasileira e que ele

aceita todos os tipos de pessoas, pois não exclui seguidores de outras religiões, pois não é

fundamentalista. Em termos históricos, Eco (1998, p. 111) diz que o fundamentalismo é um

princípio hermenêutico ligado à interpretação de um livro sagrado. O fundamentalismo

ocidental moderno nasce nos ambientes protestantes dos Estados Unidos do século XIX.

Atualmente, o termo fundamentalismo teve seu significado ampliado. Concebe-se como

fundamentalista qualquer movimento ou corrente supostamente conservadora ou integrista,

que visa à obediência irrestrita a princípios básicos. No enunciado acima expresso, faz-se

menção, obviamente, a um fundamentalismo religioso.

Ao aceitar indivíduos que hipoteticamente pertencem a outro credo, firma-se a idéia

da convivência harmônica entre os não-pares e, conseqüentemente, daqueles que são

diferentes, por isso, entendemos ser esse um caminho semântico de como o sincretismo é

representado.

Há a representação de uma religião que sai do monastério, figura comum a temas

religiosos, que, especificamente, constrói o sentido de isolamento e de introspecção, para se

“abrasileirar”, podendo-se fazer alusão ao senso comum das idéias de ‘alegria’ e

‘vivacidade’. O caráter de hibridismo, no que tange à identidade cultural e, mais

detidamente, religiosa, faz-se, necessariamente, presente. Imbricadas ficam as culturas

budista e brasileira, pois, ao se abrasileirar, o budismo passa a ter um pouco do país, apesar

de não abrir mão de seus preceitos. Mais uma vez percebemos a isotopia do sincrético, sem

a qual não se poderia entender a representação social da religião na mídia ora estudada.

O verbal continua a determinar o sentido da leitura que, figurativamente, aponta:

Majoritário na China, no Japão, no Tibete e no Sri Lanka, o budismo se alastra no país do

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ecumenismo, quase 2.400 anos após sua formação (Isto é, p. 50). A seqüência dos países

faz com que o leitor primeiramente se distancie do budismo, fazendo-o parecer algo

distante de nossa ‘realidade’. Entretanto, em seguida, os autores usam dizem que ele se

alastra no Brasil. Não apenas cresce, alastra-se, numa escolha lexical que denota o exagero

e, ao mesmo tempo, a proximidade: ‘O budismo está aqui’, ‘diz’ o leitor-modelo. China,

Japão, Tibete, Sri Lanka e Brasil são postos, discursivamente, no mesmo patamar. Com

referência à opção do termo ecumenismo, nitidamente vemos o intuito de trazer ao leitor o

tema de “diferentes tradições religiosas”. Em termos semânticos, ecumenismo é um

movimento favorável à união de igrejas cristãs. Ou seja, no país que já tolerava a co-

existência entre diferentes credos cristãos, o budismo consegue seu lugar.

Igualmente na p. 50, da revista Isto é, lemos:

O censo realizado em 2000 pelo IBGE aponta que o budismo é a religião de 246 mil brasileiros. Desses, apenas 81 mil se declararam de cor amarela, o que reflete seu poder de conversão. Se o número absoluto cresceu 4% na última década, os budistas que não se identificam como orientais saltaram cerca de 13% no mesmo período.

A nosso ver, a leitura proposta enfatiza também a heterogeneidade das identidades.

O brasileiro, com uma forte tradição cristã (com a igreja católica, as protestantes e, mais

recentemente, as evangélicas), adere a preceitos budistas, embora, como já afirmado, não se

possa mensurar o grau dessa conversão, pois não se sabe até que ponto um cristão

permanece com suas crenças, executando ao mesmo tempo práticas, tal como a meditação,

lendo livros sobre temas budistas, como os do Dalai Lama, ou até mesmo freqüentando

templos desse credo. O fato de ter origem oriental não é levado em conta, uma vez que as

raças estão perpassadas umas pelas outras. Não se pode categorizar a religião das pessoas,

levando em consideração apenas as suas tradições ou as de seus ancestrais. O cenário

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mundial (e o brasileiro também) requer um olhar sob o prisma daquilo que é cindido e

fragmentado, e as noções de pureza, originalidade dão lugar a essas novas concepções.

Já mencionado na matéria de Época, Frank Usarski (PUC-SP) aponta em Isto é (p.

50) que: Metade das pessoas que se consideram sem religião se aproxima muito da

filosofia budista. Religião? Filosofia? O enunciado do professor Usarski constrói um

sentido de que mesmo sem religião você pode ser budista. Discursivamente é apontado um

novo budista: aquele que talvez não professe nenhuma crença. Desse modo, verificamos

mais uma forma de representação disso que estamos chamando de sincretismo. Não é

necessário ser oriental, nem abandonar suas antigas crenças, nem mesmo ter uma religião

para se aproximar dos ensinamentos de Buda, segundo o modo de ler, instituído nos textos

das revistas.

Na seqüência, lemos em Isto é (p. 50): O resultado desse crescimento, que faz ultrapassar a casa do meio milhão de simpatizantes e adeptos, é a inevitável ocidentalização da doutrina e uma evidente preocupação em transpor as paredes dos templos e assumir práticas cada vez mais engajadas de inserção na comunidade. Historicamente identificado como religião individual e contemplativa – já que assume como princípio a idéia de que cada um é responsável por sua evolução –, o budismo brasileiro ganha força ao lançar projetos grandiosos que atendem às expectativas solidárias.

Nesse enunciado, o termo ocidentalização nos remete, quase que de modo

imediato, à idéia de globalização, em que tudo estaria interconectado. Nessa

perspectiva, para sobreviver, a religião também teria de se adequar ao modo de

vida ocidental, transpondo as paredes dos templos e se inserindo na comunidade.

Portanto, podemos inferir, textualmente, o sentido de que passa a existir um

budismo ‘abrasileirado’, mas com contornos não tão delineados e, por isso,

híbridos, já que ainda resta o princípio de que cada um é responsável por sua

evolução (isso continua prevalecendo na doutrina até os dias de hoje), entretanto

que passa também a assumir práticas solidárias. O discurso de solidariedade, que

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tem grande circulação no Brasil, será mais detidamente analisado na abordagem

que nos propusemos acerca da isotopia da Alteridade / Compaixão.

Na mesma matéria (Isto é, p. 51), os autores mencionam que o caráter não proselitista do budismo é, talvez, o maior responsável por sua propagação no Ocidente. O especialista Frank Usarski considera a falta de compromisso com uma única doutrina a principal característica do budismo brasileiro. “Muitas vezes, o praticante freqüenta um templo durante um ou dois anos e volta a visitá-lo sem constrangimento. Milhares de brasileiros praticam meditação e adoram livros do Dalai Lama, mas continuam indo a missas ou cultos”, explica.

Semanticamente, prosélito é aquele indivíduo convertido a uma doutrina.

Esse caráter do brasileiro de não exclusividade a um só pensamento religioso

deve-se até certo ponto ao que Carvalho (1991, p. 4) disserta sobre a rejeição da

religião estabelecida, no caso, o catolicismo, acarretando a configuração de uma

tradição cultural nova, com seus padrões e estilos expressivos próprios (Carvalho,

op. cit. p. 6). Seguindo esse percurso, a relação entre a tradição religiosa budista e

a forma como o credo é assimilado no Brasil não pode ser entendida como algo

linear. Tradição no budismo e (Pós)Modernidade brasileira estão num estado de

interdependência e interpenetração, gerando, assim, identidades heterogêneas.

Por isso, vislumbra-se a possibilidade do cristão freqüente à missa que medita e lê

livros do Dalai nos quais invariavelmente são abordados temas que vão totalmente

de encontro aos dogmas católicos, como é o caso da reencarnação, somente para

citar um exemplo. Na fala do especialista Frank Usarski encontramos o sentido

construído sobre as bases do sincretismo, entendido enquanto a conciliação ou

fusão de tradições religiosas.

Isto é (p.51) traz uma entrevista com o monge Segyu Rinpoche. Assim ele

é descrito: Antônio Carlos nasceu em agosto de 1950, no Rio de Janeiro, numa família católica. (...)Mergulhou de cabeça na umbanda. (...) Em 1982 decidiu estudar budismo tibetano nos Estados Unidos (...) Atualmente, mora entre o Nepal e os Estados Unidos e está à frente de vários centros, inclusive um em Porto Alegre (...) falou a ISTOÉ sobre o abrasileiramento do budismo.

O monge assim fala: Sou totalmente favorável à adaptação dos ensinamentos do budismo à nossa cultura, sem alterar a sua essência. Trabalho muito nessa direção.

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Esse abrasileiramento ou essa adaptação dos ensinamentos do budismo à

cultura brasileira são temas conhecidos e principalmente propostos pelo religioso.

Tal como o Dalai Lama e a monja Coen, ele demonstra consciência de que para a

religião ser difundida ela não pode se ‘fechar’ dentro dos templos e precisa, se

quiser alcançar as pessoas, adaptar-se a esse sujeito que tem como característica

marcante a heterogeneidade. Por outro lado, há a preocupação do religioso de o

budismo não perder sua essência, o que traz à tona a tensão entre a tradição (o

que pode ou não ser considerado original do budismo) e o sujeito multifacetado,

com sua identidade fragmentada, que não se pode rotular de modo pacífico e que

muitas vezes nem se admite um rótulo. Apesar desse jogo de forças antagônicas

expresso através do discurso, podemos inferir um sentido de que a religião não

pode ser entendida como algo exatamente fixado, delineado, estático.

Outro enunciado trazido pelos autores da matéria confere ao leitor a

construção do mesmo significado (Isto é, p. 52): Estima-se a existência de 160 grupos budistas no Brasil. Em alguns deles, a preocupação em adaptar os ensinamentos de Buda para a cultura ocidental é tamanha que há quem estude a tradução de orações e mantras para o português.

No interior da religião não se pode afirmar um estado de pureza, visto que

cada linhagem traz uma proposta diferente de interpretação e de vivência dos

preceitos contidos nessa fé. Outra característica que deve ser apontada é que não

há um único grande líder que rege todas as nomenclaturas budistas – cada grupo

do budismo tem sim um lama ou dirigente maior – mas não uma figura central

como a do Papa para o Catolicismo. Outro fator é que os membros das diferentes

correntes budistas promovem continuamente o diálogo entre si. Um exemplo

público disso foi a presença da monja Coen (zen-budista) no Ginásio do Ibirapuera

(São Paulo) quando da visita do Dalai Lama (budismo tibetano) ao Brasil, fato

ocorrido no dia 29 de abril de 2006.

O já citado lama brasileiro Segyu Rinpoche menciona que todas as pessoas

são Budas em potencial, o que oferece um plano de leitura que em outras

palavras, proporia ao leitor a seguinte idéia: ‘Você é uma pessoa comum e pode

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vir a se tornar um Buda!’. Essa proposta tem um forte apelo de captação do

enunciatário. Ele se vê incluído na possibilidade de ser um ‘iluminado’ e isso já

cria uma atmosfera de simpatia pela religião.

Um interessante exemplo de como textualmente se dá essa isotopia do

hibridismo / sincretismo pode ser observado no trecho seguinte (Isto é, p. 53): “A meditação funciona como um fio terra. Tira o stress do corpo e da mente. É um antídoto para a tensão da nossa atividade”, conta o tenente Leonardo Nunes Barreto, 50 anos, que faz dois cursos no templo3e propõe inseri-lo na formação de oficiais.

Um dos ensinamentos difundidos pelo budismo é a meditação, a qual já traz

implicitamente em seu significado o ato de contemplação que proporcionaria um

estado de tranqüilidade. Já a profissão de policial militar (o tenente Barreto

aparece em foto no canto da página, fardado e em posição militar de descanso:

com as mãos para trás e as pernas levemente afastadas) nada tem de

contemplativa ou harmoniosa. Ao contrário, há no imaginário das pessoas a idéia

do policial truculento que tem de lançar mão da violência em seu trabalho. A fusão

budismo – polícia militar, outrora inimaginável, é estampada numa revista de

grande circulação nacional, demonstrando, icônica e discursivamente, que

significados tão diametralmente opostos podem se imbricar, apresentando o militar

meditativo.

Passemos agora a fazer considerações em torno da revista Budismo. À

página 24 há um pequeno box com o título: Para ser um budista. O que vale para

nosso estudo é o primeiro período: Mesmo quem já tem outra religião, pode se

tornar um, que continua a instituição do leitor-modelo, que pode ser caracterizado

como a apologia do híbrido, do sincrético, uma vez que não importa se é

professada uma fé, pois o budismo, segundo o enunciado, permite que esse leitor

torne-se seu praticante. No título é usada uma linguagem informal, quase como a

dos manuais: ‘Para ser um budista’ equivaler-se-ia a :‘Para acertar o relógio’, ‘Para

voltar ao menu’, trazendo um significado implícito de facilidade, simplicidade e até

mesmo comodidade. Dizendo de outro modo: ‘Leitor, veja como é fácil ser

3 O templo a que o excerto se refere é o Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu, no distrito de Vitória, no Espírito Santo, conforme cita a revista Isto é, p. 53.

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budista!’, o que acaba gerando um tom, até certo ponto, mercadológico nesse

apelo. Ao lado desse box, observemos outra curta matéria (menos de meia

página), intitulada Mas o que o budismo tem de tão atraente? O articulador

sintático mas não traz consigo a idéia de oposição. O que se verifica é um sentido

afirmativo, de completa obviedade: o budismo é atraente, muito embora tenha sido

formulado um questionamento, a pergunta já oferece essa constatação. Ao longo

do texto (cujo autor não foi indicado) são apresentadas possíveis causas para

essa atração, como a que segue: Sem impor proibições, nem pregar conceitos

muito moralistas, o budismo possui uma doutrina bem realista, que enxerga o

sofrimento como algo intrínseco à existência humana. Denota-se nos enunciados

a mesma facilidade explicitada no trecho do parágrafo anterior, ao se negar a

concretização de temas que invariavelmente são particulares às religiões: as

proibições, o moralismo, aqui declarados de modo visivelmente pejorativo. Na

seqüência diz-se que Diferentemente de algumas religiões cristãs, o budismo não disputa fiéis e não estimula a fé cega (...) Os mestres budistas não procuram ser gurus. Eles acreditam que as pessoas não devem depender do monge, do lama ou do budismo para ter fé – devem se voltar para a espiritualidade por si só.

Novamente é construída uma forma de ler, que move a atualização

do texto para a noção de independência: não é necessário ter a presença de um

religioso budista para ser um praticante, diferentemente da figura do padre, que na

Igreja Católica é tido como o representante de Deus na terra e de quem os fiéis

dependem para ministrar os sacramentos e os rituais desta instituição. De acordo

com o enunciado, qualquer mortal poderia chegar a ‘iluminação’ preconizada por

Buda. No discurso dos dirigentes budistas, o sentido de se voltar para a

espiritualidade por si só é efetivamente reproduzido, como veremos com mais

detalhes no estudo da isotopia do diálogo inter-religioso.

4.2.2. Compaixão: a alteridade no budismo

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Na perspectiva do nível temático, necessária se faz a abordagem da visão que o

budismo faz do ‘outro’, representada socialmente em nosso corpus. O Dalai Lama, em O

livro da Sabedoria (2000, p.91), fala sobre a importância de se conhecer o significado de

compaixão. Segundo o líder tibetano, ela

se baseia em uma clara aceitação ou reconhecimento de que os outros, como nós mesmos, querem a felicidade e têm o direito de superar o sofrimento. Com base nesse ponto, desenvolvemos algum tipo de interesse pelo bem-estar dos outros, independentemente da atitude deles para conosco. Isso é compaixão. (grifo nosso)

Nesse sentido, partindo do pressuposto de que compaixão é o interesse pelo bem-

estar dos outros, procuraremos perceber, por meio da análise do tema compaixão, como se

estabelece a isotopia da alteridade, nos textos estudados.

Algo que nos chama a atenção, é a quantidade grande de ocorrências desse tema

quando o budismo é tratado. Iniciando com a revista Época, p. 71, a autora Paula Pereira

cita que o Dalai Lama ‘arrebanha’ multidões em audiências públicas nas quais prega a paz,

ensinando preceitos do budismo a platéias lotadas e escrevendo livros sobre compaixão e

ética, que são best-sellers. À página 72, diz que ele Há anos repete as mesmas receitas

singelas de “desenvolver a compaixão pelos outros”. Dois os termos que implicam o

sentido de que o tema compaixão é recorrente: Há anos e repete. A escolha lexical pede ao

leitor para compreender que falar em compaixão é algo comum nos discursos do

representante budista. Não é um assunto novo, já que ele é ‘repetido’, ou seja, a

consideração do outro, segundo os ensinamentos da religião, é reiterada constantemente.

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O tema está novamente explicitado em Época (p. 76), em nada menos que cinco

citações de Dalai Lama, o que nos permite apontar a isotopia da alteridade, pela estratégia

discursiva de fazer referência ao tema compaixão:

a) (...) A compaixão e o altruísmo nos trazem autoconfiança e paz mental. Nesse trecho, a

compaixão é associada ao altruísmo, o qual semanticamente passa pela abnegação, pela

tendência a se preocupar com o outro. Interessante é o fato de os dois conceitos, que se

referem àquilo que vemos no outro, relacionarem-se, conforme a visão do religioso, com a

autoconfiança, que é um sentimento ligado à própria pessoa. Existe, em seu discurso, uma

inversão: ‘Olhe para o outro, entretanto isso não será benéfico para aquele que você lança o

olhar, mas para si mesmo.’ Essa temática de ‘amor ao próximo’ não é privilégio do

budismo e sim do imaginário das religiões e o modo como são dispostas as palavras garante

a formação dessa classe de leitura.

b) Se não puder ajudar, ao menos não faça mal a outros: novamente a presença da isotopia

da alteridade, na qual está imbricada a compaixão. A dicotomia bem x mal está

representada pelos termos ajudar e mal. A constituição do sentido se opera na medida em

que o leitor deve inferir que o budismo prega o bem (se não puder ajudar) em detrimento

do mal (não faça mal a outros). Literalmente, o interesse pelo bem-estar do outro é citado.

c) Os ocidentais querem uma receita mágica para combater a raiva. Isso requer prática

constante de controle e compaixão. O enunciado faz sentido desde que nos remontemos ao

conceito de compaixão apontado acima pelo Dalai: ele menciona que devemos nos

interessar pelo bem dos outros, independentemente da atitude deles para conosco, isto é,

posso gradativamente vencer a raiva exercitando essa postura de aceitação. Todavia, para

isso é necessária a prática constante, incitando o leitor a construir um sentido de que no

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budismo requer-se uma disciplina, pois não existe uma receita mágica. No nível figurativo,

são citados os ocidentais, nos quais há toda uma caracterização discursiva que promove a

apologia do ‘indivíduo pós-moderno’, daquele que vive no mundo da agilidade, em que

‘tempo é dinheiro’. A vida no ocidente é contrastada, implicitamente, por um não-dito que

nos remete ao modo de pensar oriental, em que a observação, a quietude, a serenidade

valem mais que a rapidez da informação e as constantes transformações culturais e sociais.

Em outras palavras, de certa forma o estilo ocidental precisaria ser ‘freado’ mediante um

controle e o exercício da compaixão.

d) Cada ato tem uma dimensão universal, por isso é preciso ter responsabilidade e

disposição para beneficiar os outros, em vez de cuidar apenas dos próprios interesses. Um

dos princípios do budismo é o da interdependência. Segundo ele, tudo no mundo estaria

relacionado, cada ato individual refletiria, pois, nas outras pessoas. Desse modo, o leitor é

interpelado a ter responsabilidade sobre os outros. O modo de produção do sentido

determina que suas ações e as dos semelhantes devem ser postas numa mesma dimensão,

visto que o leitor deve ser responsável. Contudo, isso não é suficiente, cabe ainda que se

tenha disposição para exercer a compaixão, já que ela implica um ato de benevolência.

e) A melhor forma de se aproximar da morte sem remorsos é agir de maneira responsável,

tendo compaixão pelos outros agora. Mais uma vez há a escolha lexical do termo

compaixão, atrelando-a a outro tema recorrente no que concerne às religiões: a morte. Aqui,

há uma forma de determinar a leitura por parte do enunciatário, na qual ele precisa ser

compassivo em vida, para não se arrepender na aproximação de sua morte. No budismo, até

que o discípulo se liberte dos desejos e da ignorância, não se livrará do incessante ciclo de

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nascimentos e mortes. No Dhammapada – Caminho da Lei (2000, p. 34), dos aforismos

atribuídos ao próprio Buda, encontra-se uma relação com o enunciado acima exposto:

155. Aqueles que não levaram uma vida pura, disciplinada, que na juventude não recolheram as riquezas dos ensinamentos, perecem como velhas garças tristes às margens de um lago sem peixes.

Em Época (p. 77), ao final de sua entrevista, o Dalai Lama diz: (...) meu dia inteiro deveria ter sentido e ser útil para os outros. Toda a minha vida deveria ter esse propósito. É preciso servir de alguma maneira. E esse é apenas o primeiro passo para se tornar um Buda (risos).

Assim o monge conclui sua fala. Confere ao outro o sentido e meta da sua

própria existência. Faz alusão ao ‘serviço’. Servir às pessoas é um tema que faz

parte do imaginário religioso, o que o coloca num lugar do discurso: ao mesmo

tempo que se inclui no ato de ser útil, interpela o leitor a fazer o mesmo, uma vez

que ele afirma que É preciso servir de alguma maneira. Completa com a

informação de que esse é o primeiro passo para se tornar um Buda, tamanha a

importância do ato. A legenda contendo a palavra ‘risos’ também colabora no ato

interpretativo do leitor, demonstrando um ar de sutileza, intimidade, o que é

bastante presente nas representações icônica e textual do Dalai Lama.

Finalizando a análise de Época (p. 79), em matéria sobre A ascensão do

budismo no Brasil, Vera Andrada, psicóloga e autora da tese Conversão ao

Budismo Tibetano, afirma que as pessoas se interessam por itens como a

responsabilidade pelo meio ambiente, a ênfase na felicidade construída sobre

bases altruístas e o debate com as ciências. Há, pois, o atrelar da felicidade

conquistada em função do outro, pois ela está baseada no altruísmo. Constrói-se

o sentido de que, segundo a percepção budista, pode-se ser feliz se houver a

preocupação com os outros indivíduos. Isso funciona também como uma

interpelação. Assim sendo, o budismo encontra campo fértil em terras brasileiras,

principalmente levando-se em conta, que muitas vezes seu povo se auto-intitula

solidário.

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No início da matéria Além do TEMPLO, veiculada em Isto é (p. 49), recorre-

se ao tema compaixão para se explicar a própria religião, visto que Sidarta

Gautama (assim os autores Ana Carvalho e Camilo Vannuchi redigiram o nome de

Buda) mostrava que todo sofrimento podia ser combatido com meditação,

moralidade, sabedoria e compaixão. Há, novamente, uma condução do leitor ao

seu lugar de interpretação: ‘Veja, todo sofrimento pode ser combatido, dentre

outras coisas, com a compaixão! Se você sofre, leia a matéria!’ O sofrimento é

inerente à existência, isso faz parte da doutrina budista (a que os budistas

chamam de a primeira ‘Nobre Verdade’) e a prática dos preceitos da religião (a

quarta ‘Nobre Verdade’) promoveria a cessação do sofrimento (a terceira ‘Nobre

Verdade’), que tem como causa o ‘desejo’ (a segunda ‘Nobre Verdade’). (Com

relação a nosso corpus, as Quatro Nobres Verdades foram explicadas na revista

Budismo (p. 27)).

É feita referência em Isto é (p. 50) à primeira universidade budista da

América Latina, com sede na cidade de Cotia, estado de São Paulo. Descreve-se

a postura ideológica da monja Sinceridade, superiora do monastério onde funciona

a instituição, retomando-se, a nosso ver, o discurso da ‘solidariedade’: Entre

outras motivações, a inauguração de uma universidade gratuita e acessível à

população de baixa renda responde ao propósito missionário da religiosa. Em

seguida, vem a fala da monja que confirmaria a representação proposta pelos

autores do texto: Desenvolvemos um projeto educativo com crianças e

adolescentes carentes e precisamos dar continuidade a esse trabalho.

É tecida uma caracterização do budismo associado à solidariedade também

à p. 53, quando são mencionados os trabalhos da Associação Brasil Soka Gakkai

Internacional (BSGI), que tem uma de suas revistas informativas analisada em

nossa pesquisa. Fala-se que entre outras ações, a entidade desenvolve cursos

gratuitos de alfabetização (...) e há dois anos, inaugurou em São Paulo a primeira

pré-escola budista do Brasil, hoje estendida às duas primeiras séries do ensino

fundamental. A educadora Dirce Ivamoto, diretora da Escola Soka do Brasil refere-

se, de igual modo ao tema da alteridade, quando aponta que o budismo ensina

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que não devemos causar sofrimento aos outros. Na escola, colocamos isso em

prática ao evitar castigos, comparações ou competições.

Há, nesse mesmo sentido de se formar uma isotopia da Alteridade /

Compaixão, enunciados na revista Superinteressante que merecem nossa

análise. Nela, o Dalai Lama é a figura central e é traçada uma descrição de seu

pensamento ao longo da matéria de 9 páginas (p. 46-54). Lemos (p. 49) que para

o Dalai, nada – nem ninguém – está isolado. Uns sempre precisam de outros para

realizar a própria felicidade. Assim, entendemos que novamente é feita a

associação entre a (auto)felicidade e a visão que se tem do ‘outro’. Isso é

confirmado pelo monge em sua obra O Livro da Sabedoria, 2000, p. 107, ao dizer

que quem se esquece dos outros, ou não se importa com eles, acaba agindo em

prejuízo próprio.

Ainda em Superinteressante (p. 51) há um subtítulo destinado à

‘compaixão’, corroborando que, na representação do budismo, ela está

inexoravelmente imbricada com o ‘outro’, conforme vemos: (...) a compaixão enxergaria o sofrimento de forma solidária. A postura aí seria encarar aquele que sofre como um ser em igualdade de condições que precisa de ajuda naquele determinado momento. Ter compaixão, para o Dalai, é lembrar que a dor do outro poderia ser sua. (...) A compaixão estaria intimamente ligada à ação.

Algumas observações devem ser destacadas: há um entrelaçamento entre

alguns temas que são constantemente reiterados no imaginário religioso, o que

colabora para a construção do sentido: a ‘compaixão’, o ‘outro’ (considerado como

um par, visto que é ‘igual’), a ‘solidariedade’ e a ‘ação’.

Explicando o que viria a ser a ética, segundo o ponto de vista do Dalai

Lama, Superinteressante (p. 52) representa esse valor afirmando que vale a

velha premissa de não fazer a ninguém o que não se deseja para si mesmo. Aqui,

é retomando algo do discurso religioso, difundido no Ocidente sobretudo pelas

correntes cristãs.

A humildade, conforme essa revista (p. 53) faz referência, seria, de igual

modo, um valor ligado ao ‘outro’. Diz-se que ser humilde seria enxergar todos os

circundantes como seres iguais – o garoto que pede um trocado no semáforo ou o

presidente da República, construindo o budismo como uma religião que pregaria a

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igualdade entre as pessoas. Os extremos de pobreza-poder são mencionados

para dar um efeito de sentido de completude, ou seja, o budismo não se

esqueceria de ninguém, do menos importante (representado pela figura do garoto

mendicante) ao extremamente poderoso (na figura do representante do mais alto

cargo do Executivo), todos são considerados relevantes para o Dalai Lama.

Ao relatar como vencer a raiva, Superinteressante (p. 54) incita o leitor a

levar em consideração a figura de seus semelhantes: O correto seria o sujeito

sublimar a sua raiva por meio da dedicação a coisas que façam bem a ele e aos

outros. O antídoto para o sentimento, considerado negativo, seria exatamente

dedicar-se, ou seja, efetivamente, agir em prol de si mesmo e dos outros, numa

recorrente alusão ao tema da alteridade.

Em alguns de seus enunciados, a revista Budismo (2004) também fez

menção a esse tema, via desenvolvimento da compaixão, permitindo, pois, uma

leitura isotópica. Percebamos em quais pontos isso se deu. Para explicar acerca

da doutrina budista, o autor da matéria, Cassio Oliveira, trouxe o seguinte

subtítulo: Compaixão irrestrita – uma meta budista, o que por si só, textualmente,

já dimensiona a magnitude do tema, uma vez que aquela não pode ser mensurada

haja vista que é irrestrita, sem limites ou obstáculos que possam se interpor contra

ela. Na seqüência, o texto enumera valores básicos que constituem a conduta

budista, tais como ‘sabedoria’, ‘ética’ e ‘disciplina mental’. Contudo, Acima desses componentes estão (sic) valor máximo: o amor. Sentimento supremo que (...) manifestam-se (sic) na forma de compaixão. É exatamente pela compaixão que muitos seres iluminados, mesmo tendo alcançado o grau de perfeição (o Nirvana), preferem continuar reencarnando como homens ou mulheres para ajudarem (sic) seus semelhantes menos adiantados. A tais seres, o budismo chama de bodhisattvas.

O amor é o grande tema comum e objetivo máximo a ser buscado em todos os

discursos religiosos, possível de ser alcançado, no budismo, pela conduta

compassiva que também seria a responsável pela abnegação por parte daqueles

que chegaram ao Nirvana4 e optam por continuar reencarnando para auxiliar

4 Este estado é chamado Nibbana (em páli, ou Nirvana, em sânscrito: Absoluta Sabedoria, Libertação); caracteriza-se pela extinção de toda afirmação da vida e causa da morte, qualidade de individualidade, o que significa que, pela total eliminação de todos esses ardentes instintos que nos prendem ao processo da vida,

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outras pessoas que ainda não estão ‘iluminadas’. A reencarnação, ou seja, o ciclo

de renascimentos, é novamente um tema retomado no que tange à representação

do credo.

Continuando a verificar a isotopia da Alteridade / Compaixão, recorremos

novamente à entrevista da monja Coen (Budismo, p. 15), no momento em que

Marília di Cesare pergunta: Quando alguém pode dizer que é um zen-budista, uma

vez que não há conversão formal? A religiosa responde que primeiramente a

pessoa começa com um curso de ensinamentos básicos e a partir do ponto que

passa a praticá-los, há a cerimônia de transmissão dos Preceitos Budistas, que nada mais é do que um comprometimento de viver de acordo com os ensinamentos de Buda, que pode ser resumido em: fazer o bem a todos os seres.

Coen aponta para a imprescindibilidade de fazer o bem a todos os seres. No

enunciado, o pronome todos garante a idéia de plenitude do ato de ser bom, numa

visão que engloba, necessariamente, a presença do outro. E, segundo o

direcionamento da forma de ler, o que vale não é apenas ter o intuito de fazê-lo,

mas o comprometimento, que denota a regra, a disciplina, a ordem, a obrigação.

Nesse momento, verificamos a interpelação do sujeito, que é chamado

discursivamente a tomar a determinada atitude diante do contato com a doutrina

budista.

Um dos grandes objetivos do credo é a eliminação dos desejos, dos eus,

conforme já discorremos anteriormente. Para tanto, há uma metodologia que

conduz ao Nirvana (Budismo, p. 28) denominada o Nobre Caminho Óctuplo (os

oito tópicos são enumerados e brevemente explicados). Importante para a

configuração da isotopia ora estudada é a proposta dos seguintes passos trazidos

pela revista: 3. O meio de vida correto – Viver sem prejudicar qualquer um que

esteja ao nosso redor e 7. O pensamento correto – Surge quando a pessoa

desenvolve as qualidades do desapego, da compaixão e da não-violência. Nesse

excerto, a compaixão é mencionada de dois modos diferentes: no primeiro, em

seu conceito de não causar sofrimento aos outros e no segundo fazendo-se

provoca repetidos renascimentos nesta e em outras esferas. (Dhammapada – Caminho da Lei, Trad. Georges da Silva, São Paulo: Pensamento, (o ano de publicação não foi informado), p. 7)

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referência à própria temática. Existe, assim, uma forma de ler que institui a

apologia do ‘considerar o outro’ caso se queira ser budista.

Essa foi a nossa perspectiva com relação à análise da isotopia do binômio

alteridade / compaixão, que, no ponto de vista budista, não pode ser dissociado,

tal qual pudemos vislumbrar sobretudo com os movimentos do percurso temático.

4.2.3. Diálogo inter-religioso

Ao longo da análise de nosso corpus, podemos evidenciar a presença de enunciados

que se remontam a uma isotopia do diálogo inter-religioso. Passemos a descrevê-los.

Na revista Época (p. 72) há uma foto do Dalai Lama oferecendo um lenço de cor

branca (esse ato foi repetido em diversos momentos em sua visita ao Brasil) ao Papa João

Paulo II, com a seguinte legenda: DIÁLOGO – Nos cinco encontros que tiveram, o Papa

João Paulo II e o Dalai Lama partilharam a preocupação com a opressão comunista às

religiões. Procura-se ressaltar o número de encontros entre os dirigentes: cinco, o que nos

remete a uma atividade repetida, com o intuito de enfatizar a relevância desse ato. Existem

algumas similaridades entre esses líderes religiosos: ambos adotaram como estilo de

difusão de suas doutrinas as viagens internacionais. Esse Papa era considerado o que mais

países visitou levando a bandeira católica. Ele tinha, tanto quanto o Dalai tem, a

consciência da necessidade do carisma para se abordar o tema religião nos dias de hoje,

com a utilização reiterada dos meios de comunicação de massa e da mídia escrita. Outro

aspecto similar importante é o fato de que ambos mencionavam em seus discursos a

necessidade de diálogo e de maior tolerância entre as diferentes tradições religiosas.

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O atual Papa, Bento XVI, tendo assumido tal posto, já na homilia de sua primeira

missa, igualmente fez alusão ao diálogo. O site Yahoo! Notícias, de 20/04/05 (acesso às

15h34) repassou nota da Agência Estado, com os seguintes enunciados:

Bento XVI se comprometeu oficialmente a uma abertura no diálogo com outros cristãos e também com outras religiões, garantindo a continuidade da obra de seu antecessor, João Paulo II. "O sucessor de Pedro assume como compromisso primário trabalhar sem economizar energias na reconstituição plena e visível da unidade dos seguidores de Cristo e promover os contatos e entendimentos com os representantes das diferentes igrejas e comunidades eclesiásticas."

Todavia, esse não era o pensamento do religioso enquanto era ‘apenas’ o

Cardeal Ratzinger. Em entrevista concedida ao semanário francês ´L´Express´,

em 20 de março de 1997, afirmou que o budismo seria uma espiritualidade auto-

erótica, que ofereceria transcendência sem impor obrigações religiosas concretas.

Ainda segundo ele, o budismo substituiria o marxismo como o principal inimigo da

igreja católica neste século. Essas afirmações denotam claramente uma postura

de intolerância ao budismo. Percebe-se de modo nítido, que houve uma mudança

estratégica (e política) no discurso do clérigo, que na atualidade sabe que não se

deve afrontar abertamente os membros de outras religiões – caso contrário, corre-

se o risco de criar animosidades com os próprios católicos – nem adotar uma

postura tão fundamentalista. Tal mudança realça a ciência da não mais total

hegemonia da Igreja Católica no Ocidente tal como preconizou José Jorge de

Carvalho (1991). Ainda na p. 72 da revista Época, é iniciada a entrevista com o líder budista,

introduzida pelos dizeres: Para o Dalai Lama, é mais importante promover o diálogo inter-

religioso e a paz mundial. Aqui, o tema ‘diálogo inter-religioso’ é citado literalmente,

associando-o ao da ‘paz mundial’. Textualmente, observamos a construção do sentido de

que para se chegar a essa paz, há que se ter como instrumento o diálogo entre as religiões.

Na atualidade, há um sem número de acordos de paz que visam a minimizar os conflitos

político-religiosos, muito embora verifiquemos que não adianta se falar em diálogo sem

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efetivas transformações nas ações daqueles que detêm o poder político, bem como das

sociedades envolvidas em aludidos conflitos como um todo. Desse modo, vemos que

muitas vezes o discurso está dissociado das atitudes.

Citada pela revista Isto é (p. 53) como o maior grupo budista do país, com

aproximadamente 120 mil membros, a Associação Brasil Soka Gakkai (“Sociedade para a

criação de valores”) foi fundada há 30 anos por Tsunessaburo Makiguti e seu atual

presidente é o Sr. Daisaku Ikeda. Possui com veículos de difusão da doutrina budista

revistas que aqui no Brasil são trimestrais. A edição de abril, maio e junho de 2005 (a partir

daqui denominada SGI) foi selecionada como objeto de nosso corpus, pela relevância da

instituição, acreditando nós que dessa forma poder-se-ia traçar um panorama mais

detalhado acerca da representação do budismo no Brasil.

A SGI tem características editoriais um pouco distintas das outras revistas

analisadas no corpus, uma vez que o público-alvo ou leitor-modelo (aqui considerado no

sentido literal, como um leitor idealizado por aqueles que veiculam as matérias) é

constituído basicamente por indivíduos interessados mais estritamente no tema budismo.

Isso se comprova pelo fato de os números da revista não serem vendidos em bancas de

jornais, nem haver uma divulgação em massa feita pela mídia. Para adquirir os exemplares

é necessário entrar em contato com o Departamento de Comunicação da Associação Brasil-

SGI (situada na Rua Tamandaré, 1007, São Paulo, SP – CEP 01525-001) ou com outras

filiais constituídas no país.

Devemos lançar luzes ao tema ‘diálogo’ pelas inúmeras ocorrências na SGI. Á

página 18, há uma matéria cujo título é Educação de não-violência para jovens, assinada

por Jill Strauss, apresentada como coordenadora de Eduacação para a Não-Violência do

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Templo da Compreensão, uma ONG global e inter-religiosa. Menciona-se que ela

desenvolve programas de educação para a paz e que esteve ativamente envolvida nas

relações de coexistência, inter-religiosidade e interetnicidade no Oriente Médio. Alguns

enunciados – todos na p. 18 – serão analisados com o intuito de ratificarmos a presença da

isotopia do ‘diálogo inter-religioso’. A autora diz:

Os seres humanos são extremamente diversos em sua forma de pensar e de ser. A questão não é se haverá ou não conflito, mas como os seres humanos lidam com a diferença: de opinião, de crença, de história, de cultura etc. Uma não-violência ativa preocupa-se com o bem-estar de todos.

A ‘diversidade’ entre os indivíduos é apontada como algo intrínseco à própria

condição humana. Segundo Jill Strauss os conflitos no modo de pensar e de se comportar

até existirão, entretanto é ressaltada a importância de saber lidar com a ‘diferença’.

Interessante para o nosso recorte, que preocupa-se com a isotopia do diálogo inter-religioso,

é o fato de fazer menção ao convívio com aquele que tem uma ‘crença’ e uma ‘cultura’

diferentes. Ambas estão imbricadas necessariamente: na cultura está inserida a dimensão

religiosa e é imprescindível que se as vislumbre com as lentes da heterogeneidade.

Retomando Hall (2003, p. 69), o mundo é menor e as distâncias mais curtas e com isso, a

cultura e a religião tornam-se ainda menos delineadas, formalizadas e originais. Isso

implica uma mudança de concepção de mundo: o outro, sendo diferente no modo de atuar,

de falar, de se vestir etc. pode estar ao meu lado, não mais existindo ‘fronteiras’

intransponíveis que supostamente poderiam me proteger contra aquele que não conheço ou

não compreendo. A articulista completa esse enunciado afirmando que a ‘não-violência

ativa’ tem de levar em conta esse ‘outro’ e continua:

Durante o biênio 2003 e 2004, fui coordenadora de um projeto de liderança juvenil que incluía um treinamento intensivo de seis semanas sobre educação

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para a paz. Os jovens, entre 15 e 19 anos, vinham dos cinco condados da cidade de Nova York.

Mudanças reais

No final das seis semanas, os jovens adquiriram uma estima maior pelo outro e por suas crenças e etnias, valorizando tanto as similaridades quanto as diferenças.

Interessa-nos verificar como se constrói o sentido dos enunciados. Usa-se o termo

‘estima’, que denota um sentimento de carinho, afeto, respeito por alguém ou por algo. O

‘outro’, suas ‘crenças’ e suas ‘etnias’ passam a ser valorizados, já que por meio do diálogo

são postas em discussão similaridades e diferenças. Há uma forma de ler o enunciado:

‘podemos ter afeição um pelo outro, mesmo sendo diferentes’. Novamente a diversidade é

abordada.

Conclui-se a matéria com as seguintes afirmações:

Com o treinamento para a não-violência e para a paz, aqueles jovens vieram a aprender que, embora os muitos problemas na sociedade possam parecer insuperáveis, cada um de nós tem o poder de empreender ações e criar o diálogo.

É construída uma breve narrativa, cujos personagens são os jovens americanos que

participaram do evento e ainda, a autora do texto e o próprio leitor, que é incluído quando

se diz que cada um de nós tem o poder de agir e dialogar. No nível figurativo, a presença de

‘todos’ implica um chamado, uma interpelação, no sentido de que é necessário participar do

intuito de se criar oportunidades para o diálogo, nesse caso, inter-religioso, intercultural e

interétnico.

Apesar de o relato fazer referência a jovens americanos e as culturas e etnias não

terem sido descritas, quisemos demonstrar como é possível haver a isotopia do diálogo

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Continuando o estudo sobre a SGI, logo na página seguinte (19), há outro artigo

com o título Uma nova era de diálogo: o triunfo do humanismo, assinado pelo presidente

da Associação, Daisaku Ikeda. Cabe ressaltar que a palavra diálogo é repetida, nessa

matéria de apenas uma página, por onze vezes (doze, se contarmos uma frase que é posta

em destaque ao centro e que já havia sido enunciada ao longo do texto).

Comecemos pelo título. A expressão nova era encerra em si mesma todo um

conteúdo místico, que diz respeito da passagem de um tempo de degeneração, sobretudo

espiritual, para um período de luz, paz e amor. Essa idéia de nova era começou a se

propagar principalmente após a década de 60, quando muitas pessoas passaram a buscar

uma maior espiritualidade. Esse é o pensamento da monja Coen, a qual ainda afirma que

dentro desse contexto, o budismo é uma alternativa atraente no Brasil, em virtude de um

certo desgaste da linguagem das igrejas tradicionais, referindo-se, possivelmente, as de

profissão cristã (Budismo, p. 15). Outra palavra utilizada por Ikeda é importante; triunfo.

Não é apenas uma vitória. O sentido é de algo perene, eterno, como se a expressão máxima

do diálogo tivesse como resultado o humanismo.

No primeiro parágrafo (SGI, p. 19), Ikeda diz que com o passar dos anos, engajei-

me em diálogos com líderes de vários campos do mundo inteiro. O presidente constrói sua

argumentação baseando-se na sua própria experiência de vida. Há um efeito de sentido da

apologia da sabedoria, de um discurso de autoridade. Sua sapiência é que busca demonstrar

a necessidade do diálogo. Conforme dissemos, Thompson (op. cit. p. 136) menciona que o

poder político contribui para o processo de globalização ao mesmo tempo em que é afetado

por ele. Nessa perspectiva, Ikeda, bem como já descrito a respeito do Dalai Lama, sabe da

importância de abordar temas aparentemente da esfera religiosa numa arena política e daí

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nasce a crucial importância de se relacionar com diferentes líderes, no ‘mundo inteiro’. O

caráter ‘global’ mais uma vez se apresenta, em detrimento de uma visão exclusivamente

‘local’. Ele acrescenta: Encontrei-me com diversas pessoas e tratei com elas diferentes

pensamentos filosóficos, culturais e práticas religiosas. Representa-se, assim, o budismo,

da linha nitiren (nomenclatura dos membros da SGI), igualmente adotando a idéia de

tolerância, de aceitação (e da presença, via diálogo inter-religioso) do outro. Completa

dizendo (SGI, p. 19): Minha crença, fortalecida ainda mais por essa experiência, é a de

que o fundamento para o diálogo que o século XXI necessita deve ser o humanismo.

Voltamo-nos novamente à referência do tema ‘diálogo’, quando Ikeda fala (SGI, p.

19): Conforme revejo meu próprio esforço para fortalecer o diálogo (...) ganho nova

compreensão da necessidade urgente de redirecionar as energias do dogmatismo e do

fanatismo (...) para uma perspectiva mais humanística.

Em seguida, o budista menciona (SGI, p. 19) que a verdadeira essência e a prática

do humanismo são encontradas no diálogo sincero, de coração a coração. Nesse trecho, o

diálogo, além de ser a finalidade, passa igualmente a ser o meio, o instrumento para o

humanismo, o que demonstra ainda mais a imprescindibilidade daquele na construção de

sentido proposta pelo Sr. Ikeda. Enquanto autor, ele se coloca como aquilo que Eco (2002,

p. 44) chama de uma estratégia textual, lançando mão do discurso do ‘líder religioso’,

voltando-se especificamente ao leitor budista, ao citar a ‘verdadeira essência’ do

humanismo encontrada no diálogo. A ‘verdade’ e a ‘essência’ são termos eminentemente

religiosos, e aqui o Sr. Ikeda fala de um ‘lugar’ religioso, suas palavras não são, em

momento nenhum, isentas da ideologia religiosa, mas nesse trecho isso salta aos olhos

pelos termos escolhidos em sua argumentação, afirmando que o diálogo tem de ser sincero,

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de coração a coração, expressões que nos remetem à pureza e à nobreza, valores almejados

tanto no budismo quanto em outros credos.

Vale a observância do enunciado seguinte (SGI, p. 19), no que concerne à análise

dos níveis temático e figurativo:

Tanto nas relações diplomáticas entre grandes potências como nas interações diversas entre cidadãos de diferentes nações, o diálogo genuíno possui a intensidade descrita pelo grande humanista e filósofo do século XX, Martin Buber (1878-1965), como um encontro “sobre uma ponte estreita” em que o menor descuido resulta em queda fatal. O diálogo é, de fato, encontro de alto risco.

O tema diálogo é retomado em dois momentos num espaço muito curto entre as

frases. Essa repetição garante, mesmo que inconscientemente no leitor, o não-esquecimento

de sua relevância, o que certamente direciona o modo de ler do texto, qual seja: “você tem

de dialogar!”. Com relação à figuratização, o autor recorre ao recurso de citar o humanista e

filósofo Martin Buber, o que também configura o argumento de autoridade, como se

dissesse: “Vejam, não estou solitário no que digo, o ‘grande’ ‘humanista’ e ‘filósofo’

afirmou que o diálogo tem um poder intenso!”. Continuando, o líder religioso faz uso de

outras figuras, relacionando-as numa metáfora: o diálogo guardaria as propriedades de uma

‘ponte estreita’, uma vez que o ‘menor descuido resulta em queda fatal’, explicitando a

dificuldade dessa prática, visto ser de ‘alto risco’.

Logo após, mais uma vez é feita referência ao tema diálogo (SGI, p. 19): As ondas

do diálogo se multiplicam e se propagam. Outra metáfora é apresentada. Tal como ondas, o

diálogo teria a característica de percorrer distâncias, passando por diferentes ‘terras’.

Fazendo referência ao humanismo, o autor (SGI, p. 19) fala que:

De certo, o humanismo sustenta a humanidade, tanto no sentido concreto quanto no abstrato, como critério fundamental. Mas não procura estabelecer

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um conjunto de normas fixas de controle de julgamento e ações. Ao contrário, conduz a ações livres e espontâneas do espírito humano, no julgamento e na tomada de decisões.

É apontado o humanismo como um critério, um parâmetro, para a humanidade, mas

ele toma o cuidado (ainda que inconscientemente) de não transparecer que esse critério, que

é fundamental, seja fundamentalista. Quer-se dizer que ele é não dogmático, uma vez que

não determina ‘normas fixas de controle de julgamento’. Uma função libertadora é

conferida ao humanismo, que levaria os indivíduos à prática de ações livres e espontâneas

do espírito humano, aquele é, pois, indicado como sinônimo de ‘liberdade’. Um aspecto

importante é: se você não concebe aludidas normas como sendo fixas, necessariamente é

construído um sentido de ‘ser tolerante’, de aceitar o convívio, o pensamento e as atitudes

daqueles que lhe são diversos.

Os últimos dois parágrafos do artigo (SGI, p. 19) fazem menção ao ‘diálogo’ por

três vezes. Cabe a análise:

(...) Ao recusarmos a discriminação com base em estereótipos ou em restrições impostas, podemos reconhecer a unicidade subjacente da relação positiva e negativa, e nos engajar com força total no diálogo capaz até de transformar o conflito numa relação positiva.

Um dos significados possíveis para o ato de discriminar é colocar à parte por algum

critério e nesse caso, evidentemente, seria pôr o outro, o diferente, à margem, mantendo-o

distante, seja porque ele não é da mesma religião, da mesma etnia ou porque não

compartilha das mesmas práticas sócio-culturais. No mesmo sentido, podemos atualizar o

termo ‘estereótipo’ como a idéia preconcebida sobre algo ou alguém, com base num

julgamento ou em generalizações. Quando estereotipamos o outro, temos a proposta de

igualar todos, de cogitar a possibilidade de uma voz homogênea. Falar-se-ia de um ‘lugar’

privilegiado, superior, originário de um discurso de ‘verdade’, ou seja, seríamos os

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detentores daquilo que deve ser ouvido pelos outros. Parte-se de um pressuposto de

desconsiderar as aspirações, os desejos e os pensamentos alheios. O diferente seria menor,

aquém daquilo que somos. Filosófica, cultural e religiosamente isso é altamente pernicioso:

dar-se-ia um sentido de totalitarismo, de um ‘centramento’ de onde partiria o que é certo ou

errado, o que pode ou não ser pensado, ser sentido ou ser executado. Contrária a isso, a via

do diálogo teria a capacidade, segundo a construção de sentido proposta por Ikeda, de

transformar o conflito numa relação positiva. Inferimos um significado de que as

diferenças são intrínsecas ao ser humano: as manifestações culturais, os espaços sociais e os

simbolismos religiosos afetam de modo diverso cada pessoa, são recebidos diferentemente

de acordo com cada período histórico e é preciso que haja uma conscientização de que essa

multiplicidade existe e tem de ser tolerada.

Na sua conclusão (SGI, p. 19), o presidente da associação afirma crer

que esse tipo de humanismo pode nos capacitar a enfrentar o eterno desafio de perceber, manter e fortalecer a paz por meio do diálogo – tornando o diálogo o caminho mais certo para a paz.

O diálogo volta a ser evocado como um meio, um instrumento para se alcançar a

paz, outro tema muito mencionado no discurso religioso. Traçando um roteiro, o

humanismo prescinde do diálogo e este é o caminho para a paz. Veja-se que não é usado o

artigo indefinido ‘um’, mas o definido ‘o’, já que é o mais certo, isto é, o melhor.

Realizando uma leitura panorâmica acerca da revista SGI, podemos corroborar

nossa hipótese de que há um direcionamento do modo de ler visando à construção de uma

isotopia, a qual se baseia na reiteração do tema ‘diálogo’. Vejamos em que sentido isso se

dá:

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Na página 24 foi veiculada uma matéria (não assinada) que versa sobre a visita do

astrônomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão à Soka Gakkai Internacional, no

Japão. O que nos interessa é o seguinte trecho:

(...) Mourão mencionou que conheceu a SGI em 2001, quando se tornou membro da comissão de honra da exposição “Diálogos pela Vida: Por uma Cultura de Paz”. A exposição apresentou diálogos do presidente da SGI com importantes pensadores de todo o mundo.

Dois pontos merecem destaque: o texto tem como figuras centrais o líder da SGI e

Ronaldo Mourão. Este é conhecido nacionalmente, o que confere um caráter de importância

o fato de o presidente da SGI ter sido visitado por ele (há duas fotos dos dois, uma delas em

que é entregue a Ikeda o título de “Sócio Honorário Estrangeiro” do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB)) e, sobretudo é enfatizado que o astrônomo tornou-se

membro da comissão de honra da exposição “Diálogos pela Vida: Por uma Cultura de Paz”.

Apesar de não se referir exatamente ao diálogo inter-religioso, pensamos ser conveniente

apontar a menção ao tema diálogo, repetido por inúmeras vezes na edição da revista.

Em seqüência (SGI, p. 25), noticia-se a Conferência dos Jovens para a Não-

Violência no Dia Dr. Martin Luther King Jr, personagem que historicamente ficou

conhecido por ser um defensor dos direitos humanos nos Estados Unidos. Observemos

como se operam os sentidos:

Promovida pela SGI-USA no dia 17 de janeiro, no Centro Cultural da SGI de Nova York (...) a conferência reuniu cerca de 200 estudantes de Nova York, Nova Jersey e da Pensilvânia para conhecerem novas perspectivas e descobrirem formas de construírem uma nova cultura da não-violência. Os estudantes, representando seis crenças religiosas – sikhismo, jainismo, cristianismo, islamismo e o budismo Nitiren – planejaram o evento.

Nesse trecho, muito embora não se esteja tratando do budismo especificamente na

cultura brasileira, entendemos que a veiculação de semelhante matéria numa revista

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nacional repercute claramente na representação dessa religião em nosso país,

principalmente pela leitura que se apresenta: textualmente é mostrada a reunião de seis

diferentes credos. No percurso figurativo, é construída uma narrativa, cujos personagens

são os próprios jovens (somente um deles tem seu nome expresso, Richard Prinz, um

estudante de 17 anos) os quais conviveram durante mencionada Conferência. O leitor, ao se

deparar com uma notícia assim explicitada, remete-se obviamente ao significado de um

diálogo inter-religioso, que prega a não-violência, o co-existir harmônico. Fica claro esse

plano de leitura, sobretudo porque se diz que foram os mesmos jovens que planejaram o

evento.

Prosseguindo o estudo relativo à revista SGI, apontamos mais uma vez a presença

do tema ‘diálogo’. Apesar de não se tratar especificamente do inter-religioso, entendemos

haver um processo de consolidação dessa isotopia, uma vez que os traços semânticos vão

permitindo uma leitura bem delimitada, tendo em vista a repetição do tema. Na página 26,

uma matéria intitulada O florescer da SGI-Bolívia em meio às dificuldades, assinada por

Alex Garnica Cruz, faz uma abordagem de como a Associação iniciou seus trabalhos

naquele país, levando-se em consideração os altos níveis de pobreza e analfabetismo na

região. Deparando-se com todos esses problemas, o autor diz:

Em 1992, a SGI-Bolívia criou e inaugurou uma exposição que apresenta o movimento pela paz da SGI. Ela realça a importância do diálogo para se superar as dificuldades e criar o respeito pela diversidade.

Associado ao tema diálogo, reitera-se também a relevância do respeito pela

diversidade. Há, novamente, uma condução do modo de ler o enunciado: o ‘outro’ é posto

em discussão, devendo ser respeitadas as suas diferenças. Essa alusão contribui para a

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representação do budismo no Brasil, pois embora fale-se da difusão de programas da SGI

na Bolívia, veicula-se que é necessário respeitar aquele que é diverso. Dizendo de outro

modo: “Você, brasileiro, leia uma matéria acerca da Bolívia e saiba que os estrangeiros

estão aprendendo sobre a importância do respeito àquele que é diferente. Faça o mesmo!”

Ainda no mesmo texto (SGI, p. 27), com o subtítulo Atividade dos jovens, é

mencionado que

Em julho de 2004, os jovens realizaram uma série de seminários sobre o tema “Esforços dos Jovens, Construindo o Futuro”. (...) Os seminários, os quais focalizaram os “Diálogos com os Jovens” do presidente da SGI, tiveram a participação de dois mil estudantes. Educadores comentaram que os seminários apresentaram formas sensíveis de tratar os problemas que os jovens enfrentam. Também afirmaram que os diálogos proporcionaram esperança aos estudantes, inspirando-os a explorar seu próprio potencial.

Retoma-se em dois momentos o ‘diálogo’. O tema é ‘focalizado’, posto em

evidência, tomando-se por base os “Diálogos com os jovens” do presidente da SGI. A

figura deste é central na representação da religião realizada pela SGI. Evidentemente há o

argumento de autoridade: o líder tem um discurso privilegiado, doutrinal, que deve ser

ouvido e tido como parâmetro, sobretudo pelos jovens, como podem ser futuros membros e

continuadores da ideologia da Associação budista. Igualmente, os educadores expuseram

sua opinião associando o ‘diálogo’ com o valor ‘esperança’ e com a possibilidade de os

jovens explorarem seu próprio potencial.

Falando que Eventos no Brasil recebem a visita de vice-presidente da SGI, a revista

(p. 28 e 29) volta-se, novamente, ao diálogo, quando diz (a matéria não especificou seu

autor): Uma outra exposição, “Diálogos com a Natureza”, que apresenta as fotos do

presidente da SGI, Daisaku Ikeda, tiradas em suas viagens pelo mundo em prol da paz, foi

inaugurada (...) na cidade de Maringá. Podemos evidenciar que o tema tem um papel de

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destaque bastante considerável nas falas propostas na revista SGI, haja vista que

invariavelmente ele é repetido, ainda que com nuances um pouco diferentes.

Concluindo a análise da SGI no que concerne à formação da isotopia do diálogo

inter-religioso, transcreveremos trechos do texto da última página (31), que trata das

atividades da Associação na Malásia. Continuamos nosso entendimento de que muito

embora seja mencionado outro país há um reflexo na representação do budismo aqui no

Brasil, porque a matéria foi veiculada na edição em português e, principalmente, pelo

percurso isotópico que está sendo apresentado em torno do tema ‘diálogo’. Sob o título

Atividades inter-religiosas, inicia-se o excerto do seguinte modo:

Reconhecendo que o diálogo genuíno entre as pessoas de diferentes crenças e culturas é necessário em uma sociedade multirreligiosa como a Malásia, a SGM vem promovendo e apoiando vários eventos que promovem a compreensão inter-religiosa.

A SGI auto-representa-se como uma associação que tem o intuito de agregar, pois

atesta a necessidade do diálogo entre pessoas de diferentes crenças e culturas, sobretudo

num local como a Malásia, que tem como característica a pluralidade de credos e por isso

promove e apóia eventos que versem sobre a compreensão entre as religiões. Elabora-se um

sentido de que esse ramo do budismo preocupa-se determinantemente com a harmonia

entre aqueles que não professam a mesma fé. É confirmada essa perspectiva à continuação

do texto:

A SGM, juntamente com a Rede Inter-Religiosa Malasiana, (...)organizou a exposição “Religiões Mundiais – Paz Universal – Ética Global” em julho de 2003.

(...)

A exposição (…) apresentou explicações sobre os princípios centrais encontrados nas principais religiões e os valores éticos universais que são comuns a todas as religiões (...) Mais de três mil pessoas de todas as crenças participaram dos eventos.

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Nesse trecho, há um modo de leitura que se molda pela importância que é

conferida ao tema do diálogo entre as religiões. De certa forma, vemos uma

interface com aquilo que Carvalho (1991, p. 9) menciona acerca de um princípio

transcendente que nortearia as doutrinas e, por conseguinte, possibilitar-se-ia falar

em valores comuns.

O budismo difundido pela SGI não se encontra solitário nesse sentido. A

linha tibetana do Dalai Lama desenvolve semelhante trabalho de se difundir a

promoção de valores humanos que, segundo ele, teriam um caráter universal.

Essa perspectiva será abordada mais detidamente na isotopia relativa à tolerância

religiosa.

O autor do texto, Chee Choong Looi, da Malásia, incita o leitor a dar

atenção ao número de pessoas de diferentes crenças, as quais participaram da

exposição, construindo o sentido daquilo que é grande, de um número expressivo

e que, por isso, deve ser observado.

Prosseguindo a análise dessa matéria da SGI (p. 31), é citado o Dr. Amir

Farid Isahak, presidente da Amizade Espiritual Inter-Religiosa (INSaf), que disse:

(...) Pela reação de hoje, podemos ver que as pessoas da Malásia anseiam por oportunidades para unirem-se e quebrarem as barreiras que existem. Penso que SGM é esse veículo que pode forjar muitas interações e contatos interculturais, raciais e religiosos.

Há um outro enunciador no texto, que utiliza palavras que nos remetem ao

diálogo: as pessoas desejam se unir e quebrar as barreiras. A palavra em

destaque semanticamente nos dá a idéia de separação, de distanciamento, de

falta de contato. Destaca ainda que a SGM seria o veículo capaz de promover

interações e contatos, ou seja, a associação budista, na visão desse dirigente,

teria o poder de criar diálogos não só religiosos, como também culturais e raciais.

Com a referência a esses temas, constitui-se o plano de leitura que nos faz chegar

a isotopia do diálogo inter-religioso.

Observamos que a revista SGI foi a que mais se preocupou em incutir em

seus leitores a idéia de que o diálogo, sobretudo o religioso, tem de ser

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continuamente (re)lembrado, uma vez que o tema é abundantemente retomado

em diferentes matérias ao longo de suas 31 páginas, como pudemos verificar.

Passemos agora à análise da revista Budismo (2004). Grosso modo, é

possível afirmar que o leitor-modelo, aqui entendido como um público alvo que o

veículo midiático busca alcançar, é formado por pessoas que, supostamente,

querem se inteirar sobre a religião, visto que suas 34 páginas são destinadas a

esse tema. São descritas resumidamente a história do seu surgimento, as

correntes tibetana e Zen, a parte doutrinária comum a todas as nomenclaturas,

bem como são trazidos ao conhecimento do leitor os mantras e contos budistas.

Iremos nos deter na constituição das isotopias, objetos de nossa pesquisa. Na p.

15, há uma entrevista realizada por Marília di Cesare com a monja Coen, já citada

anteriormente. Pergunta-se a ela: Quais são as suas atividades atualmente? Ao

que responde: Sou Missionária Oficial da Tradição Soto Shu, Zen-Budismo japonês e Primaz Fundadora da Comunidade Zen-budista, com sede em São Paulo e filiais no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Estamos iniciando esta nova comunidade, ao mesmo tempo em que estou muito envolvida nos encontros inter-religiosos.

Efetivamente esses encontros são realizados pelos praticantes budistas,

como aquele citado pelo Dalai Lama no livro Conselhos Espirituais (1998, p.

18,19), nomeado Dia da Oração pela Paz, que ocorreu em Assis, em 1986, em

que ele próprio participou. Mais do que uma análise discursiva, devemos atentar

para o fato de que isso implica atitudes concretas dos membros do budismo:

conforme já afirmado, a monja Coen também estava presente na visita do Dalai ao

Brasil, quando ele ministrou uma palestra no Ginásio do Ibirapuera (29/04/06),

intitulada O poder da compaixão, que reuniu 6 mil pessoas. Outro evento que se

verificou pela ocasião da vinda do monge budista em São Paulo foi a Celebração

inter-religiosa pelo entendimento entre os povos, na Catedral da Sé, que contou

com as seguintes participações: Rabino Henry Sobel, Presidente do Rabinato da

Congregação Israelita Paulista, Bispo Adriel de Souza Mais, Presidente do

Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Sheikh Armando Hussein Saleh, Missionário

pela Paz Mundial, Swami Sunirmalananda, da Ramakrishna Vedanta Ashrama,

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Pai Francelino de Shapanan, do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-

Brasileira e Dom Cláudio Cardeal Hummes, Arcebispo de São Paulo.

Com o título Um homem iluminado, fazendo-se alusão à própria palavra

Buda, que, como já dissemos, significa iluminado, Budismo (p. 24) traz um box

descrevendo Tenzin Gyatso, com as seguintes palavras: (...) O XIV Dalai Lama não é visto apenas como o líder espiritual do povo tibetano. Por ser um defensor da não-violência, do diálogo e da preservação do planeta, ele é reconhecido como patrimônio vivo da humanidade e admirado não só no oriente, mas no ocidente também. O Dalai Lama viaja o mundo, transmitindo-nos uma mensagem positiva e fazendo-nos refletir sobre a necessidade de termos mais tolerância para convivermos em harmonia com as diferenças – de raça, religião ou cultura.

O autor do texto (não mencionado) faz referência a temas os quais são

objetos de nossa pesquisa. Segundo o enunciado, o Dalai Lama defende a ‘não-

violência’, o ‘diálogo’. É construída uma relação de proximidade com o leitor,

primeiramente tendo em vista que o monge é patrimônio vivo da humanidade não

só no Oriente, mas no Ocidente, ou seja, ele está ‘aqui’ de algum modo, presente

na nossa cultura e admirado também por ‘nosso povo’. Segundo, porque o autor

utiliza o ‘nós’ (transmitindo-nos, fazendo-nos, termos, convivermos), um recurso

de linguagem que traz o leitor para uma atmosfera de intimidade, de inclusão, ao

mesmo tempo em que o interpela a se inserir na idéia apresentada, qual seja,

‘Você tem de refletir para ser mais tolerante e tem de conviver em harmonia com

as diferenças!’

Após a análise dos enunciados das revistas, podemos evidenciar que há a

instauração de um leitor-modelo, que é levado para o lugar que lhe é construído

nos textos, operando-se uma recorrência semântica considerável com relação ao

tema diálogo inter-religioso e, por conseguinte, formando-se essa isotopia.

4.2.4. Tolerância

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Propusemo-nos, até o presente momento, a analisar de que forma se instauraram as

isotopias do sincretismo / hibridismo, da alteridade / compaixão e do diálogo inter-

religioso. Neste momento da pesquisa, ainda mergulhados em nosso corpus, iremos nos

ater aos enunciados que, a nosso ver, instituem o leitor-modelo da tolerância.

Em Época (p. 71), a autora da matéria O guru da felicidade, Paula Pereira,

começa dizendo que a felicidade é um de seus temas favoritos. Não é de

estranhar, portanto, que pessoas de qualquer credo – ou de nenhum – se

interessem cada vez mais pela figura e pelos ensinamentos do Dalai Lama. Ao

tratar da felicidade, há uma estratégia de captação muito grande no discurso do

religioso (e também da revista), pois esse valor, apesar de ser muito relativo – sua

conceituação sempre variará de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, de

religião para religião – chama a atenção de todo indivíduo, ainda que seja para

refutar as idéias religiosas. A idéia de felicidade gera emoções em cada um, nunca

é carregada de neutralidade.

Segundo o enunciado aludido, constrói-se o sentido do não-proselitismo,

isto é, não é necessário se autodenominar budista para ter acesso aos preceitos

budistas, via Dalai Lama. Este assim é descrito na matéria (Época, p. 71): Virou

embaixador da paz, da causa tibetana e do budismo – embora ele represente uma

das muitas vertentes da religião no mundo. A vertente a que o texto se refere é a

do budismo tibetano, o qual possui cinco escolas: Nyingma, Kagyu, Gatanga,

Sakya e a de que o monge faz parte, a Gelukpa (todas foram apresentadas com

uma breve descrição na revista Budismo, p. 19). Nesse trecho molda-se um

sentido de tolerância no próprio interior do budismo, já que são mencionadas as

diversas nomenclaturas da religião, ressaltando-se, implicitamente, que há um

respeito e consciência da importância do Dalai Lama por parte delas para a

difusão do budismo como um todo. A legenda que acompanha uma foto do

dirigente em estado de prostração (Época, p. 74) garante o mesmo significado: O

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DESPERTO – Apesar de haver quatro5 linhagens distintas no budismo tibetano, o

Dalai Lama (...), o Buda de Compaixão, é reconhecido por todas elas.

Já mencionada em alguns momentos de nossa dissertação, a visita do

Dalai Lama corrobora, de certa forma, essa apologia à tolerância dentro do

mesmo budismo, pois na conferência O poder da Compaixão, realizada no ginásio

do Ibirapuera, dia 29 de abril de 2006, foram distribuídos folders de outras

nomenclaturas budistas, como por exemplo da Comunidade Zen Budista Tenzui

Zen Dojo, liderada pela monja Coen, a qual, como já dissemos, lá estava

presente.

A enunciadora nos remete ao tema ‘não-conversão ao budismo’, abordado

em frases por ela atribuídas ao Dalai Lama, em nada menos que cinco

ocorrências na matéria de Época:

a) Não quero converter ninguém. (p. 71);

b) Não quero converter ninguém ao budismo (como o subtítulo da entrevista,

p. 72);

c) Eu não tenho interesse em converter pessoas ao budismo (ao longo de

uma de suas respostas na entrevista, p. 73);

d) Não quero converter ninguém ao budismo (como o subtítulo da entrevista,

p. 74);

e) Não quero converter ninguém ao budismo (novamente como o subtítulo da

entrevista, p. 76);

A reiteração semântica é notória e, por isso, configura uma isotopia a qual

determina que a matéria seja lida como o pensamento de um líder religioso que

não quer impor sua convicção, mas que respeita os pontos de vista religiosos

alheios. Essa escolha lexical que repete o tema de forma tão contundente

promove a instituição do leitor-modelo da tolerância aos outros credos.

Esse sentido é continuado quando é mostrada a legenda de outra foto em

que o Dalai Lama aparece sorrindo e acenando a muitas pessoas (Época, 73):

Nas audiências pelo mundo, o líder tibetano fala de paz para multidões de todas

5 Conforme já havíamos mencionado, o número de vertentes do budismo tibetano é cinco (revista Budismo, p. 19) e não quatro, tal como é veiculado em Época, p. 74.

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as crenças. No percurso temático, a paz é citada, assunto de interesse político,

social e histórico. No figurativo, diz-se que as audiências são realizadas ao redor

do mundo e que o monge fala a multidões. Há a condução do significado para a

noção de uma quantidade grande o que é confirmado pelos vocábulos destacados

e que nessas reuniões, concorrem indivíduos de crenças distintas, valorando o

sentido de que essa diversidade é garantida quando se fala no budismo.

Pergunta-se ao monge se os enfoques dados ao budismo (com relação a

treinamento e desenvolvimento da mente) não o descaracterizam como religião.

Em sua resposta, diz não acreditar nisso, uma vez que já conta com mais de

2.500 anos. Dentro de nossa perspectiva, vale apontar sua citação quando fala:

Não quero dizer que é a melhor religião que existe. Cada indivíduo tem sua

própria disposição mental e deveria escolher uma religião apropriada a ela. Na

seqüência, faz-se a seguinte pergunta: Seus livros são best-sellers no Brasil. Por

que escreve para o público em geral sobre assuntos universais? Ao que ele

responde: Porque isso é de meu interesse (risos). Eu não tenho interesse em converter pessoas ao budismo. Reconheço que todas as diferentes tradições têm o mesmo potencial de ajudar a humanidade. Sempre achei errado tentar converter as pessoas. Se eu tentar propagar o Dharma (a doutrina budista), se os irmãos cristãos e os muçulmanos fizerem o mesmo esforço para divulgar sua fé, pobres dos 6 bilhões de habitantes da Terra (risos)! Se tivessem a oportunidade, mudariam para outro planeta. Seria um desastre (risos). Paz e harmonia é o essencial, não o nome da religião que a pessoa aceita (...) Meu maior interesse é promover os valores humanos.

É importante ressaltar novamente que o caráter informal e extrovertido que

perpassa o discurso do Dalai Lama é algo que traz o leitor para um imaginário de

intimidade. O monge budista fala de maneira descontraída, com momentos de riso

(a autora do texto opta por redigir legendas que descrevem uma cena hilária, o

que igualmente oferece um plano de leitura de um ambiente prazeroso, tranqüilo e

alegre).

O Dalai Lama, textualmente, coloca o budismo no mesmo patamar que as

outras religiões, já que todas as diferentes tradições têm o mesmo potencial de

ajudar a humanidade. Ele fala de um determinado lugar, qual seja, o do religioso,

pois confere à religião o poder de ajudar as pessoas. Todavia, propõe que sua

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citação seja lida de maneira não dogmática ou exclusivista, uma vez que não

outorga ao budismo uma posição hegemônica. Outro ponto é a forma como ele se

dirige aos cristãos e aos muçulmanos, chamando-os de irmãos. O substantivo

adquire contornos adjetivos, que caracterizam, marcam, distinguem os cristãos e

muçulmanos. Dizendo de maneira diferente, o termo carrega o significado de

proximidade, de familiaridade, também de acolhida, respeito. Irmão, no sentido

biológico, é aquele que carrega o mesmo sangue, a mesma origem. Tudo isso

leva o leitor a apreender que apesar de existirem religiões diferentes, seus

praticantes podem se tratar com um sentimento de igualdade.

Quanto a dizer que seu maior interesse é promover os valores humanos, o

Dalai Lama infere que as religiões, independentemente de nomenclaturas, trariam

em suas doutrinas essa possibilidade. Podemos ratificar esse discurso com a sua

obra Uma ética para o novo milênio (2000, p. 30,31), em que afirma: (...) budismo, cristianismo, hinduísmo, islamismo, judaísmo, siquismo, zoroastrismo e outras – visam (sic) ajudar o homem a alcançar uma felicidade duradoura. E todas, na minha opinião, são capazes de proporcionar tal coisa. Nessas circunstâncias, é ao mesmo tempo desejável e útil que haja uma grande variedade de religiões promovendo os mesmos valores básicos.

Tais palavras vão ao encontro do pensamento de Carvalho (1991, p. 8), o

qual atribuiu ao movimento esotérico um hábito de olhar para todas as religiões

mundiais, em busca de equivalências, de complementações, de sínteses. O Dalai

Lama volta-se para direcionamento similar ao sugerir que as religiões tratariam de

valores humanos básicos e que estes seriam comuns àquelas. Ao nomear as

religiões no texto e dizer que é desejável e útil que haja uma grande variedade

delas, o monge direciona o modo de ler, pressupondo um sentido de tolerância e

interação entre as mesmas.

Na mesma revista Época (p. 77), segue-se outra matéria acerca do

budismo, cujo título é Muito longe do nirvana (de autoria de Marcelo Musa

Cavallari) , em que são relatados alguns aspectos políticos da disseminação da

religião no continente asiático. Importante para nós, é o que foi veiculado sobre

aquele dirigente: Para o Ocidente, o Dalai Lama é a própria face da tolerância e da

compaixão que o budismo prega. Em realidade, são apresentadas duas

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afirmações: (i) o Dalai Lama é a imagem, a representação da tolerância e da

compaixão (o sentido conotativo da expressão face assume o significado de algo

que é mostrado à primeira vista, de imediato); (ii) O budismo é uma religião que

pode ser sintetizada tomando-se por base esses mesmos valores da tolerância e

da compaixão. Outro modo de leitura que nos é direcionado é a constatação de

que, se você é ocidental, tem de saber sobre o que foi dito do Dalai e do budismo,

já que não se menciona partes ou regiões do Ocidente, mas ele em sua totalidade.

Dito de outra forma: ‘Leitor, como você é ocidental, fique sabendo (e não

questione!) que o budismo prega a tolerância e a compaixão e que a melhor

expressão disso é a imagem do Dalai Lama’.

Uma terceira matéria concernente à religião segue-se em Época: A

ascensão do budismo no Brasil (já citada em outra perspectiva de análise, com

referência à Espetacularização). À página 78 lemos que: No Ocidente em geral, e

num país tolerante e aberto como o Brasil mais ainda, notamos uma franca

simpatia pelo budismo, diz o cientista da religião Frank Usarski, da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (...). Novamente o budismo ganha contornos

‘ocidentais’, todavia o enunciador não é mais a jornalista Paula Pereira (ao que

tudo indica, acreditamos ser ela a autora também dessa matéria, uma vez que não

foi indicado outro pela revista), mas um estudioso do assunto religião, Frank

Usarski. Isso é uma estratégia discursiva qualificada como o argumento de

autoridade, em que se utiliza a citação de alguém que supostamente tem

conhecimento sobre um determinado assunto a fim de corroborar ou reforçar

aquilo que se deseja falar. Como é tratado o crescimento do budismo no Brasil,

nada melhor que veicular a hipótese de um professor universitário, especialista em

Ciência da Religião. Em sua fala, observamos mais uma vez uma associação

entre budismo e tolerância, porque ele afirma que o Brasil é um país tolerante

(evidentemente com relação ao tema religião) e aponta isso como uma das

causas da ascensão daquele no país, ou seja, Brasil e budismo são tolerantes.

Na seqüência (Época, p.78), fala-se sobre Daniel Calmanowitz, pai do lama

Michel Rimpoche (já foi feita referência a ele quando da análise da isotopia do

Sincretismo / Hibridismo): (...) é dos fundadores do Centro de Dharma,

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comunidade tibetana tolerante em São Paulo (...) Tem-se o cuidado de qualificar,

marcar a comunidade: não é apenas budista, mas tolerante.

Em seguida (Época, p. 78,79), é explicitado um depoimento da esteticista

Eva Isabel Feyer, de 48 anos, judia que se converteu ao budismo: “(...) não vejo,

por parte dos budistas, uma preocupação de preservar ou aumentar o rebanho” e

logo retorna o enunciador autor: Na maioria das versões ocidentalizadas do

budismo não se exige, necessariamente, o abandono de uma crença anterior. A

seqüência é importante para a construção do sentido: Por um lado, é mostrada

uma senhora que se tornou budista (era judia) e que denota em sua fala o fato de

o budismo não se preocupar em crescer. Logo adiante, é mencionado que se o

leitor quiser adotar esta religião, não tem obrigatoriamente que abandonar a sua.

Os dois trechos, a nosso ver, retomam a idéia de sincretismo ao mesmo tempo

que instituem o leitor-modelo da apreensão do budismo enquanto um credo

tolerante aos outros.

Alguns trechos de Isto é igualmente proporcionam ao leitor um plano de

leitura, o qual possibilita a formação da isotopia da tolerância religiosa.

Verificamos que o tema da ‘não conversão ao budismo’ é reiterado nessa revista

(p. 51): Não queremos converter ninguém, mas mostrar o que sabemos para que

cada um aproveite o que achar interessante, cita Eduardo Martins Machado, 34

anos, professor de ginástica e candidato a estudante da primeira universidade

budista da América Latina, à qual foi feita referência anteriormente, na isotopia

sobre o Sincretismo / Hibridismo. Ainda na mesma matéria de Isto é (p. 53), ao

fazer menção à Escola budista Soka do Brasil, de São Paulo, os autores dizem: Procurada por famílias de quaisquer religiões, a escola concilia aulas de inglês e japonês com experiências tão diversas como tocar um instrumento, navegar na internet e cuidar da horta. E não há uma única imagem de Buda em todo o prédio. “Nosso princípio de ação é budista. Transmitimos isso em nossa educação sem falar a palavra Buda”, comenta Dirce Ivamoto. (grifo nosso)

O contorno a ser dado para a leitura é mostrado nas sentenças em

destaque: a escola é representada como um local tolerante, pois é procurada por

famílias de quaisquer religiões, lá não há uma única imagem de Buda em todo o

prédio e porque o processo educacional se dá sem falar a palavra Buda.

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Na seqüência, outro enunciado que nos remete à isotopia da tolerância

(Isto é, p. 53) fazendo-se referência ao tema da ‘não conversão ao budismo’: A

estratégia é a mesma no Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu (distrito de

Vitória), no Espírito Santo (...). Ninguém é induzido a se converter ao budismo,

apontam os autores do texto. Semelhante via de interpretação proposta ao leitor-

modelo é mostrada a seguir: “(...) realizamos um trabalho de preservação ambiental que recebe a visita de estudantes e atividades educativas com agricultores”, enumera o abade Daiju Bitti, superior no mosteiro. “Temos uma forte integração com a comunidade. Não convertemos ninguém”, comenta.

Nesse trecho, percebemos uma estratégia discursiva que, por um lado

denota o sentido de que a religião mantém contato e abarca pessoas de todos os

tipos: do estudante ao agricultor, o que é corroborado pela afirmação do abade

sobre o fato de haver uma forte integração com a comunidade; e por outro, o

enunciador tem cuidado de finalizar sua fala focando o objetivo não proselitista do

budismo. Em outras palavras: ‘Seja quem você for, venha conhecer o budismo!

Não iremos tentar convertê-lo!’

A menção ao tema da ‘não-violência’ é recorrente no discurso relativo ao

budismo. Isto é (p. 53) veiculou o assunto da seguinte forma: Única religião que nunca empreendeu uma guerra, o budismo atrai pacifistas em todo o planeta. No dia 7 de setembro, o repúdio à violência foi um dos motivos para a presença de mais de 500 pessoas à Terceira Cerimônia do Fogo Sagrado em prol da paz e da purificação da Grande São Paulo, promovida pela Associação Budista Agon Shu (...)

Vejamos pontos relevantes no que concerne à representação do budismo.

Primeiramente, fala-se que nunca foi empreendida uma guerra por budistas. E

mais, que a religião foi a única a não tomar tal atitude. A afirmação é, no mínimo,

infundada. Ainda que o budismo não tenha promovido guerras em países onde é

professado, é impossível de se verificar se isso também não ocorreu com outras

religiões, uma vez que o número delas é quase incontável ou, pelo menos,

igualmente impossível de se determinar com precisão. Em seguida, aponta-se

como corolário disso, que o credo atrai pacifistas em todo o planeta. Menciona-se

o repúdio à violência. O termo repúdio traz um significado de contumácia,

veemência e força. Não é apenas não aceitar a violência, é rechaçá-la a todo

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custo. Assim é mostrado o budismo, como uma religião totalmente intolerante à

violência. Passa-se, então, a descrever aludida cerimônia (Isto é, p.53): Uma fogueira é acesa em frente a um grande altar e os presentes, budistas ou não, se purificam ao lançar pedaços de madeira (gomagui) com pedidos gravados, queimando assim seus carmas pessoais, ancestrais e espirituais.

Em se tratando do nível figurativo, há, de certo modo, um percurso narrativo

no qual os personagens são os participantes do ato, sobre os quais os autores da

matéria apontam como sendo budistas ou não, direcionando o sentido para a

alusão à tolerância religiosa do budismo com outros credos. Note-se que a

abordagem central era acerca da cerimônia religiosa, no entanto é constituído o

leitor-modelo da apologia da tolerância. Com relação à análise do nível temático,

são citados os carmas pessoais, ancestrais e espirituais. Carma, para o budismo,

é uma lei de causa e efeito. No prefácio do Dhammapada – Caminho da Lei (2000,

p. 11), o tradutor e adaptador do texto, Georges da Silva, diz que: A atividade da volição em pensamento, palavra e ação é chamada kamma (carma); o resultado chama-se Vipaka, e em cada vida estamos cumprindo esse processo dual; somos, de uma só vez, os passivos sujeitos dos efeitos das nossas ações passadas e os ativos criadores de novo carma que, por sua vez, dará frutos aqui, ou no futuro.

Assim, o leitor é submetido a mais um tema budista. É construído um

sentido em seu imaginário de que os carmas são negativos, já que os presentes à

cerimônia são purificados deles, por meio do ato de jogar os pedaços de madeira

com os pedidos gravados.

A revista Superinteressante (agosto de 2001), objeto de nosso corpus,

retoma alguns temas já analisados nesta dissertação, no que concerne a não

necessidade de dependência de um dirigente budista para que o praticante possa

receber os supostos benefícios dos preceitos da religião. Na página 48 podemos

ratificar essa assertiva: A “iluminação” pode acontecer com qualquer um e é

justamente esse o cerne da doutrina budista, diz a autora da matéria A vida

segundo o Dalai, Karen Gimenez. No nível temático, faz-se menção à

“iluminação”, criando uma associação com a própria palavra ‘Buda’, que, como já

dissemos, significa ‘iluminado’. E, no enunciado, o fato de qualquer um poder se

tornar um iluminado é apontado como o cerne da religião. Cerne é a parte central,

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essencial de algo. Cria-se, discursivamente, o sentido de que no budismo não se

depende de ninguém para se desenvolver espiritualmente.

A seguir, a dirigente do Centro de Estudos Filosóficos - Associação Palas

Athena, de São Paulo, Lia Diskin, descreve a figura do Dalai Lama: “Dificilmente

se encontra um líder religioso que encante tanto as pessoas quanto o Dalai. Não

só pelas palavras mas também por assumir a sua condição humana tão

claramente”, o que é confirmado pela autora da matéria: De fato, o Dalai se coloca

como apenas um velho monge que deseja paz e felicidade a todas as pessoas.

Não se arvora nenhum caráter divino. Vale apontar alguns efeitos de sentido da

representação mostrada por ambas. A primeira utiliza o verbo encante, ou seja, o

dirigente não é somente bom, é encantador, denotando a magnitude, o espanto, a

maravilha. Dessa forma, o leitor deve entender que isso merece a sua atenção

máxima. Ligada a esse caráter está a condição humana clara do Dalai. Ora, é

promovida, assim, há uma aproximação imediata entre o leitor e o budista

descrito. Já a segunda o descreve como um velho monge (dando a idéia de

simplicidade, humildade) que deseja paz e felicidade a todas as pessoas.

Novamente é feita alusão a temas que compõem o universo religioso. Veja-se que

o líder não é representado como um doutrinador, que visa à imposição de seus

ensinamentos, ele apenas deseja paz e felicidade a todos. E nem se arvora

nenhum caráter divino, ou seja, não se diz representante de Deus (nem de Buda)

na terra. Oferece-se um plano de leitura, que poderia ser assim construído:

‘Apesar de ele ser um líder religioso é humano como eu, então merece ser

escutado’.

No enunciado a seguir transcrito, um sentido de tolerância é instituído

(Superinteressante, p. 49):

Segundo ele (refere-se ao Dalai Lama), ninguém precisa sair em peregrinação ou praticar mendicância para se tornar um ser humano melhor (...) a verdadeira transformação espiritual do indivíduo está nas pequenas e fundamentais atitudes do dia-a-dia, independente do credo, do estilo de vida, das preferências sexuais ou políticas que se possa ter.

Não se determina uma dependência entre a religião budista e o fato de se

tornar uma pessoa ‘melhor’. De acordo com o trecho, o dirigente não tem o intuito

de que os indivíduos comecem a professar a crença em sua religião. Podemos,

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igualmente, observar esse efeito de sentido no seguinte excerto

(Superinteressante, p. 49, 50): Quem for assistir a uma de suas conferências achando que vai escutá-lo falando das vantagens de se converter ao budismo perderá a viagem. O Dalai deixa muito claro em seus discursos que cada um deve seguir a fé que escolher. Ou até mesmo nenhuma, caso lhe pareça mais conveniente.

É importante assinalar que em mais uma ocorrência vemos explicitado o

tema da ‘não conversão ao budismo’ em uma das revistas de nosso corpus,

corroborando a formação dessa isotopia da tolerância religiosa. Sobre o Dalai,

veicula-se a representação de que ele, além de não querer incutir os preceitos

budistas aos seus ouvintes, até mesmo considera a possibilidade de que o

indivíduo não professe nenhuma fé, direcionando ainda mais a forma de ler para a

apologia à tolerância.

A lógica para isso se encerra na constatação apresentada pela revista (e já

analisada por nós): Para ele, há alguns valores, como a ética, que são

constitutivos do ser humano em qualquer cultura ou tempo e que deveriam ser

cultuados por todos. Em um tópico intitulado Ética e Religião (Superinteressante,

p. 51,52) é dito que segundo o líder não é preciso ter religião para ter ética. (...) Para ele, espiritualidade e religião não são sinônimos. O Dalai é um grande defensor de ações ecumênicas. Ele acredita que a ética transita em qualquer fé e é a viga central na construção de um mundo mais feliz.

Conforme explicitamos em outros momentos deste trabalho, existe a

representação do budismo separando espiritualidade de religião institucionalizada.

Notamos anteriormente, inclusive, que essa é uma preocupação recorrente nas

falas do Dalai Lama. A autora da matéria garante a formação de idéia de

tolerância uma vez que afirma que o mesmo é um grande defensor de ações

ecumênicas. Já dissemos que o ecumenismo é, mais especificamente, um

movimento favorável à união de igrejas cristãs. Talvez a autora tenha querido se

referir ao diálogo entre diferentes credos, o que se aproxima da conceituação que

demos para ‘sincretismo’, como sendo a conciliação e / ou fusão de religiões de

suas tradições culturais. O que nos interessa é a menção ao tema dessa

‘interação’ de credos distintos feita pela enunciadora da revista. Da mesma forma,

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é relevante ressaltar a parte do enunciado sobre a afirmação de que a ética

transita em qualquer fé, referindo-se a toda religião, pelo fato de a representação

do budismo lançar vistas às religiões, naquilo que possuem de equivalências, de

complementações, de sínteses (Carvalho, 1991, p. 8).

Remontamo-nos ao que é dito à página 50 para concluir a análise da revista

Superinteressante: A ausência quase completa de proselitismo religioso (...) faz

com que até o mais empedernido dos ocidentais tenha condições de incorporar os

ensinamentos do Dalai em seu cotidiano. Em sua representação, o budismo, via

Dalai Lama, novamente é despido de um caráter doutrinário, pois não é carregado

de proselitismo. Textualmente é mostrado que qualquer pessoa pode

compreender e até mesmo passar a vivenciar o que o monge diz. Interessante a

escolha lexical da autora no momento em que usa o adjetivo empedernido,

buscando caracterizar o ocidental como alguém que não se deixa persuadir,

inflexível, mas que iria se sensibilizar frente à argumentação do líder budista.

A SGI (p. 10) entrevista a jornalista e integrante da associação, Mariane

Pearl, que teve seu marido, Danny Pearl, repórter do Wall Street Journal,

seqüestrado e morto em Karachi, no Paquistão, em 2002, por motivos religiosos,

não explicitados no texto. Ela relata que é uma batalha contínua lidar com a raiva,

a tristeza e o choque, entretanto menciona (SGI, p. 11): Ainda acredito no

altruísmo, na tolerância, na justiça e em todos os elementos que baseiam nossa

vida. São muito fortes e estão firmes em nós. São mencionados, em seqüência, os

valores do ‘altruísmo’, da ‘tolerância’ e da ‘justiça’, possibilitando inferir que podem

fazer parte de um mesmo campo semântico, ou seja, há uma equiparação no nível

do significado que direciona o enunciatário para uma leitura do tipo: ‘Ainda que

soframos muito, temos de ser altruístas, tolerantes e, conseqüentemente, seremos

justos’.

Pergunta-se, a seguir, à jornalista como podemos lutar contra o terrorismo?

Ela diz que esperança e compaixão são as únicas ferramentas contra o terrorismo,

Quanto mais as pessoas têm esperança, quanto mais têm empatia, maior será

sua determinação. Discursivamente observa-se a retomada do tema ‘compaixão’,

já estudado por nós anteriormente e que tem crucial importância na representação

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do budismo na mídia escrita, tamanho o número de ocorrências em que aparece.

Nesse trecho, ‘compaixão’, ‘esperança’ e ‘empatia’ são postos como ferramentas

contra o terrorismo. A metáfora leva o leitor a considerar que esses valores – que

aqui fazem parte do discurso religioso, visto que a entrevistada fala de um ‘lugar’

budista – podem oferecer resistência ao terrorismo. Semanticamente, esse termo

pode assumir o significado de uma atitude intolerante, de não-consideração do

outro, em que valores próprios ganham um status de hegemonia sobre os dos

demais. Ou seja, o efeito de sentido que o terrorismo assume é o de antagonismo

à tolerância.

Em outro momento da entrevista (SGI, p. 12), diz: Como eu posso odiar os

paquistaneses? Captain, um de meus melhores amigos, é muçulmano e

paquistanês. Em seu discurso, percebe-se a contradição de sentimentos. Todavia,

ao perguntar como pode odiar os paquistaneses, a jornalista delimita, sim, uma

postura de ódio (com a própria marcação do verbo odiar), pois considera,

implicitamente, essa possibilidade. Em contrapartida, existe a instituição do leitor-

modelo da tolerância religiosa do budismo com relação ao islamismo, pois a

entrevistada cita um de seus melhores amigos, como sendo muçulmano e

paquistanês, mesma nacionalidade pelos executores de seu marido.

Na revista Budismo não há uma preocupação de se representar somente

um ramo da religião, o que pode ser verificado desde a capa, na qual há dois

subtítulos que assim se apresentam: Zen-budismo – Alcance a paz de espírito

através da MEDITAÇÃO e Budismo Tibetano – A vida dos monges seguidores do

DALAI LAMA, numa alusão às duas nomenclaturas budistas mais conhecidas – é

o que se verificou no corpus desta dissertação – na mídia brasileira.

A corrente zen-budista, através de seus mestres, teve um papel

fundamental na difusão do budismo no Brasil, após sua chegada no país, no

século XIX. Na atualidade, sua maior representante – e maior difusora – é a monja

Coen, uma das figuras centrais na representação da religião na mídia. Budismo

faz a seguinte chamada na capa: Budismo no Brasil – uma entrevista exclusiva

com Coen, a principal monja zen-budista brasileira. Passemos a explicitar nossas

análises acerca dessa revista.

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No editorial (Budismo, p. 3), lemos: Uma nova visão de mundo – é isso que

a filosofia budista propõe. Uma visão calcada em princípios tão simples quanto

fundamentais: menos apego, mais compaixão e tolerância. Como todas as outras

revistas, os temas da ‘compaixão’ e da ‘tolerância’ são retomados pelo

enunciador, o que garante afirmarmos que são produzidas essas isotopias,

quando se representa a religião na mídia. No caso específico de Budismo, isso é

feito logo no editorial, demarcando a importância que os temas assumem ao se

falar nesse credo. Os valores, segundo o autor desse trecho, são simples, mas

fundamentais, associando-os à própria religião. Dito de outro modo, o leitor-

modelo deve-se entender: ‘Menos apego, mais compaixão, tolerância e o budismo

são simples, mas fundamentais!’

Com o título o Tibete é aqui (Budismo p. 23), Fabiana Oliveira assim inicia

sua matéria: Dificilmente um dia poderemos dizer que Buda é brasileiro, mas que

ele está prestes a conseguir cidadania, isto é certeza. Esse comentário nos

remete a uma passagem da última visita do Papa João Paulo II ao Brasil, quando

o líder católico, sorrindo, disse: Se Deus é brasileiro, o Papa é carioca! Os

trocadilhos com o dito popular ”Deus é brasileiro” lançam mão da estratégia do

uso do bom humor. Ao se referir ao budismo, a enunciadora leva o leitor a uma

atmosfera de descontração, o que não deixa de ser uma estratégia de captação:

‘Apesar de falarmos sobre uma religião, relaxe, leitor!’ A cidadania é um instituto

jurídico, no qual um indivíduo legal e oficialmente passa a ser considerado

membro de um país, com capacidade de adquirir direitos e de lhe serem

imputadas obrigações. Ou seja, por direito próprio, Buda já – quase – pode ser

considerado brasileiro. Evidentemente isso é uma extensão do cunho bem-

humorado de que a autora do texto fez uso.

Na seqüência, faz-se referência ao número do Censo 2000, em que 240 mil

pessoas se intitularam budistas e logo, especula-se uma possível causa para isso:

Uma das razões para esta expansão tardia certamente é o fato de o budismo não ter um perfil evangelizador (...). Nada de catequese, muito menos pregação ruidosa. O budismo cresce sem promover grandes agitações. Sem a intenção de ser predominante, os adeptos da religião não se preocupam em atingir números estrondosos: eles querem apenas oferecer às pessoas um caminho para a felicidade e paz.

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Menciona-se a ausência de um perfil evangelizador, de catequese e da

pregação ruidosa, sendo possível inferir-se um sentido que nos remete às

religiões de tradição cristã, especificamente as evangélicas, que supostamente

teriam uma preocupação em aumentar o ‘rebanho’, ou seja, ter mais seguidores.

O meio pelo qual alguns pastores (dirigentes espirituais desses credos) investem

na busca de seus fiéis é através de uma pregação exaltada, que tem como

principal ingrediente a comoção generalizada dos participantes dos cultos. A

matéria de Budismo busca veicular a representação de uma religião que cresce,

sem, no entanto, produzir grande alarde e também sem o objetivo de ser

predominante. Um pressuposto de não querer ser hegemônico é exatamente

aceitar, tolerar aquilo que é diferente. Segundo a revista, assim o budismo é,

tolerante.

5. Considerações Finais

As análises realizadas não tiveram a pretensão de esgotar o tema, visto ser

ele mesmo bastante novo. Tanto a religião budista no país, quanto as matérias de

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revistas que dela tratam são relativamente recentes. Conforme afirmamos, houve

uma maior veiculação do budismo na mídia brasileira após o Dalai Lama ter

recebido o prêmio Nobel da Paz, em 1989, o que posteriormente ensejou sua

primeira visita ao Brasil, em 1999.

Tal como demonstramos, nossas considerações não adquiriram contornos

de um estudo etnográfico, mas sim versaram acerca das características de uma

representação do budismo na mídia, motivo pelo qual acreditamos que nosso

trabalho se inseriu na crítica da cultura brasileira.

É importante ressaltar que o budismo enquanto fenômeno de mídia é objeto

de estudo relevante. Citando o exemplo da Rede Globo, as aparições do tema se

deram em diferentes suportes, tais como telenovelas (como foi o caso de Começar

de Novo), Jornal Nacional (nos dias 26, 27, 28 e 29 de abril foram feitas menções

à visita do Dalai Lama ao Brasil) e o programa semanal Fantástico, programas

líderes de audiência na televisão brasileira.

Ao representar um tema em seu noticiário, a mídia coloca-o na agenda

cotidiana da grande audiência a que se destina. Em diferentes segmentos da

população, essa questão objeto da divulgação midiática passa a ser assunto de

conversas e comentários, dias seguidos. Ser manchete em programas como o

Fantástico e o Jornal Nacional e matéria de revistas de grandes tiragens

asseguram ao budismo uma projeção extraordinária junto a milhões de pessoas.

Da condição de uma expressão cultural estranha e distante da nossa realidade

torna-se uma filosofia utilitária que podemos adaptar facilmente a práticas distintas

do dia-a-dia.

Não menos importante que as reflexões e constatações feitas acerca do

objeto de estudo foi o próprio processo de construção do referencial metodológico

que utilizamos para analisar os textos que constituem o corpus da pesquisa.

Poderíamos ter adotado outras metodologias que dessem conta da análise dos

discursos das revistas e de uma conseqüente representação social, contudo

encontramos na combinação de Eco (2002) – com a instituição do leitor-modelo –

e Greimas (1966, 1979) – com a concepção de isotopia – uma nova possibilidade

analítica que nos pareceu mais pertinente ao estudo do objeto, o que nos

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proporcionou um ganho pessoal relevante. Pesquisas futuras seriam cabíveis no

sentido de desenvolver a aplicação e a amplitude da combinação das teorias

desses importantes estudiosos da linguagem.

Visando à compreensão do percurso temático, foi conveniente apresentar

tópicos relativos aos preceitos doutrinais do budismo com o intuito de aclarar os

conceitos abordados pelos autores das matérias das revistas, bem como pelos

personagens citados em nosso corpus. Evidentemente, isso facilitou o estudo da

representação da religião na mídia impressa.

Com relação ao nosso processo de análise, pudemos ver concretizadas

marcas de determinadas isotopias – a recorrência ou redundância de traços

semânticos (GREIMAS, 1966, p. 73) ao longo dos textos veiculados nas revistas.

Foi possível enumerar as isotopias: do sincretismo / hibridismo; da alteridade /

compaixão; do diálogo inter-religioso e, mais detidamente, da tolerância religiosa.

A revista Época (p. 78) ilustra convenientemente uma dessas constatações

ao afirmar que cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam

práticas budistas com suas próprias crenças. Cria-se todo um efeito de sentido

que leva o leitor a inferir um caráter de sincretismo, que, repetimos, em nossa

pesquisa deve ser entendido sob a luz da semântica, como sendo a fusão e / ou

conciliação de religiões e de suas tradições culturais, diferenciando-se de

ecumenismo, que é um movimento favorável ao diálogo entre igrejas de profissão

cristã.

Acreditamos que o que mais influencia nessa representação é o próprio

processo de globalização, que deslocou as identidades culturais. O sujeito pós-

moderno não pode mais ser caracterizado como tendo uma identidade fixa,

determinada ou permanente. A identidade torna-se uma celebração móvel (HALL,

2003, p. 13), sofrendo inúmeras transformações em relação ao modo como somos

representados culturalmente.

Nessa perspectiva, pensamos que a comunicação globalizada , emergindo

em seus diversos meios, exerce um papel fundamental nisso – produzindo aquilo

que podemos chamar de identidades não permanentes, móveis e, no caso do

budismo, sincréticas.

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A constituição de uma identidade dita budista somente pode ser traçada se

levarmos em conta esse caráter híbrido, multifacetado e disperso no qual nos

encontramos historicamente. O poder simbólico, no qual estão necessariamente

inseridos os valores culturais – e religiosos –, exerce uma influência na vida dos

indivíduos e as implicações disso são diversificadas. Podemos dizer que a

representação do budismo veiculada nas revistas estudadas revela não“o”

budismo, mas sim vários “budismos”, nos quais as delimitações das tradições

religiosas são insuficientes para caracterizar uma única identidade budista.

Somente considerando uma identidade múltipla e cambiante é que

podemos compreender a representação que se faz de personalidades tão distintas

apresentadas nas revistas: a monja zen-budista, Adriana Thomaz, a qual diz

gostar de forró, fazer ‘spinning’, tem duas filhas, namora e é médica acupunturista

(revista Oi, outubro / novembro de 2004); o instrutor de ginástica Eduardo Martins

Machado, sobre quem se fala ter sido fã da banda Kiss e guitarrista de um grupo

de rock na adolescência e que transformou a academia Reebok de São Paulo,

onde trabalha, em um local de práticas budistas por ter criado o dia Zen (Isto é, p.

51); o policial militar Leonardo Nunes Barreto, que quer aulas de meditação para

todos os militares (Isto é, p. 53).

A representação social do budismo na mídia brasileira, sob a perspectiva

que nos propusemos a analisar, também precisa levar em consideração aquilo

que adotamos chamar de vedetização. Textualmente, os líderes religiosos

mostraram ter consciência de que, numa arena globalizada, as ‘vedetes’ ou

celebridades podem auxiliar na difusão da religião. As aparições de atores

nacionais e internacionais associando-se ao budismo demonstraram isso. No

percurso figurativo isso é relevante: cria-se um efeito icônico em que o leitor vê

seus ídolos fazendo parte do universo budista e evidentemente isso é uma

estratégia de captação.

Verificamos uma representação em que o Dalai Lama sabe de sua

condição de pessoa pública, mundialmente conhecida e que o fato de ser a maior

celebridade em torno do assunto budismo não o incomoda. Em seu índice, Época

(p. 06) traz a legenda: Dalai Lama, líder espiritual do budismo tibetano, virou um

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superstar da fé (grifo nosso). O termo destacado denota um sentido de

popularidade, de sucesso e, por isso, de estrelato. Na mesma revista (p. 77), ele é

perguntado: O que acha de ser tão popular entre as celebridades mundiais? Ao

que responde: Não há diferença. Não importa se me vêem como celebridade, estrela de rock ou guru. O que interessa é minha própria motivação. Toda manhã tento dar uma forma apropriada a ela. O ponto de vista das outras pessoas a meu respeito é uma questão delas. Alguns me acham um bom sujeito, outros me consideram um reacionário ou separatista. Não me importa. Muitos anos atrás, durante a Revolução Cultural, os chineses diziam que eu era um lobo em pele de cordeiro, enquanto outras pessoas me consideravam um deus vivo. Bobagem.

Percebemos que a motivação a que o Dalai Lama faz referência tem um

duplo direcionamento: chama-se a atenção dos líderes políticos para a questão do

Tibete, que continua sob o domínio da China; e divulga-se a religião ao redor do

mundo. Talvez sem a vedetização isso não seria possível.

No que tange à isotopia da alteridade, verificamos que a visão que o

budismo faz do outro, querendo a ele oferecer benefícios, é traduzida pelo termo

‘compaixão’. Inúmeras referências foram feitas ao tema, instituindo-se, pois, o

leitor-modelo da apologia da compaixão. Cria-se, textualmente, um plano de

leitura, uma maneira de ler, que determina que se faça uma associação quase que

imediata entre budismo e compaixão.

Num percurso temático, outros valores são reiteradamente mencionados:

‘altruísmo’, felicidade, bondade, serviço ao próximo, solidariedade, humildade,

igualdade, amor, temas que fazem parte do discurso religioso e que, igualmente,

determinam o modo de produção de sentido dos enunciados das revistas,

buscando constituir um leitor ‘atento’ para o fato de o budismo elevar aludidos

valores a elevados patamares.

A atual configuração histórica brasileira e a forma como os valores

simbólicos transitam na sociedade nacional influenciam o cenário religioso. Isso se

verifica no universo ‘local’ e também no ‘global’. Há uma forte representação dos

discursos budistas e do discurso sobre o budismo veiculados na mídia no sentido

de promover o diálogo inter-religioso. Fartamente são explicitadas falas do Dalai

Lama e de Daisaku Ikeda (presidente da Soka Gakkai International - SGI) fazendo

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menção à necessidade do diálogo. Uma possível causa para isso seria o fato de

que as religiões guardariam equivalências, semelhanças, uma vez que apontariam

para a observância de valores comuns a elas. Essa é uma representação

recorrente na mídia impressa com relação ao budismo.

Foi possível constatar que todas as isotopias confluíram para uma isotopia

temática maior, qual seja, a da tolerância religiosa do budismo com relação aos

outros credos. Inúmeras marcas textuais foram encontradas nesse sentido e a

recorrência semântica, no nível temático, foi abundante. Segundo os textos

midiáticos, invariavelmente não é professada uma conversão formal a essa

religião. Os entrevistados são descritos como pessoas que não ‘abandonaram’

sua antiga crença, contudo passaram a incorporar ensinamentos budistas em

seus cotidianos.

Representado dessa forma, o budismo era apontado como uma religião

atraente. Em alguns momentos verificamos um certo tom mercadológico, como se

o credo fosse efetivamente um produto acessível a todos e fácil de ser

‘consumido’. Verificou-se uma estratégia de captação marcante de aproximação

entre o leitor e o budismo, lançando mão de uma linguagem carregada de

informalidade, criando-se assim uma atmosfera de intimidade. Isso ocorria de

modo especial quando o Dalai Lama era representado. Comumente os líderes

religiosos são associados à seriedade, à introspecção e ao distanciamento. No

entanto, o monge budista falava de maneira descontraída, com momentos de riso

– nos textos havia a preocupação de enfatizar a descrição de cenas hilárias, com

as legendas risos (Época, p. 73, p. 74 (duas ocorrências), p. 75 (três ocorrências),

p. 76, p. 77 (duas ocorrências)) – o que igualmente oferece um plano de leitura de

um ambiente prazeroso, tranqüilo e alegre.

Um ponto merece ser destacado nessas Considerações Finais: a

recorrência da alusão ao tema da ‘não conversão ao budismo’, atualizado em

diversos momentos nas revistas do corpus. Um motivo apontado textualmente é o

de que todas as religiões ‘beneficiariam’ os indivíduos, independentemente de sua

nomenclatura, razão pela qual não seria necessária uma conversão a essa religião

oriental, mas sim o fato de as pessoas buscarem uma transformação espiritual,

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não necessariamente religiosa. Isso permitiria deduzir que um novo elemento se

consolida no quadro de uma cultura brasileira já tão híbrida, sincrética.

Dessa forma, verificamos através da análise dos enunciados selecionados

das revistas que, discursivamente, foi sendo tecida a isotopia da tolerância do

budismo com relação aos outros diversos credos. Complementarmente, esses

mesmos enunciados indicam um forte movimento de aceitação do budismo por

diversos segmentos da sociedade brasileira. E essa é a grande representação

dessa religião na mídia impressa nacional da atualidade.

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