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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    GRUPOS E SERVIO SOCIAL EXPLORAES

    TERICO-OPERATIVAS

    Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

    2006

  • ii

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    GRUPOS E SERVIO SOCIAL EXPLORAES TERICO-

    OPERATIVAS

    Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduo em Servio Social, Escola de Servio Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Servio Social. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Mouro Vasconcelos

    Rio de Janeiro

    Maio/2006

  • iii

    GRUPOS E SERVIO SOCIAL EXPLORAES TERICO-

    OPERATIVAS

    Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo Mouro Vasconcelos

    Tese submetida ao Programa de Ps-Graduao em Servio Social,

    Escola de Servio Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

    parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Servio Social.

    Aprovada por:

    Presidente, Prof. Dr. Eduardo Mouro Vasconcelos

    Profa. Dra. Ana Maria de Vasconcelos

    Profa. Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues

    Prof. Dr. Jos Augusto Bisneto

    Profa. Doutora Teresa Cristina Carreteiro

    Rio de Janeiro

    Maio/2006

  • iv

    Eiras, Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra

    Grupos e Servio Social exploraes terico-operativas/ Alexandra Aparecida

    Leite

    Toffanetto Seabra Eiras. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS, 2006.

    xi, 357f.; 31 cm.

    Orientador: Eduardo Mouro Vasconcelos

    Tese (doutorado) UFRJ/ Escola de Servio Social/ Programa de Ps-

    graduao em Servio Social, 2006.

    Referncias Bibliogrficas: f. 340-357.

    1. Grupos. 2. Servio Social. 3. Prticas Grupais. 4. Trabalho Profissional com

    Grupos. I. Vasconcelos, Eduardo Mouro de. II. Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, Escola de Servio Social, Programa de Ps-graduao em Servio Social.

  • v

    RESUMO

    GRUPOS E SERVIO SOCIAL EXPLORAES TERICO-OPERATIVAS

    Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo Mouro Vasconcelos

    Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-

    Graduao em Servio Social, Escola de Servio Social, da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo

    de Doutor em Servio Social.

    Este trabalho explora as construes tericas sobre os grupos nas

    elaboraes realizadas no contexto do Movimento Institucionalista e Grupalista,

    especificamente, na obra Crtica da razo dialtica, de Jean Paul Sartre; na Anlise

    Institucional de Ren Lourau, Georges Lapassade e Flix Guattari; e no Grupo

    Operativo de Enrique Pichon Rivire. Recorremos contextualizao histrica desse

    movimento e indicamos alguns aspectos de sua repercusso no Brasil. O estudo

    exploratrio da obra desses autores, em suas produes sobre os grupos, foi

    realizada com a inteno de contribuir para a teorizao e qualificao do trabalho

    profissional com grupos no Servio Social. Compreendemos e explicitamos essa

    qualificao como uma contribuio terico-operativa que est em consonncia com

    os problemas e os desafios postos interveno profissional a partir do Projeto

    tico-Poltico dos Assistentes Sociais. preciso reconhecer tambm a interlocuo

  • vi

    entre a produo dos autores trabalhados e o marxismo, principalmente no debate

    sobre a burocratizao no socialismo real e nos organismos vinculados s classes

    trabalhadoras na Europa, como os sindicatos e os partidos operrios. Uma das

    questes presentes nesse debate a possibilidade de aprofundamento permanente

    da democracia nos processos de coletivizao do poder ou no exerccio coletivo do

    poder, e nas formas de autogesto e participao social. As implicaes dessa

    democratizao incluem o respeito diversidade ou o convvio com a diversidade.

    Observamos que em relao aos grupos e s organizaes sociais existentes nas

    sociedades capitalistas contemporneas, a democratizao exige a superao do

    submetimento do trabalho ao capital. Tambm envolve a explicitao das relaes

    de poder em suas diferentes expresses, como entre gnero, etnia, geraes etc.

    Reencontramos, atravs de nossas hipteses de trabalho, a atualidade da

    perspectiva crtico-dialtica e histrico-material como o mtodo privilegiado para

    apreender os grupos e as organizaes sociais em seu movimento e para explicitar

    as contradies, as tenses e as ambigidades existentes. Desse modo, a

    contribuio desse trabalho para o Servio Social extrapola o trabalho profissional

    com grupos em sentido estrito e poder ser apropriada como recurso terico-

    operativo, como ncoras de referncia para a interveno profissional mais ampla no

    campo social.

    Palavras-chave: Grupos, Servio Social, Prticas grupais, Trabalho profissional com

    grupos, autogesto, democratizao do poder.

    Rio de Janeiro

    Maio/06

  • vii

    Summary

    This study investigates the theoretical frameworks on groups developed by

    some of the approaches included in the so called Institutionalist and Grupalist

    Movement. More specifically, it explores the book Critic of the Dialectical Reason, by

    Jean Paul Sartre, the Institutional Analysis approach by Ren Lourau, Georges

    Lapassade and Flix Guattari, and the Operative Group approach by Enrique Pichon

    Rivire. The historical contextualization of this movement and some of its unfolding

    process in Brazil have been examined. The exploratory study of these authors work

    on groups was accomplished aiming at contributing for theory building and for the

    development of professional intervention in groups by social workers. This

    knowledge is understood here as a theoretical-practical contribution to a better

    understanding of the professional challenges posed by the so called Ethical-Political

    Project developed by the Brazilian social work. It is also necessary to acknowledge

    the relations between the authors indicated above and Marxism, particularly in the

    debate on bureaucracy in countries which have experienced the real socialism and in

    trade unions and workers political parties throughout Europe. One of the main issues

    present in this debate is the possibility of permanent development of democracy in

    power collectivization, power sharing, and in other forms of self-management and

    social participation. The implications of this democratization process include respect

    and acquaintanceship to diversity. In relation to groups and social organizations

    existing in contemporary capitalist societies, effective democratization requires to

    overcome the submission of labour to capital. It also includes to make explicit the

    power relations among different perspectives, as among gender, ethnicity,

    generation, etc. Through the investigation of our hypothesis, the up to date character

  • viii

    of the critical-dialectical and historical-materialistic is recognized as a central method

    for investigating groups and their organizations in their dynamic processes, and to

    bring up the existing contradictions, tensions and ambiguities. Therefore, this works

    contribution to social work is beyond the specificities of the professional work with

    groups, and may be appropriated as a wider theoretical-practical reference for

    professional intervention in the social field in general.

    Keys-words: Groups, Social Work, Professional Work with Groups.

  • ix

    Aos meus colegas assistentes sociais,

    pela determinao em construir novas

    referncias para a interveno

    profissional, qualificando-a continuamente,

    em direo s possibilidades de

    superao das formas de explorao e de

    dominao existentes em nosso pas.

  • x

    AGRADECIMENTOS

    Em especial, agradeo ao meu marido e companheiro, Lucas, pelos dilogos, pelos

    debates calorosos, sem dvida uma produo fecunda, dois filhos, uma filha, uma

    dissertao de mestrado (dele) e esta tese!

    Sou grata pela dedicao, pela orientao e pelo acompanhamento atencioso do

    Prof. Dr. Eduardo M. Vasconcelos.

    Agradeo s indicaes bibliogrficas, s discusses/contribuies tericas e

    tambm disponibilidade dos professores que participam da banca de defesa desta

    tese: Profa. Dra. Ana Maria de Vasconcelos, Profa. Dra. Heliana de Barros Conde

    Rodrigues, Prof. Dr. Jos Augusto Bisneto e Profa. Dra. Teresa Cristina Carreteiro.

    Agradeo s minhas colegas, professoras da Faculdade de Servio Social da

    Universidade Federal de Juiz de Fora, e respectivamente, s diretoras e chefe de

    departamento, pelo estmulo e pelo apoio durante o perodo de Doutorado, em

    especial, s Profas. Sandra Arbex, Marilene Sanso e Mnica Grossi.

  • xi

    Sou grata s minhas colegas de Doutorado, Cludia Mnica, Ana Lvia, Cristina,

    Sandra, Nair, Ana Amoroso pela fraternidade e pelo carinho em nossa convivncia.

    Agradeo Universidade Federal de Juiz de Fora, na pessoa da Reitora, Profa. Dra.

    Margarida Salomo pelo apoio institucional e ao Programa de Qualificao

    Institucional, na pessoa da coordenadora, Profa. Dra. Maria Aparecida Tardin

    Cassab, pela ajuda financeira.

    Agradeo aos nossos amigos e aos nossos familiares pelo apoio afetivo (e efetivo)

    sem os quais teria sido dficil e talvez, impossvel, a minha dedicao produo

    desta tese.

  • xii

    No sei se sonho, se realidade,

    Se uma mistura de sonho e vida,

    Aquela terra de suavidade

    Que na ilha extrema do sul se olvida.

    a que ansiamos. Ali, ali

    A vida jovem e o amor sorri.

    Talvez palmares inexistentes,

    leas longnquas sem poder ser,

    Sombra ou sossego dem aos crentes

    De que essa terra se pode ter.

    Felizes, ns? Ah, talvez, talvez,

    Naquela terra, daquela vez.

    Mas j sonhada se desvirtua,

    S de pens-la cansou pensar,

    Sob os palmares, luz da lua,

    Sente-se o frio de haver luar.

    Ah, nessa terra tambm, tambm

    O mal no cessa, no dura o bem.

    No com ilhas do fim do mundo,

    Nem com palmares de sonho ou no,

    Que cura a alma seu mal profundo,

    Que o bem nos entra no corao.

    em ns que tudo. ali, ali,

    Que a vida jovem e o amor sorri.

    Fernando Pessoa

  • GRUPOS E SERVIO SOCIAL EXPLORAES

    TERICO-OPERATIVAS

    INTRODUO

    O presente to grande, no nos afastemos.

    No nos afastemos muito, vamos de mos dadas.

    (Carlos Drummond de Andrade)

    Esta tese foi construda tendo como referncia dois temas centrais de

    pesquisa. O primeiro trata dos grupos, ou das prticas grupais, de algumas das

    elaboraes e abordagens tericas sobre os grupos nas sociedades capitalistas

    contemporneas, as quais privilegiam a compreenso dos mesmos em uma

    perspectiva histrico- dialtica. O segundo tema aborda a problemtica da

    interveno profissional com grupos no Servio Social, mais conhecida como

    trabalho com grupos, no intuito de elaborar referncias compatveis com o Projeto

    tico-Poltico dos assistentes sociais.

  • 16

    As discusses que atravessam este trabalho esto relacionadas ao processo

    de renovao do Servio Social no Brasil e apropriao da teoria social marxista

    como referncia para a interveno profissional identificada como inteno de

    ruptura (Jos Paulo Netto, 1991).

    A construo desta tese partilha do esforo para qualificar a interveno

    profissional no campo das respostas identificadas com a vertente inteno de

    ruptura. Ou seja, o problema e as questes tratadas nesta tese so investidos de

    sentido a partir da emergncia e da expresso hegemnica1 daquela vertente,

    durante as dcadas de 80 e 90.

    O problema e as questes aos quais nos referimos, remetem-nos s

    estratgias profissionais identificadas como trabalho com grupos.

    O trabalho com grupos no Servio Social foi ressignificado a partir da inteno

    de ruptura com o Servio Social tradicional2. Nesse aspecto, tal ruptura significou a

    negao do Servio Social de Grupo (SSG) enquanto mtodo elaborado nos EUA

    e adotado como tcnica especfica para o trabalho com grupos no Servio Social,

    constituindo uma especialidade profissional conhecida pela denominao Assistente

    Social de Grupo.

    A negao do SSG como estratgia para o trabalho com grupos, no contexto

    de apropriao da teoria social marxista enquanto referncia para a interveno

    profissional no Brasil, durante a dcada de 80, aproximou os assistentes sociais das

    abordagens presentes na Educao Popular inspiradas por Paulo Freire (nas

    reflexes deste autor e especificamente no Mtodo elaborado por ele no campo da 1 Adiante indicaremos o percurso dessa vertente no processo de renovao do Servio Social brasileiro. 2 A expresso Servio Social Tradicional tem sido utilizada para demarcar os modos de interveno e as fundamentaes terico-metodolgicas orientados por um horizonte poltico conservador, de preservao da ordem social existente e do status quo dominante. Refere-se, ainda, s posies catlicas de rechao ao capitalismo, na perspectiva anti-moderna que a Instituio Catlico-Romana empreendeu face aos horizontes da Modernidade na Europa e na Amrica Latina.

  • 17

    alfabetizao de adultos). Tambm houve uma aproximao com a Antropologia

    Cultural principalmente nos temas relacionados ao respeito pelas expresses

    diferentes presentes nas elaboraes identificadas como populares ou do povo,

    ou como saber popular.

    Durante a dcada de 90 face ao refluxo dos Movimentos Sociais Populares e

    dos Movimentos Populares Urbanos, expressivos na dcada anterior, e diante das

    estratgias de implementao do neoliberalismo no Brasil, no contexto de

    reestruturao produtiva dirigido pelos novos padres de acumulao flexvel, as

    estratgias de Educao Popular perderam espao e os educadores foram

    remetidos reflexo quanto ao insucesso dos objetivos de longo alcance, tais como

    os investimentos em relao transformao social ou mesmo em relao

    ruptura/superao do modo de produo capitalista no Brasil3. As estratgias gerenciais alinhadas aos influxos da acumulao flexvel e do neoliberalismo trouxeram consigo novas demandas as quais incorporam,

    atualmente, a dimenso do trabalho de equipe, do trabalho de grupo dentro das

    organizaes de um modo geral, inclusive extrapolando as organizaes

    estritamente industriais/empresariais.

    O Servio Social, inserido scio-institucionalmente nos diversos campos

    scio-ocupacionais, tambm foi atravessado pelas novas demandas e, nesse

    sentido, fomos provocados a elaborar nossas respostas a tais demandas.

    Assim, o trabalho com grupos, compreendido estritamente como instrumento

    de interveno, tem sido valorizado como habilidade profissional em diferentes

    espaos scio-ocupacionais.

    3 Os livros O Pndulo das Ideologias: a educao popular e o desafio da ps-modernidade (1994) e Educao popular utopia latino-americana (1994) contm algumas avaliaes sobre essa estratgia e os projetos de transformao social.

  • 18

    Entretanto, a dimenso grupal e coletiva, presente enquanto prtica humana e

    social tambm tem sido desvendada como importante aliada nas projees

    societrias possveis em nosso horizonte econmico-histrico-cultural conforme

    explicitaremos oportunamente.

    Observamos que o trabalho com grupos adquiriu relevncia em diferentes

    perspectivas, desde as mais reformistas at as mais ousadas em seus horizontes

    revolucionrios.

    As elaboraes tericas engendradas nas diferentes formas de trabalhar com

    grupos so divergentes de acordo com os horizontes poltico-ideolgicos que as

    perfazem.

    A nosso ver, adquirem relevncia para o Servio Social comprometido com as

    formulaes da vertente inteno de ruptura, as produes/elaboraes tericas

    sobre os grupos na perspectiva histrico-dialtica e scio-histrica.

    Nessa perspectiva tem-se estabelecido um debate explcito com a teoria

    social marxista, o qual tem sido qualificado por produes afins ao marxismo (como

    na obra sartreana, como na socioanlise na formulao de George Lapassade e

    Ren Lourau e no Grupo Operativo de Enrique Pichon-Rivire) ou em consonncia

    com o horizonte revolucionrio tambm presente na prtica poltica influenciada pelo

    marxismo (como a perspectiva de superao do capitalismo a partir das revolues

    moleculares descritas por Guattari).

    O ncleo desse debate focaliza a produo grupal ou a dimenso grupal

    presente na prxis revolucionria e explicita as divergncias e as diferenas no

    processo de construo e afirmao dos projetos societrios revolucionrios4. Ao

    submetermos a prxis revolucionria anlise na perspectiva da prtica humana

    4 Esta compreenso, aqui explicitada, foi construda em dilogo com o Prof. Dr. Eduardo Mouro Vasconcelos, nas disciplinas ministradas por ele, e durante o processo de orientao desta tese.

  • 19

    comum (prxis comum) ou da prtica humana grupal (prxis grupal) tambm

    desvelamos a complexidade da unidade pertinente aos processos revolucionrios

    (como veremos adiante na obra de Sartre), a qual impe a nosso ver, sob uma

    perspectiva emancipatria a convivncia democrtica (exerccio plural e coletivo

    do poder) como estratgia de manuteno/conservao em relao s novas

    prticas e aos novos contedos emancipatrios instituintes.

    Ento, em resumo, a tese por ns sustentada afirma-se nos seguintes

    pressupostos acerca do processo recente vivido pela profisso no Brasil:

    O Servio Social, no processo de renovao da profisso no Brasil, sob a

    hegemonia da vertente inteno de ruptura, formulou novas referncias

    terico-metodolgicas, as quais, ao serem apropriadas no processo de

    interveno profissional, suscitam novos problemas, entre eles, a formulao

    de estratgias alinhadas ao novo referencial.

    O novo referencial terico-metodolgico elege a tradio marxista e suas

    principais correntes como referncia terica principal e apresenta como

    horizonte tico-poltico, no Projeto dos assistentes sociais, as perspectivas de

    superao de todas as formas de explorao e dominao existentes nas

    sociedades capitalistas contemporneas.

    As questes referentes ruptura (contnua) com as prticas conservadoras

    ou tradicionais no exerccio da profisso colocam a necessidade de

    compreender a interveno do Servio Social como prtica instituinte,

  • 20

    construda historicamente e inserida scio-institucionalmente ou como prtica

    grupal/coletiva permanente.

    A compreenso sobre os grupos ou sobre as prticas grupais nas sociedades

    capitalistas contemporneas explicita o carter de produo/construo

    permanente da realidade social em todas as dimenses possveis, desde a

    produo/reproduo material da vida at s mais sofisticadas explicaes

    sobre a existncia humana nessas sociedades.

    A interveno do Servio Social, em sentido amplo, interveno com

    grupos, seja no plano das inseres scio-institucionais, envolvendo inclusive

    as relaes com os usurios do Servio Social; seja no plano das relaes

    internas, na construo das respostas profissionais debatidas entre os

    assistentes sociais.

    O trabalho com grupos, estritamente, beneficia-se desta compreenso

    ampliada sobre os grupos e as prticas grupais.

    O dilogo com as elaboraes tericas, as quais focalizam as relaes

    sujeitos/grupos em diversas situaes e inseres sociais, possibilita a

    incorporao de referncias psicolgicas compatveis com a abordagem

    histrico-dialtica e scio-histrica, contribuindo para a qualificao do

    trabalho com grupos, em sua dimenso terico-operativa.

  • 21

    Estamos utilizando a expresso referncia terico-metodolgica para

    enfatizar a apropriao metodolgica ou a instrumentalidade

    construda/apreendida nas prticas grupais/coletivas, em nosso caso, a

    apropriao terico-metodolgica realizada no processo de renovao do

    Servio Social no Brasil, ou seja, uma nova compreenso/inteligibilidade

    sobre a profisso historicamente construda no movimento dos assistentes

    sociais brasileiros, demarcado politicamente, contextualizado e atravessado

    por mltiplas variveis que incorporou novos contedos terico-operativos

    os quais tem sido permanentemente discutidos e diversamente re-apropriados

    (inclusive sincreticamente) nas prticas interventivas, nas diferentes inseres

    organizacionais seja nos espaos scio-ocupacionais existentes, seja na

    formao profissional e no movimento dos assistentes sociais (nas

    organizaes especficas dos assistentes sociais), instncias em estreita

    comunicao entre si.

    Nossa tese pode ser assim formulada:

    As referncias terico-metodolgicas formuladas a partir da emergncia da

    vertente inteno de ruptura e condensadas no Projeto tico-Poltico dos

    assistentes sociais apresentam lacunas terico-operativas em relao

    compreenso sobre os grupos e sobre as prticas grupais nas sociedades

    capitalistas contemporneas. A qualificao do trabalho profissional com

    grupos depende da elaborao de contedos terico-operativos que

    explicitem essas lacunas e auxiliem na apreenso histrico-dialtica dos

    grupos e das prticas grupais. A perspectiva histrico-dialtica possui

  • 22

    aberturas que possibilitam a compreenso dos grupos e das prticas grupais

    enquanto processos grupais, sem isol-los em suas singularidades e em suas

    expresses particulares.

    Esta tese explora as possibilidades de compreenso sobre os grupos e sobre

    as prticas grupais no campo de produo/elaborao do Movimento

    Institucionalista e Grupalista, principalmente, na sua expresso francesa

    (oportunamente explicitaremos os motivos desta opo).

    No intuito de apresentar os temas e os problemas trabalhados

    exploratoriamente nesta tese, e a fim de manter a complexidade das questes

    engendradas nos mesmos, optamos por uma estratgia de exposio focalizada na

    produo/elaborao terica de alguns autores escolhidos por sua relevncia no

    campo das produes/elaboraes tericas sobre os grupos ou sobre as prticas

    grupais em sua dimenso histrico-dialtica e scio-histrica.

    Nossa exposio est organizada em trs captulos.

    No primeiro captulo apresentamos o Projeto tico-Poltico dos assistentes

    sociais e as implicaes deste projeto para a interveno do Servio Social,

    problematizando, especificamente, os contedos referentes ao trabalho profissional

    com grupos.

    No segundo captulo apresentamos os grupos na perspectiva histrico-

    dialtica atravs da obra Crtica da razo dialtica escrita por Jean Paul Sartre.

    No terceiro captulo apresentamos o Movimento Institucionalista e Grupalista

    atravs da produo de George Lapassade, Ren Lourau, Flix Guattari e Enrique

    Pichn Rivire.

  • 23

    No decorrer desta exposio, estaremos explicitando, quando for necessrio,

    as nossas hipteses de trabalho. Tais hipteses so formulaes que facilitam a

    elaborao das questes trabalhadas e se referem nossa apropriao sobre os

    contedos terico-operativos apresentados.

    Diz o poeta, "o presente to grande, no nos afastemos. No nos afastemos

    muito, vamos de mos dadas". Ou como conclamaram Karl Marx e Friedrick Engels

    ao final do Manifesto Comunista, Proletrios de todos os pases, uni-vos.

    Destacamos "os grupos" (enquanto nosso tema de pesquisa) tambm pelo

    desejo e pela necessidade de compreendermos esta dimenso de nossa prtica

    humana. O desejo e a necessidade que nos aproximam. O desejo e a necessidade

    que nos afastam. Ou ainda, o desejo e a necessidade de compreender as

    possibilidades histricas de construirmos projetos coletivos no horizonte de nossas

    perspectivas emancipatrias e libertrias.

    Sinto-me na obrigao de dizer que minha contribuio modesta. Contudo,

    considerando o carter exploratrio desta tese, podemos avaliar que foi possvel

    avanar na elaborao de algumas referncias, contribuindo para a apreenso de

    contedos terico-operativos sobre os grupos e sobre as prticas grupais nas

    sociedades capitalistas contemporneas e para a qualificao do trabalho com

    grupos no Servio Social.

  • 24

    CAPTULO 1 O PROJETO TICO-POLTICO DOS

    ASSISTENTES SOCIAIS E O TRABALHO PROFISSIONAL

    COM GRUPOS

    Neste captulo elaboramos as relaes entre o Projeto tico-Poltico dos

    assistentes sociais (o qual expressa as intenes de ruptura com o Servio Social

    Tradicional e explicita o horizonte tico-poltico norteador de suas intervenes) e o

    trabalho profissional com grupos.

    Nossa inteno foi a de ressaltar, tanto as aproximaes, quanto as lacunas

    existentes nas apropriaes do Servio Social brasileiro sobre os grupos e as

    prticas grupais nas sociedades capitalistas contemporneas.

    Podemos adiantar algumas das questes aqui indicadas.

    A primeira delas refere-se prtica grupal desencadeada pelos assistentes

    sociais no processo de renovao do Servio Social no Brasil. Tal prtica produziu

    um Projeto norteador das intervenes profissionais (e uma convergncia em torno

    dos princpios tico-polticos formulados no Cdigo de tica Profissional de 1993)

    gerando a necessidade/expectativa de recriao contnua (proposies criativas e

    apropriaes subjetivas) nas intervenes dos assistentes sociais.

    A segunda refere-se negao dos contedos terico-operativos

    identificados com a produo positivista e funcionalista tambm ideologicamente

    comprometida com o projeto de dominao burguesa, entre eles, muitas das

  • 25

    proposies sobre os grupos nas sociedades contemporneas elaboradas pela

    sociologia, pela psicossociologia, pela psicologia social e tambm pela psicanlise,

    entre outras disciplinas.

    Ao atuarem coletivamente, os assistentes sociais manifestam, concretamente,

    sua compreenso sobre as prticas empreendidas grupalmente e sobre o poder a

    elas relacionado.

    Explicitamente, o movimento dos assistentes sociais empreendeu aes no

    intuito de fortalecer as posies de ruptura com o Servio Social Tradicional.

    Nesse sentido, as noes sobre as prticas grupais e coletivas esto

    presentes no horizonte das intervenes profissionais.

    A lacuna explicita-se pela ausncia de contedos terico-operativos capazes

    de favorecer a apreenso dos grupos e das prticas grupais em sua especificidade e

    em sua complexidade, ou seja, a pouca problematizao existente (no debate

    profissional) sobre os processos grupais e suas implicaes poltico-sociais face aos

    projetos societrios de cunho emancipatrio e libertrio.

    Este captulo est organizado nas seguintes sees:

    1.1 O processo de renovao do Servio Social no Brasil

    1.2 O Projeto tico-Poltico dos assistentes sociais na perspectiva dos

    Princpios Fundamentais expostos no Cdigo de tica Profissional de

    1993

    1.3 Contedos terico-operativos necessrios interveno profissional

  • 26

    1.1 O processo de renovao do Servio Social no Brasil

    O Servio Social no Brasil atravessou um perodo de renovao em suas

    formulaes tericas e em suas respostas profissionais entre e durante as dcadas

    de 60 e 80, processo este que alterou significativamente as referncias tericas

    herdadas pelas contribuies franco-belgas e norte-americanas durante as dcadas

    de 30 e 40, momento em que a profisso se constitua em nosso pas.

    Tal processo tem sido compreendido como uma renovao do Servio Social

    no Brasil e foi apreendido por Jos Paulo Netto como "uma resposta construda

    pelos assistentes sociais na rede de relaes que se entretecem na interao

    profissionalidade/sociedade" a partir do entrecruzamento entre a "dinmica

    abrangente das demandas scio-institucionais postas ao Servio Social e da

    dinmica interna realidade profissional (que envolve nveis outros que o da estrita

    'teorizao') (...) enlaado pelo movimento totalizante da formao social brasileira

    sob o regime autocrtico burgus" (1991:9-10).

    Jos Paulo Netto (idem) caracteriza o processo de renovao do Servio

    Social no Brasil como uma ruptura que distinguiu o Servio Social contemporneo

    de seu recente passado histrico, propiciando inclusive que as respostas

    profissionais ultrapassassem as prprias demandas e condicionamentos postos pela

    autocracia burguesa.

    Segundo o autor, at meados dos anos sessenta, o Servio Social mostrava

    uma relativa homogeneidade interna atestada pela ausncia de polmicas

    importantes o que sugeria certa unidade nas propostas profissionais bem como

    carecia de uma elaborao terica mais significativa. A "total assepsia de

  • 27

    participao poltico-partidria" (idem: 128) junto s caractersticas mencionadas

    asseverava uma direo consensual nas prticas interventivas e cvicas dos

    assistentes sociais, o que claro, no implicava na ausncia de tenses e de

    conflitos internos, porm, tais manifestaes no expressavam diferenas

    significativas de posicionamento entre os assistentes sociais. De acordo com Netto,

    a ruptura com este cenrio tem suas bases na laicizao do Servio Social, que as condies novas postas formulao e ao exerccio profissionais pela autocracia burguesa conduziram ao ponto culminante; so constitutivas desta laicizao a diferenciao da categoria profissional em todos os seus nveis e a conseqente disputa pela hegemonia do processo profissional em todas as suas instncias (projeto de formao, paradigmas de interveno, rgos de representao etc.) [Tal laicizao que vinha acontecendo desde dcada de 50] foi precipitada decisivamente pelo desenvolvimento das relaes capitalistas durante a 'modernizao conservadora' e s apreensvel levando-se em conta as suas incidncias no mercado nacional de trabalho e nas agncias de formao profissional (idem:128:129)

    Jos Paulo Netto sintetiza quatro aspectos que sinalizam os "ns mais

    decisivos do processo de renovao do Servio Social:

    a) a instaurao do pluralismo terico, ideolgico e poltico no marco profissional, deslocando uma slida tradio de monolitismo ideal;

    b) a crescente diferenciao das concepes profissionais (natureza, funes, objeto, objetivos e prticas do Servio Social), derivada do recurso diversificado a matrizes terico-metodolgicas alternativas, rompendo com o vis de que a profissionalidade implicaria uma homogeneidade (identidade) de vises e de prticas;

    c) a sintonia da polmica terico-metodolgica profissional com as discusses em curso no conjunto das cincias sociais, inserindo o Servio Social na interlocuo acadmica e cultural contempornea como protagonista que tenta cortar com a subalternidade (intelectual) posta por funes meramente executivas;

    d) a constituio de segmentos de vanguarda, sobretudo, mas no exclusivamente inseridos na vida acadmica, voltados para a investigao e a pesquisa (idem:135-136).

  • 28

    O processo de renovao do Servio Social ocorreu em consonncia com a

    eroso das bases que sustentaram as respostas elaboradas pelo Servio Social

    Tradicional no Brasil5.

    Nesse sentido, a renovao do Servio Social brasileiro tambm foi um

    processo que comportou direes diferentes, enraizadas tanto no processo histrico

    brasileiro quanto no acmulo terico-poltico-cultural vivido pelos assistentes sociais.

    Jos Paulo Netto identificou trs direes envolvidas neste processo de

    renovao, entre as dcadas de 60 e 80: a perspectiva modernizadora, a

    perspectiva de reatualizao do conservadorismo e a perspectiva inteno de

    ruptura6.

    A perspectiva de inteno de ruptura, como a terceira direo identificada no

    processo de renovao do Servio Social no Brasil, prope-se a romper com o

    Servio Social Tradicional. Segundo Netto,

    ao contrrio das anteriores, esta possui como substrato nuclear uma crtica sistemtica ao desempenho 'tradicional' e aos seus suportes tericos, metodolgicos e ideolgicos. Com efeito, ela manifesta a pretenso de romper quer com a herana terico-metodolgica do pensamento conservador (a tradio positivista), quer com os seus paradigmas de interveno social (o

    5 Jos Paulo Netto analisa a eroso do Servio Social Tradicional no Brasil relacionada s demandas de interveno sobre a questo social, no contexto de industrializao pesada (no final dos anos 50), que desbordavam amplamente as prticas profissionais que os assistentes sociais brasileiros estavam cristalizando como prprias da sua atividade (basicamente concretizadas nos processos das abordagens individual e grupal). Donde, j ento, o empenho profissional para desenvolver outras modalidades interventivas, com a assuno da abordagem comunitria enquanto outro processo profissional (Netto, 1991:137). A interveno no plano comunitrio apresentou elaboraes diferentes: uma corrente que extrapola para o Desenvolvimento de Comunidade os procedimentos e as representaes tradicionais, apenas alterando o mbito da sua interveno; outra, que pensa o Desenvolvimento de Comunidade numa perspectiva macrossocietria, supondo mudanas socioeconmicas estruturais, mas sempre no bojo do ordenamento capitalista; e, enfim, uma vertente que pensa o Desenvolvimento de Comunidade como instrumento de um processo de transformao social substantitva, conectado libertao social das classes e camadas subalternas (idem:140). 6 Para uma compreenso quanto s caractersticas e quanto ao desenvolvimento das perspectivas modernizadora e de reatualizao do conservadorismo remetemos o leitor ao livro de Jos Paulo Netto Ditadura e Servio Social uma anlise do Servio Social no Brasil ps-64 (1991).

  • 29

    reformismo conservador)7. Na sua constituio, visvel o resgate crtico de tendncias que, no pr-64, supunham rupturas poltico-sociais de porte para adequar as respostas profissionais s demandas estruturais do desenvolvimento brasileiro. Especialmente, ela toma forma pela elaborao de quadros docentes e profissionais cuja formao se dera entre as vsperas do golpe e a fascistizao assinalada pelo AI-5. Na sua evoluo e explicitao, ela recorre progressivamente tradio marxista (...) e revela as dificuldades da sua afirmao no marco sociopoltico da autocracia burguesa: sua emerso inicial (configurada no clebre 'Mtodo Belo Horizonte'), na primeira metade da dcada de setenta, permaneceu por longos anos um signo isolado. medida que avana a crise da ditadura, e o 'marxismo acadmico' (...) se desenvolve, ela se adensa, sobretudo enquanto padro de anlise textual; quando a autocracia burguesa entra na defensiva e se processa a transio democrtica, ela empolga vanguardas profissionais, fortemente mesclada ao novo irracionalismo (...). Na primeira metade dos anos oitenta, esta perspectiva que d o tom da polmica profissional e fixa as caractersticas da retrica politizada (com ntidas tendncias partidarizao) de vanguardas profissionais de maior incidncia na categoria, permeando o que h de mais ressonante na relao entre esta e a sociedade e de forma tal que fornece a impresso de possuir uma inconteste hegemonia no universo profissional (idem:159-160).

    A ao dos profissionais, na perspectiva de ruptura com o Servio Social

    Tradicional, produziu outras referncias para a interveno profissional. De modo

    estratgico, estes profissionais propuseram alteraes significativas sobre o

    currculo de Servio Social (1982 e 1996) e sobre o Cdigo de tica Profissional

    (1986 e 1993); na produo e na formao acadmica, elaboraram novas

    referncias terico-operativas8, polarizando o debate profissional em torno das

    7 Para um aprofundamento na discusso sobre o conservadorismo no Servio Social pode-se consultar o livro Renovao e conservadorismo no Servio Social de Marilda Iamamoto (1992). Jos Paulo Netto tambm apresenta os fundamentos cientficos e o estatuto profissional do Servio Social em seu livro Capitalismo Monopolista e Servio Social (2001) explicitando a herana positivista presente na profisso. 8 Nas novas referncias terico-operativas, durante a dcada de 80, enunciou-se a compreenso quanto unidade entre histria, teoria e metodologia (registrada nos debates publicados nos Cadernos ABESS nmeros 1 e 3). Desse modo, a compreenso histrica sobre a emergncia do Servio Social inspirada na teoria social marxista, como no livro de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho (Relaes Sociais e Servio Social no Brasil esboo de uma interpretao histrico-metodolgica, publicado no incio dos anos 80), significaria uma nova apreenso sobre a interveno profissional, gerando a expectativa de produo de novos instrumentos e de novas tcnicas. Em relao perspectiva terico-metodolgica, a anlise sobre a realidade foi enfatizada como desencadeadora das aes profissionais no processo de interveno (os assistentes sociais devem ser capazes de analisar a realidade na qual eles esto inseridos, da a importncia de sua formao intelectual). Esta anlise tambm incorporou, em certa medida, como estratgias, a anlise de conjuntura e a anlise institucional, numa perspectiva sociolgica, como possibilidade de distinguir os diversos projetos em disputa (na sociedade e) nos espaos scio-institucionais.

  • 30

    apropriaes sobre a teoria social marxista. Tais aes constituram,

    progressivamente, o Projeto tico-Poltico dos assistentes sociais.

    As aes de ruptura com o Servio Social Tradicional compartilham

    horizontes poltico-ideolgicos na perspectiva de transformao das relaes sociais

    atuais as quais se sustentam sobre o modo-de-produo capitalista na

    perspectiva de superao das formas de explorao e de dominao existentes: a

    explorao das classes trabalhadoras e as formas de submisso social sintetizadas

    na manuteno do status quo dominante.

    O comprometimento poltico-ideolgico com a formulao de projetos

    societrios emancipatrios coloca os assistentes sociais em uma posio de

    enfrentamento e de proposio (criao) diante das respostas scio-institucionais

    elaboradas s expresses das questes sociais pertinentes ao desenvolvimento

    capitalista.

    O enfrentamento refere-se ao posicionamento crtico face s estratgias

    scio-institucionais mantenedoras do status quo dominante. E a proposio refere-

    se s possibilidades de criao (ou mesmo de renovao) das estratgias scio-

    institucionais no intuito de alinh-las aos horizontes poltico-ideolgicos

    emancipatrios.

    Tanto o enfrentamento quanto as proposies criativas sero possveis na

    medida em que exista um contexto favorvel aos mesmos9.

    9 relevante atentar para as posturas fatalistas e messinicas presentes no Servio Social. Ambas ignoram o carter contraditrio ou a dimenso dialtica da realidade social. A primeira ao considerar que nenhuma ao possvel em direo ao horizonte poltico-ideolgico emancipatrio; a segunda porque superestima o poder individual sobre as transformaes scio-institucionais. Marilda Iamamoto tem refletido sobre esses posicionamentos na profisso (O Servio Social na contemporaneidade: trabalho e formao profissional, 1998).

  • 31

    Por isso, tornam-se relevantes as anlises sobre a realidade social,

    considerando-se as abordagens histricas, as quais apreendem a dinmica dos

    conflitos e das lutas, das contradies materiais engendradas pelo modo-de-

    produo capitalista, em uma perspectiva crtico-dialtica.

    A perspectiva crtico-dialtica focaliza a realidade social procurando

    apreend-la em seu movimento histrico-material.

    No Servio Social tal perspectiva ganha importncia, tornando-se uma

    habilidade necessria aos assistentes sociais comprometidos com os horizontes

    poltico-ideolgicos expressos pela inteno de ruptura.

    Nesse sentido, as aes de ruptura assumem um comprometimento duplo:

    so aes que buscam romper com as prticas do Servio Social Tradicional

    alinhando-se aos projetos societrios emancipatrios e com os horizontes mais

    amplos de transformao social.

    Contudo, a apreenso da dinmica social em seu movimento histrico-

    material requer tanto a habilidade para perceber as implicaes do desenvolvimento

    das foras produtivas ou os impactos das formas de produo/reproduo material

    hegemnicas sobre as construes humanas, quanto requer a possibilidade de

    reconhecer as mediaes scio-institucionais10 em sua relao com o movimento

    histrico-material em sua dimenso de totalidade.

    Nesse sentido, a perspectiva de totalidade requer, necessariamente, a

    habilidade para analisar as manifestaes particulares ou as mediaes que so

    10 As instituies humanas atravessam ou so atravessadas pelas transformaes societrias. Desse modo, podemos dizer, por exemplo, que a Igreja Catlica e no a mesma instituio, ou seja, ela articula contedos diferentes e explicaes novas, adquirindo novos significados. O significado da Igreja Catlica durante a Idade Mdia, sua centralidade histrica, muito diferente do significado da Igreja Catlica na atualidade, embora esta instituio permanea e continue sendo uma referncia relevante nas sociedades contemporneas. Assim, o direito romano, ou a medicina grega, ou a universidade medieval permanecem articulando novos contedos e novos significados nas sociedades capitalistas contemporneas.

  • 32

    concretamente a expresso da totalidade ou os mecanismos pelos quais as

    coerncias so estabelecidas tornando-se, ento, plausveis.

    Assim, a totalidade social existe, concretamente, na medida em que pode ser

    apreendida particularmente, como por exemplo, nas suas expresses scio-

    institucionais11.

    O Projeto tico-Poltico dos assistentes sociais desenvolve-se, articula-se

    concretamente, atravs das inseres scio-institucionais ou dos espaos scio-

    ocupacionais ocupados pelo Servio Social; atravs das organizaes prprias ao

    Servio Social, tais como, os Conselhos Regionais (CRESS) e o Conselho Federal

    de Servio Social (CFESS), a Associao Brasileira de Pesquisa e Ensino de

    Servio Social (ABPESS), as faculdades de Servio Social, os Sindicatos de

    Assistentes Sociais, os Diretrios Acadmicos e os movimentos dos estudantes de

    Servio Social, as ps-graduaes na rea de Servio Social, entre outros; atravs

    das formas de participao poltica desenvolvida pelos assistentes sociais, tais como

    suas inseres nos movimentos sociais (por exemplo, na esfera da assistncia

    social, na esfera da infncia e juventude etc.), pela militncia junto aos partidos

    polticos etc.

    Desse modo, difcil avaliar o alcance do Projeto tico-Poltico dos

    assistentes sociais ou mesmo suas formas de efetivao nas diferentes inseres

    destes profissionais, sem estud-las em sua profundidade e em sua abrangncia.

    necessrio enfatizar que este estudo consistiria em um empreendimento

    coletivo, e no seria possvel no mbito restrito de um programa de doutoramento.

    11 Karl Marx, em O capital, estuda as sociedades capitalistas (principalmente a sociedade Inglesa) atravs da economia poltica, dos dados e das referncias produzidos nessa instituio burguesa; atravs do movimento operrio e de suas formas organizativas em fase de elaborao; atravs das novas organizaes empresarias como as fbricas; atravs do Estado burgus em consolidao, entre outros. Ou seja, embora ele articule sua compreenso na perspectiva de uma totalidade social, efetivamente, o mtodo por ele desenvolvido, exigiu-lhe o conhecimento das expresses particulares em sua vinculao com aquela perspectiva.

  • 33

    Contudo, inferimos que o Projeto tico-Poltico tem sido uma referncia

    importante para os assistentes sociais. Nossa inferncia sustenta-se nos seguintes

    argumentos:

    1) O Projeto uma das respostas profissionais s demandas scio-institucionais

    em um contexto de democratizao (ou de valorizao da democratizao

    enquanto um horizonte a ser alcanado). Assim, ele contm referncias

    metodolgicas e contedos terico-operativos atravs dos quais possvel

    renovar as respostas profissionais atendendo s demandas de

    democratizao, principalmente aquelas referentes participao popular e

    ao protagonismo das classes trabalhadoras na construo de projetos

    societrios emancipatrios12.

    2) O Projeto perpassa a formao profissional principalmente pela produo

    terica que inspira e incita nas diferentes instituies acadmicas; est

    presente tambm, nas questes que atravessam o debate profissional, as

    quais dialogam com os problemas enfrentados pelos assistentes sociais no

    processo de interveno scio-institucional. Nesse sentido, o projeto

    constituiu-se em uma referncia, s vezes explcita (quando o debate focaliza

    os limites da interveno profissional, amplificados diante do horizonte tico-

    poltico apropriado de forma fatalista ou messinica13); outras vezes, torna-se

    uma referncia implcita, quando os assistentes sociais apropriam-se,

    12 Ao final da dcada de 70, o protagonismo das classes trabalhadoras foi expresso nas lutas empreendidas no ABC paulista, as quais produziram o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central nica dos Trabalhadores (CUT) como formas organizativas que contestavam as estruturas partidrias e sindicais existentes. O PT organizou-se na expectativa de responder necessidade de participao de suas bases, na expectativa de manter relaes democrticas, expressando, inclusive, o comprometimento com a construo do socialismo. A CUT organizou uma outra forma de unidade entre os sindicatos de trabalhadores (com a proposio de organizao por ramos de produo) a fim de oferecer outros meios de luta inviabilizados pela burocracia dos sindicatos organizados por categorias profissionais (conforme Ricardo Antunes, O novo sindicalismo, 1991). 13 Conforme nota nmero 08, nesta seo.

  • 34

    ideologicamente, no processo de formao profissional, dos horizontes tico-

    polticos presentes no projeto de ruptura, ainda que existam inconsistncias

    terico-metodolgicas em sua fundamentao14.

    3) A incorporao do Projeto de Ruptura pela via dos Princpios tico-Polticos

    explicitados no Cdigo de tica Profissional de 1993 significou a abertura do

    projeto de ruptura atravs da democratizao do debate profissional na

    perspectiva do pluralismo15. Esta abertura evidenciou-se no processo de

    discusso do Cdigo de tica16, e propiciou a manifestao dos profissionais

    nas assemblias realizadas17. Afirmamos, ento, que o Projeto de Ruptura

    14 Tal apropriao se expressa em uma compreenso ingnua, bem intencionada, das possibilidades de transformao social, sem um conseqente aprofundamento metodolgico-terico-operativo e adquire maior visibilidade entre os estudantes de Servio Social e entre os assistentes sociais recm-formados. 15 O adensamento do debate profissional, sobretudo na dcada de 80 e incio dos anos 90, levou a um amadurecimento na reflexo da teoria crtico-dialtica, que fundamenta o projeto profissional a partir do chamado processo de reconceituao. Rene um esforo de ampliao da concepo de aliana com os usurios do Servio Social e das idias de compromisso com os valores da liberdade, democracia, cidadania e direitos sociais. Aos poucos, superam-se as prticas militantistas e messincias, impregnadas de um contedo, muitas vezes romntico, parcializado, meramente denunciativo/acusatrio e caudatrio de uma viso vulgar do marxismo. Ao mesmo tempo, avana-se na direo de um debate plural conseqente, que no se confunde com pronunciamentos eclticos, ancorado na necessidade de convvio democrtico com a diversidade, tendo como suposto o crdito no compromisso com os princpios libertrios (Bonetti e outros, 1996:14. Grifos nossos). 16De acordo com Maria Lcia Barroco, o processo de debates ticos que teve incio em 1992, culminando com a aprovao do novo Cdigo, um ano depois, foi marcado por um encaminhamento indito na trajetria da reflexo tica profissional. Historicamente, em funo do Cdigo de tica que a categoria se mobiliza para tal discusso, o que j aponta para uma concepo restrita acerca da tica profissional; restrita codificao formal, a tica deixa de ser tratada como tema do cotidiano e apreendida como relao entre as esferas e atividades sociais. Em 1992, o processo foi inverso; iniciando-se como reflexo sobre tica, em geral, levou questo da tica profissional e ao Cdigo, como uma de suas dimenses (2001:199). 17Segundo Bonetti (e outros), o CFESS (gesto 1990-93) assumiu o desafio de enfrentar o debate sobre a tica profissional, agendando-o desde a sua plataforma programtica e colocando na ordem do dia das pautas dos encontros profissionais que organizou, em parceria com os Conselhos Regionais de Servio Social (CRESS), a Associao Brasileira de Ensino de Servio Social (ABESS), o Centro de Documentao e Pesquisa em Polticas Sociais e Servio Social (CEDEPSS), a Associao Nacional dos Assistentes Sociais (ANAS), existente na poca, e a Sub-Secretaria de Servio Social na UNE/SESSUNE (atual ENESSO/Executiva Nacional dos Estudantes de Servio Social). O debate tico desencadeou-se o mais amplamente possvel, contando com a macia participao da categoria, expressa nas diversas conferncias e comunicaes apresentadas, bem como por contribuies de profissionais de reas afins. Esse processo teve incio no I Seminrio Nacional de tica (agosto de 1991), tendo continuado no 7. CBAS (maio de 1992), no II Seminrio Nacional de tica (novembro de 1992), em diversos encontros estaduais, e culminando com a

  • 35

    atravs dos Princpios Fundamentais formulados no Cdigo de tica de 1993

    produziu uma sntese plural das concepes e orientaes ticas existentes

    na profisso sob a direo da inteno de ruptura. Dessa forma, os

    assistentes sociais (em geral) tendem a reconhecer, nos Princpios

    Fundamentais, algumas de suas aspiraes profissionais, mesmo que

    existam divergncias na adeso aos diferentes projetos societrios. Nesse

    sentido, a convergncia bem expressa, por exemplo, na dimenso da

    defesa dos direitos humanos e dos direitos sociais; na defesa da democracia,

    da liberdade e da autonomia individual; na luta pela efetivao da cidadania;

    na qualidade dos servios oferecidos aos usurios, na valorizao da

    competncia profissional. Tais enunciados, por sua amplitude, envolvem

    algumas das aspiraes e dos horizontes que norteiam as expectativas

    quanto aos impactos da interveno profissional nos espaos scio-

    ocupacionais nos quais se desenvolve.

    A partir dessas inferncias, consideramos pertinente uma aproximao aos

    Princpios Fundamentais enunciados no Cdigo de tica Profissional de 1993 cujo

    contedo ns apresentaremos adiante.

    aprovao do novo Cdigo de tica, no XXI Encontro Nacional CFESS/CRESS (fevereiro de 1993). Em maro de 1993, entrou em vigor o novo Cdigo (1996:16).

  • 36

    1.2 O Projeto tico-Poltico dos Assistentes Sociais na

    perspectiva dos Princpios Fundamentais expostos no Cdigo de

    tica Profissional de 1993

    Os Princpios Fundamentais expostos no Cdigo de tica Profissional de

    1993 possibilitaram uma divulgao mais abrangente do Projeto de Ruptura entre os

    assistentes sociais.

    Atravs do Cdigo de tica de 1993, o Projeto de Ruptura foi apropriado

    como Projeto tico-Poltico dos assistentes sociais, tornando-se uma das

    referncias profissionais face aos encaminhamentos prticos e ao posicionamento

    poltico diante do Estado (Barroco, 2001) 18.

    De acordo com Maria Lcia Barroco,

    [os] avanos permitem situar o Cdigo de tica como uma expresso significativa do acmulo profissional dos anos 1980 e dos avanos terico-polticos conquistados na seqncia do Cdigo de 1986, assinalando um novo e slido patamar na trajetria do Servio Social no Brasil (...) A elaborao deste Cdigo implicou um processo coletivo de debates e reflexes que lhe confere uma inegvel legitimidade em face do conjunto dos assistentes sociais. Isto, porm, no significa a ausncia de contradies, tenses e, at mesmo, antagonismos; no assenta numa espcie de identidade profissional (ou scio-profissional) homognea e sim, na hegemonia, no mbito profissional, da vertente terico-metodolgica que, como sugerimos, veio se fortalecendo no Brasil nas duas ltimas dcadas, e que denominamos de tendncia de ruptura (2001:207).

    Nessa direo, os Princpios Fundamentais expostos no Cdigo de tica

    constituem, atualmente, a apresentao bsica do Projeto tico-Poltico, em uma

    18 Considerando as caractersticas da institucionalizao do Servio Social no Brasil o Estado ou o poder pblico (municipal, estadual, federal) tem sido o setor que mais oferece empregos aos assistentes sociais. Por outro lado, o Estado o responsvel pela formulao e execuo das polticas pblicas nas quais o Servio Social possui um lugar destacado.

  • 37

    sntese dos pressupostos que norteiam a interveno profissional na perspectiva do

    Projeto de Ruptura.

    A discusso sobre os Princpios Fundamentais, no contexto de elaborao do

    Cdigo de tica Profissional constituiu o frum mais abrangente, em termos da

    explicitao do Projeto tico-Poltico no mbito da categoria de assistentes sociais.

    Dessa forma, os Princpios Fundamentais tambm constituem a verso mais

    acessvel do Projeto, principalmente, se considerarmos os profissionais formados no

    perodo anterior s reformulaes curriculares introduzidas na dcada de 80.

    Ainda preciso dizer que os Princpios Fundamentais e o Cdigo de tica de

    1993 so o produto da organizao profissional posterior renovao do Servio

    Social no Brasil.

    Assim tambm, o Cdigo de tica de 1993 incluindo os Princpios

    Fundamentais constitui a normatizao atual da profisso, expressando-se em uma

    das principais referncias para a interveno profissional19.

    Assim, a adeso ao Projeto tico-Poltico, se apreendida pela via do Cdigo

    de tica Profissional pode ser considerada como uma adeso abrangente.

    A construo da cidadania plena, a democratizao das instituies, a luta

    pela efetivao dos direitos sociais, o fim da explorao do trabalho, o fim da

    dominao entre os gneros, a eliminao de todas as formas de discriminao,

    entre outros, so temas distinguveis nos discursos dos assistentes sociais, de um

    modo geral. Esses temas aparecem na elaborao dos Princpios Fundamentais,

    como descreveremos adiante.

    19 A Lei de Regulamentao da Profisso (Lei 8662 de 1993), as Diretrizes Curriculares de 1996, junto ao Cdigo de tica de 1993, constituem as principais referncias do Projeto tico-Poltico dos assistentes sociais.

  • 38

    Contudo, o conhecimento sobre os fundamentos terico-metodolgicos

    os quais esto presentes na formulao dos Princpios Fundamentais, enquanto

    expresso do Projeto tico-Poltico enunciado enquanto Projeto de Ruptura

    restrito, alcanando um nmero menor de assistentes sociais.

    Nesse sentido, os profissionais que continuam o processo de formao

    acadmica atravs da insero nos programas de ps-graduao (lato ou strictu

    sensu) tendem a aprofundar a sua compreenso sobre a interveno profissional,

    aprofundando seu conhecimento sobre o Projeto tico-Poltico, qualificando sua

    participao no debate sobre a profisso.

    Observamos, tambm, que o processo de formao acadmica promove a

    insero dos profissionais nos horizontes tico-polticos do Servio Social, mas, tal

    insero realizada sincreticamente20, combinando referncias terico-

    metodolgicas divergentes. Isso ocorre, a nosso ver, pelas caractersticas do

    processo de formao profissional inserido scio-institucionalmente nas

    organizaes acadmicas, privadas e pblicas.

    Para Jos Paulo Netto o sincretismo parece ser "o fio condutor da afirmao e

    do desenvolvimento do Servio Social como profisso, seu ncleo organizativo e sua

    norma de atuao, expressando-se em todas as manifestaes da prtica

    profissional e revelando-se em todas as intervenes do agente profissional como

    tal. Assim, o sincretismo foi um princpio constitutivo do Servio Social (2001: 92).

    Dado que o sincretismo uma condio histrico-social que tambm constitui

    a profisso, a convivncia com ele inevitvel. Contudo, Jos Paulo Netto distingue

    entre o sincretismo como princpio constitutivo do Servio Social e a sua

    manifestao terico-metodolgica expressa no ecletismo. Nesse sentido, o autor

    20 A discusso sobre o sincretismo no Servio Social foi realizada por Jos Paulo Netto em seu livro Capitalismo Monopolista e Servio Social (2001).

  • 39

    indica a necessidade e a possibilidade de ultrapassagem do ecletismo como

    horizonte de superao da tradio positivista e do pensamento conservador no

    mbito da profisso. Em suas palavras,

    a alternativa de um Servio Social profissional liberado da tradio positivista e do pensamento conservador no lhe retirar o seu estatuto fundamental: o de uma atividade que responde, no quadro da diviso social (e tcnica) do trabalho da sociedade burguesa consolidada e madura, a demandas sociais prtico-empricas. Ou seja: em qualquer hiptese, o Servio Social no se instaurar como ncleo produtor terico especfico permanecer profisso, e seu objeto ser um complexo heterclito de situaes que demandam intervenes sobre variveis empricas. Esta argumentao no cancela nem a produo terica dos assistentes sociais (que no ser a teoria do Servio Social e que, naturalmente, supor a sistematizao da sua prtica, mas sem se confundir ou identificar com ela) nem o estabelecimento formal-abstrato de pautas orientadoras para a interveno profissional. A primeira, se tiver efetivamente uma natureza e um contedo terico, inserir-se- no contexto de uma teoria social e, pois, transcender a profisso como tal. O segundo configurar estratgias para a interveno profissional, mas no plasmar qualquer impostao metodolgica que esta pertence, indescartavelmente, teoria (exceto, naturalmente, se se pretender que h mtodo de investigao e mtodo de interveno). Em sntese: a ultrapassagem do sincretismo terico que se expressa no vis do ecletismo no Servio Social, conectada superao do seu lastro no pensamento conservador, projeto que no erradica o sincretismo da fenomenalidade do seu exerccio profissional. Todavia, a superao do ecletismo terico implica a interdio de qualquer pretenso do Servio Social de posicionar-se como um sistema original de saber, como portador de uma teoria particular referenciada sua interveno prtico-profissional (149-150).

    Em relao ao Projeto tico-Poltico, observamos entre os assistentes sociais,

    a existncia de vrias apropriaes, as quais, inclusive, moldam-se s suas

    idiossincrasias, apresentando uma infinidade de combinaes possveis. Mesmo

    considerando a defesa dos fundamentos terico-metodolgicos que sustentam o

    Projeto de Ruptura na direo da teoria social marxista, realizada pelos grupos de

    vanguarda na profisso, as diversas apropriaes tambm esto presentes entre

    eles.

    Ento, o Projeto tico-Poltico sustenta-se na diversidade das apropriaes

    realizadas pelos assistentes sociais em sua insero scio-institucional, demarcada

    historicamente e concretamente situada nos espaos scio-ocupacionais existentes.

  • 40

    As possibilidades de convergncia em torno da teoria social marxista esto postas

    continuamente pela dinmica da realidade social no mbito do capitalismo, pelo

    acmulo terico-metodolgico e tico-poltico entre os assistentes sociais e pelas

    formas de organizao da categoria, as quais foram transformadas na prtica

    poltica da vertente de ruptura.

    A superao do ecletismo na produo terica tambm participa desta

    dinmica, tambm remete a uma prtica efetiva entre os profissionais e s

    convergncias possveis na perspectiva de uma convivncia plural e democrtica.

    Os Princpios Fundamentais expostos no Cdigo de tica de 1993 tm sido

    apropriados pelos profissionais, evidenciando uma pluralidade de significados

    apreendidos subjetivamente, mas as implicaes terico-metodolgicas ou terico-

    operativas nem sempre so evidentes nossa observao e observao dos

    mesmos profissionais.

    comum a recorrncia dos assistentes sociais aos procedimentos tcnico-

    operativos produzidos em outras matrizes tericas, em geral, divergentes em relao

    ao horizonte tico-poltico21 construdo no Projeto de Ruptura.

    A incorporao destes procedimentos tcnico-operativos realizada como um

    recurso para suprir a ausncia de procedimentos tcnico-operativos prprios ao

    Servio Social, principalmente nas situaes nas quais os assistentes sociais so

    convocados a atuar nos problemas individuais (acompanhamento individual) e nas

    demandas para a interveno com grupos.

    Uma das explicaes para esta situao a pouca dedicao produo

    terica entre os assistentes sociais, entendida como a necessidade de 21 Atualmente, comum, entre os assistentes sociais, a recorrncia aos procedimentos construdos sob a inspirao da teoria sistmica (principalmente no trabalho dirigido s famlias), e em nosso caso, o recurso aos exerccios de dinmica de grupo de inspirao lewiniana.

  • 41

    aprofundamento na compreenso da teoria social marxista, o que contribuiria para a

    qualificao tcnico-operativa dos assistentes sociais comprometidos com o Projeto

    de Ruptura (Netto, 2001; Nobuco, 1989).

    No entanto, considerando tanto o carter interventivo do Servio Social

    quanto a sustentao do conhecimento a partir das aproximaes realidade,

    atravs das sistematizaes tericas (produo de relatrios, elaborao de

    projetos, avaliaes contnuas, entre outros procedimentos scio-institucionais, tais

    como as abordagens individuais e grupais), os assistentes sociais, de um modo

    geral, tendem a produzir os seus procedimentos tcnico-operativos em sua insero

    scio-institucional.

    Contudo, estes procedimentos tcnico-operativos construdos na insero

    scio-institucional dos assistentes sociais nem sempre so identificados como os

    procedimentos prprios ao Servio Social, evidenciando uma dicotomia entre os

    objetivos do Servio Social (como referncia ao Projeto Profissional) e os

    procedimentos institucionais (s vezes identificados como antagnicos aos objetivos

    profissionais) 22.

    Assim, no raro, a mediao institucional compreendida como antagnica

    ao Projeto Profissional, em sua amplitude, no apenas identificado como Projeto de

    Ruptura, mas como os objetivos do Servio Social construdos/assumidos pela

    categoria dos assistentes sociais.

    Ou seja, os assistentes sociais, enquanto profissionais, participam do Projeto

    Profissional, mesmo que no explicitem diretamente a sua perspectiva de ruptura.

    Isso se explica pela sustentao hegemnica da vertente de ruptura nas

    organizaes profissionais. 22 A este respeito, o leitor poder consultar o livro organizado por Jean Robert Weisshaupt intitulado As funes scio-institucionais do Servio Social (1985).

  • 42

    As apropriaes feitas sobre o Projeto Profissional, em sua pluralidade, so

    os meios construdos por ns, assistentes sociais, tambm na perspectiva de

    manuteno e de continuidade da profisso ou na perspectiva de manuteno e de

    continuidade dos nossos meios de subsistncia, os quais foram construdos em

    nossa insero no Servio Social.

    Por outro lado, o Projeto tico-Poltico dos Assistentes Sociais foi construdo

    na inteno de superar as respostas sincrticas no campo do Servio Social,

    explicitando os fundamentos terico-metodolgicos que o sustentam. A este

    respeito, pedimos licena ao leitor para citarmos mais longamente o texto

    organizado por Bonetti (et alii) dada a importncia de sua contribuio para o

    presente debate:

    Nos contornos da (...) reflexo terico-metodolgica, vem aparecendo a necessidade de recuperar elementos no suficientemente trabalhados da teoria crtico-dialtica, tais como: relao indivduo/sociedade, heterogeneidade das classes sociais e constituio da subjetividade. Esse debate tem como fulcro a posio de defesa da superao da abordagem burocrtico/instrumental da sociedade e do Estado, bem como de busca da ultrapassagem do pensamento binrio, tributrio da lgica positivista-conservadora de inspirao cartesiana (este pensamento se ancora nas dicotomias razo/emoo, teoria/mtodo/valor, objetividade/subjetividade, produo/reproduo). Tal abordagem mostrava-se insuficiente, seja pela fixidez analtica, seja pela debilidade do corpo de conhecimentos tericos e de parmetros ticos de que dispunha a categoria profissional. Entretanto, o conjunto dos profissionais articulado em torno dessa discusso e protagonizado pelo Conselho Federal de Servio Social, ao mesmo tempo em que assumia o compromisso com a tarefa de tornar os instrumentos que norteiam o exerccio profissional sintonizados com a histria contempornea, tinha clareza de que precisavam ser assegurados os avanos obtidos at ento (incluindo-se a o Cdigo de tica de 1986). Especificamente, a noo do expresso compromisso com as classes trabalhadoras, plasmado no debate hegemnico da categoria (em especial no Cdigo de 1986), deveria ser mantida. Contudo, essa noo deveria ser ampliada e melhor explicitada no sentido do comprometimento com um projeto profissional radicalmente democrtico que se desenhava no interior da categoria. Esse projeto profissional comprometido com os Novos Tempos buscava perseguir a idia do homem vivo, de carne e osso, ao mesmo tempo em que visava a ressignificao da noo de liberdade, considerando-a como valor tico fundamental. Isto implica a superao de concepes liberais, tomando o homem como ser de liberdade e de criao, que se produz nas e a partir das relaes sociais. Ento, trata-se de um homem complexo, sntese de mltiplas determinaes, logo pluridimensional, multifactico. Um homem que

  • 43

    precisa ser apreendido criticamente, na complexidade concreta e histrica das mediaes que estabelece com outros sujeitos sociais e grupos sociais particulares, permeadas pelas determinaes de classe e pelos cortes de gnero, raa/etnia, gerao e outras relaes estabelecidas em um contexto onde a categoria totalidade central. Tal perspectiva aponta a necessidade de se transitar nos planos da articulao universal/particular/singular, abandonando-se qualquer perspectiva fundada em vises fragmentrias da realidade ou em generalismos abstratos. Nesse esforo de reflexo do contedo tico do Cdigo de 1986, esto subjacentes valores como: plena emancipao/realizao do homem, defesa da vida humana, de indivduos sociais detentores de direitos como condio sine qua non de cidadania (direitos civis, sociais, polticos, econmicos) e de justia social. Ao se fazer referncia aos direitos humanos, est se avanando na direo da sua compreenso a partir de seu contedo histrico e, portanto, na direo da ultrapassagem da tica da satisfao das necessidades bsicas, com vistas a uma tica da autonomia do ser social, a uma tica verdadeiramente libertria. Esta nova ordem tica presume a superao de todos os processos de dominao-explorao, de autoritarismos de qualquer natureza, e de barbarizao da vida social, bem como exige observncia de espaos para se realizarem os processos de individualizao (1996:15-16).

    Os Princpios Fundamentais do Cdigo de tica de 1993 tambm foram

    elaborados na perspectiva de radicalizao da democracia (em termos do debate

    profissional) incorporando amplamente as concepes mais heterodoxas no campo

    da produo marxista (como as concepes gramscianas23) e incluindo o dilogo

    com os novos movimentos sociais (destacando-se o movimento feminista, o

    movimento negro, o movimento gay).

    Os Princpios expressaram, em sua formulao, tanto as prticas tico-

    polticas dos assistentes sociais, quanto os horizontes por elas projetados.

    23 De acordo com Evelina Dagnino a esquerda latino-americana atravessou um amplo processo de renovao iniciado no final dos anos 70. Tal renovao teve um marco terico construdo sobre a influncia de Gramsci (principalmente atravs dos conceitos de hegemonia e sociedade civil) alterando as concepes sobre a relao entre cultura e poltica. Essa nova postura em face das relaes entre cultura e poltica esteve ligada ao surgimento da construo hegemnica da democracia como projeto da esquerda. Para aquela parte significativa da esquerda que se engajou nesse projeto, colocou-se como desafio central a reelaborao do que Lechner (1988) chamou uma referncia coletiva, capaz de expressar uma vontade coletiva democrtica. As pretendidas encarnaes autoritrias dessa referncia coletiva, previamente existentes o Estado, a vanguarda, o partido , foram postas sob suspeita ou rejeitadas completamente. Obviamente, repudiou-se tambm o mercado como a referncia universal proposta pelo neoliberalismo em sua verso despolitizadora do coletivo (2000:77-78).

  • 44

    Nesse sentido, eles contm o acmulo poltico em relao s participaes

    dos assistentes sociais nas lutas pela ampliao da democracia e pela efetivao da

    cidadania na sociedade brasileira.

    Contudo, para aqueles profissionais cuja prtica poltica e cuja insero nos

    movimentos sociais restrita, os Princpios sugerem um horizonte a ser alcanado,

    nem sempre focalizado como algo possvel.

    Mesmo para os assistentes sociais inseridos na luta poltica, atravs dos

    movimentos sociais, atravs dos partidos polticos, ou em outras formas de

    organizao e de luta, aparece a necessidade de focalizar a perspectiva poltica na

    sua insero scio-ocupacional (no mercado de trabalho), e/ou ainda, a necessidade

    de avanar scio-institucionalmente na efetivao daqueles Princpios.

    Os Princpios Fundamentais, ao serem apropriados como Projeto Profissional,

    so necessariamente confrontados com as possibilidades e com os limites scio-

    institucionais circunscritos insero dos assistentes sociais nos espaos scio-

    ocupacionais existentes.

    Se, por um lado, a prtica de luta poltica nos movimentos sociais e mesmo

    nos partidos polticos pode ser desenvolvida, eticamente alinhada com a

    democratizao do processo em que se realizam concretizando as possibilidades

    de participao igualitria, de respeito s diferenas, de pluralismo, em resumo,

    construindo formas organizativas compatveis com os horizontes vislumbrados

    por outro lado, a defesa destes horizontes transposta para outros contextos

    organizacionais implica na existncia das possibilidades concretas de construo de

    alianas em direo a tais horizontes.

    Tambm relevante destacar que, mesmo nas organizaes construdas

    democraticamente e em torno dos horizontes emancipatrios, o trabalho sobre os

  • 45

    mesmos continua permanentemente. Ou seja, as formas de organizao, mesmo as

    democrticas e libertrias, so necessariamente, atualizadas na perspectiva de sua

    continuidade e permanncia como uma referncia scio-histrica e scio-

    institucional.

    Alm disso, fundamental a compreenso quanto necessidade das lutas no

    espao de enfrentamento sobre o controle da produo/reproduo material, no

    atual contexto, dirigida pelas classes capitalistas e orientada para o acmulo de

    capital24 e para a apropriao privada da riqueza socialmente produzida.

    Nesse sentido, os Princpios so confrontados pelas restries circunscritas

    s possibilidades concretas das sociedades capitalistas.

    Em resumo, o Projeto tico-Poltico expresso nos Princpios Fundamentais

    condensa referncias importantes para a interveno profissional. Tais referncias

    constituem, em nossa opinio, a verso mais acessvel do Projeto de Ruptura. As

    apropriaes feitas a partir dos Princpios Fundamentais e do Cdigo de tica

    Profissional tendem a combinar referncias diferentes, mais distantes das

    referncias terico-metodolgicas que fundamentam o Projeto de Ruptura.

    Desse modo, os Princpios Fundamentais nos permitem observar os

    problemas postos interveno profissional orientada pelo Projeto de Ruptura, bem

    como nos possibilitam perceber e exemplificar algumas das lacunas terico-

    operativas explicitadas a partir da vertente de ruptura.

    Observamos que a elaborao de respostas terico-metodolgicas e terico-

    operativas compatveis com os horizontes tico-polticos expressos nos Princpios

    24 A produo de mercadorias orientada pela predominncia do valor de troca o que favorece o desperdcio dos recursos existentes, inclusive o desperdcio do trabalho humano.

  • 46

    Fundamentais tem sido produzida paulatinamente pelos assistentes sociais, seja no

    plano da elaborao terica, seja no mbito das intervenes profissionais.

    Nesse sentido, o Projeto tico-Poltico explicita-se como uma construo

    coletiva, tanto em sua apropriao como Projeto Profissional, cujo desenvolvimento

    depender das referncias terico-metodolgicas e terico-operativas recriadas na

    insero scio-institucional dos assistentes sociais; quanto em sua manifestao de

    adeso aos projetos societrios emancipatrios, os quais dependem das

    possibilidades concretas e das estratgias forjadas socialmente25.

    Apresentamos, a seguir, os Princpios Fundamentais do Cdigo de tica

    Profissional de 1993.

    25 Entendidas amplamente, as possibilidades concretas e as estratgias forjadas socialmente envolvem as mltiplas manifestaes sociais tambm em suas dimenses poltico-culturais e scio-institucionais tecidas cotidianamente. Ainda, segundo Iamamoto, as possibilidades esto dadas na realidade, mas no so automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolve-las transformando-as em projetos e frentes de trabalho (idem:21).

  • 47

    Princpios Fundamentais expostos no Cdigo de tica de 1993

    Primeiro Princpio Reconhecimento da liberdade como valor tico central e das demandas a ela inerentes: autonomia, emancipao e plena expanso dos indivduos sociais. Segundo Princpio Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbtrio e do autoritarismo. Terceiro Princpio Ampliao e consolidao da cidadania, com vistas garantia dos direitos civis, sociais e polticos das classes trabalhadoras. Quarto Princpio Defesa do aprimoramento da democracia, enquanto socializao da participao poltica e da riqueza socialmente produzida. Quinto Princpio Posicionamento em favor da eqidade e justia social, que assegure universalidade de acesso aos bens e servios relativos aos programas e polticas sociais, bem como sua gesto democrtica. Sexto Princpio Empenho na eliminao de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito diversidade, participao de grupos socialmente discriminados e discusso das diferenas. Stimo Princpio Garantia do pluralismo, atravs do respeito s correntes profissionais democrticas existentes e suas expresses tericas e do compromisso com o constante aprimoramento intelectual. Oitavo Princpio Opo por um projeto profissional vinculado ao processo de construo de uma sociedade sem dominao explorao de classe, etnia e gnero. Nono Princpio Articulao com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem os princpios deste Cdigo e com a luta geral dos trabalhadores. Dcimo Princpio Compromisso com a qualidade dos servios prestados populao e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competncia profissional. Dcimo Primeiro Princpio Exerccio do Servio Social sem ser discriminado nem discriminar por questes de insero de classe social, gnero, etnia, religio, nacionalidade, opo sexual, idade e condio fsica.

  • 48

    Os Princpios Fundamentais, em sua formulao, alinham-se s mltiplas

    manifestaes scio-culturais, scio-institucionias e organizacionais da sociedade

    brasileira (Bonetti e outras, 1996), durante as dcadas de 80 e 90, convergentes em

    torno dos valores tico-polticos como a democracia e o exerccio da cidadania na

    perspectiva da radicalizao democrtica, como experincia poltico-cultural

    (Dagnino, 2000) e da defesa de direitos sociais como um dos caminhos possveis na

    concretizao da cidadania.

    Alguns dos movimentos sociais nas dcadas de 80 e 9026 (sintonizados com

    os enfrentamentos e com os espaos abertos nas manifestaes coletivas contra a

    ditadura e pela democratizao das instituies brasileiras de um modo geral)

    tambm se expressaram na defesa contra todas as formas de dominao e pela

    erradicao de todos os tipos de discriminao entre os seres humanos destacando-

    se a denncia contra a dominao entre os gneros na predominncia do poder

    patriarcal e a dominao tnico-cultural, principalmente aquela entre brancos e

    negros, mas tambm, a denncia dos preconceitos sexuais, dos preconceitos

    referentes s diferenas fsicas e da dominao geracional, especialmente, a

    dominao exercida sobre as crianas e sobre os idosos.

    Nessa direo, os Princpios Fundamentais contemplam as demandas

    progressistas enunciadas nas sociedades capitalistas contemporneas e contm

    indicaes quanto s estratgias para o enfrentamento dos problemas referentes

    insero perifrica dos pases latino-americanos na produo capitalista

    desenvolvida em nosso mundo27.

    26 Movimento Feminista, Movimento Negro, Movimento dos Homossexuais, Movimento de Meninos e Meninas de Rua, entre outros. 27 O enfrentamento ao neoliberalismo durante a dcada de 90 foi uma das referncias na formulao das estratgias profissionais. Nesse sentido, a compreenso sobre os impactos das orientaes

  • 49

    Contudo, ao serem definidos teoricamente28, a interpretao dos Princpios

    reproduziu a dicotomia entre o horizonte tico-poltico e a prtica cotidiana dos

    assistentes sociais29, principalmente na perspectiva de que a efetivao concreta do

    projeto tico-poltico depende da superao revolucionria (um ponto de ruptura

    futuro) com o modo-de-produo capitalista ou a superao da ordem burguesa,

    seno, vejamos.

    Em relao ao Primeiro Princpio reconhecimento da liberdade como valor

    tico central e das demandas a ela inerentes: autonomia, emancipao e plena

    expanso dos indivduos sociais, Sales e Paiva (1996:182) ressalvam, sabe-se,

    contudo, que esse projeto de realizao da liberdade colidente com a dinmica

    social capitalista, que em si limitadora da liberdade, quase sempre reduzida aos

    seus termos formais e jurdicos.

    Embora as autoras reconheam as armadilhas vinculadas a esta

    compreenso (a emergncia de posies fatalistas ou messinicas), elas tambm

    afirmam o carter utpico desse Princpio, dizendo que o assistente social

    comprometido com a construo e a difuso da liberdade no sucumbe, porm, a

    neoliberais na gesto das polticas pblicas exigiu a organizao de vrios espaos de formao e de debate sobre esse tema. 28 Na verso oficial, produzida pelo CFESS e organizada no livro Servio Social e tica destaca-se o texto A Nova tica Profissional: prxis e princpios, elaborado por Beatriz Augusto de Paiva e Mione Apolinrio Sales, ambas professoras e componentes da Comisso Tcnica Nacional de Reformulao do Cdigo de tica Profissional (perodo 1992/93).

    29A esse respeito elucidativa a recorrncia de Maria Lcia Barroco, uma das principais estudiosas sobre a relao entre a tica e o Servio Social e uma das referncias em termos da compreenso sobre o Projeto tico-Poltico expresso no Cdigo de tica de 1993, s formulaes de gnes Heller, especificamente a utilizao de suas concepes sobre o cotidiano e a histria. Em nossa opinio Heller estabelece uma dicotomia entre o cotidiano e a histria a qual no se expressa concretamente na realidade social. Nesse sentido, observamos que os movimentos revolucionrios de massa so gerados cotidianamente, embora o momento de sua fuso seja o marco de sua emergncia e de sua ruptura com a continuidade dos procedimentos, dos valores, das prticas estabelecidas no cotidiano, ou seja, as prticas cotidianas contm as possibilidades de ruptura e so aes que tecem a histria concretamente, diariamente. Assim, os movimentos revolucionrios tambm tendem organizao, e rotinizao, tornando-se expresses cotidianas num processo de longa durao.

  • 50

    este vo combate, mas faz da necessidade o campo da criao e do sonho da

    liberdade como realidade (idem: 183).

    Nessa direo, as autoras tambm afirmam a importncia da reinveno do

    cotidiano, da iniciativa, fruto da crtica social e do dimensionamento das estratgias

    poltico-profissionais, a exigir uma delicada sintonia entre o saber tcnico e a

    competncia poltica (idem).

    Os trs contedos destacados acima: a afirmao dos Princpios na

    expectativa de enfrentamento da sociedade capitalista na direo de sua superao;

    os Princpios em sua dimenso utpica a qual se expressa como o horizonte a ser

    alcanado; os Princpios como Projeto Profissional a ser reinventado, recriado,

    possibilitado no cotidiano profissional; esto presentes na interpretao dos

    Princpios em seu conjunto.

    A produo do Cdigo de tica, em especial, tambm foi destacada como um

    instrumento nas lutas empreendidas pelos assistentes sociais, como referncia em

    relao aos posicionamentos tico-polticos dos profissionais em sua insero scio-

    institucional. A esse respeito, as autoras expressam em relao ao Segundo

    Princpio (A defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbtrio e do

    autoritarismo): como contraponto a essa lgica da perversidade e da omisso

    [relativas concretizao dos direitos humanos nas sociedades capitalistas], os

    assistentes sociais devem se imbuir, pelo que o Cdigo de tica sinaliza, de um

    esprito e de uma postura assentados numa cultura humanstica e essencialmente

    democrtica (idem: 185).

    A dicotomia ou a separao aparece sutilmente na distino entre o Projeto

    Revolucionrio enquanto Projeto Societrio30 a ser construdo nas aes coletivas

    30 Na tradio marxista a possibilidade de um Projeto Revolucionrio foi posta pelo movimento do proletariado, em termos das lutas empreendidas no sculo XIX, na Europa, destacando-se a

  • 51

    de ruptura e de superao do modo-de-produo capitalista (presente na concepo

    de enfrentamento do modo-de-produo capitalista) e o Projeto Profissional a ser

    desenvolvido no cotidiano dos assistentes sociais, em sua interveno profissional.

    Desse modo, os Princpios Fundamentais aparecem como motivadores da

    luta ou do enfrentamento a ser realizado pelos assistentes sociais em sua insero

    scio-institucional.

    No entanto, as particularidades scio-institucionais aparecem em segundo

    plano, subordinadas ao Projeto Societrio a ser construdo coletivamente.

    Compreendemos que um Projeto Societrio pode favorecer uma

    convergncia mais ampla do que aquela possvel no mbito scio-institucional

    restrito s organizaes sociais.

    Contudo, o Projeto tico-Poltico dos Assistentes Sociais constitutivamente

    o projeto de uma categoria profissional, e nesse sentido, a mediao scio-

    institucional atravs das organizaes sociais, adquire grande relevncia, pois o

    lugar de insero privilegiado, o lugar onde as aes profissionais se desenvolvem

    enquanto tais.

    Ainda assim, mesmo tendo em vista a construo de um Projeto Societrio

    Revolucionrio31, a dimenso scio-institucional tambm relevante no que tange

    Primavera dos Povos (movimentos de carter diferenciados efetivados na Europa na primavera de 1848) e a Comuna de Paris (experincia de tomada do poder atravs das aes populares na capital francesa durante cem dias no ano 1871) e das Revolues Russa e Cubana durante o sculo XX, bem como pelas anlises elaboradas por Karl Marx e Friedrick Engels as quais enfatizaram a possibilidade de um Projeto Revolucionrio, o comunismo/socialismo, a ser empreendido atravs do protagonismo do proletariado. 31No Brasil, observamos que existem convergncias em torno de um Projeto Societrio que se dirige luta pela efetivao da democracia e da cidadania em nosso pas, embora esta convergncia seja realizada atravs de mltiplos sujeitos sociais, cujas aes e formas organizativas so diferentes e em algumas situaes, divergentes entre si. Em termos do Projeto Socialista h divergncias, tanto pelas crticas ao socialismo real desenvolvido nos pases do leste europeu sob a direo da Rssia (as quais reforam a centralidade da construo democrtica e do exerccio coletivo do poder), quanto pela fragmentao da classe trabalhadora que produz horizontes difusos na ao poltica dos trabalhadores, desde a centralidade nas reinvindicaes mais imediatas, at a atualizao do horizonte revolucionrio e da perspectiva socialista.

  • 52

    s possibilidades de organizao, de sustentao e de apoio s novas referncias

    emergentes.

    Nesse sentido, os Princpios Fundamentais tendem a ser apropriados como

    um horizonte a ser realizado na superao da ordem burguesa (no futuro), o que

    compromete a sua potencialidade inovadora em relao ao momento presente e em

    relao insero dos assistentes sociais nos espaos scio-ocupacionais

    existentes.

    Esse descompasso entre a prtica tico-poltica cotidiana e a prtica social

    revolucionria reforado pela nfase nos Princpios como uma dimenso utpica,

    como um horizonte a ser alcanado futuramente.

    Embora os Princpios Fundamentais tenham sido os frutos da produo

    realizada pelo movimento de assistentes sociais, inserido scio-culturalmente e

    scio-institucionalmente situado em relao aos movimentos sociais progressistas

    inspirados nas prticas polticas da esquerda europia e latino-americana, a

    interpretao oficial de seus enunciados favoreceu a remisso projeo futura,

    drenando a fora que os impulsionou em sua emergncia como afirmao de aes