Alexandre O'Neil - Prosas

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Prosas de Alexandre O'Neil compiladas pela Dr.a Laurinda Bom

CRCULO DE CINEMA - A Batalha do Rail -1 Depois de nos ter dado, na sesso inaugural, o filme sueco A estrada que conduz ao cu, pelcula fatigante e mrbida, excessivamente carregada de belas fotografias, mais visvel (mesmo duas vezes), Crculo de Cinema realizou a 23 de Abril passado, a sua segunda sesso, fazendo exibir, no Capitlio, - A Batalha do Rail. Cinema francs! Imediatamente se impe ao espectador, ainda espera de salvar-se, um dia!, do costumado cinema de almAtlntico, um fatal confronto. Se a 7 arte yankee lhe oferece um inexcedvel -vontade no trivial Oh! Boa Noite, sr. Smith!, uma perfeita tcnica de espanto ou bofetada, umas magnficas centopeias (em quantidades mais que suficientes para o aturdir...), uma indiscutvel, mas nem sempre audaciosa, linguagem cinematogrfica, tudo isto servido por excelentes profissionais e quase infinitos recursos, a verdade que a mentalidade desse cinema, a sua ideologia, digamos, de baixo-nvel: ingnua, demaggica, fcil, puritno-licenciosa, etc... Em suma: medida do burgus norteamericano, afinal o menos exigente quando as coisas comeam a tornar-se um pouco mais abstractas... Evidentemente que h excepes - e formidveis! - mas numa proporo que, parece-me, no chega para garantir um cinema de lite. (De resto, as excepes so muitas vezes condenadas - o caso de As vinhas da ira, talvez um filme de excepo - em nome de uma pretensa verdade americana e de uma desmascarvel integridade nacional. Desconcertante pas...). Ora, quando exclamei, um tanto incriticamente, cinema francs!, de modo algum quis arrastar o incauto no alvoroo que pode provocar a definio feita, mas apenas contrapor ao indiscutcel made in U. S. A. , um relativo feito em Frana. E no certo que o cinema francs, com todos os defeitos nossos conhecidos, se ergueu a uma altura que o norte- americano ignora? No verdade que os americanos falham quase sempre, de uma maneira confrangedora, no que podemos chamar cinama-de-choque? Em Frana reconhece-se um movimento de cinema, paralelamente a um movimento de poesia, pintura, etc.... (no falo de escolas, grupos ou coisa que o valha, mas daquele trgico debate que o homem mantm consigo mesmo, garantia de continuidade e superior evoluo de uma arte, de uma filosofia, de uma cincia, em suma - de uma cultura). Na Amrica o cinema , praticamente uma gigantesca e mais ou menos florescente indstria, parece-nos... A batalha do rail (realizao de Ren Clment), pelcula sobre a resistncia nos caminhos-de-ferro franceses, transcende o documentrio sem, contudo, atingir a unidade (formal, psicolgica, etc....) do filme. Chamar-lhe epopeia, como Jean-Louis Barrault, defini-lo (e bem!) tematicamente. Formalmente, julgo tratar-se de uma obra semelhante ao romance-reportagem, em literatura. As personagens (os heris) de A batalha do rail interessam-nos na medida em que participam de um destino colectivo. Claro que, como estamos diante de um documento sobre uma aco e no sobre uma simples actuao (fabricar granadas, avies, construir reprezas,

etc....) as personagens saem do puro actuar e justificam-se, a nossos olhos, psicologicamente, sem, todavia, nos absorver, como j disse, no seu destino pessoal. No h um heri (o rapaz de certos filmes... ), mas heris, ou, se preferem, um heri colectivo. Da, o seu carcter de epopeia e, digamos, se quisermos empregar uma expresso paralela do romance-reportagem, de filme documentrio, ou, talvez melhor, do filme-reportagem. A principal qualidade tcnica desta notvel criao do moderno cinema francs, o movimento. Certas cenas, como a do descarrilamento do combio alemo (coroada por aquela subtil e, ao mesmo tempo brutal ironia, que o harmnium a rolar, entre os destroos e a tocar sozinho... ) ou aqueloutra cena, aparentemente esttica, do fuzilamento dos refns, em que nos dada a dureza trgica do minuto atravs da humanssima expresso de um dos condenados, de uma aranha a correr pela parede e que o absorve, por momentos, como o ltimo espectculo vivo, enquanto os companheiros vo caindo, um a um, so, pelo movimento, cenas tipicamente cinematogrficas e de grande altura tcnica. Momentos h, por vezes, bastante parados, como o da desobstruo da linha frrea, que, alis, nos do, perfeitamente, a resistncia, estando, portanto, dentro do esprito do filme. Creio que Ren Clment aproveitou muito bem o no- profissionalismo da maioria dos intrpretes. Quase todos eles so profissionais, mas... dos caminhos-de-ferro, - cheminots de France, e, talvez por isso mesmo, embora, uma vez ou outra, se note certa rigidez na gesticulao, a interpretao tenha resultado to verdadeira. Repare-se, por exemplo, nas expresses dos homens que ouvem o oficial alemo, no intrprete - sobretudo no seu gesto de coar o nariz, em sinal de hesitao! Os alemes tambm so reais. Nada daqueles monstros macios do cinema americano, monstros que at j se tornaram notados, mas homens de aspecto mais ou menos vulgar e, pormenor curioso, falando mesmo em alemo, o que contribui para lhes dar maior verosimilhana. Evidentemente que, com toda a sua trivialidade, no aparecem bonzinhos. Na luta entre a fora do maquis e a guarnio do combio blindado, um dos momentos mais belos do filme, pleno de intensidade e de realismo, comportou-se de uma maneira absolutamente germnica, mas com a sobriedade natural nessas ocasies... Crio que estamos em presena de uma obra de puro cinema, que, como muito bem fez notar um crtico francs, vive de si mesma, ou seja, da prpria linguagem cinematogrfica - repare-se que o movimento a sua principal caracterstica - no se servindo, para nos dar o que nos d, de nenhum processo mais ou menos literrio. Ideologicamente (de resto, o prprio tema quase que o determina) exprime o novo humanismo e situa-se dentro do que chammos cinemade-choque. Se a Bela e o monstro, filme do estranho Jean Cocteau, j nos tinha dado uma belssima imagem do moderno cinema francs, A batalha do rail, sobrelevando-o, creio, em qualidades tcnicas, de uma amplido que o primeiro desconhece. Os nossos aplausos para Crculo de Cinema, por esta to prometedora segunda sesso que, como j dissemos, teve lugar no Capitlio e que abriu com algumas necessrias palavras de Nataniel Costa, definindo a posio do Crculo em relao ao problema de uma verdadeira cultura cinematogrfica, historiando, brevemente, a evoluo do cinema francs at aos nossos dias e, finalmente, fornecendo elementos para uma mais segura apreciao do filme.

S GOMES LEAL O MAGO LESEL o pro da noite*1 (Anagrama de GOMES LEAL) S o menino tonto, com bigodes e cravo na botoeira, deitado a escorregar, por bravata, no concavo da cara da lua; ou, em p numa das suas hastes, a esbravejar despautrios; s o mago de bengalinha de condo fazendo florescer estrelas, por descanso, no alucinado caudal de asneiras (genial pela caudalidade e pela violncia e no pelas asneiras, claro, como parece); s o desconcertante mitmano - s o poeta, nunca esteve em questo neste centenrio. Ora: 1) Considerando que tempos destas partes vo bipartidos entre a averso (oficiosa) da Santa-Converso do Poeta e uma contraverso (real) do Poeta ento logrado e gg; 2) considerando que, por fora dum centenrio e dos encargos da pressurosamente advindos, numa corrida de velocidade para que a comemorao no fuja e o coro possa ser bem ruidoso e sonoro jorrou uma poemorreia a mote, como um cu aberto; 3) considerando Gomes Leal um dos maiores do seu tempo, e 4) considerando tudo isto; o Grupo Surrealista de Lisboa denuncia como invlidas as verses acima referidas - e quer provar a poesia de Gomes Leal, com toda a imaginao (violenta, lrica, disparatada) que a prpria do poeta, propondo apreciao do pblico em geral os extractos que se seguem e outros que, pelo seu carcter, se no podem seguir aqui. Alexandre O'Neill Antnio Domingues Antnio Pedro Cesariny Fernando Azevedo Joo Moniz Pereira Jos Augusto Frana Vespeira

veneno subtil, srdido e corruptor que Satanaz cuspiu no poo do infinito!... * Meu leito, meu pomar de sensaes!... * E mandarei fazer um almanaque Na pele encadernado do teu seio. * Vinha um homem viril, como um antigo Galo, Que arrastava a mulher extraordinrio morte.

*

Molhai, rasgai, mordei quem fez a lua e as flores! * Frescos musgos da Luz! Rios do ar! * Cactos que sois iguais ao sangue das matanas! * Por isso vou marcar-te, errante co sem dono, e fundir-te, com chumbo ao corpo essa coleira * deuses fenomenais em forma de chacal * Se certo que tu tens, sob um vu transparente, glndulas mamais * N'isto um estranho velho entra na sala, hirto e solene como um quadro antigo * Bela! dizia eu, gil como um jaguar, Assim me inspire o Fado e Satanaz me deixe! Bela! dizia eu, fria como o luar Sobre o dorso luzente e excepcional dum peixe! * Como negros desejos reluzentes dum parricida ano * Lembram-lhe os tigres ruivos, sequiosos, que vo beber a rios como a mares. * Quiseras abordar a estranha nau gelada com seu poro sem voz, seus mastros de brilhante

PORQU?1 Os filsofos tm-se limitado a interpretar o mundo de diferentes maneiras. Aqui, porm, trata-se de o transformar. + Porque perdi o medo de me surpreender. + Porque a poesia deve ser feita por todos, no por um (I) + Porque ao srdido amor mesa-de-famlia-cama-de-casal e s convenientes - e, muitas vezes, adversrias - instituies que o servem e que serve, oponho, tanto em mim como nos outros, a feroz realidade do DESEJO. + Porque a realidade no suporta que lhe respeitem as aparncias. + Porque deixei de opor destruio a criao, para ficar a saber que quem se destri no se cansa. (2) (I) Lautramont (2) Provrbio surrealista CATLOGO2 I 2 3 4 5 O Sr. e a Sr. Mills em 1894. Looping-the-loop. A linguagem. Instruo primria. De Domingo a Quinta-feira.

NO COMPRES OBJECTOS INTEIS SOB PRETEXTO DE QUE SO BARATOS (3 mandamento do Declogo de Jefferson) A PROPSITO DE UMA CRTICA DO DR. JOO GASPAR SIMES*1 Dites-vous bien que la littrature est un des plus tristes chemins qui mnent tout. A. BRETON Escreveu o Dr. Joo Gaspar Simes, no N. 229 do Sol, uma crtica a publicaes do Grupo Surrealista de Lisboa. Que o referido escritor ache, criticamente, que dois dos autores no so genunos artistas (sic) e que um terceiro d segura garantia de saber pensar - isto apenas tem que ver com os ditos autores e com ele. Com todos, porm - com os autores, com o Dr. J. G. S., com o pblico e com uma cultura geral - tm que ver as consideraes preliminares e as entremeadas na crtica. Salvo uma (que, em tanto que pblico, nos leva necessidade destas breves elucidaes), tais consideraes claro que no passam os limites pacatos do habitual. Assim, ser o Surrealismo um escola... ser o Surrealismo um movimento essencialmente esttico nos seus primrdios (...) infeccionado depois pelo colectivo... pretender o Surrealismo sujeitar totalmente o Real ao Imaginrio... dever dizer-se Sobrerealismo e no Surrealismo... no ir o tempo para surrealismos... haver uma oposio recinhecida entre Arte e Sociedade - ou qualquer outra necedade semelhante, inofensiva e obedientemente repetida pelo Dr. J. G. S., j no tem consequncias de maior entre gente que tenha feito a instruo primria destas coisas mentais. Outra considerao, porm, anunciada acima, pelo seu gostoso ineditismo, obriga-nos a encarar individualmente o Dr. J. G. S. Trata-se do seu dito de estar o Surrealismo contido em essncia no Futurismo. Coisa realmente estranha e indiscutvel, porque de racional s tem o aspecto, apenas em resposta h que dizer - que o Surrealismo no tem nada que ver com o Futurismo. Como toda a gente sabe, os dois movimentos nasceram de condies sociais diferentes (1910 e 1920), com intenes opostas Manifesto de Milo e Manifestos de Breton), com evolues contrrias (Marinetti e Pret). Posto isto, do corolrio que faz de um Fernando Pessoa e de Almada Negreiros (Almada, o autor de Direco nica - Safa!), precursores, no vale a pena falar. Do Po, do Baudelaire, da Arte pela Arte, do Kafka, do frisson-nouveau (sic), tambm no, evidentemente - nesta confuso de dislates inevitavelmente cmicos. (De categoria semelhante, que nos lembre, s certo escrito, no do Dr. J. G. S., mas do seu colega Dr. Mrio Dionsio e que ao seu se irmana em necedade. um escrito de desencaminhar menores

que comea assim: No tenho nenhum rancor especial ao Surrealismo (...) ele no mais do que uma das muitas facetas de uma alma atemorizada perante os progressos da biologia, para terminar assim: (...) acabaremos por concluir que tudo que no hoje esforo consciencializador perante a realidade sempre, mais ou menos, Surrealismo).2 Espantosa pgina de Antologia do irremedivel, esta crtica do Dr. J. G. S. mostra bem o perigo de tentar caminhos onde, mais do que conhecimentos literrios especficos, mister a existncia de uma cultura geral, a possibilidade de manejar ideias, a posse de ideias. (Joel Serro por exemplo, ainda h pouco tempo teve que lhe chamar a ateno para coisa semelhante.)3 Fazer crtica literria de obras de fico (tarefa que o Dr. J. G. S. em tempos chegou a desempenhar, com uma utilidade e um mrito relativos desgraa das letras nacionais) outra coisa que no tratar de problemas ticos - e o Surrealismo, como pela milsima vez se repete, envolve essencialmente problemas ticos. Para o Dr. J. G. S., porm - templo (templo mesmo) que da crtica literria nacional e servindo, como serve, por portas travessas, uma certa tranquilidade de classe - no possvel a compreenso de que, da importante descoberta de Breton e Soupault (sic) como de qualquer coisa escrita ou pensada, saiam consequncias para baixo dos altos cumes espirituais onde ele se agarra. Da o suspeitoso susto que as citaes de Engels-ocontaminador lhe pregaram, da a prpria existncia profissional do DR. J. G. S. - coisas que, de resto, em nada nos podem interessar.

PARTICIPAO PBLICA*1 A pginas nove do n. 238 do Sol, que acabam de nos mostrar, escreveu o sr. Gaspar Simes uma dezena de linhas a nosso propsito, reagindo assim a um comentrio, por ns escrito e aqui publicado, a umas afirmaes suas - nomeadamente sua ideia de estar o surrealismo contido em essencia no futurismo. Vinham estas afirmaes como acessrio a uma crtica a publicaes nossas. crtica, evidentemente, nada interessava responder, nem responder a uma crtica coisa que alguma vez valha a pena fazer. Um comentrio, porm, a afirmaes to necessrias como aquela, torna-se sempre necessrio para evitar confuses aproveitveis. Pondo de parte a crtica que era feita aos nossos trabalhos (para um de ns ela era at elogiosa) limitmo-nos obrigao de um desmentido. O mesmo indivduo reagiu agora ao nosso comentrio de uma forma bastante estranha para quem no conhea certos hbitos polmicos ainda usados entre ns por algumas pessoas pouco recomendveis. Serve-se ele correntemente de uma tcnica afadistada, para gudio rasteiro da plateia, metendo pelo meio a anedota torpe e idiota. Atitudes semelhantes, classificam-se minimamente como a absoluta falta de elegncia moral. Foge o mesmo sujeito questo escamoteando as nossas observaes, com o propsito usual de nos mostrar como despeitados diante do seu julgamento. Atitudes tais arrumam-se sob a designao benigna de absoluta falta de honestidade intelectual. Com pessoas de tal deselegncia moral, de tal falta de aceio mental, no se pode nem deve tratar - nem por tal gente ter qualquer espcie de considerao. Tornada assim ascorosa esta questo, sobre ela no queremos voltar a escrever. Apenas, por um sentido de higiene pblica e pela ltima vez, confirmamos a nossa opinio (de modo nenhum original) sobre a ignorncia e incomensurvel vaidade do referido indivduo coisas em que, por sobejamente ditas e ridicularizadas no anedotrio nacional, j nem vale a pena insistir... Lisboa, 26 de Setembro de 1949

RECORDAO PRECIPITADA DE TEIXEIRA DE PASCOAES1 Teixeira de Pascoaes: um rosto de pedra atormentada, um olhar de infatigvel espio das sombras, um sorriso bom como o fogo das lareiras... Teixeira de Pascoaes ou a bondade do que grande, a bondade do Maro... * Teixeira de Pascoaes? Pois sim... Pois sim..., diz o cretino que sempre aparece ao nosso lado, como um ano saltitante, quando a morte dum grande poeta ou de qualquer outro anormal nos d, em bloco, todas as razes de o amarmos sem reservar sentimentos, sem aguardar cautelosamente que tudo seja dito para tomarmos partido, para assumirmos a atitude conveniente, o ponto de vista a ter, o gosto a exibir... Pois sim... Pois sim..., como se fosse possvel meter o poeta do Regresso ao Paraso num encolher de ombros ou num arroto de despeito... (E eu pensava, com aquele extremo cansao, aquela imensa vontade de desistir que nos assalta quando topamos com certos especialistas de poesia: Talvez no arrotes o mesmo quando chegares minha idade...). Pois sim... Pois sim..., como se fosse possvel reduzir o poeta a uma filosofia, arrumar em quatro palavras Teixeira de Pascoaes, momento da nossa poesia, mastro desse barco de loucos que a nossa poesia portuguesa! Pois sim... Pois sim.... como se fosse possvel mediocridade fazer passar os gigantes monhos, os grandes poetas por monhos de palavras... * Tudo isto - a morte de Pascoaes, o atrevimento dos ignorantes, a necessidade adulta de conhecer e ajudar a conhecer, das razes aos ramos e dos ramos aos pssaros, a rvore da poesia que resiste e cresce neste cho portugus- tudo isto precipitou em mim a lembrana do grande poeta, desse pequeno homem simples, desse velho de fcil convvio e impertinente juventude... * Como conceber Cesrio sem Lisboa? Como conceber Pascoaes sem o Maro? ( meu fino, meu ladino Cesrio, meu garoto das ruas, meu desamparado lisboeta remanchado pela cidade, sofrendo a cidade, sofrendo pela cidade, enviesando Lisboa para melhor a mostrares! meu bom e grave Pascoaes, meu cismtico penedo, meu profundo, abissal murmrio, espao para flutuar ou me despenhar, cu para l chegar!).

*

Conheci-o, ou melhor, ele deu por mim, quando eu tinha 17 anos e passava frias em Amarante2. Os meus primeiros poetas lavravam-me, minavam-me, estragavamme para o resto da vida... Os meus primeiros cigarros levavam-me, muito naturalmente, para junto dos homens, para onde os homens esto juntos: o Caf. No Caf cospe-se, pragueja-se, joga-se o bilhar, o xadrez, a traca, a sueca, o sete-e-meio, o trinta-e-um, as damas, bebe-se caf e bagao, outro bagao (h neve l em cima!), discursa-se, grita-se, pode perder-se a vida a ler e ver Van Gogh), descobrem-se graves adolescentes e velhos joviais, curiosidades da terra, viajantes, poetas dos que caiem no soneto e fazem cair de sono e poetas dos outros... Os poetas de aprendiz e os cigarros de principiante levaram-me ao Caf e do Caf a Teixeira de Pascoaes, a um Caf parte... * A um Caf parte, a um Caf roda de Teixeira de Pascoaes. E sua volta nos dispnhamos, com o gozo antecipado de quem vai aproveitar um bom fogo crepitante ou a sombra generosa duma rvore. Mas ouvir Pascoaes, falar com ele, ajud-lo a encontrar o ritmo inspirado da conversa, era uma tarde no Maro, era ver nascer em rumor e cor um pinheiral, era subir at onde as rvores se transformam em penedos! Aos meus 17 anos cheio de fumaas, poeticamente alimentados pelas ltimas novidades em papagaios brasileiros e j ameaados pela descoberta precoce de um Lope de Vega, de um Hlderlin, de um Rilke, a presena de Pascoaes (eu sabia, vagamente, que o Sr. Dr. Joaquim era um dos velhos poetas portugueses mais celebrados...) preocupava seriamente... que, afinal, aquele passado revelava-se muito mais presente do que o meu revolucionrio futuro... Aquela velhice muito mais jvem e brincalhona do que a minha juventude... * (Certo dia precisei dum cigarro, mais para mostrar do que para fumar... No tinha. Pascoaes abriu imediatamente a cigarreira, quase com precipitao: - Tira destes aqui... E exibia uns cigarros magrinhos, com todo o aspecto de terem sido enrolados e lambidos por ele na vspera noite... Com uma certa repugnncia, j que do poeta apreciava no a saliva mas o verbo, extra um dos cigarrinhos, disposto a queim-lo depressa e a na pensar mais nisso... Pascoaes mirava-me candidamente. E s ao primeiro acesso de tosse do jvem fumador, aquela falsa candura se desfez em riso, num riso grosso e folio, mas cheio de bondade... Eram cigarros cubanos, fortssimos! E o poeta ria infantilmente com as nuvens de fumo, as lgrimas e a tosse do petulante fumador...).

* s vezes acompanhava-o na volta do fim da tarde a Pascoaes. Com passo rpido e seco, meio curvado, a bengalinha adiantando-se

e abrindo caminho bicada, o meu poeta murmurava coisas, possivelmente pedras, fragas, restos do Maro por digerir... E a ltima imagem que guardo do poeta: a viso dum terrvel andarilho caminhando por uma estrada j to descarnada como ela, caminhando sempre. * H umas semanas, apareceu-me aqui em Lisboa um jvem campons de Amarante, meu companheiro na caa aos pardais e nos passeiostropelias pelo rio Tmega. Hoje mecnico da aviao, mas sob calos da chave inglesa guarda ainda os da enxada. Disse-lhe: - Ento l morreu o Dr. Joaquim? E ele, visivelmente comovido: - verdade... Voc nem imagina que bom fulano ele era! Olhe que no sentia nenhum desprezo por conversar com a gente... Horas, s vezes! E ento, ele, um homem com estudos!, dizia que ns sabamos coisas e tnhamos palavras que nem o maior doutor do mundo podia aprender em toda a vida! E o meu jvem companheiro, com a mo ainda ontem camponesa limpou uma lgrima de sincera saudade pelo Dr. Joaquim... Lisboa, Fevereiro de 1953.

BARBA & CAF Um homem, diante do espelho, pronto a arrostar com mais um dia de barba, logo desenxabido pelo slito inslito enquadramento, a sua prpria cara. No h filosofia matinal que resista a um descaro assim. Resiste o espelho. Primeiros socorros: deitar a lngua de fora, caretear, esfregar com energia a toalha turca na lngua. Ajuda a tirar o sarro. Fiapos na boca! Quando menino, atara dois lenis de pano turco um ao outro e a pulso descera da varanda ao ptio. Nem um fiapo lhe sobrara nas mos. Agora que se v... No! O que se v , j agora, a cara... Vamos preferi-la a qualquer outra? Fcil, repara! No h outra... Ela a, aqui est, estanhada - mas tua! Mapa de excessos tal cara! Todos l, at o excesso de servilismo. spera ao tacto, parece a cara dum homem, mas a bochecha-nalga a descair sobre a direita escorre o olho do mesmo lado. Choro! Por um pouco, cara de co-de-gua: olho a vazar-se, boca desdmdesgostosa, meio dente mostra na comissura ascendente. Assim ia a barba! Olhou com rancor aquela cara, tomou do pincel. Num assomo, avisou para o espelho: - Viva eu! E s pressas ensaboou a sua cara de todas as manhs. * difcil respeitar os mortos quando eles esto, positivamente, mo de... semear.Como este. Vamos olhando para ele de soslaio e falamos baixo. Ora! O que temos medo do diz-que-diz-que da vizinhana, ou no fssemos uma decorosa famlia. A me est na cozinha, a fazer caf. Cantarola, me, cantarola! Manda a vizinhana meter-se na vida dos outros (somos quatro inquilinos por piso,que diabo!). Cantarola, me, cantarola que o teu primeiro caf de mulher livre! A me no cantarola, antes solua. De espao a espao, um ganido discreto - mas o caf est excelente, est forte, est CAF! Pela primeira vez bebe-se caf nesta casa! Me! No era ele que estava sempre a dizer que o caf o matava?

DE MALTHUS AOS CHINESES Se Malthus tivesse podido prever, ao publicar em 1798 o seu An Essay on the Principle of Population, as it affects the future improvement of Society with remarks on speculations of Mr. Godwin, Mr. Condorcet, and other writers, que cento e sessenta e nove anos depois abancaria, guardanapo ao pescoo, mesa de uma cidade to leal como o Porto, o seu homnimo Toms Roberto, com certeza que teria encarado com redobrado pessimismo o futuro alimentar da humanidade. Assim, por essa manifesta impreviso, Malthus salvou-se de uma perspectiva ainda mais sombria. O leitor perdoar os ingredientes do cmico: guardanapo ao pescoo, mesa de uma cidade, o seu homnimo Toms Roberto, etc. Que o homem sentado mesa Toms Roberto, que est vivo e so como um pero (julga ele), que frequenta o Porto, que vai morrer de sopeto cardaco, que no precisa dos nossos piedosos circunlquios para mostrar que trinca, alto e bom som, a perna de borrego que, entre outros negcios, o trouxe Invicta - tudo isso verdade! O guardanapo ao pescoo, talvez no. Uma desateno,um pendor malvolo - e a est o trao a engrossar,e a caricatura a caminho do grotesco, isto , do incrvel.Ora preciso que o leitor acredite. Primeiro, na existncia normalssima de Toms Roberto; depois, na minha prpria existncia... Deixemos Toms Roberto comer sozinho a sua perna. J nos avizinhmos muito. No v ele desconfiar. Voltaremos sobremesa.Um caf e um brande1 sempre se oferecem a um amigo, no verdade, Toms Roberto? * Natlia velava para que nada faltasse aos seus convidados.Os seus convidados pertenciam, quase todos, a essa brilhante produo que um moderno poeta satrico, provavelmente por despeito, chamou de os homens de copo na mo. Homens habituados ao flash2 das grandes ocasies. Homens do usque3 a meia altura, sempre prontos pose da naturalidade, sempre antecipando o sorriso aos sorrisos que os outros lhes antecipam. Homens entressorrindo-se, bem paginados, com ttulos a caixa alta. Natlia e os homens! Gostavam dela - e ela sabia manter nos homens uma permanente indeciso entre o atrevimento e o respeito.Por isso eles recriaram s para Natlia a palavra charme, o que era, da parte de quem o declarava, uma divertida confisso de impotncia.4 Ningum lhe conhecia amigo. Ningum lhe farejava5 homem. Natlia era intrigante. Decididamente, Natlia tinha charme!6 * Trezentos e cinquenta quilmetros ao norte da reunio de Natlia,Toms Roberto d os ltimos retoques a essa obra-prima: ter comido a perna de borrego. Aproximo-me e sento-me. Toms Roberto, que no me conhece, faz de conta que me reconhece. Diz que sim, que se lembra de ter andado comigo no liceu. Depois, sei l porqu, fala-me dos chineses. Deve

estar preocupado com os chineses. - Realmente so muitos, digo eu. - No isso, homem! Onde que eles vo arranjar comida para tanta gente! Voc j viu o que era dar uma perna de borrego a cada chim? - ri-se7 Toms Roberto. - Arroz, torno eu, arroz e esto com sorte! - Oua - pede Toms Roberto - a gente pe os filhos neste mundo mas no sabe o que que o futuro lhes prepara! Acompanho com acenos de cabea a grave banalidade da afirmao. - Quantos filhos tem voc? -pergunto eu sem nenhuma curiosidade. - Tenho onze e ser o que Deus quiser8 - ameaa Toms Roberto. - Plulas que no entram l em casa! - continua Toms Roberto a ameaar. E eu,que j estou a sentir-me culpado (de qu), dou comigo a gracejar: - Ora! Uma perna de borrego sempre se h-de arranjar para cada um, Toms Roberto... No sei que vscera sensvel lhe toquei. Toms Roberto olha-me de tal modo que eu, tirando partido da minha quase ubiquidqde, desapareo pqrq trezentos e cinquenta quilmetros ao sul e reapareo instantaneamente na reunio da minha querida Natlia. * Que coincidncia! Tambm aqui falam dos chineses! No h dvida que eles pululam... Natlia aproxima-se. Trs-me um usque9. E eu fico a fazer uma plida imitao dos homens de copo na mo. Natlia gosta dos irregulares como eu. Diverte-a o ar meio condescendente, meio enjoado, que os homens de copo na mo mal disfaram ao perceberem que no sou capaz de os imitar... Os chineses esto na ordem do dia. Por consequncia, algum fala de Malthus e da razo que ele, afinal, sempre teve. Eu penso em Toms Roberto e sem querer troco-lhe o nome para Toms Borrego. Uma mulher10 de excitante voz rouca defende com paixo o direito a ter filhos, muitos filhos, todos os filhos! Os homens desfazem grupinhos e, atrados pelo despudor da excitante voz rouca,rodeiam a mulher, que est com um ataque de maternalismo. Natlia perpassa com um pratinho de castanha de caju. Leva um sorriso entre gentil e trocista. Gosto dela. E , de certa maneira, em nome dela, em nome da cumplicidade11 infrutfera que com ela mantenho, que corto abruptamente a palavra despudorada voz rouca, para desembrulhar a desgraada pergunta: - No seria melhor, em vez de ter filhos, ter pais?

QUEM TEM MEDO DE QUEM? Protestou que se o conhecessem,que se soubessem quem ele era, quem fora, quem estivera para ser, haviam de trat-lo doutra maneira. Sim! Que maneira aquela de tratar um homem! Um homem!, repetia, para crescer. Do alto do ascendente que tomara sobre os outros, arrotou. De propsito1. O arroto era a cpula do nojo em que os envolvia. Mas a tristeza foi que, depois desse bonito e alentado arroto que2 lhe sara e de que se sara to a preceito, um soluo esgargalado o empinou. Na cangocha, os culos saltaram-lhe. Com ele cegueta de todo, a farejar serradura, cascas de tremoo, caroos de azeitona, restos de devorao, cuspe, frias pontas ardidas - que comeou o grande gudio. Um veio, escarranchou-se nele e aplastrou-o. Bateu em crl s tontas, mas j outro lhe obturara um dente biqueirada. Cuspinhou. O gosto de sangue era grosso e demorado. Os culos3. Atirou os braos para a frente, espalmou as mos e deu uma braada. As cangalhas deviam ter saltado para longe. O que se escarranchara,equilibrado agora no traseiro, embutialhe os taces nas costelas, desbragado de riso. O da biqueirada, tentou chut-lo segunda vez,mas s levantou serradura. E porque no se desmedira ainda o terceiro? Estava espera de qu, afinal?4 O terceiro, afinal, entrou!5 - Ceio! No Ceio que te chamas? Diz l tua mulher que melhor ter um marido pitosga. Assim no vez o que ela faz... E com a biqueira do chanato deu-lhe os culos a cheirar. Os trs castigadores desampararam a loja, que, para o caso, podia ter sido A Nova Conquilha ou a Adega dos Competentes ou O Altino das Bifanas ou A Parreirinha de S. Jernimo. Dos mndrias que assistiram crua faanha, grande desfaatez, nem um se mexeu. A entaramelarem solilquios ou metidos numa traa das antigas ou a piscarem olhinhos desencantados sobre mais aquele episdio da triste histria do mundo (reduzido, na circunstncia, tasca e arredores), nem um s levantou dedo ou protesto contra os safados. E o medo tambm agiu: os safados tinham crnica de briges e anavalhantes. Capazes de muito, como se pde ver. S ver... Atrs do balco, Gmez ou Prez ou Rodrguez tambm no reagira torpe graola. Esfrego na mo, aplicava-se a limpar o mrmore, como se alguma vez aquele mrmore pudesse ser limpo.A sua filosofia era: enquanto no h copo pelo ar ou banco escavacado, olho na registadora e deixa correr o vinho, que eu c sou do Minho... Alis, o homem estendido no cho era meio estranho. Quem o mandara entrar naquele pas sem carta de chamada? O artolas no esperava, com certeza, que o removessem com o lixo... No saguo da taberna, armado em caramancho de trazer farnel, jogava-se matraquilhos. Esmocados, os bonecos de pau enfiados nos espetos giravam, sem braos, num Benfica-Sporting6 interminvel. Mais ou menos esfrica, a bola de madeira, quando ficava nspera7, fora do alcance de qualquer boneco, est-se a perceber, era reposta em jogo: trs pancadas no bordo e ela a ia para campo outra vez, enquanto os dois, os trs ou os quatro, manetes em punho, a esperavam, espalha-brasas de todo. Os frios, os cientficos prendiam-na, passavam-na de jogador a jogador, dos avanados para os defesas, de defesa para defesa, a criar nervosismo e, truque

velho, postos, de golpe,mdios e avanados em paralelo com o relvado, disparavam-na, seco, de longe, que ele h surpresas... Caixa de msica, mas de msica concreta, os matraquilhos trepidavam no saguo. Conceio, de ouvido a sintonizar os matraquilhos, levantou-se. Ps os culos, sacudiu as calas, fez, enfim, o que trivial fazer-se em situaes que tais8. Atravessou a sala. Nenhum dos no-te-rales saiu do seu casulo. Quando ele virou costas, alguns deram de ombros e sorriram, muito espertos. No saguo, abriu a torneira. Bochechou, fungou, bebeu. Com a gua, desaparecia, pelo ralo, sangue, sarro, serradura. Conceio pediu lugar nos matraquilhos. Boa ideia. Completava equipa. Puseram-no defesa. Deixou entrar rajadas de golos. O rapaz seu companheiro e os rapazes seus adversrios j estavam a trat-lo com o desprezo de quem tem a vantagem de ser doutra gerao. Experimentaram mudar de parceiros. No resultou. Mas Conceio era o otrio que metia as moedas, enquanto ia dizendo, pela tarde fora,todo infludo: - Quem tem medo de quem? Quem tem medo de quem?

DOIS NMEROS DE CIRCO1 I Desdobrou o leno de assoar, estendeu-o no cho e comeou o seu nmero: deitou-se de costas sobre o leno, enovelou-se, pediu que algum do respeitvel pblico lhe puxasse, cruzasse e atasse as pontas (a do monograma a ver-se bem!) e, feita a trouxa, deu ao todo um balanar ligeiro enquanto vagia como quem, sem querer incomodar, procura me. Uma senhora de preto, que era respeitvel pblico, tinha lgrimas nos olhos e apertava na mo um lencinho. Dolorosas lembranas? Crianas olhavam-se entre rir e chorar e uma voz rompeu a protestar com veemncia e nojo. No centro do redondel, a trouxa balanava. Do verde ao cor-derosa-carne, esteve sempre em foco. Foi ento que algum deu sada ao mal-estar: - Msica, maestro! Acenderam-se as luzes e a orquestra, toda lustrosa de smquingues2, atacou um pasodoble3 bem alegre, bem deste mundo, enquanto o pessoal de arena, j atrapalhado pelos augustos-desur4, levava a trouxa para fora, para sempre. II Entre o rico e o pobre a aposta simples: dar no vinte. Primeiro, acender uma vela e segurar nela a um brao (esticado) do corpo. Depois, eu, que sou o rico, vou afastar-me vinte passos da chama tremulante. 'Ts5 nervosa? Naturle, naturle... Com essa penca rematada em maaneta6... (J sbis que o tomate este ano baixou?...)7. Vou contando os vinte passos. Sei medir as distncias que te separam de mim. Quatr... Cinc... 'Ts5 com as pulgas? No? Ento desaparafusa-te8 l, tira o queixo da biqueira da bota, estica-me esse brao, endireita-me essa vela! Qu?... Ah tu queres que eu espere um bcadinhu? Minha pistola est muito nervosa. No pode esperar! Ento j deste lume ao cavalheiro esse? E nem ao menos te tirou o chapu?! Em psio, calhordas! Seis... Sete... Agora9 se ri! Agora me rio porque ah ah tu no sabes ih ih o que trazes nas costas uh uh... Qu' qu'eu trago ns costas? Trazes o 'u!10 Trago o qu? O 'u! O 'u!11 Calhordas duma figa pum pum! E o senhor srio, que pedira lume ao calhordas, saltou para o redondel e correu atrs do rico e do pobre. Tinha dois buracos no chapu, conforme demonstrava com dois dedos que at pareciam outra coisa...

A MINHA AMIGA ALENTEJANA1 A minha amiga alentejana tem uma grande alegria. Natural? Acho que no. A sua grande alegria foi ter deixado de viver no Alentejo. L, o que era ela , afinal? Uma grande ansiedade nos fundes dos olhos, me perna, aspirante de Finanas a prometer, o idiota, frigorfico e alta fidelidade, irm casada, bb sobrinho todo ringidos, fogagens e refegos, cunhado a atrever-se, paternal. Agora passeia para mim pela casa toda. Descobriu a minissaia. Descobri a aorda alentejana. Na capital dos trnsfugas, um quarento e uma rapariga, contam, a dedo, os barcos que h no rio, vo ver a aorda que est ao lume (brando?), passam rasteiras um ao outro, estatelam-se, riem como desalmados que so, no atendem o telefone (No vs, pode ser o mc'cunhado!), bebem tinto com cerveja, rijo bagao a seco, lacrimejam, engasgam-se, do palmadas de gudio nas coxas, atrapalham-se no sempiterno tango de 75: Ese tu corazn pan-pan de gorrin pan-pan senti-mental vlan-vlan! Que grandes maganos! A minha amiga alentejana, de minissaia, passeia pelas ruas dos trnsfugas em fuga. Esfrega-se pelas montras, malsetm nas pernas. D brincos. Vai e vem. Encosta-se ao meu ombro protector. Que amor! De repente, o bom costums: - Miguinho, no te esqueceste de fechar o gs? A minha amiga alentejana a grande ternura que lhe tenho! Pode l resistir-se a quem andou no varejo da azeitona e agora estende a mo senhoril aos velhos lambuzeiros de porta de livraria malcontendo o riso! Que o cunhado experimente vir buscar,ma j de olho nas penses da Praa da Figueira! Que o aspirante rechine em missivas de alta fidelidade! Que a me perfile o seu luto severo nos umbrais! Que o bb sobrinho se escame todo! Que a irm empine a sua nova prenhez! Ningum pode tirar-me a minha amiga alentejana, este meu acordar do lado da alegria, este delicioso desconchavo quotidiano em que abandalhei (e salvei!) os meus quarenta, esta minha (j pstoma!) elegia.

VESTIBULANTES1 v-los no rapa-que-rapa, rapap, rapa-tachos. v-los, os vestibulantes, atrs da casta2 dos gerentes, pressurosos, enfticos, medianos, convenientes. Rapazes jeitosos, esses vestibulantes quando tiram o crocodilo do monograma de prata do bolso peitoral para te mostrarem o filho a cores, hlare e sadio, quando ainda mal pensaste em fumar e j esto a dar-te clic lume como o dnil ou, despretensiosos, com o zipo, ento remorde-te, petiz, pe-me os olhos nesses exemplos vivos do saber,do saber atravessar Atravessar, sim, atravessar situaes, sales, vestbulos desenchumaados por Mendona ou Prontavestir. Rapazes na linha, esses vestibulantes! usque3 o teu problema? Mandam-te o Alves embarcadio ao escritrio com uma bateria de jniuoca,seis suissemeide de senhora, dois FM Japo, 10 LM Canrias. Escolhe. Pagas ao fim do ms. Bacalhau? Oh filho! Um postalzinho para o Joo Boa Alma e depois de amanh tens ao domiclio um senhor bacalhau da Gafanha que no te digo nada! Geniais, esses vestibulantes! J ouviste a Bez? Nunca ouviste o Fidel? Comeste, acaso, a verdadeira alheira de Mirandela? No conseguiste o ltimo nmero do Lui? Ento no4 ests no segredo dos vestibulantes!5 O vestibulante um educado para a mediania. Se o confundes com um recepcionista, por eu lhe chamar vestibulante, a gafe tua.O recepcionista, por definio, est na recepo. No precisa de ter um estilo de vida. O recepcionista introdutor. O vestibulante, esse, interlocutor. Quando tu, Peter, diuturnamente desembarcas de Londres e vens persuadir-nos de que temos de persuadir as barbas nacionais da excelncia da tua lmina (a nica, NOVA!, que barbeia os entrepelos), o recepcionista (em geral mulher) no tem mais obrigao que a de dizer est na recepo o Sr. Pita/would you like some coffee, Mr. Pita?. O vestibulante, esse, movimenta-se por entre obrigaes complexas: fazer-te o elogio do sol, levar-te aos fados, embebedar-se contigo, troar, com cautela, dos americanos e, num golpe de fraqueza,contar-te o que lhe aconteceu, certa noite dum incerto ano, em Londres, e como tu, Peter, e os teus compatriotas sois zucas, mas honestos, quod eat demonstrandum. Tu corroboras, Peter, muito grosso e alheado, as efuses do teu vestibulante, e ele, que chamara, entretanto6, o Jaime fotgrafo, aproveita o teu ltimo sorriso comatoso para te pr a mo no ombro e fazer-se fotografar a teu lado (copos e garrafas em campo) com ar vagamente protector7. O vestibulante sabe fazer as coisas! Mediano, cultiva as virtudes medianas8. Enquanto durares na agenda dele, Peter, recebers, sob a forma de carto de boas-festas, todos os Natais, uma panormica da sunny Lisbon. Que inveja eu tenho, Peter, da tua lmina de barba!9 J depois de comeada esta croniqueta, algum me perguntou meio azitico (com z) Vestibulante! Ora essa! Porqu?. Fique sabendo esse meu crtico potencial que se no lhe respondi logo foi porque estava ainda a sopesar a forma definitiva da achega que, modestamenta, decidi dar ao incessante Dicionrio Acadmico: VESTIBULANTE; adj. 2 gn. Que faz vestbulo, que deambula por vestbulos. S. 2 gn. Aquele que desempenha uma funo ainda

mal definida que se poderia definir como o exerccio, em qualquer ramo de actividade, do esprito de vestbulo, isto , do esprito de lugar-comum. Acima do recepcionista, abaixo do public relations, o vestibulante cultiva a mediania nas ideias e nos gostos. Sabendo de tudo um pouco, sem saber, realmente, de nada, promotor de situaes comuns para homens particulares, de situaes particulares para homens comuns, o vestibulante um sobproduto de razovel consumo na sociedade do dito10. Horas aps o envio desta mimha achega aos editores do Dicionrio Acadmico recebi a visita dum vestibulante que eles me despacharam com a seguinte conversa: V. Ex genial (olhei por cima do ombro, no vi ningum atrs de mim, era mesmo comigo que o vestibulante falava). No teremos dvida em publicar a sua interessante contribuio na adenda actualmente em preparo. Como extra (d-nos V. Ex uma fotografia, mesmo de tipo passe) inseriremos na referida adenda uma notcia bibliogrfica11 da vossa figura de escritor. Como contrapartida, . x assina aqui este contratozinho de compra do Dicionrio Acadmico em trinta e seis razoveis prestaes12. Olhei para aquela espcie mal amanhada de vestibulante e disse-lhe secamente: o que eu quero bacalhau, ouviu?13 Agora estou numas nsias! Convidei uns14 amigos para um Gomes de S Alexandre O'Neill e tremo ideia de que o vestibulante no me aparea com o bacalhau, como manda a minha teoria dos vestibulantes! ALEXANDRE O'NEILL Ex-futuro colaborador do Dicionrio Acadmico

ODETTE O que eu gostava de arrancar para o papel com uma histria russa, uma histria em que se visse logo a alma atravs dos buracos dum capote ou se ouvisse de contnuo o guizalhar dum tren (vazio) errando pela estepe de papel branco! O que eu dava para, em trs rompantes de gnio, vos pr no centro do descalabro moral e apalavrar convosco uma sada para da a vinte pginas de pesadelo! Virada a ltima havamos de sorrir. Eu, com o meu gnio (normal) acreditado; vs,leitores, com a conscincia (reconfortante) de que nada mudara no espao real vossa volta. Ser a literatura um pacto de inaco? Nem o meu gnio ajuda, nem a pobre da Odete (Com dois ts, se faz favor!/Ora essa, OdeTTe!) era passvel duma histria russa, tadita! O que aconteceu foi que a encontrei a chorar porque o Jlio1 alara por sinal com a Lisette (S leva um t/Tambm tu, LiseTe!) no sem, primeiro, a ter espancado - a ela, a Odette - com frieza e nimo, como recomenda o tcito manual dos jlios. A Odette mostrou-me at duas das ndoas negras. Para animar, disselhe que uma das ndoas negras era a ilha da Madeira e outra a ilha de Porto Santo. A Odette encrespou-se. Gritou que Madeira era o meu pai e Porto Santo a minha me e dobrou os cordes de choro. rapariga, no sejas parva! Estava a brincar contigo! Ento a Odette, sem mais cortesias, disse que se ia matar para ele ver. A no me contive:premiei-lhe a fraqueza2 com uma risada que lhe bateu de quina. A Odette emudeceu. Foi nesse momento que comeou o mais longo olhar que at hoje algum me dirigiu, incluindo os da minha progenitora quando, inquieta, prescrutava o feixe de pele e ossos que eu atava e desatava no bero. Prometi a mim mesmo nunca dizer a ningum o que vi, naquela noite, no olhar da Odette. Nem sequer sei se o olhar me era dirigido ou se passava3 por mim. Sei que durou duas eternidades bem medidas. Depois da lavagem para tirar do estmago aquela estupidez, a Odette foi para a terra convalescer. Disse aos pais que na aviao lhe tinham dado frias, pobrezita. Num ms, leu dez vezes a fotonovela O Marido da Minha Me4, experimentou dois vernizes de unhas, ajudou os velhotes a comer os cinco quilos de bacalhau que o Amlcer da Rua do Arsenal lhe arranjara (o simptico!), engordou. A ltima vez que vi a Odette (h-de fazer um ano) estava ela a comer cadelinhas e a beber cerveja na companhia da Lisete e do jlio referido ao princpio desta falsa histria.O jlio contava qualquer coisa Odette, mas chamava-lhe Cacilda! Os trs riam muito e ainda mais riram quando eu passei perto da mesa deles. Odette-Cacilda clssica de mais. Acho que vou pr um anncio: Gnio procura personagem5 de pesadelo para uma histria russa...

UMA OLHADELA PARA ANTNIO NOBRE1 Pode dizer-se que Nobre inaugura na poesia portuguesa certa conversa ainda muito actual. Pode dizer-se que, a este nvel, mais moderno que Cesrio2. Diminutiva, a poesia3 do Nobre? Que havemos de lhe fazer? Apouca-nos o autor - S?2 Cheia de bons sentimentos, claro, mas sabendo que tambm com eles se faz boa arte4, bom conversar-te5. Os da sociologia tomam tudo demasiado letra (nesta primeira fase)6. Ora nenhum poeta pode ser tomado assim letra. O acto de poesia um acto de ironia. O vis irnico do Nobre tem de ser percebido, seno camos numa grande maada, que gostarmos do Nobre contra ns mesmos. O barquinho com o erro de ortografia do Nobre, se tomado letra, defesa7 do obscurantismo. No tomado letra matire, como o dos errados bonecos de barro que ornamentam8 as nossas prateleiras...2 Nobre sintomtico? Encantados da vida! Mas sintomtico de qu?2 Cesrio tinha ferramentas na loja da Rua da Madalena e o pomar, que ele queria muito industrial, em Linda-a-Pastora. Nobre, a quinta dos pais no Entre-Douro-e-Minho, a Carlota, etc., etc. Os dois tiveram a tsica9, o que no era difcil na poca10.Provavelmente cada um sintomtico disso mesmo. E depois?2 A gordura do S-Carneiro (no confundir com o actual poltico11, que magro), a gordura dele, que era um Nobre enxundioso12, um toucinho que pouco pesa se a tomarmos letra. J sabemos que uma chatice ser goooordo! menino-esfinge-gorda, papa a aorda, d os golpes de asa que quiseres e cai na aorda outra vez enquanto almejas pelo azul e no tombas de vez na estricnina. O teu drama humano no faz escalada13 em ns. A tua ironia e o teu transmudares-te e objectivares-te nela, esses si! Carneiro particular, no! Carneiro comum? Viva ele! Foste reaccionrio? Se calhar foste... Mas acalma-te, rapaz, que ns, os puros, j te recupermos do teu bater de asa...2 O Nobre influenciou todos ns. At o Boi da Pacincia do Ramos Rosa Nobre, s que lavra papel costaneiro em vez de terra frivel. At o Herberto Helder Nobre, com a sua anarcolrica. At a Sophia14 Nobre, com quinta no mar e charrete15 puxada a gaivotas. At o Eugnio16 Nobre, assim to s! E se calhar no ser Nobre o Cesariny, to Lusitnia no Bairro Latino? E o Melo e Castro? Que Nobre! E o Egito Gonalves, to neo-Nobre? E o Carlos de Oliveira?2 Todos somos Nobres, menos um: Gomes Ferreira, que Junqueiro (Ptria) - ou ser Ral Brando, o remorso que sobrou do remorso de Ral Brando?2 Fiz propositadamente happening para tentar mostrar que serse Nobre ser-se a grande incoerncia e a grande impotncia que somos todos, hoje, perdo, que ramos todos, ontem17. Em certo sentido, todos herdmos as qualidades e os defeitos do Nobre, todos visitamos o povo aos domingos, todos gostamos muito da nossa terrinha, todos sabemos evocar, entisicar, devanear, aluar, errar,. Em certo sentido, todos somos falhados e conseguidos como o autor do S2. Mas de quantos de ns ficar a conversa como ficou, por encanto, por enquanto, a dele?2 Por favor no nos tomem letra! Bem pode acontecer que, ironicamente, sobre algum de ns para o centenrio...2 E muito juizinho, que vem a o super-Cesrio!

O CITADINO PIPOTE OU UMA PERSONAGEM PARA JOO ABEL MANTA

Ainda bem que Pipote no judoca. Pipote no passa do Suspensrio Lils. Pipote judoca seria o fim. Pipote entra nos elctricos a ombro. Diz com licena depois de ter passado. Cheira a cebola e a camisa de anteontem. Fala curto. Assim tem mais tempo para chupar os dentes. Pipote usa elstico de cmara-de-ar a envolver a carteira. Traz1 negcios de ferro-velho, traz1 o filho nos estudos, traz1 uma viva debaixo de olho. Agora que os mveis (quinanes,principalmente) esto a dar, Pipote vai comprar fragoneta. J o vejo agarrado ao volante com medo que a fragoneta desalvore. J o topo a fazer mudanas no joelho da viva. Contam-se muitas do Pipote. Parvenu, parvo nu, Pipote no pior nem melhor, escusam de se estar a rir, que vocs. Pipote comeou difcil. Vocs tiveram colgio, manteiguinha no po, Bucha & Estica nas matins de quintq-feira. Pipote teve cachaes e casqueiro ao mata-bicho. Veio a pulso, Pipote - e com muita honra! Das que se contam do Pipote, no sei ainda se conte a que me apetece contar. que no nada tpica, sabem? Remonta aos 14 anos de Pipote, quando Pipote, quer dizer, ainda no era Pipote. Era o cdula Joaquim Serrano Deusdado - Quincarvoeiro para os inimigos. No me fao mais rogado. DE COMO JOAQUIM SERRANO DEUSDADO, ALIS, QUINCARVOEIRO, ALIS PIPOTE, DEIXOU APODRECER OS DENTES TODOS MENOS UM. s 6 horas da manh, chutaram Quincarvoeiro para a consulta externa de Todos-os-Martrios. Questo dum abcesso bochechado a aguardente e a raiz de alteia com desinflamao subsequente e recidivas de ganir. Bochecha infla, bochecha desinfla, a cara do pobre j era como um cartucho e o misrias estava por tudo2. A quatro de frente, de cara amarrada, a bicha para os servios de Odontologia consumia-se e refazia-se ao longo das horas e dum corredor conventual. Quando chegou porta da sala dos alicates, Quincarvoeiro compreendeu, num pice, a utilidade das bichas: terem cauda. Um menino que saa da sala segurava os quiexos com a manita, vexado de todo, e dava pontaps de desespero na estpida me carinhosa. Uma cigana (sedentria) apiedou-se do chavalito probecito e comeou a desenrolar uma lamria meio zangada3 entrecortada de cuspinhadelas raivosas para o lado. Um digno velho remendado e limpo reprovava mudamente tudo, no escondendo,na sua sobranceria, que s o mau destino fora responsvel por ele se encontrar ali, misturado com a gentalha. Trezentos e quinze!4, disse uma voz entreportas que parecia mesmo a voz do creosote. Era a senha do Quincarvoeiro. Este deu um passo ao lado e uma grande coragem de fugir ps-lhe as pernas em movimento. Pisgou-se para a cauda da bicha, a tomar tempo e balano. Ainda hoje o citadino Pipote fala com um dentinho de orgulho desse caso da sua vida de rapazelho. Alis, sempre com orgulho que Pipote se rev em Qincarvoeiro, seu querido filho na perspectiva do tempo. Espero que a vossa credulidade chegue onde chegou a minha, quando ouvi esta histria da infeliz boca do

Pipote: trs ou quatro vezes Quincarvoeiro foi atacado pela coragem de fugir, trs ou quatro vezes se atrasou para a cauda da bicha, a tomar tempo e balano. Ao meio-dia, na derradeira repescagem de senhas no respondidas, a bicha era Quincarvoeiro. At que um dentista, alicate em punho, se avantajou nos umbrais. Foi apanhado. J na cadeira, j de boca ocupada por ferros, dedos, espelhinhos, o cdula Joaquim Serrano Deusdado tentou articular uma queixa, soprar uma indicao, subtrair-se o mais que podia mordedura metlica dos alicates, que andavam, por ali, a planar de mo em mo. Os odontologistas trabalhavam rpida, firme, irrevogavelmente. Se os deixassem entregues sua prpria inrcia, desdentariam o mundo mal o apanhassem a bocejar de tdio. Trs dores agudas, fininhas. Uma patada no estribo da cadeira. Um compasso de espera com ferros a retinir, torneiras a trepidar, desconhecidos cheiros violentos a subirem-lhe ao nariz. Depois, um rspido abre mais a boca!5. Abriu mais a boca6. No abriu os olhos. O alicate veio, entrou. Sentiu o choque no alto da cabea, por dentro. O alicare mordeu. Queriam virar-lhe a caixa dos pirolitos do avesso? Descomandou-se. Gritou...7 Mas j, triunfante, o diabodentista lhe mostrava o dente, que o alicate continuava a morder. E Pipote, hoje, comenta, num sorriso de aqueduto em runas: - Sr Anbal (eu j lhe disse que no era Anbal, que era O'Neill...), Sr Anbal!,8 a vida assim: o dente que me tiraram estava bom; o estragado c ficou. J passaram para cima de trinta anos e nunca mais voltei a esses diabos! C me vou governando com os dentes que tenho. Mas diga-se a verdade: o dente que me tiraram foi o nico dente bom que eu tive... E o aqueduto sorri, enquanto Pipote o vai chupando paulatinamente.

COM SEISCENTOS DENTISTAS! (Outra de Pipote...) Antes eu tivesse falado, na minha crnica da semana passada, do Geraldo-Trepador-de-Muralhas, vulgo O Sem Pavor, que do Serrano Deusdado (Joaquim), ferro-velho a desunhar-se em quinanes nas feiras de S. Pedro1 e dos santos que houver! Antes eu tivesse atracado a jangada a uma personagem histrica de verticalidade indiscutvel, que batido papo (com evidente simpatia, no acham?) sobre essa afinal grande besta que o Serrano Deusdado, vulgo, vulgarssimo Pipote! Aqui deixo a traduo para portugus de mascate da carta a lpis-tinta molhado em saliva (ainda!) que ele me escrevinhou h uns reles trs dias2. O Sr Anbal (outra vez o Anbal, em vez de O'Neill...) est a prejudicar-me com aquelas larachas que deu estampa (em que missal ou almanaque picado pelo bicho teria o malandro catado a expresso?) no Dirio de Lisboa3 de faz quase uma semana (brrr!). Quem lhautorizou (sic)4, a falar de dentes que no conhece? V Clnica Dentria das Avenidas Novas, pergunte pelo Dr. Sousa Rocha e lamba-se com o que ele lhe contar dos meus dentes novos. Onde que o Sr Anbal foi descobrir essa de eu deixar apodrecer os dentes por cortar cavilha, quer-se dizer, por ter cagao? Homem de letras,chamam ao senhor! Homem de tretas,chamo-lhe eu, ouviu? que j uma senhora outro dia comeou a entrar comigo de semana. Ento o Deusdado deixou apodrecer os dentes por tefe-tefe, h? E ria-se, a lindinha! Trs quinanes que deixei de vender e por sua causa. Virei-lhe as costas e preveni-a: No fao mais negcios com a madama! Nem uma perna de cadeira! Est a ver o Sr Anbal a bonita situao em que me ps com a mania de andar por a a inventar histrias? E se tivesse mais juzo na mona, no era melhor? Havia de ser meu filho... Este que se assina Joaquim Serrano Deusdado5. Juro sobre a memria do Geraldo-Trepador-de-Muralhas, com seiscentos dentistas!, que o que eu contei a semana passada foi ouvido por mim da booooca (pft!) de Joaquim Serrano Deusdado. Se ele comeou a tratar dos dentes, a culpa no minha... Mas aqui, em legtimo desforo, lhe rogo uma no menos legtima praga6: - Que a postia te caia, Pipote, quando estiveres no derrio com a viva e que ela te ponha uma semana a bibero, enquanto os mecnicos do Dr. Sousa Rocha reparam a dentadura do... beb! P. S. PARA JOO ABEL MANTA7 Meu caro,enganei-me! A personagem Pipote no merece nem um milmetro do seu engenhoso trao paciente. Desconfio, at, que no tem contorno. Para que nem tudo fique perdido,aqui lhe deixo uma sugesto: Retrato da dentadura quando Pipote.

OS GIRASSIS AMARELOS RESISTEM1 Resistem os girassis. Resiste Irene2. Resiste o Pneumotrax3. Resiste a Evocao do Recife4. Resiste Manuel. Nada mais enganador que a simplicidade de Manuel Bandeira5. arte consumada. Aconselho-vos a desconfiarem da facilidade com que ele despacha um poema. Manuel joga e desmancha, muito habilmente, o jogo, diante nossos olhos, para fingir que sai perdendo. Sabe, muito bem, dar a impresso de que no sabe, de que encontrou a soluo por milagre, assim, de supeto. Conto, entre os meus antepassados,alguns pernambucanos. Napoleo, o conselheiro, que, apesar da muita aguardente de cana que h por l, espero no tivesse andado de mo a aliviar a lcera, como se diz que |fazia| o seu homnimo, aquele das batalhas; Olympia-do-Brasil, minha tia-av, que passava a |vida| nos navios do Lloyd Brasileiro em recovagens sentimentais entre Brasil e Portugal; tantos outros, a spia, no lbum, cujos nomes esqueci ou nunca soube. Mas todos eles e tudo isso (as histrias de famlia, os velhos almanaques recifenses, uma vaga quinquilharia extica desarrumada por cmodas e gavetas, o falso sotaque pernambucano dos de c) so as minhas razes muito fortes para amar Manuel Bandeira e sentir a especial atmosfera das suas evocaes - que sessenta anos de Rio no mataram, em Manuel, o pernambucano! Aparte estas razes to minhas, h as razes que o concernem; a sua alta qualidade de poeta, a sua falta de aparato (que falta grave!...), o seu gosto de rejeitar a perfeio para que a marca da vida venha desmanchar um pouco as coisas, a sua resignao exemplar (e nada masoquista!) no aceitar os momentos pobres da existncia, a sua ironia, a Ironia de quem jogou, tantos anos, s escondidas com a morte... - J pooode!, fez Manuel do seu canto. E a morte veio e, desta vez, apanhou-o. Mas... ... Quando a indesejada das gentes chegar,6 Encontrar lavrado o campo, a casa limpa, A masa posta, Com cada coisa em seu lugar.7

O PAPEL DOS MALMEQUERES O papel de parede fora escolhido pela embaixatriz. Uma longa carreira de casas montadas e desmontadas, de encaixotamentos e desencaixotamentos de recheios no dera embaixatriz mais gosto ou mais confiana no pouco que tinha. A embaixatriz era originria do campo. No campo h flores. No campo evocado ainda mais. A embaixatriz inclinava-se para as flores. Para sa flores no em estado ou circunstncia de jarra, entenda-se, mas para aquelas que alegram, humlimas, pastos e bosquetes, para aquelas que a sandlia de So Francisco pela certa sempre evitou. Hesitara entre um papel que repetia, sobre fundo verde-claro, uma papoila encurvada, quase borboleta ao vento, e um outro que recapitulava, palmo a palmo, um tufo de malmequeres. Por sentimento, foi para os malmequeres. Por clculo, evitou a papoila. O novo posto era num pas de ideologia oficial avanada1. Agora revia-se no malmequer. Teria acertado? Ora! Sentia-se nas suas quatro paredes! Estava rapariga e tranquila. * Dois meses decorridos, j o gato siams (O teu terceiro filho!, como dizia o embaixador) desfizera, ptala a ptala, um tufo de malmequeres2 altura de pata. O bichano, de seu normal, no era destruidor.Qualquer almofada ou pufe lhe servia de pedestal para as interminveis sonolncias de deusete. entrada de algum, abria e fechava as plpebras. Tirado o retrato ao efmero, reentrava na moleza da sua eternidade. Um tufo de malmequeres - e s aquele! No havia, perto, franja ou pingente que pudesse, com mecnicas negaas, lembrar ao gato que era gato. Nenhuma sombra danante ali se projectava. - Caprichos do3 Amok! -4 decidiu a embaixatriz, que tinha por autor de cabeceira Stefan Zweig. * Ao sair o ltimo convidado,um comissrio de peito refulgente, o embaixador abandonou-se poltrona, folgou o colarinho e pediu embaixatriz que mandasse deitar as criadas e lhe preparasse um usque5, como s tu sabes, querida6. A embaixatriz trouxe-lhe o usque e a carinhosa repreenso do costume. A ch de limo acompanhou o marido. Os dois acabaram por tirar os sapatos. A embaixatriz enroscouse, escondendo as pernas sob a saia. O embaixador esticou-se e fez ginstica com os dedos dos ps. Dedos a mexerem dentro de pegas. Dedos de embaixador dentro de pegas de embaixador. De embaixador,que chatice, e logo num pas daqueles! Comissrios que entram com o peito a cintilintar... - ...E se calhar amanh cais em desgraa! - Quem?7 Sobressaltou-se a embaixatriz. - Estava a pensar no comissrio...

* Com pezinhos de l - esse no precisava de tirar os sapatos Amok aproximara-se. A embaixatriz ensaiou tagats. Amok no ligou. Parecia fascinado. Passou, como um fantasma, entre o homem e a mulher. Correu. Estacou junto parede. Retesou-se. Saltou de pata no ar sobre o tufo de malmequeres destrudo. Bufava e rouquejava. Embaixador e embaixatriz entreolharam-se. Srios. Ouviram, ento,um estalido que vinha do interir da parede. Um simples rudo ntido. - Ratos? -8 perguntou a embaixatriz com a chvena suspensa entre beber e entornar. - Microfones! -9 respondeu o embaixador pousando o copo. E com uma ponta de orgulho, o homem levantou-se e foi acalmar o Amok. Com uma ponta de orgulho, sim! Ele, o pequeno embaixador do pequeno pas, j merecera a visita dos microfones...

O INVENTOR DO SUBMARINO Pegou-me na mo e, de mansinho, experimentou repetir o convite: V, anda ver!. Eu, que o enxotara j duas vezes, desci do Cucaso, levantei os olhos do livro (Nouvelles Asiatiques, Gobineau) e, com eles, fui coroar de ternura a cabecita de cabelo bestla, que, a meu lado, acenava, a pedir que sim. Na banheira, o H-327 derivava lentamente entre duas guas. Maravilha! Senti - que querem que lhes faa! - um sincero grande orgulho. Eu era o pai do inventor do submarino! Quando pus os olhos nos olhos do Inventor, este semi-sorria, coroado de prazer. H-327: um tubo de vidro transparente de quase dois palmos e de dimetro igual ao de uma cpsula de garrafa de cerveja (carica, no especializado vocabulrio dos inventores). Onde desencantara o Inventor o tubo foi coisa que eu nunca quis apurar. De rs saltadoras a despertadores de caixa de lato desventrados, de frascos de boca larga com cabeudos nadadores, mais pequenos que fiapos, a escreverem continuamente zs (zzzzzz) na gua suja, em rpidos, elcticos movimentos de corpo, a um estranho dnamo manual que fazia tfft-tfft-tfft a cada fasca que saltava dentre as escovas, o Inventor habituara-me a todos os aprestos de que o seu gnio criador necessitava. Mas o H-327, assim deriva sob meio palmo de gua, era positivamente de tarar! O Inventor ajustara-lhe duas rolhas dentro e rolhara-o, nas extremidades, com outras duas. Criara, deste modo, trs compartimentos no H-327. O compartimento central abrigava a tripulao: duas moscas desasadas. O comandante-mosca (ou a moscacomandante) distinguia-se do resto da tripulao (simbolizado, muito inteligentemente, pela outra mosca) porque o Inventor lhe pintara o sim-senhor de vermelho. Os compartimentos das extremidades constituam os depsitos do lastro: gua e, para melhor contrabalano, algumas tachas. A tripulao parecia atenta (j estaria meio asfixiada?) e o Inventor resolveu experimentar, mais uma vez, a estabilidade, em imerso, do H-327. Arregaou a manga, meteu a mo, em esptula, na gua e desencadeou na banheira uma tempestade pior que a que meteu a pique a Invencvel Armada. A que o meu entusiasmo1 abandonou todo e qualquer paternalismo, para se tornar um entusiasmo de igual para igual. O H-327 era simplesmente formidvel! A banheira deixou de ser a banheira. Passou a Base Naval Coelho da Rocha (por essa altura ns morvamos em Campo de Ourique, na rua do mesmo nome). E eu corri coleco do Paris-Match2, que tem muito bom papel para avies, e em trs tempos fiz duas esquadrilhas de combate anti-submarino. O Inventor, entretanto, protestava que a banheira no podia ser a Base Naval Coelho da Rocha, que era, evidentemente, o alto mar. Eu no o contrariei, confiado como estava na superioridade da minha aviao. Ao terceiro bombardeamento, com o mar muito agitado pelo Inventor, o H-327 foi atngido por uma bomba das grandes: mola-daroupa de arame. O submarino virou sobre si mesmo. O comandante sacudiu o sim-senhor vermelho e pareceu firmar-se3 melhor nas patinhas. A mosca-marinhagem no dava sinal de vida4. Eu perdera, contudo, um avio de observao, que, numa vrille5 desastrada,fora cair na base, perdo, no mar. Soraya, cujo retrato, por um feliz acaso, coincidira com o verso de uma das asas

desse avio, sorria-me de dentro de gua,j muito desbotada. O Inventor rejubilava com a estabilidade do H-327, que atravessara, bravamente, a terrvel prova. E os bombardeamentos continuaram pelo que restava da tarde. Eu e o Inventor revezmonos6 na produo ininterrupta de tempestades e de ataques areos. O H-327 sofreu tratos sem fim: o tremendo impacto das bombas de profundidade (para o delirante efeito, lindas grageias de somnfero furtadas da farmcia da velha), o tiro de salva de baterias costeiras cujo longo alcance fora engenhosamente garantido por duas ligas da velhota, enfim, um sei-l de truques blicos, qual deles o mais arrasador. Nada! O H-327 era um grande vaso de guerra! J com a batalha a passar-se luz da electricidade, o Inventor, que estava, nessa altura, ao submarino, pediu trguas para trazer o H-327 superfcie. Concedidas por dez minutos. E foi durante esse curto perodo de trguas que a gloriosa carreira do H-327 se viu abruptamente cortada pela entrada prosaica da nossa velhota (minha me e av do Inventor). Canada de dar ao dedo no agcsar o dia todo, por conta de Matos & Carth, Lda., Arameiros Reunidos da Pampulha, a Joana no conseguiu sintonizar o cumprimento de onda altamente potico em que eu e o Inventor estvamos a emitir: - Tu j pr cama, e sem jantar! E tu (era eu...) devias ter vergonha! Que linda educao ests a dar ao teu filho! Cabisbaixos, eu e o Inventor separmo-nos com um magoadao entreolhar de solidariedade. Por essas onze horas, com a Joana a cabecear sobre mais um captulo da Vida e Aventuras do Padre Quilh de Alvorado7, levei uma bucha, p ante p8, ao Inventor9. Como se uma mola o mudasse, truca, de posio, o Inventor sentou-se na cama, esfregou energicamente os olhos e fez questo de saber: - Ento, gostaste do H-327? Passei-lhe a cdea: - Muito! Mas j estou a pensar no H-1000... Trincadela e pergunta: - No H-1000? Festa na cabea e resposta: - Sim! No H-1000, com motor atmico! O Inventor ps-se de p na cama: - Motor atmico! Obriguei-o a deitar-se e no levei muito tempo a satisfazerlhe a expectativa: -Imagina um submarino como o H-327, mas com um comprimento extra. Nesse comprimento mete-se uma pastilha de Alka-Seltzer10. O H-1000 submerge. Tira-se a rolha sala do reactor, que a da pastilha, claro... Que achas que acontece? No sei se o Inventor conseguiu dormir aquela noite. Eu no. Nem o Gobineau me fez esquecer o longo abrao quente de admirao com que o Inventor saudou, na pessoa do seu pai, o aparecimento, no horizonte dos gnios, dessa nova maravilha: o H-1000.

O CLUBE DOS TALENTOSOS Meus amigos, vamos demitir-nos do talento? A quoi bon le talent? - dizia-me o viajadssimo Jacques sempre1 que vinha a

Portugal, pelos anos da cortia, sangrar a tia. A quoi bon? reiterava eu com aquela desenvoltura melanclica que o talento (frustrado) e a cortia (nenhuma) do. Mas no assim que se comea2 uma proposta de tal tomo. A srio! Vamos demitir-nos do talento? Esta situao de talentosos para a qual nos empurrmos e na qual nos encurralmos (curral doirado!) vai ser, se no j, o nosso fim. No preciso de nomear ningum. O talento est suficientemente distribudo e identificado entre ns, os das Letras3. Alis, nomear olvidar, assero que devo ao escrpulo dialctico e ao contagioso didactismo do meu primeiro professor de Filosofia, o aqui4 nomeado dr. Freitas de Arajo. O leitor, por certo, j adivinhara que era de Letras que se tratava.5 Bom leitor, nas Letras que o talento se mostra mais vistoso e como que mais desinteressado, mais sem motivo. Pode l haver coisa to bonita como o talento e sair-se assim, em corpo inteiro, sem outro engagement que no seja o de talento no talento! Sem outro engagement? Que digo eu! O talento, entre ns, sempre esteve comprometido, sempre mostrou o que valia a respeito (no a despeito) da realidade social em que o deixaram comover-se e produzir-se6. Porque falar, ento, de talento exclusivamente engajado7 no talento? Porque o altrusmo8 do nosso formoso talento literrio mais no que o caminho (fcil) que o nosso egosmo9 tomou. Demitamo-nos10 de um talento assim - e quanto antes!11 Groucho Marx, o p que resta do trip frentico que foram os irmos Marx, disse um dia: Peo a minha demisso de scio deste clube porque no posso ser scio dum clube que me aceita como scio!. Sigamos-lhe o exemplo e, se possvel, o desalienante e explosivo talento.

PROIBIDO O MAC1 Satisfeita a malvada, Datuatia mete o ltimo preso na enxovia, passa a lngua pelo teclado e pelas gengives e diz que este do carvoeiro que sim, que pinta. Observada uma aflita velha2, que tem os pintores escondidos atrs do Sagrado Corao e est a dar carapau ao Benfica, Datuatia pega na albarda, resmunga tlogome. No venhas tarde cacareja a velha num arrasto neopopulista de varizes. Ao passar pelo Vicente, Datuatia traqueja e diz para a velha das castanhas troque-me este em midos! e ri-se com um selvagem. A tiazinha fica-se a dar ao abano, como que a espalhar o petisco com que Datuatia a mimoseara. Que v gozar a patusca da me dele diz a tiazinha de mistura com outras gentilezas de fazer corar o mais conspcuo, mas j Datuatia virara a esquina na bruta gspea. Em menos de uma loja de barbeiro, Datuatia chega aos Bilhares, atira o cabedal para uma cadeira, pe a pata em cima do verde e declara que d quinze s cinquenta a qualquer dos ps que por ali se coavam. Praj disse um deles. Chamaram o Rentterra, que em trs trrins tirou as bolas, depositou-as em cima do verde e preveniu pela estafadsima vez os ps que era proibido o mac.

O QUIDO DA QUIDA Quem1 o quido da quida, quem ? - No sei... - Ola, num sabe! Lorena deu o retrato da santa a cheirar ao Asa de Corvo: - E ito sabe uqui? - Cinquen... tapaus! O sol janelou nesse coturno momento e acendeu no cabelo do Asa de Corvo um brilho de biqueira de citadino em domingo de missa. - Quem o quido da quida, quem ? - Sou eu... Na alma do Asa de Corvo, escorvada de novo pela viso da santa, um arrepanho, algo assim como um peristaltismo de ternura, perpassou. - Quem o quido da quida, quem ? - a Lou-Lou2. Asa de Corvo vinha comer mo. Lorena riu um riso mau, artificial, de fotonovela. Entradota sentimentalona, com uma vida de casos, de cacos, s costas, Lorena j s tinha as iluses que queria ter (pensava ela). Os cinquenta eram a janela atravs da qual o Asa de Corvo vislumbrava uma tarde de domingo menos m. Quando a velha se explicasse com o xis, depois da rbula (sempre a mesma!), corria a telefonar Celeste, metia vinte brecos de normal no cavalo, ia buscar o palminho de cara e gs todo aberto para Carcavelos! Mas o cronista, que est do lado dos fracos, como qualquer super-rato que se preza, no vai deixar, no! O cronista pega numa tesoura e entrega-a a Lorena com um viril incitamento: - Lou-Lou, faz qualquer coisa que se veja! E Lou-Lou faz. Ri outra vez o riso mau, artificial, de fotonovela3. Com a tesoura que o invisvel super-rato lhe ps na mo corta a nota de cinquenta em pedacinhos to pequenos como as ms horas que o Asa de Corvo vai passar no que sobeja de domingo. O Asa teve o costumado gesto de valentia. Lou-Lou essa, enfronhou-se no travesseiro e chorou, chorou at a maquige4 se desfazer num borro que s o cronista, por piedade, entreviu...

O SAPATINHO NA CHAMIN Bem, o sapatinho um chanato 45... Mas a quadra, propensa a ternurinhas, aguenta o diminutivo. (J ouvi algum dizer, desiludido com o chamado teste do nariz1, Narizinho enganador! para uma penca dessas que dobram a esquina meia hora antes do proprietrio). ... Um chanato 45, preto, de homem - um sapatinho na chamin. Est certo! Se eu, que j vou na casa dos sessenta, ainda jogo (marralhes!) o berlinde com o rapazito da porteira (que dores nas cruzes!), por que no h-de um maduro brincar consigo prprio divina mentira da infncia recuperada intacta pela mgica operao sapatinho-na-chamin? A minha presena naquela casa, a tais horas, em semelhante quadra, foi perfeitamente ocasional.. Eu respondo ao ttulo vago, mas conspcuo, de inspector de imveis2. uma pachorrenta sinecura que me entretm mais do que me mantm. A grande vantagem o carto! Com o carto entro onde quero, quando quero. Se o filme me agrada, fico. Se no, concebo uma infiltao de guas num telhado qualquer e a trepo eu de narizinho magirus em riste, a farejar (vcio velho!) a vida e os bastidores do meu prximo3. Podia contar-vos cada coisa das minhas andanas e trepanas! A das senhoras Vasconcelos que tinham dez ces em casa e abafavam nove nos armrios sempre que vinha a polcia a pedido cento e quinze dos vizinhos, por exemplo. Mas no. Hoje, fico-me por esta do chanato 45, assim prantado na chamin, espera do mais inverosmil e encantador dos brinquedos: a infncia recuperada. A velhinha que me abriu a porta no levantou qualquer objeco minha entrada. Deitou um olhar indiferente ao carto que eu lhe demonstrei, fez o gesto de quem se resigna a ciceronear a funo pblica pelos desvos da sua vida privada e levou-me cozinha atrs do chape-chape dos seus cansados passos. Na realidade, havia infiltrao de guas (onde que no h?) e o inspector com quem4 coexisto repontou dentro de mim, teve o seu minuto de brio: - H quanto tempo a senhora nota esta infiltrao? - Infiltraqu? - Infiltrao. Estas manchas de humidade nas paredes. Foi a que topei o chanato na chamin. Parecia um cacilheiro em hora de baldeao. A velha ainda murmurou algo como Histrias!, mas eu j descobrira o meu grande pretexto para no perder mais aquela noite de inspector de imveis2. O chanato mostrava-se pasmado, boquiaberto, se assim posso dizer. Via-se que estava espera, provavelmente muito surpreendido de o terem posto ali.Uma infiltrao de ternura ganhou-me as empenas da alma e logo arquitectei a linda fantasia do adulto que convoca a infncia para o... sapatinho! Algum que estivesse vestido de papel de jornal no faria mais restolho: uma mulher em forma de S, de roupo florido e canteiro de papelotes cabea, entrou na cozinha. Dedicou-me uma intensa e simp+tica mirada. Na mo direita segurava uma enorme cenoura que, por inconveniente capricho vegetal, fazia lembrar tudo menos uma cenoura. Estalou duas gargalhadas daquelas de bater com a mo na coxa. A espera do chanato no fora em vo: a mulher embarcou-lhe a cenoura, com muita arte e no menor gudio, enquanto ia dizendo para a minha velhinha5.

- D. Emerenciana! Ah! Ah! Quando o Valentim acordar da cardina... Ah! Ah!... o que a gente vai rir! Ui!6

AS ANDORINHAS NO TM RESTAURANTE - ... Quer dizer: rapaz pe os olhos nos lrios do campo ou: deixa correr o marfim1 como aconselhavam os bilharistas (ou os caadores de elefantes?). - Pois , mas as andorinhas apanham bichos no ar. J viste bifes a flutuar? - Incio, que prosaico ests hoje! Viaja de olhos com as andorinhas! No parecem mesmo as tesouras quando fogem da costura pela tardinha? - As andorinhas pem-me os nervos em franja. Andorinhas, velhos nos jardins e crianas a brincar... Positivamente no aguento! - Essa boa, Incio! Ento no ser lindo ver os velhos a entreterem os ltimos raios de sol nos dedos, como dizia o Carl Sandburg? No achas ternurento o engatinhar dos bebs na relva? E tesourando o ar, por cima e pelo meio de tudo isto, as extraordinrias andorinhas? A propsito, j viste alguma andorinha pousada como os outros pssaros? - Realmente, no me lembro. S aquelas de loua nas varandas dos pirosos... - At essas, Incio, esto a voar! Convenhamos que as andorinhas de loua no passam duma pobre... sei l... alegoria. Mas ser isso mais um motivo para andares assim to zangado com a vida, pobr'Incio? - Quando a vida madrasta... - Qual madrasta! preciso reagir, Incio... Oh! - Deixa ver. Incio viu: um pardal reagira sobre o pescoo do outro. Incio no tirou do evento qualquer moral. Com o leno ajudou o amigo limpando-lhe o presente do colarinho. At vista, optimista! - Melhor de pardeal que de bton2, no achas?, galispou o optimista. Incio deu de ombros e, afastando-se, sempre foi extraindo uma regra (ressentida) do acontecimentozinho: No vale a pena guardar no leno as lembranas que so para os outros...

O CONSELHEIRO Xaninha meu conselheiro literrio. Volta no volta, avana com excelentes sugestes e j me salvou algumas crnicas do lirismo de lapela a que o gnero se encontra exposto nas mos de gente to cultora de amavios e atavios como a nossa. Eu no participei na campanha camarria dos vasos de sardinheiras para embelezamento das janelas da cidade. Tambm no defenestrei nenhum desses minicanteiros que parecem segredar-nos, com modstia e garridice a frmula (pacata) da felicidade: pobrete mas alegrete. At acho comovedor que a sardinheira grimpe e se amansarde. O que procuro no fazer flores. Nem sempre (mal-me-quer, bem-me-quer...) o consigo. O pendor-flor est-nos na papoila do sangue. Que se h-de fazer? Chamar o Xaninha, claro!1 Xaninha disps-se a ouvir com ateno a histria. Foi prevenido de que ela era literria: Um homem conversa com uma mulher, algures em Lisboa. O homem tem pressa. A mulher, v-se que nenhuma. a2 hora em que os candeeiros, depois de regados pelos ces durante a sesso da tarde, fluorescem. (Xaninha riu-se. J topa - o citadinozinho! - que no h relao seno potica entre o alar-de-perna dos ces e o acender dos candeeiros. E deixou-me passar a fluorescncia...). O homem-com-pressa fica com o cabelo a brilhar muito quando o candeeiro por cima deles se acende. (Porqu, p? Porque3 o homem tinha o cabelo cheio de brilhantina. Ora... )4 A mulhersem-pressa faz uma festa na cabea do homem (E sujou a mo de brilhantina, no foi?5, divertiu-se o Conselheiro). O homem foge com a cabea e pergunta bruscamente mulher: - O onassis? Os nove anos vigilantes do Conselheiro interromperam-me vivamente: - Estava a pedir-lhe dinheirinho, no era? - Pois... - Em moedas ou em notas? - Acho que em notas... - Ento devia dizer Passa da os rectngulos6 ou Passa da os retratos!7 - Mas onassis mais giro, Xaninha... - Isso o que tu pensas... As pessoas vo julgar que aquele senhor que apareceu na televiso. - Quem? - Um homem que tem uma ilha s pra8 ele. - Uma ilha! Pode l ser... - Ah! pois no, meu espertinho... J te disse! Uma ilha s pra8 ele! - Que sorte, Xaninha! - Sorte? Ele s l pode chegar de submarino... - Quem te enfiou essa? - Palavra,p! Seno os fotgrafos no o largam. A conversa derivava. Amarrei-a com a promessa de que se algum dia escrevesse a histria poria rectngulos ou retratos9 em lugar da flor onassis. Xaninha, que nunca perde o sentido das coisas prticas, pediu-me, ento, que lhe pagasse o ordenado. Passei-lhe um retrato dos mais pequenos.

- Esta uma aflita, sabias? - desafiou o Conselheiro. - Sabia... - fiz10 eu j remando de volta minha ilha.

RAF LALO, O BUCANEIRO Aflalo no nome que se tenha. Se voc Aflalo, d-me razo. Aflalo nem parece nome. Parece falta de ar. Aflalo est a pedir estratagema: A. F. Lalo (diga Lal, por favor). Faz tempo, em Espanha, comprei uma Parker1 a cigano de alta macarena, o que me ps o corao a descompasso. Teria eu levado O CIGANO certa pela primeira conversada vez na minha vida? Supesei a caneta: leve de mais. Miopei a marca e, volatilizado o arganaz do gitano, tomei o partido de rir: era uma P.Arker2. Acredite, senhor Lalo (... l, roga-se) o estratagema resulta. Vamos dar existncia ao nosso Aflalo de hoje? Ele a vem!3 - Francisco Costa Simas Af... qu? - ... Aflalo4, senhor director... , e o Chico, todo escaldaface, procurava descobrir nas tbuas do soalho as ranhuras dum alapo que, a existir, poderia saf-lo (sabe-se l!) para as paragens mticas da Ilha do Tesouro, onde, com certeza, a malta no se importa que um tipo se chame Aflalo. Mudaria at, antes de desembarcar na ilha frente dos seus homens, para Raf Lalo, nome bandtico, raziador, bucaneiro, espanholfero. Amou intensamente a letra R, que estava a dar-lhe perspectivas de legenda e face para reencarar o director. - Aflalo, sim!, repontou o Chico sorrindo ideia de que tinha um R, de reserva para a grande ocasio. O senhor director pousou-lhe em cima a grande indiferena duns remansosos (em excesso) olhos azuis: - Aflalo, diga-me o que sabe sobre o sistema hidrogrfico dos Aores. Ilhas da pouca sorte! Nem as lagoas azuis do director lhe deram inspirao. Podia descrever-lhe de cor a Ribeira do Esquartejado, na ilha dos Flibusteiros, essa ribeira que se dessangrava em vero rubro sangue desde que Bartolomeu-o-Portugus tirara crudelssimo desforo do brutamares Fernn Boca Roga, atrain-atraioando-o e mandando-o esquartejar a montante do acampamento que ele, Bartolomeu, debruara sobre as piscosas guas difanas da ribeira. Claudicorre a lenda de que Bartolomeu, ao ouvir o tiro de mosquete que anunciava a consumao do sacrifcio do seu inveterado rival e o lanamento ao curso buclico das desconjuntadas partes do desgraado, se meteu na corrente lmina translcida at aos peitos, na espera (sfrega!) da primeira gua tinta com o sangue do seu mais que mortal inimigo. Homenagem? Carnificinagem? - Ento, senhor Aflalo... Das lagoas azuis do director nenhum rio (ribeira, arroio...) dos Aores consentia em nascer. Foi ento que o Alfredo, malicioso puto reguila5, se ps a fazer telgrafo com dedos, bocas, olhos muito abertos em ungentransmisso. O Chico, olho no director, olho no Alfredo, l foi decifrando a mensagem. E quando os dedos do director se entrelaam6 num ventrudo gesto abacial de completa impotncia e infinita misericrdia face ignorncia to crassa, para no dizer supina, desse Aflalo de mau sestro, o Chico chamou em socorro a letra R e, j Raf Lalo, seguido por todos os seus mticos bucaneiros, declarou, vitorioso, ao azul director: - Rio Barlavento! Rio Sotavento!

MONSTRURIO1 DO DR. LVARO SOUSEL, estrnuo defensor dos interesses da sua regio, sessento de dislatada facndia, fantico do jogo das damas sob o candelabro de moscas do Caf Central, jovial perseguidor de moas j-tinha-idade-para-ter-juzo-senhor-doutor, sacmos este rebrilhante improviso potico por ocasio da entrega dum novo pronto-socorro aos Bombeiros Voluntrios de Vilamediana: Correi, soldados da paz ponde vossos bacinetes, tomai o pronto-socorro, mostrai do que sois capaz!2 * De trip plantado na plaza mayor duma gris cidade espanhola l para os azulaos do norte, don Ramn, retratista de arte, de bondoso corpanzil arvorado entre pombos e meninos, prometia, num letreiro que o seu amigo Pepe do Ayntamiento lhe desenhara com aplicao e escantilho: De las feas hacemos guapas; Con las guapas,locuras!3 * Numa casa de pasto do Bairro Alto, em Lisboa, pode ler-se, se o fumo das frituras deixar, o seguinte desbotado letreiro,mesmo por cima dum queres-fiado-toma: Aceitam-se comensais e semanais. * E a Maria do Vale, que doida por iscas e outras petiscas, contou-me que num restaurante do mesmo Bairro Alto o letreiro convidativo reza assim: Aceitam-se comensais e bocas dirias. * Agora, uma de Vitinho, rpida, j, p'ra no chatear: - Havia um concluio contra ele. * E esta, que no a pior de todas, passada com um parente meu na sempiterna discusso que matinalmente o religava sogra: Parente Meu: - Isto assim no pode ser!

Isto um crculo vicioso! Sogra Dele: - Vicioso?! Vicioso ser ele... Parente Meu: - !!! Sogra Dele: - Isto mas um crculo malcriadoso! Eu: * Para acabar como comecei (com Dr. e quadra) fao avanar a lombo de burro o Dr. Crispiniano, a lombo de burro e com uma taa de champanhe na mo. O casa passou-se no Maro, era eu um lamentvel lingrinhas primo-pobre de boa famlia. A burricada desembocara em farto almoo que nos esperava,toalhas na relva, na Fonte do Mel4 e fora a pretexto dos anos duma senhora chamada D. Adozinda. Parece que entre o Dr. Crispiniano e a D. Adozinda (bonites setentes!) houvera rumores cardacos muitos anos atrs. O Dr. Crispiniano (seria por isso?) no quis desburricar, isto , deixar o pobre do, animal coar as mataduras nos calhaus e no tojo como os seus companheiros, enquanto ns, os humanos, almovamos. Do alto do burro, com as biqueiras a roagarem a relva o Dr. Crispiniano lanou chistes, piropos, respondeu a graas, enquanto comia e bebia. A prazenteira D. Adozinda estava coradita e no fazia seno rir com as maluqueiras do caro Crispiniano. O burro ia revesando os ps como paciente cadeira. Chegaram as sades, saltaram as rolhas. O Dr. Crispiniano, taa ao alto, afagou o pescoo do burro, pediu muita ateno, cogitou uns momentos e desimprovisou-se com fluncia e garbo: Penso e repenso; puxo e repuxo. Teu nome, Adozinda, um soberbo luxo! Foi a que o burro disparou. O Dr. Crispiniano, espantalho movente, ainda aguentou cinquenta metros de corrida naquela desembestada charneira. Depois caiu e fez plof, como nas histrias de quadradinhos. Esteve um ms de perna gessada. - E era...

VOLTINHAS DE PENSO Emiliano Tortuga deitou-se de costas, mo esquerda sob a nuca, mo direita rente ao cho, segurando cigarro apagado, mancha violcea sobre o corao, dedo grande do p direito coando barriga de perna esquerda, laudemus a recolher-se pouco a pouco. Nesses fins-de-semana em Entre-os-Seios, Emiliano1 nunca reparara na gorda jovial que a seu lado orneava2 a derradeira vasca. Mas no prazenteiro jogo de traseiros pelos corredores da penso, traseiros dados e furtados ao olhar por entre portas seco batidas e risadinhas pregueadas, acabara por atentar nas carnudas negaas que a criada lhe fazia - e truca: ali estavam. Emiliano, que daquele mergulho de meia braa s trouxera uma alga viscosa, comeou a pensar que as lous filhas do campo eram conversa e que j no tinha idade para aventuras assim. Da ao remorso, Tortuga3 deu um passo - e entrou de comover-se com a triste condio social das criadas, coitadas, longe das famlias e merc do primeiro emiliano4 que lhes5 beliscasse o rabiosque em voltinhas de penso. Com uma sinceridade para cada momenro, Tortuga era to sincero ao6 remordimento como o fora no acometimento. Maldita sensibilidade a que herdara pelo lado Tortuga! (J estava outra vez a mudar de sinceridade.)7 E ao pousar os olhos na vidraa procura da mosca estival que l costuma estar para nos ajudar meditao, Emiliano sentiu uma ardncia junto ao mamilo esquerdo. Chupo da gorda! Olhou8. Chamado flor da pele por beios vidos, o sangue dos Tortuga ali deixara a cor que melhor traduzia a sensualidade espalhafatosa da criada9. Cobridor de acaso, Emiliano pensou na tradio Tortuga, no tio Alonso Tortuga, que as fizera ganir por meia Galiza, e com o sorriso de quem vai pregar uma grande partida atirou10 o cigarro fora e virou-se para a gorda, que no estava espera doutra coisa.

B - A - BARBA1 Um homem, diante do espelho, pronto a arrostar com mais um dia de barba -2 logo desenxabido pelo slito inslito enquadramento: a sua prpria cara. No h filosofia matinal que resista a um descaro assim. Resiste o espelho. Primeiros socorros: deitar a lngua de fora, caretear, esfregar com energia a toalha turca na lngua. Ajuda a tirar o sarro. Fiapos na boca! O pano turco j no o que era. Quando menino3, atara dois lenis de pano turco um ao outro e a pulso descera da varanda ao ptio. Nem um fiapo lhe sobrara nas mos. Agora o que se v... No! O que se v , j agora, a cara... Vamos preferi-la a qualquer outra? Fcil, repara! No h outra... Ela a, aqui est, estanhada - mas tua! Mapa de excessos tal cara! Todos l, at o excesso de servilismo. spera ao tacto, parece a cara dum homem mas a bochecha-nalga a descair sobre a direita escorre o olho do mesmo lado. Choro! Por um pouco, cara de co de gua: olho a vazar-se, boca desdmdesgostosa, meio dente mostra na comissura ascendente. Assim ia a barba! Olhou com rancor aquela cara, tomou do pincel. Num assomo, avisou para o espelho: - Viva eu! E s pressas ensaboou a sua cara de todas as manhs.

SALGA(RI)LHADA1 (Exerccio de montagem de textos de Emlio Salgari) I - Teria um grande desgosto se o meu amigo Wan Stiller tivesse naufragado sem mim! Passados cinco minutos apareceu um homem, envolto em larga capa que escorria gua. - Gasto! - exclamou o do turbante correndo a abra-lo. - Sandokan! - ripostou o recm-chegado com fortssima acentuao estrangeira. - Volto mais aborrecido do que antes, e um milagre estar aqui. - Porqu? - Tinha j resolvido dar lindo salto do farol da Liberdade, para me ir esfacelar no cais. - Mas que estpida soluo, meu caro! Aos vinte anos e com um milho de dlares... - E cem milhes de aborrecimentos, que me fazem bocejar de manh at noite. A vida torna-se-me cada vez mais insuportvel, e acabarei por me suprimir. Uma viagem ao outro mundo no me desagrada. Talvez l me aborrea menos. - E se tentasses arranjar qualquer coisa para comer? As florestas da Venezuela tem muitos recursos. Junto de uma daquelas rvores enormes, que estendia os seus ramos sobre o rio, as guas levantaram-se bruscamente, como se um grande peixe se fosse aproximando da superfcie e se preparasse para aparecer. Pouco depois, os dois amigos viram surgir duas maxilas enormes, eriadas de longos dentes agudos, mas o resto do corpo ficou oculto debaixo de gua. Daquela boca saiu um grito lamentoso que parecia o choro de uma criana. Era o momento esperado pelo paciente e velhaco caimo: - tua sade, Sandokan! - tua! Da margem esquerda elevou-se enorme clamor: - Viva o Tigre da Malsia! II Abriu finalmente os olhos que havia cem anos tinha fechado. O aspecto da regio no mudara. As duas margens estavam cobertas de bosques densssimos, que no deixavam ver para alm do rio. Viam-se surgir, aqui e alm, numa confuso indiscritvel, grandes simarubas carregadas de flores, rvores de nozes moscadas silvestres, cedros colossais, rvores de pimenta, de algodo, de trs metros apenas de alto, com flores amarelas e cor de prpura; aufrbias cactiformes revestidas de espinhos, grupos imensos de passifloras cobertas daquelas singulares flores que contm um martelo, uma torqus e pequena coroa de espinhos; maots, espcie de contonferas, com folhas imensas cobertas duma penugem avermelhada e carregadas de longas cpsulas caneladas; baspas butyraceas, de cujas sementes se extrai uma espcie de manteiga; saponceas, de

cujas bagas e de cuja casca se obtm uma espuma densa que tem propriedades do sabo e, por fim, um caos de bambs, de lianas e de silvas ansara, tremendos espinhos que perfuram at as solas do calado de quem se atreva a afront-los. Lady Mariana apareceu na volta dum atalho, acompanhada por indgenas armados at aos dentes. Era um tubo monstruoso de quatrocentos metros de altura, construdo parte em ao e parte em vidro, provido exteriormente de uma cornija em espiral, de largura suficiente a permitir a passagem de uma carruagem transportando oito pessoas. Era redonda como os faris. - Milady! - exclamou Sandokan, indo ao seu encontro. - Procurava-o, meu herico amigo! - disse ela corando. Como ento era uso, tinha a proa altssima e carregada de dourados, com amplo castelo para tornar mais fceis as abordagens. - Sente-se - pediu Sandokan voltando-se para Mariana - e no se preocupe por enquanto. - Chego em boa altura, ao que parece. O ar do Orenoco abre o apetite. - A ceia excelente, Milady - afirmou Sandokan. - Bem sei e por isso venho procur-lo com frequncia. Linda e corajosa, pensava Sandokan. Eis uma mulher que far feliz o homem que a escolher! Enganava-se, porque quando os trs se saciaram, outros apareceram e, quando o sol despontou, Sandokan pde verificar que, do enorme lamantino s restavam ossos. - Temos de voltar fruta - lamentou-se Gasto. - a luta pela vida! - sublinhou Mariana. III - A condessa de Santafiora est aqui prisioneira? Como resposta, uma descarga que, por infelicidade, atingiu Gasto nas pernas. - A mim - rugiu Sandokan. - Salvemos a condessa! - Teremos, porm, suficiente ar para chegar ao Plo? redarguiu Gasto. - Deixa o caso comigo, Gasto - pediu Sandokan. - A colheita vai ser abundante! - volveu Gasto. - Eis o egosmo da raa humana! - filosofou Sandokan. - Em conscincia, no posso dizer que no te