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Revista de Modelagem na Educação Matemática 2010, Vol. 1, No. 1, 43-52 Práticas de consumo e Modelagem Matemática: implicações curriculares Consumption practices and Mathematical Modeling: curriculum implications Alexandrina Monteiro Universidade São Francisco – USF. Itatiba- SP. [email protected] Sonia Regina Mincov de Almeida Associação Franciscana Senhor Bom Jesus. Curitiba - PR. [email protected] Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar cenas de algumas experiências realizadas durante o desenvolvimento de uma pesquisa que refletiu sobre o papel da escola na formação do consumidor. O corpus da pesquisa foi construído a partir de entrevistas com jovens e familiares; encontros temáticos e atividades matemáticas aplicadas ao grupo de jovens voluntários. Entendemos que propostas que envolvem problemas aplicados à matemática, ou até mesmo aqueles que geram um ambiente de investigação ou de desenvolvimento de raciocínio lógico-dedutivo não promovem necessariamente ambientes educacionais críticos e transformadores. Desse modo o papel da escola deve ser o de garantir uma maior diversidade de situações que possibilitem o confronto de diferentes práticas – e é neste sentido que entendemos a Modelagem Matemática como uma possibilidade de interação entre diferentes práticas no interior da escola. Palavras-chave: Educação do consumidor; Educação Escolar; Modelagem Matemática Abstract This article aims to present and analyze scenes from some experiences performed during the development of a survey on the school's role in consumer education. The corpus of the research was based on interviews with young people and families; thematic meetings and mathematics activities applied to a group of young volunteers. We believe that some proposals that involve applied mathematics problems, or even those that generate an environment of investigation and development of logical-deductive reasoning do not necessarily promote critical and transformation educational environments. Therefore the role of school should be to ensure greater diversity of situations in order to allow the confrontation of different social practices - and it is in this sense that we understand the mathematical modeling as a possibility of interaction between different social practices at school. Keywords: Consumer education; School Education; Mathematical Modeling. 1. Introdução Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar cenas de algumas experiências realizadas durante o desenvolvimento de uma pesquisa que refletiu sobre o papel da escola na formação do consumidor. Nossa discussão se restringirá aos efeitos de verdade que o discurso escolar e não escolar provocam nos jovens ao usarem saberes matemáticos vinculados a situações de finanças e recursos financeiros. A aproximação entre as práticas de administração financeira dos jovens e da matemática escolar foram problematizadas na perspectiva das relações de familiaridade 1 existentes entre os usos das matemáticas que circulam, tanto entre diferentes práticas 1 Usamos o termo familiaridade no sentido de Wittingstein, ou seja, familiaridade é uma relação de proximidade mas não de equivalência. Wittingstein apresenta como exemplo a própria relação de família, em que um filho pode ter o temperamento do pai, os olhos da mãe, mas, não é nem um nem outro.

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Revista de Modelagem na Educação Matemática 2010, Vol. 1, No. 1, 43-52

Práticas de consumo e Modelagem Matemática: implicações curriculares

Consumption practices and Mathematical Modeling: curriculum implications

Alexandrina Monteiro

Universidade São Francisco – USF. Itatiba- SP. [email protected]

Sonia Regina Mincov de Almeida

Associação Franciscana Senhor Bom Jesus. Curitiba - PR. [email protected]

Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar cenas de algumas experiências realizadas durante o desenvolvimento de uma pesquisa que refletiu sobre o papel da escola na formação do consumidor. O corpus da pesquisa foi construído a partir de entrevistas com jovens e familiares; encontros temáticos e atividades matemáticas aplicadas ao grupo de jovens voluntários. Entendemos que propostas que envolvem problemas aplicados à matemática, ou até mesmo aqueles que geram um ambiente de investigação ou de desenvolvimento de raciocínio lógico-dedutivo não promovem necessariamente ambientes educacionais críticos e transformadores. Desse modo o papel da escola deve ser o de garantir uma maior diversidade de situações que possibilitem o confronto de diferentes práticas – e é neste sentido que entendemos a Modelagem Matemática como uma possibilidade de interação entre diferentes práticas no interior da escola. Palavras-chave: Educação do consumidor; Educação Escolar; Modelagem Matemática Abstract This article aims to present and analyze scenes from some experiences performed during the development of a survey on the school's role in consumer education. The corpus of the research was based on interviews with young people and families; thematic meetings and mathematics activities applied to a group of young volunteers. We believe that some proposals that involve applied mathematics problems, or even those that generate an environment of investigation and development of logical-deductive reasoning do not necessarily promote critical and transformation educational environments. Therefore the role of school should be to ensure greater diversity of situations in order to allow the confrontation of different social practices - and it is in this sense that we understand the mathematical modeling as a possibility of interaction between different social practices at school. Keywords: Consumer education; School Education; Mathematical Modeling.

1. Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar cenas de algumas experiências

realizadas durante o desenvolvimento de uma pesquisa que refletiu sobre o papel da escola na formação do consumidor. Nossa discussão se restringirá aos efeitos de verdade que o discurso escolar e não escolar provocam nos jovens ao usarem saberes matemáticos vinculados a situações de finanças e recursos financeiros.

A aproximação entre as práticas de administração financeira dos jovens e da matemática escolar foram problematizadas na perspectiva das relações de familiaridade1 existentes entre os usos das matemáticas que circulam, tanto entre diferentes práticas

1 Usamos o termo familiaridade no sentido de Wittingstein, ou seja, familiaridade é uma relação de proximidade mas não de equivalência. Wittingstein apresenta como exemplo a própria relação de família, em que um filho pode ter o temperamento do pai, os olhos da mãe, mas, não é nem um nem outro.

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escolares quanto entre práticas não escolares que envolvem situações financeiras das quais os jovens participam, especialmente, àquelas que envolvem a questão do consumo e administração financeira por meio de atividades organizadas numa perspectiva da Etno e da Modelagem Matemática.

A busca por compreender essas familiaridades parte do reconhecimento de que o saber matemático não está aí, pronto para ser descoberto, mas, se constrói a partir de diferentes práticas que tecem as atividades escolares e não escolares nas quais os jovens participam. Essa perspectiva – no campo da educação matemática – vem sendo discutida no campo da Etnomatemática aqui entendida como um campo para o qual os saberes que circulam em diferentes práticas são compreendidos, valorizados e legitimados por caminhos próprios dessas práticas.

O corpus da pesquisa foi construído a partir de entrevistas com jovens e familiares; encontros temáticos com um grupo de jovens voluntários; atividades matemáticas presentes em alguns dos encontros temáticos foram organizadas a partir das entrevistas e atividades reflexivas – também aplicadas ao grupo de jovens voluntários. A idade dos jovens variou de entre 13 e 16 anos, foram entrevistados alunos de escola pública e particular. As cenas aqui discutidas referem-se a situações e atividades desenvolvidas com um grupo de jovens que frequentam uma escola particular. Esses jovens fazem parte da atual classe média-alta.

O primeiro encontro temático abordou a seguinte questão: “O que é ser consumista?” Lemos o texto: “Consumista eu?2” e promovemos discussões sobre sentir-se ou não consumistas diante das práticas de compras, ou seja, por que compro coisas? Eu compro porque preciso (necessidade) ou porque preciso (desejo)?

No segundo encontro demos continuidade às idéias sobre suas necessidades de consumo. Para isso, lemos um poema de Cecília Meireles intitulado “Ou isto ou aquilo3“ e, após discussões, montamos painéis com recortes de folders de mercadorias separando em duas opções, o “precisar” e o “querer”, isto é, refletir sobre: “O que eu compro porque eu preciso e aquilo que eu compro porque eu quero”. “O que nos leva a desejar comprar isso ou aquilo?”

No terceiro encontro, propusemos uma atividade com características escolares, ou seja, com base em uma quantia fictícia, propusemos aos jovens que fizessem um planejamento organizado numa planilha. O objetivo era que a organização da planilha lhes permitissem refletir sobre a administração financeira e, a partir dessa reflexão, abordar temas presentes no currículo da matemática escolar.

2. Sobre Matemáticas e Escolas

No contexto da pesquisa pretendíamos entender como os jovens em seu cotidiano

lidavam com questões relacionadas ao consumo, como tomavam decisões sobre suas compras, se eram atentos e se calculavam descontos ou juros, como definiam o que era mais vantajoso comprar; como significavam os problemas presentes em situações de consumo em contextos não-escolares como em contextos escolares.

Entendemos que para compreender essas práticas presentes em contextos escolares e não-escolares, faz-se necessário discutir o que compreendemos por matemática. Segundo Ernest (1994, p.1), “O paradigma euclidiano da matemática vista como um corpo de conhecimento objetivo, absoluto, irretificável e rigidamente hierárquico está cada vez mais sendo posto em questão”. O autor afirma que a filosofia da matemática passa por uma

2 O texto “Consumista eu?” está disponível no site: <www.educacional.com.br/falecom/psicologa_bd.asp?codtxto=25> Acesso em: 10/03/08. 3 MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

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revolução da qual emerge uma nova tradição denominada de quase-empirista ou pós-moderna, que ele descreve como:

Esta nova tradição é primeiramente naturalista, preocupada em descrever a

natureza da matemática e das práticas - tanto cotidianas quanto históricas - dos matemáticos. Ela é quase empirista e falibilista em sua epistemologia, deslocando, desse modo, a matemática de seu lugar em que era vista como a pedra fundamental do absolutismo. Vários filósofos e matemáticos podem ser identificados como contribuindo para a constituição dessa nova tradição, dentre os quais se incluem Wittgenstein, Lakatos, Putnam, Wang, Davis e Hersh, Kitcher, Tymoczko. Esses autores têm proposto que a tarefa da filosofia da matemática é a de contribuir mais amplamente com a reflexão sobre a matemática, nela incluindo as práticas dos matemáticos, a história e as aplicações da matemática, o lugar da matemática na cultura humana, bem como, talvez, temas relativos a valores e educação – em resumo – descrevendo a face humana da matemática. 4 (p.1).

Segundo esse autor, há uma preocupação entre os matemáticos, filósofos, educadores e

pensadores em modificar o que, no passado, se pensava e se fazia no campo denominado de Matemática. Muitas críticas surgem em decorrência de seu absolutismo, de sua maneira impositiva frente aos conhecimentos.

Frente a esses desafios, pesquisadores acadêmicos têm se preocupado em discutir a sua “dimensão social e externa, incluindo sua história, suas aplicações e usos” (ERNEST, 1994, p.3) refletindo sobre a matemática em seus múltiplos aspectos: sociais, culturais, na política, na filosofia, na linguagem, bem como as “categorias sociológicas como gênero, raça e classe” (ibidem).

D’Ambrósio, em um de seus livros5, também discute os valores presentes no ensino da Matemática, afirmando que nenhuma ciência se desenvolveu e se universalizou tanto quanto ela e, em decorrência disso, a Matemática vem sendo objeto de estudos intensos em congressos e conferências internacionais.

Nesses debates, muito se tem discutido sobre os efeitos negativos que a Matemática pode causar em países com condições sócio-culturais distintas chegando, inclusive, a questionar o porquê de se ensinar Matemática (D’Ambrósio, 1998).

Nesse aspecto, D’Ambrósio (1998) elabora alguns pontos de reflexão sobre o ensino da Matemática. O primeiro ponto de reflexão é a análise do por que da universalidade e intensidade do ensino de Matemática nas escolas do mundo inteiro. O autor analisa as respostas mais freqüente como: devido à sua construção lógica e formal; pela sua universalidade; pela relação entre o seu ensino e o desenvolvimento do raciocínio por fazer parte de nossas raízes culturais e pela sua utilidade. Afirma, igualmente, que apesar desses aspectos serem relevantes, há outras ciências, atividades e saberes que exercem esses mesmos papéis e até com maior intensidade e saber e que “Efetivamente, a matemática tem uma situação privilegiada” (D’AMBRÓSIO, 1998, p. 13).

Por meio da prática pedagógica que envolve a matemática escolar, temos percebido em nosso contato com professores e com nossa própria prática que tem crescido falta de interesse por parte dos alunos do ensino fundamental II e médio em relação ao ensino da matemática escolar. Essa falta de interesse pode acontecer em decorrência de diversos fatores, dentre os quais a maneira como a matemática é ensinada, já que não há uma explícita relação entre os conteúdos temáticos e a realidade dos alunos, ocasionando a total falta de interesse,

4 ERNEST, Paul (Ed.). Mathematics, Education and Philosophy: an international perspective. London: The Falmer Press; 1994c. General Introduction and Introductions to the Parts I, II and III (p. 1) 5 D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Arte ou técnica de explicar e conhecer. São Paulo: Editora Ática, 1998.

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de entendimento do por que aprender certos conceitos presentes na matemática escolar. Pode-se também, salientar o aspecto mecânico, inevitavelmente associado ao cálculo.

Outro aspecto que podemos ressaltar refere-se a organização do currículo escolar. O excesso de conteúdos aplicáveis e justificados somente no interior da própria escola, focados em propostas rotineiras e maçantes, possibilitou o discurso da “matemática como disciplina chata”; “a matemática como a disciplina que não serve para nada” e as inúmeras perguntas do tipo: por que temos que aprender isso ou aquilo? Para que serve isso? Entre outras.

O que queremos aqui ressaltar é que vem sendo construído um discurso sobre a importância ou a legitimidade ou não de se aprender a matemática na escola. Cada vez mais a justificativa por se ensinar e aprender a matemática escolar está associada a garantir a permanência das pessoas no próprio ambiente escolar, ou seja, aprendermos isso ou aquilo por causa do conteúdo do ano seguinte ou por causa do vestibular.

Nesse sentido, não basta buscarmos novas metodologias ou apenas formularmos problemas que aparentemente envolvem situações “cotidianas” a situação requer que passemos a questionar o próprio papel da escolar e o currículo escolar. Propostas que envolvem problemas aplicados à matemática, ou até mesmo aqueles que geram um ambiente de questionamento e de investigação ou de desenvolvimento de raciocínio lógico-dedutivo – com exercícios desafiantes, apesar da motivação que podem gerar – afinal se colocam como desafios e isso sempre parece ser interessante – está longe de enfrentar o problema da educação em especial da educação matemática, o máximo que faz é mascarar ou minimizar por algum tempo os questionamentos, mas, não necessariamente promovem a desconstrução dos discursos sobre a falta de importância em se aprender a matemática escolar. É nesse sentido que entendemos as atuais discussões que ocorrem no interior de algumas propostas de Etno e Modelagem Matemática.

Ao pensarmos numa proposta de MM faz-se necessário em outro modelo de � escola e o currículo. Para nós esses outros modelos estariam vinculados especialmente numa reorganização da escola no que se refere ao tempo e espaço e, consequentemente, na organização, ou melhor, na re-organização ou na dês-organização do atual currículo escolar.

3. Aí não precisa fazer conta. “[...] Aí você não perde tempo”

Durante a pesquisa que realizamos, nós organizamos três encontros temáticos. Nos dois primeiros, foram discutidos textos e questões relacionados as atitudes dos jovens, ou seja, eram textos que abordavam os valores e atitudes que tinham diante de seus interesses por comprar alguma coisa.

Ao longo dessas atividades, a participação era intensa, todos tinham algo para dizer sobre o que e porque compram ou deixam de comprar, sobre sentir-se ou não uma consumidora ou um consumidor crítico.

Os jovens mostraram-se entusiasmados com a discussão de suas práticas de consumo, perceberam-se diante de um desafio reflexivo, ou seja, estavam diante de uma experiência – no sentido indicado por Larrosa, no qual eles eram atravessados pela necessidade de refletir sobre quem eram e sobre o que faziam com e do dinheiro ao qual tinham acesso. Eles se viram diante de uma situação em que era necessário pensar sobre porque comprar ou não. Muitos apenas compravam e não se perguntavam sobre porque compramos.

Comprar não fazia parte de uma ação reflexiva, planejada e intencional – era apenas uma ação compulsiva – “Eu compro porque acho legal ou porque vejo e tenho o dinheiro”. Quanto as práticas usadas nas atividades de compra, alguns demonstraram, também, pelas suas falas, que as práticas matemáticas escolarizadas eram desnecessárias por exemplo: “[...] É mais fácil comprar o de 9,80 , você dá 10 e recebe 20 centavos de troco. Aí não precisa fazer conta. “[...] Aí você não perde tempo”. “Dá tempo de ir a outro lugar e gastar o 20

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centavos”. “[...] É complicado fazer a conta no dia-a-dia, então nem levo em conta a promoção”.

Percebemos nessa fala que o cálculo mental, as estratégias de conta, não estão relacionados a prática escolar. À prática escolar – alunos, professores e a sociedade de uma maneira geral - relacionam o cálculo escrito. A escrita mostra-se como a pedra fundamental da escolarização, tal valor é construído desde o início do processo de alfabetização e é reforçado quando as avaliações são sempre escritas – especialmente as avaliações matemáticas.

Além disso, comprar e ter dinheiro ou ter dinheiro e gastar (comprar) são relações que estabelecem certa equivalência. O consumo indiscriminado – tenho dinheiro nem penso na promoção – eu gasto – nas entrevistas evidenciava que para alguns jovens, ter o dinheiro significava ter que gastar. “Se tenho dinheiro então vou ao shopping e gasto”.

Mas, voltando ao foco desse artigo, a não relação entre o saber escolar e as práticas que os jovens utilizam na hora da compra não está vinculada apenas ao fato da matemática escolar ser uma prática centrada fortemente na escrita, para nós, essa falta de associação ocorre também pelo fato da prática escolar e as prática usadas pelos jovens ao fazer compras são práticas diferentes e desse modo acessam matemáticas também entendida por nós diferentes,

Para muitos autores como D´Ambrósio (1996, 1998, 2005, 2007), Mendes(2005,2007,2009), Monteiro(2004, 2005, 2007,2009), Vilela (2007), Miguel (2004), o sentido do saber se constitui nos usos que dele fazemos em diferentes práticas sociais. Nessa perspectiva os saberes não possuem uma essência eles são plurais e logo não existe a matemática, mas, matemáticas que possuem familiaridade entre si, mas, são distintas. Portanto, o estranhamento faz sentido já que no contexto escolar as relações são estabelecidas por uma perspectiva de verdade única, o que leva o jovem a não entender como matemática as práticas que utilizam em suas atividades de compra. Pensando na matemática escolar, de fato não são.

Em outros termos, as diferentes práticas sociais permitem a circulação de conhecimentos processados no interior de diferentes grupos acessando diversos saberes que vão constituindo a trama que emerge dos usos e sentidos atribuídos pelo grupo. Para exemplificar vamos citar uma situação vivenciada por uma das autoras6 no contato com grupo de agricultores. Para o grupo de agricultores com quem ela trabalhava o preço dos produtos agrícolas era utilizado por eles como referencial monetário, ou seja, o financiamento agrícola era analisado pelo a partir da moeda que ora era preço da saca de milho, ora a o da arroba do algodão, ou da tonelada de mandioca e não “x” reais. O financiamento, por exemplo, era de três toneladas de mandioca, ou cinco sacas de milho, assim como o pagamento não era pontuado não em valores como: cem reais, mas como meia saca de milho.

Para Miguel (2004), em determinados momentos e contextos, certas práticas sociais são mais ou menos valorizadas, sendo que todas as práticas sociais produzem conhecimentos, dão novos significados aos saberes das outras práticas e podem ou não compartilhar o mesmo contexto. Segundo esse autor cabe à escola promover atividades capazes de interagir professor/aluno e aluno/aluno com as diferentes práticas sociais, que participam da produção, apropriação e transformação histórica do que é ensinado na matemática escolar. Prática social é aqui entendida como:

[...] um conjunto de atividades ou ações físico-efetivo-intelectuais que se

caracterizam por ser: (1) conscientemente orientadas por certas finalidades; (2) espácio-temporalmente configuradas; (3) realizadas sobre o mundo natural e/ou

6 Situação vivenciada pela pesquisadora Sonia Regina Mincov de Almeida – quando atuava como educadora numa região do interior do Paraná.

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cultural por grupos sociais cujos membros estabelecem entre si relações interpessoais que se caracterizam por serem relações institucionais de trabalho organizado; (4) produtoras de conhecimento, saberes, tecnologias, discursos, artefatos culturais ou, em uma palavra, de um conjunto de formas simbólicas (MIGUEL, 2003, p. 27-28, apud MIGUEL 2004, p.165).

Assim, os jovens têm a sua prática social de consumo valorizada no interior do grupo

social do qual ele é participante. Isso não quer dizer que suas práticas sociais não produzem conhecimentos ou saberes apropriados, pelo contrário, na pesquisa que realizamos ficou evidente a presença de saberes e práticas distintas do saber escolar em sua prática de consumo, nas situações de decisão sobre a escolha, bem como a maneira que determina como e onde consumir. Mas, também latente os diferentes sentidos atribuídos as atividades denominadas pela escola como matemática – mas, muitas vezes não reconhecida como matemática pelos jovens no contexto de uso.

Ademais, quando usada no contexto ou com semelhanças ao modelo escolar – rapidamente as atividades eram reconhecidas e um movimento quanto a forma de tratá-las também eram imediatamente elaborado conforme discutiremos a seguir. 4. Vale nota? (...) É chato, resolver

Durante os encontros temáticos, os alunos mostraram-se pré-dispostos a discorrer

sobre suas escolhas e suas práticas bem como para escolher opções e práticas que mais lhe convinham conforme a situação de compra que relatavam. Em suas discussões e exemplos eles apresentavam outras práticas e outros sentidos para o que denominamos de matemática no interior da escola.

Assim, quando apresentamos uma atividade organizada de forma mais aproximada do modelo escolar, a reação foi imediata. A atividade foi proposta de forma diferente do que normalmente faziam em sala de aula e estava diretamente relacionada ao tema do consumo que estávamos discutindo. O objetivo era fazer um planejamento do uso futuro do dinheiro que recebiam. Mas, o fato da atividade ser apresentada de forma escrita com a proposta de organização de uma planilha, imediatamente levou o grupo a perguntar: “Vale nota?”.

O envolvimento e as diferentes formas de participação dos jovens mudaram quando o texto apresentado aproximava-se de uma atividade de matemática escolar e neste caso a outra pedra fundamental da escola surge: a questão da avaliação.

A avaliação quando apresentada na pergunta “Vale nota?”, tem uma dupla conotação, por um lado remete o aluno a situação de ser rotulado, classificado e mensurado e por outro questiona o professor se ele (aluno) deve ou não envolver-se ou dedicar-se à atividade – se estiver valendo nota, seu envolvimento deve ser outro.

No entanto, as atividades anteriores o envolvimento foi total sem que estivesse vinculado a qualquer mecanismo formal de nota – é claro que consideramos o fato dos alunos estarem envolvendo-se com a professora, numa atividade de interesse dela afinal todas as nossas relações são permeadas por relações de poder e sempre estamos atentos sobre quem e porque falamos ou respondemos isso ou aquilo. Mas, a questão “Vale nota?” só surge com a semelhança entre as propostas: fazer uma planilha, simular uma situação e resolver um problema de matemática – em geral fictício, sem sentido, algo que os jovens olham com total indiferença. Não seria indiferente a esses jovens fazer uma planilha de custos considerando-se o valor que possuem para gastar e ainda a responsabilidade em ter ou não dinheiro o mês todo já que recebem esse dinheiro sem precisar realizar muito esforço? A semelhança entre a razão de se fazer a planilha e de se resolver um problema escolar é grande!

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Isso não significa que os jovens não tenham feito e nem mesmo que não tenham participado da atividade, pelo contrário, eles gostaram, mas, seu lugar diante da atividade era outro, era o de aluno e não mais do jovem que vai as compras.

Ao longo da atividade os jovens passaram a responder as questões, apesar de interessados e envolvidos, dentro do jogo das práticas escolares – imediatamente pegaram o papel, lápis, enfim, passaram a organizar as atividades dentro dos procedimentos escolarizados. As operações matemáticas eram escritas e se pretendia responder da forma com que acreditavam que o que o professor queria ver e ouvir. Diante disso, Miguel (2004:166) afirma que “se algo é, ao mesmo tempo, constituído em e constituinte de uma prática social, então, esse algo se identifica com a própria prática social que o constitui e que a constitui”.

Uma das questões da atividade envolvia o cálculo de porcentagem sobre o lucro na venda de uma bicicleta. A resposta de uma aluna ao colega foi: “Você deve dividir o 498,50 por 100 e o resultado multiplicar por 8”. Essa resposta foi automática. Isso nos mostra como essa aluna é aparentemente condicionada a responder as questões. Dizer que se deve dividir por 100 e multiplicar o valor por 8 é dizer o que, nos bancos escolares, os alunos ouvem dos professores, quando estes últimos explicam o procedimento para calcular a porcentagem. Porém nas práticas não-escolares de compra e venda – tanto do consumidor quanto do vendedor trabalham de outra forma - os sentidos e motivos para o uso desse cálculo são outros7.

Diante disso ficamos com o desafio de buscar caminhos que nos permita articular, no ambiente escolar, diferentes sentidos e saberes. Segundo Monteiro (2007), a articular saberes escolares e não-escolares, nos remete aos modos de organizar o espaço-tempo escolar. Novas cartografias curriculares precisam ser traçadas para que, na escola, alunos e professores possam ser instigados a buscar outros modos de pensar, que possam integrar, divergir, mas, certamente, transcender aos desenhos curriculares atuais, pois:

Possibilitar a inclusão de outros procedimentos e práticas matemáticas no

contexto escolar pode propiciar aos sujeitos – professores e alunos – a possibilidade de optar de fazer escolhas conscientes e críticas sobre qual matemática usar diante das situações que lhe são apresentadas além de desconstruir a ideia de que existe uma única e verdadeira matemática. (MONTEIRO et alli, apud Mendes e Grando (org), 2007, p. 59).

Dentro dessa discussão sobre as possibilidades de articulação entre saberes escolares e

não-escolares, Vilela (2006), aborda a compreensão da Matemática como prática social e os diferentes significados atribuídos a matemática no contexto escolar e da rua. Ela entende que a matemática presente em documentos oficiais impõe à escola “um único conhecimento, de verdades absolutas, que tem como conseqüência a desvinculação da realidade e de saberes locais, gerando a não articulação e incompreensão do conhecimento exigido” (VILELA, 2007, p.2).

A desvinculação da matemática escolar com a matemática não escolarizada ficou evidente quando entrevistamos um dos nossos alunos: o Antonio8. Esse aluno afirmou que sua aprendizagem em matemática era “Mais ou menos, Não, não muito...não é aquilo” e que o tema de estudo de sala de aula não tinha nada a ver com o seu dia-a-dia: “[...] Elas [a matemática escolar e a não-escolar] são coisas diferentes. Só quando estava na 3ª e 4ª série é que eu acho que as coisas eram mais parecidas. Agora, por exemplo, regra de três, eu só uso na escola”.

7 Uma discussão sobre isso foi feita na dissertação de Santos (MONTEIRO, et al. Apud MENDES e GRANDO (org.), 2007, p. 57-59). 8 Nome fictício autorizado pelo jovem e sua família.

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Para ele é forte a desvinculação entre os saberes aprendidos em sala e o uso deles fora dela – ou seja ele revela que a falta de sentido desse saber fora do contexto escolar, afirmando: “não acho que a matemática da escola e o que faço fora da escola sejam as mesmas coisas. Elas são coisas diferentes”. Para Antonio, na escola há um tipo de cálculo que não se pode aplicar na sua prática não escolarizada.

5. Considerações Finais

As discussões aqui apresentadas nos indicam a necessidade de rediscutirmos e

problematizarmos alguns chavões presentes no interior dos discursos da Educação Matemática como: “precisamos trazer o cotidiano para a sala de aula” ou “precisamos trabalhar com problemas do cotidiano para elaborarmos uma aprendizagem mais significativa”, entre outros.

Entendemos que essas “verdades” foram construídas a partir de uma perspectiva de que existe uma matemática única e verdadeira que garantiria o uso desses conceitos em qualquer situação. Assim, a “aplicação correta” da matemática em diferentes situações dependeria do “quanto” as pessoas conhecem ou não dessa matemática – neste caso seus conceitos e propriedades.

Numa outra perspectiva, ou seja, considerando-se que os saberes e “verdades” são significadas a partir dos usos que fazemos dos saberes nas diferentes práticas que participamos conforme indicam Vilela (2007), Miguel (2005), Monteiro e Mendes (2009) Bello(2004), entendemos que não existe essa essência e, portanto, não existe essa verdade única e universal. Nesse sentido, conforme indicam algumas das situações que aqui apresentamos, nosso objetivo pedagógico deslocou-se da crença de que trabalhar com problemas e/ou atividades matemáticas focando os saberes conceituais e suas propriedades garantiram aos estudantes o uso da matemática em variadas situações para a crença de que se os sentidos e significados são construídos nos usos que fazemos de saberes em diferentes práticas sociais, o papel da escola deve ser o de garantir uma maior diversidade de situações que possibilitem o confronto de diferentes práticas – e neste sentido entendemos a Modelagem Matemática como uma possibilidade de interação entre diferentes práticas no interior da escola.

Em outros termos, deslocamos nossas tensões e preocupações com questões metodológicas ampliando nosso foco para questões curriculares que busquem re-elaborar noções de espaço-tempo alem da própria organização de conteúdos no interior da escola ampliando a compreensão de Modelagem Matemática como um ambiente de aprendizagem favorável a interação de diferentes práticas no contexto escolar.

Nesse sentido, buscamos uma re-invenção da escola no sentido proposto por Candau (2000) que argumenta a necessidade da escola abrir-se e aprender com as experiências da educação não-formal novos caminhos novas formas de organização institucional. Nessa mesma direção Gallo (2007:213) que argumenta que precisamos buscar brechas dentro do próprio sistema para que seja possível iniciar um movimento para a organização de práticas pedagógicas libertárias (anarquistas) no Brasil de hoje. Segundo esse autor, essas práticas só podem se concretizar se escaparem do controle do estado, assim, é necessário gerar linhas de fuga singulares mantendo-se a margem da educação instituída, não sucumbindo à autorização do Estado ou ao seu reconhecimento, ou ainda, desenvolver brechas no interior do próprio sistema instituído a partir de esforços de resistência, de afrontamento cotidiano, investindo numa prática pedagógica singular apesar do controle.

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6. Referências BELLO, Samuel E. L. Identidade Cultural ou Culturas: contribuições ao campo teórico da Etnomatemática. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ETNOMATEMÁTICA, 2., 2004, Natal. Anais... Natal: EDUFRN, 2004. p. 153-158. ______. Etnomatemática: tendências e possibilidades de pesquisa. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 11., 2007, Curitiba. Anais... Curitiba: UFPR, 2007. p. 1-6. CANDAU, Vera Maria. Reinventar a escola. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. COSTA, Marisa Vorraber. Poder discurso e política cultural: contribuições dos Estudos Culturais ao campo do currículo. IN: LOPES, Alice Cassimiro. MACEDO, Elizabeth (org). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2005. p. 133 – 147. D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Educação Matemática: da teoria à prática. 9. ed. Campinas, SP: Papirus, 1996. ______. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. ______. Etnomatemática − elo entre as tradições e a modernidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. ______. Etnomatemática – Do saber Matemático ao fazer pedagógico o desafio da Educação. Disponível em: <http://vello.sites.uol.com.br/refl. > Acesso em: 12 de novembro de 2007. ERNEST, Paul (Ed.). Mathematics, Education and Philosophy: an international perspective. London: The Falmer Press. 1994c. General Introduction and Introductions to the Parts I, II and III, p. 1. GALLO, Silvio. Pedagogia Libertaria: Anarquistas, Anarquismo e Educação. São Paulo: Imaginário, 2007. GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Record, 1997.

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Práticas de consumo e Modelagem Matemática: implicações curriculares

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