Alexis Bittencourt a Guitarra Trio Inspirada Em Johnny Alf e Joao Donato

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e João Donato: Uma abordagem do estilo de interpretação de Johnny Alf e JoãoDonato ao piano, direcionada à performance da Guitarra em contexto instrumental trio (guitarra, contra-baixo e bateria/percussão) Alexis da Silveira Bittencourt Campinas 2006

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Transcript of Alexis Bittencourt a Guitarra Trio Inspirada Em Johnny Alf e Joao Donato

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

    A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e Joo Donato:

    Uma abordagem do estilo de interpretao de Johnny Alf e JooDonato ao piano, direcionada performance da Guitarra em contexto instrumental trio (guitarra, contra-baixo e bateria/percusso)

    Alexis da Silveira Bittencourt

    Campinas 2006

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    Alexis da Silveira Bittencourt

    A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e Joo Donato:

    Uma abordagem do estilo de interpretao de Johnny Alf e JooDonato ao piano, direcionada performance da Guitarra em contexto instrumental trio (guitarra, contra-baixo e bateria/percusso)

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Artes do instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Artes. Orientador: Prof. Dr. Marcos Siqueira Cavalcante

    CAMPINAS 2006

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Bibliotecrio: Liliane Forner CRB-8 / 6244

    Ttulo em ingls: The guitar trio inspired by the music of Johnny Alf & Joo Donato Palavras-chave em ingls (Keywords): Electric guitar Popular music Instrumental music Johnny Alf Joo Donato Bossa Nova Titulao: Mestrado em Msica Banca examinadora: Prof. Dr. Marcos Siqueira Cavalcante

    Prof. Dr. Gicomo Bartoloni Prof. Dr. Claudinei Carrasco Prof. Dr. Fernando Lanas Prof. Dr. Ricardo Goldemberg Data da defesa: 23 de Fevereiro de 2006

    Bittencourt, Alexis da Silveira. B548g A guitarra trio inspirada em Johnny Alf e Joo Donato. /

    Alxis da Silveira Bitttencourt. Campinas, SP: [s.n.], 2006. Orientador: Marcos Siqueira Cavalcante. Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. 1. Guitarra. 2. Msica popular. 3. Msica instrumental. 4. Johnny Alf. 5. Joo Donato. 6. Bossa Nova. I. Cavalcante, Marcos Siqueira. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

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    A Johnny Alf

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    Agradecimentos

    Primeiramente a Johnny Alf, pela sua arte e seu

    esprito, mas sobretudo, pela ddiva que representou

    minha trajetria musical. A Marcos Cavalcante, pela

    confiana e estmulo. A meus pais por...(tudo). A

    Marianne Karin Biben Frederick, pelo amparo,

    amizade e assistncia. A CAPES e a Profa. Dra.

    Denise Lopes Garcia, pelo incentivo. A Nlson

    Valncia, pelo apoio e retaguarda a Johnny. A meus

    amigos: Francisco Javier de Hoyos, Ramon Montagner

    e Pedro Delia, pelas consultas, especialmente Jos

    Alexandre Carvalho, pelo companheirismo e fora. A

    Josu Cintra, pela pacincia. A secretaria da CPG:

    Vivien Ruiz, Joice Jane, Magali Cordeiro e Tabatha de

    Souza. A Rafael dos Santos e Ricardo Goldemberg,

    pelas dicas e diretrizes precisas. A meus alunos, por

    compartilharem um pouco desta trajetria e

    experimentarem os conceitos deste trabalho. A Ana

    Cristina Patolina Pugliesi, pela ajuda, compreenso

    e carinho. A meu filhinho Grigor (Grigolito), que

    ainda nem sabe o que tudo isso e me confortava,

    simplesmente por sua presena trazer o esprito

    superior e mgico da criana,.

    E, finalmente, a quem inventou o chocolate

    (principalmente Toblerone)!

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    Verificando o sentido de algumas palavras, eu observei..... No final da questo, uma feliz concluso.... s olhar, depois sorrir, depois gostar... (Johnny Alf)

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    RESUMO:

    Este trabalho parte da tese de que o estilo interpretativo ao piano, em contexto instrumental

    Trio (piano, contra-baixo e seo rtmica), de Johnny Alf e Joo Donato, constitui uma

    espcie de elo norteador interpretao da msica popular brasileira a partir da segunda

    metade do sculo passado, com razes no samba e forte influncia jazzista. Tem, portanto, o

    objetivo de definir esse elo e demonstrar como esse pode ser uma valiosa referncia ao

    guitarrista, servindo de fonte para este reavaliar sua prtica interpretativa da msica popular

    brasileira.

    Palavras-Chave: Guitarra; Msica popular; Msica instrumental; Johnny Alf; Joo

    Donato; Bossa Nova

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    ABSTRACT

    This research is based on the thesis, that the piano playing style, of Johnny Alf and

    Joo Donato, in the piano instrumental trio performance (with double-bass and drums

    and/or percussion), can be defined as a link, that could be perceived as a guide of how to

    play the Brazilian Popular Music from the second half of the last century to our days. This

    kind of music finds its roots in samba, however is strongly affected by the jazz influences.

    Our goal is to define the link among Alf and Donato, and demonstrate how it can provide

    valuable references to the guitarist, within the guitar trio situation, as a source for a

    reevaluation of his directions on playing the Brazilian Popular Music.

    Keywords: Electric guitar; Popular music; Instrumental music; Johnny Alf ; Joo Donato; Bossa Nova

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    LISTA de EXEMPLOS

    Captulo 1: Johnny Alf

    Exemplo 1: Like Someone in Love.. 21

    Exemplo 2: Trecho de Rapaz de bem (CD Eu & a Bossa 1999)............................. 26

    Exemplo 3: Trecho de Rapaz de bem 1961............................................................. 27

    Exemplo 4: Trecho de Quem sou eu? ....................................................................... 30

    Exemplo 5: Introduo de Iluso toa ...................................................................... 34

    Exemplo 6: Partitura de E A? ................................................................................... 35

    Exemplo 7: Partitura de Cu de estrelas ................................................................... 37

    Exemplo 8: Harmonizao em Rapaz de bem (CD Eu & a Bossa 1999) .............. 53

    Captulo 2: Joo Donato

    Exemplo 9: Introduo de Muito vontade ............................................................... 81

    Exemplo 10: Introduo de Sambou...Sambou. ....................................................... 82

    Exemplo 11: Introduo de Jodel (Caf com po).................................................... 83

    Exemplo 12: Introduo de Minha Saudade ............................................................. 84

    Exemplo 13: Introduo de Olhou pra mim ............................................................. 84

    Exemplo 14: Introduo de S dano samba ............................................................ 84

    Exemplo 15: Muito vontade parte A .................................................................. 92

    Exemplo 16: Improviso de Muito vontade ............................................................ 93

    Exemplo 17: Improviso de Tim Dom Dom ............................................................. 95

    Exemplo 18: Improviso de Sambou...sambou .......................................................... 97

    Exemplo 19: Improviso de Jodel (Caf com po) .................................................... 100

    Exemplo 20: Improviso de Minha saudade .............................................................. 102

    Exemplo 21: Improviso de Olhou pra mim ............................................................. 105

    Exemplo 22: Tema teimoso ...................................................................................... 107

    Exemplo 23: Improviso de Rio ............................................................................... 110

    Exemplo 24: S Dano Samba parte A ................................................................. 112

    Exemplo 25: Improviso de S dano samba ............................................................ 113

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    Captulo 3: O Elo A Nova Bossa

    Exemplo 26: Acentuaes nas semicolcheias Baio ............................................. 130

    Exemplo 27: Acentuaes nas semicolcheias Maxixe .......................................... 131

    Captulo 4: A Guitarra trio inspirada em Johnny Alf e Joo Donato Exemplo 28: Rapaz de bem p/ guitarra trio 1 ............................................................ 161

    Exemplo 29: Rapaz de bem p/ guitarra trio 2 ............................................................ 162

    Exemplo 30: Rapaz de bem escrita para jazz ........................................................... 164

    Exemplo 31: Wave p/ guitarra trio estilo Johnny Alf ............................................ 166

    Exemplo 32: Rio a partir de uma clula do Grupo II ............................................... 175

    Exemplo 33: Rio a partir de uma clula do Grupo III .............................................. 176

    Exemplo 34: S dano samba na cabea do compasso ...................................... 177

    Exemplo 35: S dano samba cabea do compasso antecipada ......................... 177

    Exemplo 36: Mais um som ....................................................................................... 179

    Exemplo 37: Mais um som a partir de uma clula do Grupo II ............................... 180

    Exemplo 38: Mais um som p/ guitarra trio c/ clula do Grupo II .............................. 181

    Exemplo 39: Mais um som p/ guitarra trio c/ clula do Grupo III ............................. 183

    Concluso: Exemplo 40: Wave p/ guitarra trio A Nova Bossa ................................................. 187

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    LISTA de TABELAS

    Tabela 1: Grupo I Bossa Bsica............................................................................ 89 Tabela 2: Grupo II - Clulas de samba na cabea do tempo ............................... 89

    Tabela 3: Grupo III Clulas com a cabea do tempo antecipada .................... 90

  • xiv

    EXEMPLOS em UDIO MP3:

    Captulo 1: Johnny Alf (pasta Johnny Alf)

    Rapaz de bem 1955 (sub pasta vrias Rapaz de bem)

    Rapaz de bem CD Eu & a Bossa 1999 (sub pasta vrias Rapaz de bem)

    Rapaz de bem 1961. (sub pasta vrias Rapaz de bem)

    Escuta

    O que amar

    Plenilnio

    Iluso toa

    E a?

    Cu de estrelas

    Fim de semana em Eldorado, Cu e Mar, Desafinado, Tristeza de ns dois (sub pasta

    faixas que contm improviso de Alf)

    Samba sem balano

    Captulo 2: Joo Donato (pasta Joo Donato)

    CD (pasta) Muito vontade (na integra)

    CD (pasta) A Bossa muito moderna de Joo Donato e seu trio (na integra)

    Captulo 3: O Elo A Nova Bossa (pasta Wave comparaes) Wave c/ Johnny Alf (CD Cult Alf); Wave c/ Joo Donato (CD S dano samba); Wave c/ Joo Gilberto (CD Amoroso) Quem diz que sabe c/ Johnny Alf (CD songbook Joo Donato)

    Captulo 4: A guitarra trio inspirada em Johnny Alf e Joo Donato Mais um som c/ Johnny Alf (CD Mais um som) Pasta Johnny Alf

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    SUMRIO:

    APRESENTAO ................................................................ 1 INTRODUO....................................................................... 2 CAPTULO 1:

    Johnny Alf .................................................................... 9

    Discografia .................................................................................. 15

    Trazendo o hemisfrio norte ..................................................... 17

    O cantar ...................................................................................... 23

    Composies Harmonia e Melodia ....................................... 28

    Introdues ................................................................................ 33

    E A? ........................................................................................... 35

    Cu de estrelas ............................................................................ 37

    Jeito de ser uma tica pessoal ................................................ 39

    A Harmonizao ........................................................................ 43

    O Ritmo ....................................................................................... 46

    Anexos do Captulo .................................................................... 55

    CAPTULO 2:

    Joo Donato ................................................................... 60 Composies Harmonia e Melodia ........................................ 75

    Introdues ................................................................................. 81

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    A Harmonizao ......................................................................... 85

    O Ritmo ....................................................................................... 86

    Muito vontade ........................................................................... 92

    A Bossa muito moderna de Joo Donato e seu trio .................. 107

    Discografia ................................................................................... 116

    CAPTULO 3:

    O Elo A Nova Bossa ............................................................. 118

    Universalidade ............................................................................. 129

    E Joo Gilberto? .......................................................................... 132

    Vou te contar ................................................................................ 134

    Vcios ............................................................................................. 139

    CAPTULO 4:

    A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e Joo Donato . 144 Definindo a guitarra trio ............................................................ 145

    Guitarra trio X Piano trio .......................................................... 148

    Pr-requisitos ................................................................................. 153

    A Nova Bossa na guitarra trio uma interpretao brasileira ........ 158

    Naquela base... .......................................................................... 168

    Imaginando... ............................................................................ 175

    Mais um som ............................................................................. 179

  • xvii

    CONCLUSO - Vou te contar mais... ........................................... 185

    BIBLIOGRAFIA .................................................................... 188

  • 1

    Apresentao:

    H oito anos tenho o privilgio de tocar com Johnny Alf a quem devo muito do que

    sei. um homem simples e que sobretudo ama a msica, qual devotou sua vida. Ao ter

    esse contato mais profundo com sua msica, passei a admir-la cada vez mais e a

    interpretar sua vasta produo - que vai bem alm das poucas lanadas no mercado

    fonogrfico tambm em vrios outros contextos de performance.

    Um desses contextos o trio composto por guitarra, contra-baixo e bateria e/ou

    percusso, o qual eu j explorava com interesse bem antes de comear a tocar com Alf, por

    exigir uma vasta gama de habilidades tanto do instrumento, como do que cerca a msica a

    ser interpretada. Meu primeiro interesse, ento, foi desenvolver um projeto de pesquisa no

    qual eu adaptaria composies selecionadas de Alf (preferencialmente inditas) a esse

    contexto, procurando preservar seu estilo de interpretao como instrumentista (pianista) e

    cantor.

    Ao desenvolver esse projeto, contudo, minhas atenes se voltaram a aspectos

    menos restritos a um nome e seu estilo, mas sim a inerentes postura interpretativa da

    msica brasileira, no s no contexto instrumental referido, mas tambm de um modo geral.

    Isso se deu por perceber carncias nessa rea, mas sobretudo por notar com mais ateno,

    dois discos de Joo Donato relanados recentemente, gravados no comeo dos anos 60.

    Essas gravaes revelaram uma ligao de sua interpretao com a de Alf, cujas

    semelhanas e diferenas constituiriam um elo, onde estariam elementos essenciais e

    fundamentais ao estilo bossa nova, assim como trariam luz elementos valiosos para a

    interpretao da msica popular brasileira como um todo.

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    Introduo:

    O guitarrista no contexto instrumental trio (guitarra, contra-baixo e

    bateria/percusso), comumente negligencia muitos elementos valiosos interpretao da

    msica brasileira, devido a imposies mecnicas do instrumento e/ou a falta de

    referncias, que revelem aspectos formadores de uma concepo mais abrangente dessa

    msica como um todo, e no inerentes ao instrumento apenas.

    As possibilidades da guitarra mantm afinidade com as do piano, no sentido de

    ambos possurem a capacidade de aproveitamento tanto meldico como harmnico, o que

    determina aos dois instrumentos, uma condio favorvel e auto-suficiente ao contexto

    instrumental trio. Os recursos so, contudo, bem distintos, e o seu aproveitamento em cada

    instrumento resulta em diferenas significativas na performance.

    Sendo o piano o que detm maiores e mais completas possibilidades, possuidor de

    uma sistematizao e decodificao mais lgica e direta da matria prima som, a

    performance resultante de seus intrpretes constitui um objeto de estudo interessante ao

    guitarrista (e tambm outros instrumentistas), como referncia no intuito de desvendar o

    que seria de fato intencional - derivado de uma concepo definida acerca da msica

    interpretada - e o que seria resultado de um condicionamento imposto pelo instrumento1.

    No mbito instrumental, de maneira geral, a interpretao da msica popular

    brasileira a partir da 2 metade do sculo passado, sofre de uma certa falta de identidade,

    devido, entre vrios fatores, forte influncia do jazz norte-americano e da busca

    predominante por um de seus maiores predicados: a improvisao. 1 Isso no implica necessariamente menosprezar um resultado em funo de outro, mas apenas adquirir uma real conscincia, para eventual juzo de valores com mais propriedade

  • 3

    A bossa nova o estilo de msica brasileira que deve sua gnese a essa influncia e,

    portanto, o que mais ilustra (e sofre com) essa tendncia. Esse estilo reformulou a cano

    popular brasileira no que tange tanto ao contedo potico, quanto s caractersticas

    instrumentais, que envolvem a instrumentao utilizada e a performance propriamente dita.

    Simplificando, podemos dizer que a bossa nova seria uma maneira de se tocar o samba - tal

    como foi concebido a partir do final da dcada de 20 e incio dos anos 30, pelos bambas

    do Estcio, na cidade do Rio de Janeiro2 - aplicando-se inovaes estticas dentre as quais

    se destacam as relacionadas ao jazz norte-americano. Inclui-se a o tratamento harmnico

    na execuo e na composio, modulaes, inovaes estruturais, instrumentao, espao

    improvisao etc.; mas sobretudo uma flexibilizao dos fundamentos rtmicos do samba, o

    que gerou uma nova postura interpretativa a esse elemento em todos os setores da

    performance (seo rtmica, harmonizao e melodia), sendo talvez o ponto mais alto e

    caracterstico do estilo. Essa flexibilizao rtmica constitui um importante foco de ateno,

    j que o ritmo justamente o elemento que define uma afinidade com a evoluo do samba,

    ou, em contrapartida, o que propicia uma mera alocao do universo jazzista. A adoo de

    uma postura predominantemente jazzista no samba, encontra de fato representatividade nos

    pianos trios e combos 3, reinantes a partir dos anos 60, e no pode ser entendido como bossa

    nova , mas sim como samba-jazz!

    Dois dos maiores representantes e responsveis pelas inovaes oriundas do jazz, e

    que podem ser considerados como dois importantes pivs do desenvolvimento do estilo

    bossa nova, so Johnny Alf e Joo Donato, ambos pianistas, compositores e cantores

    (Donato comeou no Acordeon e tambm trombonista e arranjador), donos de uma slida

    e influente obra que data do comeo dos anos 50 e se estende at hoje, pois os dois

    continuam ativos.

    Os contornos estticos, formais e estruturais das composies tanto de Alf, como de

    Donato, devem muito a influncias semelhantes: em esfera nacional exercidas por Dorival 2 SANDRONI, no livro: Feitio Decente transformaes do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) (2001), aborda essa questo, onde o samba passa a ter os contornos rtmicos conhecidos hoje, dos quais se valeu a bossa nova, e se distancia do samba maxixado, que caracteriza sua origem, no incio do sculo. 3 Expresso usada para distinguir conjuntos menores de jazz quando do surgimento das big bands. Geralmente gravita em torno do piano trio, com a adio de um ou dois instrumentos de sopro. Tais formaes constituem na realidade, a base do jazz em toda sua evoluo, como define BERENDT: No jazz a contribuio individual e o sentido de equipe possuem absolutamente a mesma importncia e, por essa razo, podemos dizer que a histria do combo representa um verdadeiro extrato da histria do prprio jazz. (BERENDT, 1987, p.324)

  • 4

    Caymmi, Ary Barroso, Gilberto Milfont, Orlando Silva dentre outros, representantes da

    dcada de ouro (1930 1940), e da realidade definida pela era do rdio (dcadas de 30,

    40 e parte da de 50), onde se tocava msica brasileira sambas, sambas-cano, valsas

    serestas e marchas; tambm pela paulatina americanizao da msica brasileira vivida a

    partir do ps-guerra, que encontra sementes nos arranjos e orquestraes da poca do

    rdio, procurando soar como os de canes e filmes americanos, e personificada de forma

    mais veemente por intrpretes como Dick Farney e Lcio Alves, pelos conjuntos vocais

    (Bando da lua, os Cariocas, Garotos da lua etc...), e, sob esse prisma, pelo prprio Alf em

    relao a Donato, pois, por ser cinco anos mais velho, iniciou-se profissionalmente antes, j

    incorporando e introduzindo essa tendncia.

    A principal influncia foi o prprio jazz americano: os msicos, a improvisao e as

    grandes orquestras, como as de Stan Kenton, Glenn Miller e Tommy Dorsey. Alf, mais

    especificamente, fora bastante influenciado por Nat King Cole e tambm pelos filmes e

    musicais do hemisfrio norte.

    Essencialmente pode-se dizer, que o que mais os seduzia no jazz, era o dinamismo

    implcito na constante busca por inovaes, possibilidades e experincias, traduzido como

    combustvel para a prpria evoluo do gnero na liberdade permitida pela improvisao,

    fruto da musicalidade do msico e de sua intimidade tanto com o instrumento, como com a

    msica a ser interpretada.

    O jazz um gnero musical que privilegia muito o enfoque instrumental e o

    confere vida prpria, no o relegando apenas a um segundo plano. O gnero brasileiro que

    poderia ter seguido a mesma trajetria, por compartilhar com o jazz alguns fundamentos de

    origem, em fins do sculo XIX, o choro, por ser um gnero exclusivamente instrumental e

    tambm contar muito com improvisaes4. Porm a msica popular no Brasil, ao longo do

    4 As improvisaes realizadas no choro, contudo, podem ser mais consideradas como variaes, ou contrapontos da melodia principal, guardando uma semelhana com as intenes meldicas traduzidas pela improvisao coletiva dos estilos de jazz New Orleans e dixieland, manifestaes caractersticas do gnero, no incio do sculo XX. Nesse sentido cabe frisar uma diferena substancial entre o choro e esses dois estilos de jazz nesse perodo: o choro era e se manteve at hoje, como uma manifestao instrumental essencialmente solista, onde h a predominncia de uma melodia principal basicamente acompanhada. O estilo dixieland e New Orleans de jazz, tem um carter polifonista, com vrias melodias dialogando e interagindo entre si, caracterizando uma participao mais coletiva, embora haja tambm acompanhamento (seo rtmica e harmonia). Esse perfil jazzstico comea a mudar em fins dos anos 20, no jazz realizado principalmente em Chicago, passando a se fazer cada vez mais presente a figura de um solista e portanto a predominncia de uma melodia, que contudo tem seus contornos definidos pela interao com os demais msicos, no relegados a um plano de meros acompanhantes.

  • 5

    sculo XX, desenvolveu-se muito mais a servio da cano, o que gerou uma certa

    estagnao do choro e a utilizao de sua instrumentao caracterstica o regional como

    formaes de acompanhamento exclusivamente. Isso talvez tenha colaborado para o fato do

    choro no ter sido um ponto de partida para a evoluo de um cenrio musical propcio

    musica instrumental, tal como o desenvolvido nos Estados Unidos pelo jazz.

    Desvendar os mistrios dessa evoluo distinta nos dois pases um assunto vasto e

    interessante, porm outro, assim como o porque da msica americana ter sido to influente,

    no s no Brasil, como no mundo todo, a partir do fim da primeira grande guerra e mais

    ainda aps a segunda (sobretudo o rock, a partir dos anos 50 at hoje). Obviamente h

    razes scio-econmicas de enorme peso envolvidas nesse processo, contudo no se pode

    negar o valor artstico envolvido principalmente no jazz, e o fato desta msica valorizar

    muito o msico instrumentista e sua opinio no instrumento, o que por si, j seria o

    suficiente para conquistar qualquer msico do planeta! Hobsbawn introduz sua histria

    social do jazz como sendo um livro sobre um dos fenmenos mais notveis do nosso

    sculo., e considera: O mundo do jazz no consiste apenas de sons produzidos por uma

    determinada combinao de instrumentos, tocados de uma forma caracterstica. Ele

    formado tambm por seus msicos, brancos e negros, americanos ou no. (HOBSBAWN,

    1990, p.27).

    Esse mundo chegou a Johnny Alf e Joo Donato, que por serem sobretudo msicos,

    eram atentos, sensveis e reagentes ao que envolve este universo.

    A base da personalidade musical de cada um, foi influenciada pelos estilos de jazz

    compreendidos basicamente pelo swing dos anos 30, o bebop nos anos 40 o hard bop e o

    cool jazz nos anos 50, porm cabe dizer que o relevante da arte resultante dos dois, no a

    afinidade ou fidelidade com este ou aquele estilo, mas sim a incorporao e adaptao da

    postura jazzstica, que universal, se renova e pode ser incorporada a (quase) qualquer

    estilo musical. Esse conceito, inclusive e sobretudo, define a finalidade essencial deste

    trabalho, que a de restringir um objeto de estudo, com o propsito de gerar uma referncia

    passvel de se manifestar de maneiras diversas e pessoais, e no apenas sistematizar um

    procedimento artstico, almejando uma reproduo fiel deste.

    O trabalho visa abordar prioritariamente as caractersticas de Alf e Donato como

    intrpretes ao piano, de msicas que se enquadrem no estilo proposto (definido e rotulado

  • 6

    como bossa nova), procurando restringir e selecionar situaes em que a performance se

    realize no contexto trio (piano contra-baixo e bateria/percusso), embora consideraes

    diversas, acerca de outras caractersticas presentes na obra e manifestao artstica de cada

    um, se faam eventualmente importantes e ilustrativas.

    O contexto piano trio permite um olhar revelador da personalidade e concepo

    musical de cada um, sem que o contedo dependa de grandes consideraes acerca das

    habilidades tcnicas no instrumento, pois ambos so reconhecidos pelo conjunto da obra,

    que envolve tambm, mas no exclusivamente, o lado instrumentista.

    Alf, por se manter mais fiel ao seu estilo interpretativo ao longo de sua carreira, ser

    abordado e analisado a partir de situaes discriminadas de sua discografia, que pode ser

    entendida como bem discreta, ao se considerar sua carreira de mais de meio sculo e a

    importncia notria de sua obra. Tambm haver o embasamento pelos registros

    fonogrficos de shows ao vivo gravados informalmente (realizados desde 1996, por quem

    escreve estas linhas, data em que comeou a fazer parte de seu grupo). Curiosamente os

    discos que mais favorecem as premissas deste trabalho, so os mais recentes, como Cult Alf

    (1998, Natasha records) e Eu & a bossa (1999, Rob filmes), Ambos ao vivo, e Mais um

    Som (2004, Bossanovologia Japo, 2006 Guanabara Records - Brasil). So discos em que

    alm de contar com uma formao instrumental baseada no piano trio, a performance de

    Alf se revela mais solta e abrangente, no se prendendo a uma orquestrao ou arranjo

    muito definido, assim como a outra concepo musical, advinda de um outro arranjador

    e/ou produtor envolvido na gravao.

    Donato ser exclusivamente abordado e analisado em dois discos gravados no incio

    dos anos 60: Muito vontade (1962, Polydor Rio de Janeiro, relanado por: 2002, Dubas

    msica Rio de Janeiro), e A bossa muito moderna de Joo Donato e seu trio (1963,

    Polydor Rio de Janeiro, relanado por: 2003, Dubas msica Rio de Janeiro).. Esses dois

    registros ilustram a fase em que este se enquadra no escopo da pesquisa, alm de traduzir

    muito sua personalidade musical, no devendo substancialmente produo total de sua

    ecltica carreira.5

    5 No captulo a seu respeito ser abordado esse ecletismo, que pode ser dividido em trs fases, das quais nos interessa a primeira, onde se inserem os registros citados

  • 7

    Estes exemplos so suficientes para demonstrar como Alf tem uma caracterstica

    essencialmente jazzstica em sua performance, que se mantm fiel tanto em msica

    brasileira, como ao visitar canes americanas (sendo a seo rtmica responsvel pela

    diferenciao), flexibilizando a interao entre melodia e acompanhamento. Ritmicamente

    sua performance bem livre e suas composies refletem e reforam a preocupao maior

    com as possibilidades harmnicas e estruturais, a servio de (ou aproveitadas por) melodias

    de motivos curtos, porm sinuosas e extensas. Donato, por sua vez, se apodera dessa

    tendncia jazzsta, mas engaja-a em uma postura rtmica mais ligada ao samba, incorporada

    principalmente no acompanhamento de sua mo esquerda, que, aliada aos deslocamentos

    de acentuaes da melodia em sua mo direita, revelam a riqueza rtmica que culminou na

    bossa nova. Sua performance, portanto, tem muita nfase no ritmo, e em funo deste

    organiza suas diretrizes harmnicas e meldicas, resultando em objetividade, minimalismo

    e simplicidade, atributos bem presentes na maioria de suas composies.

    Num primeiro momento o trabalho ter um carter descritivo, onde se abordaro as

    caractersticas biogrficas e estilsticas de Johnny Alf e Joo Donato individualmente.

    A partir de transcries e explicaes analticas de exemplos selecionados da

    amostra citada, ser a seguir almejado o objetivo da pesquisa: a comprovao e a definio

    de um elo entre Johnny Alf e Joo Donato. As anlises, explicaes e consideraes se

    fundamentaro pelos elementos tcnicos da linguagem corrente utilizada exclusivamente na

    e para a msica popular, embora possam eventualmente ser acrescidas por um contedo

    crtico, de cunho contemplativo pessoal6.

    Definindo a existncia e os contornos do elo aqui denominado: A Nova Bossa -

    ser levantado no ltimo captulo, consideraes e especulaes sobre o que pauta a

    interpretao do guitarrista na formao trio. Ento, como concluso e finalidade do

    trabalho, ser detectado o que pertinente reavaliao das diretrizes de performance do

    instrumentista a partir deste elo, e apontado como este pode proporcionar uma valiosa

    referncia para interpretao da msica brasileira em geral.

    Neste ltimo captulo, para a devida assimilao do contedo deste trabalho pelo

    guitarrista, sero listados alguns pr-requisitos necessrios. A partir destes e em funo de

    6 A metodologia adotada para anlises de harmonia e melodia encontra referncias na Teoria da harmonia na Msica popular (FREITAS, 2002), podendo eventualmente envolver um processo auto-explicativo.

  • 8

    suas limitaes mecnicas, ser oferecido um procedimento para viabilizar a referncia com

    o piano trio e os conceitos detectados na pesquisa, resumidos pelo elo A Nova Bossa. No

    entanto, no se trata de um processo didtico definido, nem de um mtodo fechado,

    tampouco de consideraes puramente mecnicas, em cima de transcries fiis. Os trechos

    arranjados e adaptados, fornecidos como eventuais ilustraes e exemplos, so acima de

    tudo sugestes, que visam elucidar o caminho da interpretao brasileira pelo guitarrista (e

    outros msicos) e, sobretudo, a valorizao da arte desses dois gnios de nossa msica.

  • 9

    1 JOHNNY ALF

    Nasceu no Rio de Janeiro em 19 de Maio de 1929. Comeou a estudar piano

    clssico aos nove anos de idade, com Geni Borges, amiga da famlia que o criou e custeou

    seus estudos e para a qual sua me foi trabalhar desde a morte de seu pai - em combate na

    revoluo de 1932 - quando Alf tinha trs anos. Cedo j demonstrava interesse por

    compositores do cinema norte americano, como George Gershwin e Cole Porter e pelos 14

    anos formou um conjunto amador com amigos, em Vila Isabel, que fazia s uma

    domingueira l no Andara, o suficiente para j nesta poca nutrir a vontade de ser msico.

    No Colgio Pedro II, onde cursou at o segundo ano, entrou em contato com o

    pessoal do instituto Brasil-Estados Unidos (I.B.E.U.), com os quais participou da formao

    de um fan club, voltado apreciao da msica americana, no incio de 1949. Nessa poca,

    por sugesto de uma amiga americana, adotou o pseudnimo de Johnny Alf, j que Alfredo

    Jos da Silva seu verdadeiro nome no condizia com suas preferncias e primeiras

    ambies artsticas.

    Esse clube, localizado na Tijuca, rua Dr. Moura Brito n 74, fora uma iniciativa

    tpica de tietagem, dos adolescentes bem situados economicamente e antenados com a

    modernidade da poca. Elitista e menosprezando o samba tradicional, j revelava sintomas

    da presena do imperialismo cultural americano.

    Para esses jovens cuja restrio a Carmen Miranda era a de que ela no voltara suficientemente americanizada - , o mundo no era um pandeiro, mas as sofisticadas harmonias de Axel Stordahl para os discos de Sinatra na Colmbia. Ou no mximo, o mar de violas, violinos, celos e obos do maestro Radams Gnatalli, lambendo as areias e sereias cantadas por Dick naquela msica.7 (CASTRO, 1990, pg. 32)

    7 A msica Copacabana (Alberto Ribeiro/Joo de Barro), gravada por Dick Farney na Continental em julho de 1946, aos 25 anos

  • 10

    A Capitol Records, gravadora americana fundada em 1943, tinha um elenco

    artstico respeitvel, que inclua entre outros, as bandas de Woody Herman e de Stan

    Kenton, o famoso Nat King Cole Trio, conjuntos vocais como os Pied Pipers e os Mel-

    tones (de Mel Torm), e cantoras como Peggy Lee. Em 1948, vendo o Brasil como um

    mercado a conquistar, cogitou uma representante aqui e esta foi a Sinter. O intermedirio da

    negociao foi o radialista Luis Serrano, que passou tambm a comandar um programa na

    radio globo, chamado modernamente de Disc-Jockey. Nesse programa, alm de executar

    msicas do casting da Capitol-Sinter, lanou a idia dos Fan Clubs, tal como se havia

    comeado a fazer nos Estados Unidos. A idia foi logo sedutora a trs jovens primas,

    amigas de Alf do I.B.E.U. Joca, Didi e Teresa - que montaram o Sinatra-Farney Fan

    Club (SFFC).

    Sob a gide da devoo a Frank Sinatra e - sua verso brasileira - Dick Farney (com

    grande dose de Bing Crosby, contudo), o clube realizava sesses para apreciar novidades

    lanadas, orquestraes, solos de jazz etc., alm de apresentar filmes, pequenos shows e

    outras atividades ligadas esttica musical americana. Como no clube havia um piano, e

    Alf precisava de um para estudar, tornara-se freqentador assduo, tendo permisso para

    us-lo a tarde e nas noites de sbado, perodos em que o clube funcionava para no

    atrapalhar os vizinhos.

    Muito se fantasia sobre o S.F.F.C, principalmente depois que se descobriu que ele

    foi uma espcie de manjedoura de muitos nomes que futuramente fariam a bossa nova

    (IBID., 1990, pg. 36), sobretudo ao atribuir como scios nomes que nunca o foram de fato e

    nem ao menos o terem freqentado como Tom Jobim, Vincius de Moraes, Luiz Bonf e

    Billy Blanco - mas isso no tira a importncia deste local para muitos nomes que realmente

    o freqentavam, como Paulo Moura (na poca com 17 anos), Joo Donato, Nora Ney e o

    prprio Dick Farney, que voltando ao Brasil aps sua curta temporada nos E.U.A., era um

    dos principais fornecedores de preciosidades importadas ao clube.

    Farney fora uma grande influncia a Alf, que quando indagado, em entrevista

    concedida a Almir Chediak, sobre a influncia do jazz em sua carreira, respondeu:

  • 11

    verdade. O meu primeiro guru do Jazz foi o Nat King Cole. Ouvia muito aqueles discos do King Cole Trio, desde o tempo que eu era garoto. Depois, atravs do Dick Farney, no tempo em que fizemos o Sinatra-Farney Fan Club, tive acesso a outros discos, tanto de Nat King Cole quanto de outros instrumentistas. Dick Farney tambm tinha muita influncia do Nat King Cole como pianista. Essa convivncia me influenciou bastante, pelos discos e pelo prprio Dick tocando pra gente. (CHEDIAK songbook Bossa Nova vol V, pg 22)

    O final da dcada de 40 e o incio dos anos 50, testemunharam um momento em que

    estava em curso um processo de modernizao da msica brasileira, que buscava no

    somente se desvencilhar da forma tradicional de se tocar o samba - extremamente

    dependente de seus instrumentos de percusso (pandeiro, cuca, agog, etc.), de execuo

    um tanto barulhenta, e acima de tudo, sem nuances de dinmica sonora - mas tambm fugir

    das dores de peito, desiluses e desamores trgicos proliferados pelos (as) eloqentes

    cantores (as) da cano romntica, como os arroubos de opereta de Vicente Celestino

    (CASTRO, 1990, pg. 32).

    Radams Gnattali, desde o final dos anos 30 j realizava experincias que lhe

    valeram inclusive a alcunha de Gershwin brasileiro, nos arranjos e orquestraes para a

    rdio nacional, por se valer de instrumentos incomuns ao samba tradicional, como cordas e

    metais. Era o arranjador preferido de Orlando Silva o cantor das multides - e num tempo

    onde msica brasileira s se tocava com o regional, realizou a ousadia de gravar com

    este,um disco de samba-cano com cordas, que inclusive foi muito criticado na poca. A

    partir de ento realizava arranjos para Orlando, usando metais nos sambas e violinos nos

    sambas-cano, sempre enfrentando recriminaes, pois at ento msica brasileira s se

    tocava com violo e cavaquinho.

    O samba-cano, mais do que o samba propriamente, era o principal gnero a

    sofrer modernizaes e tal preferncia data da prpria histria da inveno do gnero,

    considerado como uma criao de compositores semi-eruditos ligados ao teatro de revista

    do Rio de Janeiro.. Ai Ioi, do maestro Henrique Vogeler , composta em 1928,

    considerado o primeiro samba-cano e chamava ateno de jovens msicos de classe

    mdia, como por exemplo Aloysio de Oliveira compositor e violonista do Bando da lua,

    conjunto que acompanhava Carmen Miranda - que cita esta agravao como a primeira que

    o impressionou realmente.

  • 12

    A modernizao da cano popular perseguida pelo samba-cano desde o seu

    nascimento teve sempre como vetor o desenvolvimento harmnico-meldico, adequado

    tanto aos modelos das msicas eruditas e norte-americanas quanto aos investimentos

    passionais do bolero [...]. J a dana que orienta o samba sempre manteve este ritmo

    idealmente ligado ao Carnaval, e da inclusive a primeira denominao de samba de meio

    de ano para o samba-cano. (GARCIA, 1999, p. 40). Na pr-bossa-Nova o samba-cano

    espelhava bastante a msica americana. O mais significativo, e tambm considerado um

    incio dessa fase, Copacabana (Alberto Ribeiro/Joo de Barro), gravada por Dick Farney

    em 19468. Dick possua um estilo de cantar manso, muito cool, derivado, como j

    mencionado, do de Frank Sinatra (e Bing Crosby). At ento cantava essencialmente em

    ingls, msicas americanas, e no nutria a menor simpatia pela brasileira tradicional, tendo

    inclusive afirmado em entrevista concedida ao Dirio da noite, em 1952, que nossa

    msica s melhoraria quando se libertasse do pandeiro.

    Com o fechamento dos cassinos em 1946, as boites e casas noturnas passaram a ser

    o principal local de msica ao vivo. Sendo locais sofisticados, destinados ao romance

    meia luz, com msica de fundo que possibilitasse a dana agarradinha, era o ambiente

    perfeito para a msica romntica e o repertrio norte-americano, propiciando portanto, uma

    natural incorporao de sua esttica, traduzida e incorporada ao nosso repertrio

    essencialmente pelos sambas-cano. A msica de boate seria portanto o locus perfeito para

    a modernizao da msica popular brasileira. interessante a observao de como esse

    cenrio influi na concepo do ritmo da msica, que no pode estar em primeiro plano,

    ligado a uma dana orientada pelo carnaval, esfuziante, mas sim a uma de carter mais

    intimista, sutil. O ritmo nesse ambiente convive e cede espao s sofisticaes harmnicas

    e meldicas, porm sem perder a capacidade de embalar.

    nesse cenrio que desponta o jovem Johnny Alf

    Em 1952, Farney e Nora Ney indicaram Alf, ento com vinte e trs anos, para seu

    primeiro trabalho como profissional, na recm inaugurada Cantina do Csar, de

    propriedade do radialista Csar de Alencar. Atuava como pianista, e nessa poca, a atriz

    Mary Gonalves, que tinha sido rainha do rdio naquele ano, querendo se lanar como

    8 Johnny Alf em vrios shows faz uma dedicatria ao seu padrinho artstico Dick Farney, em seguida canta Copacabana sozinho ao piano, emendada com Wave (Tom Jobim) com banda e cantada em ingls

  • 13

    cantora, escolheu trs composies suas, Estamos ss, O que amar e Escuta, para gravar

    em seu primeiro LP Convite ao Romance. Em seguida, j suficientemente desembaraado

    para enfrentar a noite, foi tocar na Boate Montecarlo, com o conjunto formado pelo

    violinista Faf Lemos, trabalho em que havia feito um teste antes, mas no fora aceito por

    ser tmido e novato (embaraado, como dito pelo prprio).

    Seu primeiro disco, um 78 rpm, foi gravado nessa poca. Era um disco instrumental,

    contendo Falsete, de sua autoria, e De cigarro em cigarro, de Luis Bonf. Esse disco foi

    sugerido pelo produtor Ramalho Neto, que procurou valorizar sua influncia jazzstica da

    o fato deste ser instrumental - e props uma formao inspirada no trio de Nat King Cole

    (piano contra-baixo e guitarra), mas com violo em vez de guitarra. O violonista seria

    Laurindo de Almeida, um grande violonista brasileiro, que no gravou por ter partido para

    os E.U.A. para tocar com a orquestra de Stan Kenton, uma das grandes referncias musicais

    de toda essa gerao inspirada no jazz. Quem o substituiu foi um jovem chamado Garoto,

    que viria a ser um dos maiores nomes do violo brasileiro.

    Falsete j traria inovaes significativas, como um experimento de samba ou

    choro com recursos aprendidos no jazz. (GARCIA, 1999, p. 87), cujo contedo meldico-

    rtmico-harmnico antecipou e influenciou futuras criaes. Embora sempre citada como j

    sendo bossa-nova e realmente conter alguns elementos que foram incorporados por esse

    estilo, essa gravao est mais ligada ao samba-jazz realizado pelos trios instrumentais dos

    anos 60, vertente que pode ser propriamente considerada como uma segunda fase da bossa-

    nova, ou uma derivao desta. Falsete constitui uma raridade, sendo que nem o prprio

    Johnny Alf possui cpia desta gravao (nem mesmo a partitura, a qual j fora cobrada

    inmeras vezes), no est em nenhum relanamento de sua obra e ele nunca a toca em suas

    apresentaes.

    Trabalhando em boates na noite carioca, Johnny Alf foi se afirmando como uma

    referncia ao pequeno e seleto grupo de engajados no processo de modernizao da

    msica brasileira. Tom Jobim, em seus intervalos no Tudo Azul ia correndo Cantina do

    Csar, ouvi-lo e vice-versa. Revezou com Newton Mendona na boate Arpge (antiga

    Mandarim), indo depois para o Clube da Chave, as boates Drinks e a do hotel Plaza, na av.

    Princesa Isabel, em Copacabana, que era o bairro da moda de ento. Nessa poca (1954),

  • 14

    tocava toda espcie de temas de jazz, msica brasileira e tambm composies suas, como

    Rapaz de bem, Cu e mar e as j citadas gravadas por Mary Gonalves.

    Rapaz de bem, composta em 1953, trouxe inovaes harmnicas, meldicas,

    estruturais e temticas que a fizeram ser considerada como a precursora da bossa-nova. A

    letra fala de um rapaz de bem com a vida por ser bem situado financeiramente e no

    precisar trabalhar, querendo apenas curtir a vida, antecipando o contedo sol e mar, Rio

    lindo e beleza da mulher, tpico da poesia bossanovista - muito bem representada, alis,

    pelo verso o amor, o sorriso e a flor, da msica Meditao (Tom Jobim / Newton

    Mendona). A melodia de Rapaz de bem linear, no contendo refro - outra caracterstica

    deste futuro estilo - e utiliza, de forma ostensiva, as tenses dos acordes (nona no acorde de

    tnica, quarta aumentada j no segundo acorde, quarta em acordes menores, etc.),

    antecipando uma tendncia aproveitada futuramente por clssicas como Garota de

    Ipanema (Tom Jobim / Vincius de Moraes), ou O barquinho (Roberto Menescal / Ronaldo

    Bscoli). A harmonia contm modulaes no convencionais para a poca - para o sexto e

    terceiro grau maior (a msica em F maior, portanto modula para D maior e A maior) -,

    mas que esto presentes em uma das canes mais conhecidas e representativas da bossa-

    nova: Desafinado (Tom Jobim / Newton Mendona), deixando claro que qualquer

    semelhana no mera coincidncia.

    O Plaza era um local pouco freqentado por fregueses de fato, ento se tornou um

    local ideal aos msicos modernos, que poderiam se aventurar e tocar o que quisessem.

    Quando Alf tocava, esses msicos e cantores faziam romaria para ir ouvi-lo: Tom Jobim, Joo Donato, Joo Gilberto, Lcio

    Alves, Dick Farney, Dolores Duran, Ed Lincoln, Paulo Moura, Baden Powell e um bando de meninos que mal tinham idade para freqentar boates, como Luizinho Ea, Carlinhos Lyra, Sylvinha Telles, Candinho, Durval Ferreira e Maurcio Einhorn. Os mais jovens o admiravam porque ele tocava por cifra, uma raridade na poca.9 (CASTRO, 1990, pg. 95).

    Em meados de 1955, recebeu uma proposta de Heraldo Funaro, um empresrio da

    noite paulistana, para inaugurar uma casa chamada Baica em So Paulo e mudou-se para

    l. Quando esta fechou suas portas por problemas com a vigilncia sanitria, comeou sua

    peregrinao habitual dos msicos da noite, tocando tambm no bar Michel, na Boate

    9 Sobre a ascendncia de Alf sobre os msicos e cantores da poca cf. CASTRO, 1990, pp.94-7

  • 15

    Feitio, no Golden Ball, no Tetia, no La Ronde, na Nova Baica, no After Dark, e por a

    em diante.10. De passagem pelo Rio nesse mesmo ano, gravou o primeiro 78 rpm

    importante de sua carreira, com Rapaz de bem e O tempo e o vento. Em 1961 gravou seu

    primeiro LP Rapaz de bem (relanado em CD pela BMG srie 2 em 1), contendo, entre

    outras, Iluso toa, tambm muito conhecida.

    Entre idas e vindas ao Rio de Janeiro, acabou por estabelecer-se em So Paulo, onde

    tambm trabalhou como professor de msica no Conservatrio Meireles. Em 1967

    participou com a msica Eu e a brisa, do II Festival de Msica Popular Brasileira (FMPB)

    da TV Record de So Paulo, interpretada pela cantora Mrcia. A msica foi desclassificada

    nas eliminatrias, mas converteu-se pouco depois num dos maiores sucessos de sua

    carreira.

    Discografia...

    Seus discos so poucos, considerando o tempo de carreira, a extenso e a

    envergadura de sua obra. Sempre se mostrou muito tmido, humilde e nunca propenso a

    fazer concesses em nome de popularidade, assim sendo, cria, toca e se compromete com a

    msica que gosta e se mantm fiel a essa postura, independente de modismos. Quando

    eventualmente indagado sobre o porque de ter poucos discos gravados, responde sempre

    que seu trabalho no interessa s gravadoras por no ser comercial o suficiente.

    Alm de Rapaz de bem, sua discografia inclui:

    Diagonal 1964 RCA LP ( BMG CD srie 2 em 1).

    Johnny Alf 1967 LP, CD.

    Eu e a brisa 1968 Gold LP (MoviePlay CD).

    10 Sobre a trajetria de Johnny Alf em So Paulo Cf CASTRO, 1990, pp 302-3.

  • 16

    Ele Johnny Alf 1971 Parlophon (EMI CD)

    Ns 1974 EMI/Odeon LP,CD.

    Desbunde Total 1978 Phonodisc LP (Warner CD),

    Olhos negros Johnny alf com convidados 1990 BMG LP,CD.

    Noel Rosa Johnny Alf & Leandro Braga 1997 Lumiar LP, CD.

    Cult Alf - ao vivo 1998, Natasha records CD.

    Eu & a bossa - ao vivo 1999, Rob filmes CD.

    As sete palavras de Cristo na Cruz c/ Pedro Casaldliga 1999 PaulinasComep CD

    Mais um som Bossanovologia 2004 CD (Japo) / Guanabara Records 2006 (Brasil)

    O ltimo, gravado em 2002, partiu de uma proposta de um produtor japons - Jun

    Itabashi - de se gravar apenas msicas inditas, antigas ou recentes, adotando uma forma de

    gravao em estdio, porm ao vivo, sem edio ou Overdubs11, num processo espelhado

    nas gravaes de combos de jazz americanos. Jun entregou ao tcnico de estdio,

    responsvel pela captao dos instrumentos e da gravao, um CD do grande pianista norte-

    americano Bill Evans: Interplay, gravado no incio da dcada de 60, como referncia da

    sonoridade desejada, por este ser constitudo praticamente da mesma configurao

    instrumental.

    O resultado foi um CD bem jazzsta, recheado com improvisos e arranjos

    instantneos, contendo quinze msicas inditas gravadas por Alf, ento com 73 anos, em

    apenas dois dias, bem fiel ao seu jeito de ser, demonstrando tambm a continuidade de sua

    produo como compositor.

    O disco Desbunde total (1978), de se assinalar, pois teve a participao de Joo

    Donato complementando os arranjos (junto com Gilson Peranzzetta, segundo o prprio

    11 Tcnicas de gravao que permitem gravar uma coisa por vez, ou adicionar elementos ao que foi previamente gravado. Os recursos de edio atualmente so tantos que podem, em todos os sentidos, transformar o som gravado a partir de sua fonte original, mascarando ou descaracterizando o resultado totalmente.

  • 17

    Alf,). Esse fato faz esse disco ser muito ilustrativo, pois o nico trabalho envolvendo os

    dois. Percebe-se bastante a concepo de Donato atravs de sua colaborao.

    Em 1999, ano em que completou setenta anos, foi contemplado com o 19 prmio

    Shell de msica em reconhecimento importncia de sua obra. O show de entrega,

    realizado no Caneco, Rio de Janeiro, teve a participao de artistas que devem muito de

    sua formao artstica a Alf, e, que de alguma maneira, colaboraram para sua arte ser um

    pouco mais conhecida: Leny Andrade, Emlio Santiago, Alade Costa, entre outros.

    Sua produo alm de conter prolas lindssimas de nosso cancioneiro, muito

    vasta e suas composies trazem caractersticas harmnicas e meldicas intrigantes,

    particulares e reveladoras de sua personalidade musical. Constitui um acervo com material

    suficiente para outros projetos de pesquisa. De qualquer forma, algumas consideraes

    acerca de sua obra, assim como de seu perfil como compositor, no decorrer deste trabalho,

    certamente o enriquecer.

    Trazendo o hemisfrio norte

    Como sabemos, os Estados Unidos, ao trmino da segunda guerra mundial, saram

    com a aura de vencedores do confronto, e viveriam a seguir um momento de grande

    expanso econmica, conquistando mercados at ento nas mos de naes europias. A

    exportao em massa do poderoso parque industrial americano, trazia atrs de si a indstria

    do entretenimento, consolidando a hegemonia cultural desse pas no mundo, favorecida

    ainda por engenhosas campanhas de marketing, a guiar sua veiculao.

    As primeiras manifestaes dessa realidade na msica brasileira, resultariam em um

    produto mimtico, sem a elaborao coerente de integrao ou incorporao esttica das

    novas referncias com as nossas, a partir de uma metamorfose que resultaria em um

  • 18

    produto considerado nacional 12 de fato. Essa ocorrncia no entanto natural, haja visto que

    os influxos no so desde logo integrados na elaborao e ficam, muitas vezes, como que

    no dissolvidos em obras de uma fase inicial. (BRITO, Brasil da Rocha, in: CAMPOS.

    1996, pg. 19)

    No fim dos anos 40 configurava-se essa realidade e o que foi descrito anteriormente

    sobre Dick Farney a ilustra, assim como elementos contidos nas performances de outras

    referncias da poca, como Lcio Alves e Os Cariocas.

    Johnny Alf no pode ser enquadrado de forma diferente, pois tudo o que foi

    verificado acerca de suas influncias, preferncias e primeiras inseres no meio

    profissional, atestam que ele se espelhava bastante no universo musical norte-americano.

    Pode-se dizer, e isso ser demonstrado mais profundamente ao longo do trabalho, que

    Johnny Alf um msico brasileiro, que incorpora o esprito do jazz tipo mainstream -

    termo que diz respeito essncia do gnero norte americano e ser melhor explicado

    adiante. Porm desponta uma diferena no fato de sua obra j apontar e iniciar o sentido de

    integrao, incorporao e metamorfose, referido anteriormente e que viria a se concretizar

    de fato com a bossa nova. Sendo compositor, comeou a adaptar a vertente jazzstica

    criao, como um dos pioneiros, junto com Gilberto Milfont, Jos Maria de Abreu, Ismael

    Neto entre outros. A esttica americana passa cada vez mais a no estar presente s na

    interpretao adaptada ao repertrio brasileiro - constante nos arranjos vocais de Os

    Cariocas, por exemplo - e nas atitudes - tal como o glamour e a sofisticao de Dick

    Farney. Passa a ser percebida tambm em novas msicas, compostas a partir de todo o

    arsenal harmnico, meldico e instrumental advindo do jazz, adaptadas ao nosso ritmo,

    lngua e assunto.

    Os estilos de jazz que predominaram como influncia nessa poca foram o swing e

    o bebop, dos anos 30 e 40, embora o cool jazz no incio dos anos 50 - advindo a partir da

    intuio de Lennie Tristano em NY e do jazz realizado na costa oeste dos EUA (West

    coast) - tenha sido o que mais se emparelha com essa dcada e com o surgimento, em seu

    final, da bossa nova.

    12 A definio do que seria de fato uma arte (msica, no caso) considerada verdadeiramente nacional, um assunto controverso e polmico, do qual se ocuparam vrios pesquisadores, dentre os quais Jos Ramos Tinhoro, possuidor de uma consistente obra e talvez o mais combatido, em grande parte devido aos argumentos relativos justamente bossa nova. No cabe aqui enveredar por tal discusso.

  • 19

    Na poca do swing (anos 30) a harmonia de canes embasadas no princpio tonal,

    comeou a no ser meramente tridica, com a utilizao de eventualmente uma sexta maior

    nos acordes de tnica (maior) e da stima apenas nos acorde dominantes - incumbidos de

    gerar tenso, fortalecendo o movimento harmnico para o acorde seguinte (resoluo),

    caracterizando a cadncia. A stima veio a ser incorporada ao acorde (ttrade), figurando

    como responsvel tambm pela sua estrutura e caracterizao. Tambm a utilizao das

    extenses nona, dcima-primeira, dcima-terceira (costumeiramente chamadas de

    tenses) passou a ser cada vez mais comum.

    O significado estilstico: swing, identifica a msica dos anos 30, que passou a ter

    uma interpretao rtmica mais equacionada nos quatro tempos do compasso, com o

    segundo e o quarto tempo levemente acentuados. At ento havia a predominncia de dois

    tempos fortes o chamado two beat jazz - e tal mudana propiciou a evoluo do estilo

    walking bass de acompanhamento pelo contra-baixo, que toca todos os tempos do

    compasso, igualmente acentuando de leve o segundo e o quarto tempo. Tais caractersticas

    assumidas pela seo rtmica (contra-baixo e bateria), constituram talvez a referncia mais

    forte do jazz e remetem a um significado mais universal da palavra swing: balano da

    msica.

    A origem e a formao do jazz devem muito ao blues, que constitui um caso a parte

    em relao aos princpios tonais. Ao mesclar com estes suas caractersticas nicas de

    harmonia, ritmo e melodia (blue notes), conferiu ao jazz seu tempero e autenticidade. H

    inclusive um senso comum, baseado na afirmao de que Todo o jazz nada mais do que

    a aplicao do blues na msica europia ou, a utilizao dos recursos da msica europia

    sobre o blues como queira. (BERENDT. 1987, pg.27). O swing, portanto, tambm

    incorpora a sonoridade blues, assim como sua estrutura mais tradicional (12 compassos),

    mas sobretudo, as caractersticas harmnicas citadas se revelam principalmente no

    cancioneiro norte-americano os Standards .

    Os standards geralmente se estruturam em 32 compassos, subdivididos em grupos,

    ou sees de 8 compassos, que definem a tradicional forma cano AABA. Tambm

    comum a subdiviso em dois grupos de 16 compassos, organizados como AB , sendo que o

    B geralmente um A com os 8 compassos finais modificados (coda). So msicas

  • 20

    essencialmente tonais, porm podendo conter em maior ou menor grau, caractersticas

    oriundas do blues.

    Os standards tradicionalmente no tm refro. A melodia se desenvolve

    linearmente, conduzida pela harmonia, o que traz bem tona esse dois elementos,

    responsveis pela diferenciao entre as partes da msica, sem a insero de um cro

    entre elas. Tal caracterstica tem um grande paralelo nas composies de Johnny alf, assim

    como na bossa nova. Em contrapartida, difere bastante dos chamados sambas tradicionais,

    dos sambas de roda, ou ainda de marchas carnavalescas, cujo apelo popularesco, convida o

    povo a participar da manifestao musical atravs de uma idia geralmente bem simples,

    com a finalidade de grudar no ouvinte13.

    O que define o termo jazz mainstream so os contornos rtmicos definidos pelo

    swing; a harmonia caracterizada por ttrades e suas tenses; a presena marcante do blues

    tanto na harmonia, como na melodia, que carrega tambm os cromatismos, arpejos e notas

    de passagem exploradas no estilo bebop dos anos 40. o termo que se refere

    manifestao clssica e essencial do jazz em sua evoluo, como que sendo uma espinha

    dorsal do mesmo (coloquialmente tem uma conotao comercial, j que o termo tambm se

    refere ao filo principal das vendas do gnero pelas gravadoras). Um dos grandes nomes

    que ilustram o termo, o Nat King Cole Trio, uma das principais influncias de Johnny

    Alf, como j mencionado.

    Em vrias passagens de som14, Johnny Alf, ao testar o piano e o microfone, toca e

    canta, em ingls, msicas do repertrio standard americano. Numa conversa em um ensaio,

    ao ser indagado sobre quais destas composies teriam sido a ele mais influentes, e em

    que sentido, respondeu que na poca o que mais seduzia no s a ele, mas a todos os

    envolvidos com a msica americana, eram as composies que continham caminhos

    diferentes na harmonia, caracterizados pelas modulaes. Citou Like someone in love

    13 Nos anos 60 tal recurso voltou prtica na MPB caracterizada como cano de protesto, na poca dos festivais, devido ao teor politizado e o sentido de engajar o ouvinte das canes, que, justamente, como grito de guerra, conclamava a se unir e a cantar a msica junto (como: ...vem vamos embora,que esperar no saber quem sabe faz a hora, no espera acontecer..., refro de Pra no dizer que no falei de flores, de Geraldo Vandr), e no apenas a desfrutar passiva e contemplativamente, como o contedo amor, o sorriso e a flor bossanovista sugeria. Tambm a cultura de massa que j potencializava o Rock`n`Roll e o Pop a partir dos anos 60, propiciava o recurso do refro - em qualquer estilo - por ser parte de um formato mais assimilvel, fcil e portanto, mais comercial. Tanto que vigora at hoje. 14 Momento precedente a um show onde h a equalizao e calibrao do equipamento sonoro (P.A.), assim como teste dos instrumentos e um pequeno ensaio/simulao.

  • 21

    (Jimmy van Heusen/Johnny Burke - 1949), que quando apareceu por aqui todo mundo ia

    atrs daquela modulao (comunicao pessoal). A modulao referida a que resolve no

    sexto grau maior no meio da primeira e da segunda parte, e que tem um carter de

    movimento inesperado, mais do que original no sentido harmnico, j que modular para o

    sexto grau maior no significa uma grande inovao, mesmo para a poca:

    Exemplo 1: Like Someone in Love (Jimmy van Heusen/Johnny Burke)

    J Darn that dream (Jimmy Van Heusen/Eddie DeLange - 1939) e Moonlight in

    Vermont (Karl Suessdorf/John Blackburn 1945), tambm citadas por Alf, trazem

    inovaes mais radicais nos caminhos harmnicos e meldicos, apesar de terem sido

    compostas antes. A primeira j entorta a tonalidade no primeiro compasso e, no segundo,

    usa de forma acintosa na melodia a quarta aumentada no acorde dominante que prepara o

    sexto grau menor um movimento harmonicamente trivial, mas aproveitado

    melodicamente de forma no convencional . Na segunda parte h a modulao para o sexto

  • 22

    grau bemol maior15, tambm pouco comum para a poca. Moonlight in Vermont

    surpreende apenas na segunda parte, na qual h a modulao para o terceiro grau maior na

    primeira metade, seguida pela transposio desta modulao meio tom acima (quarto grau

    maior da tonalidade original) na segunda metade e a sucessiva retomada da primeira parte.

    Outro tema que exerceu grande impacto no que diz respeito s tonalidades

    utilizadas, foi Body and Soul (Green)16. uma balada na qual a primeira parte est em Db

    maior, apesar de iniciar com uma cadncia sugerindo Eb menor (que no entanto se revela

    como subdominante de Db, no decorrer do movimento harmnico). A segunda parte pode

    ser dividida em duas, com tonalidades distintas: os primeiros quatro compassos esto em D

    maior (segundo grau bemol maior), que j constitui uma modulao diferenciada em

    relao primeira parte. Os quatro compassos seguintes levam a C maior (stimo grau

    maior), havendo a seguir a retomada da primeira parte. Interessante notar que houve

    portanto, na segunda parte, a modulao para as tonalidades maiores situadas meio tom

    acima e meio tom abaixo da tonalidade da cano, o que confere a esse standard uma

    condio realmente particular

    A lista poderia ser longa, pois Johnny sempre lembra alguma outra e canta, como

    que recordando o tempo das boites. Preciosidades como Lush life (Billy Strayhorn), ou

    mesmo Stella by starlight (Victor Young) e vrias outras, so sempre citadas e brincadas

    nos momentos informais, tambm contendo caminhos harmnicos interessantssimos.

    Eventualmente, Johnny insere um ou outro standard nos shows, devidamente cantados em

    ingls, porm executados em ritmo de bossa lenta ou samba-cano e no como swing

    americano. The shadow of your smile (Johnny Mandel), ou To be the one you love (Autor

    desconhecido), so dois lindos exemplos que, no entanto, no apresentam complexidade

    merecedora de nota em termos harmnicos.

    Obviamente que os caminhos harmnicos apontados acima, traziam inovaes no

    mbito da cano popular (tanto nos E.U.A. quanto aqui, em maior escala), pois a msica

    de concerto ou msica erudita j trazia essas informaes h muito tempo, no s no

    15 O termo bemol faz referncia distncia deste grau em relao tonalidade da msica, no caso caracterizando uma sexta menor (G Eb), o termo maior confere a qualidade maior a essa nova tonalidade. Faz-se necessrio a utilizao de dois atributos para modulaes e/ou acordes estranhos tonalidade, pois um indica a distncia intervalar entre os acordes/tonalidades e o outro determina a qualidade ou o tipo do novo acorde/tonalidade. Conferir a tabela nos anexos, usada para anlises harmnicas. 16 As partituras desses trs standards citados esto contidas nos anexos do captulo.

  • 23

    que diz respeito a modulaes, ou formas de se trabalhar cadncias e acordes, mas muito

    alm, incluindo a prpria dissoluo do sistema tonal. Contudo, aprofundar-se neste tema

    foge do foco do presente trabalho, mas vale salientar que a msica erudita passou a exercer

    cada vez mais influncia no jazz e servir de referncia aos msicos, arranjadores e

    compositores ao longo de sua evoluo, o que colaborou para um considervel afastamento

    do contorno popular de suas primeiras manifestaes, enquadrando-o como msica de elite;

    assim como uma conseqente eruditizao do gnero, a tal ponto de ser costumeiramente

    referido, cada vez mais, como musica para msico.

    O Cantar

    O fato de Johnny cantar foi crucial para moldar seu perfil artstico, que envolve de

    forma equilibrada as trs facetas: cantor, compositor e instrumentista. Tem-se a impresso

    de que um lado no prevaleceu sobre o outro e que todos se ajudaram de uma forma

    simbitica. A forma com que Johnny concatena as trs habilidades a que define sua

    originalidade.

    Seu primeiro contato com a msica foi como instrumentista, atravs do piano

    clssico, mas medida que suas preferncias foram tomando forma e tambm por

    demandas do meio profissional, revelou-se mais o lado cantor e compositor. Vrios discos

    o trazem nessas duas vertentes apenas, sendo seu lado pianista relegado a um segundo

    plano, quando no excludo totalmente. Discos como Ns, Diagonal, Rapaz de Bem, Eu e a

    Brisa, Noel Rosa (com o pianista e arranjador Leandro Braga), no revelam a real dimenso

    de sua capacidade como instrumentista (esse fato, contudo, um indicador interessante de

    como tal capacidade se insere no todo de sua arte).

    O cantar e utilizar o instrumento como forma de se acompanhar, propicia ao artista

    assim como exige - um consistente e consciente processo de assimilao da integrao

  • 24

    entre a melodia, harmonia, ritmo e estrutura. como se tudo ficasse mais claro a ele,

    devido ao fato das habilidades necessitarem ser dimensionadas de maneira equilibrada, para

    se atingir um resultado coeso. Desta forma o artista consegue ter uma percepo mais

    abrangente e plena da msica. Em contrapartida, quando se apenas cantor, ou

    instrumentista, h a tendncia de um desequilbrio na evoluo perceptiva do artista, por

    seu foco estar excessivamente voltado sua singular performance, e, muitas vezes traar

    um processo onde a msica fica a servio de sua tcnica ou habilidade, quando deveria ser

    o contrrio.

    Johnny traz em seu estilo de cantar, uma influncia notria de Sarah Vaughan uma

    das maiores intrpretes do jazz norte americano , mas tambm admite grande admirao

    na interpretao de Lcio Alves e Dick Farney. Sua voz, grave e encorpada, soa natural e

    quase falada, no impostada, fruto de rdua educao tcnica. Ele prprio admite que

    nunca estudou canto de fato, que aprendeu imitando e na marra (comunicao pessoal).

    Sua interpretao carregada de saltos intercalados com cromatismos, bem ao estilo bebop.

    Utiliza muito apogiaturas, ou notas de aproximao, permeando a melodia principal.

    guisa do jazz, no se prende a uma forma fixa de melodia, aplicando sempre variaes e

    ornamentaes.

    A constante busca por elementos geradores de tenso uma de suas caractersticas

    marcantes, que aliada sua fluncia, revestem seu estilo interpretativo com muitas nuances

    e contrastes.

    Podemos averiguar esses atributos de sua interpretao meldica a partir de dois

    enfoques essenciais: a harmonia e o ritmo.

    Em relao harmonia, suas variaes e ornamentaes meldicas sempre buscam

    encaixar dissonncias. Em momentos harmnicos de natureza essencialmente tensa, tal

    como um acorde dominante, um diminuto, ou uma II V7, procura valorizar as tenses,

    guardando uma especial predileo pela #11 (quarta aumentada). Em momentos de

    repouso harmnico, ele cerca as notas esperadas atravs das ornamentaes citadas

    acima principalmente pela aproximao cromtica ascendente - gerando uma

    momentnea dissonncia, atrasando melodicamente o esperado repouso.

    Em relao ao ritmo, usufrui uma liberdade muito grande ao aplicar sncopes e uma

    ampla gama de deslocamentos, revelando um balano (swing) muito particular, assim como

  • 25

    seu esprito de apimentar a msica com tenso, expectativa e instabilidade. Os motivos

    meldicos adquirem flexibilidade rtmica muito grande e no uniforme (irregular17),

    podendo ser adiantados ou atrasados em relao mtrica (pulsao) da msica,

    transmitindo a sensao de estarem atravessados. Tal caracterstica de sua interpretao

    foi muito influente e constitui uma enorme importncia para o que viria a ser o estilo

    rtmico da bossa nova, sobretudo a partir do dilogo estabelecido com sua harmonizao ao

    piano, que o ampara, compartilhando a mesma maleabilidade18 Ritmicamente, Johnny abriu

    espaos, antecipou e mostrou caminhos de desprendimento mtrica convencionada.

    Sua interpretao de Rapaz de bem transcrita no exemplo a seguir, ilustra bem sua

    desenvoltura e flexibilidade em relao ao ritmo da msica. Nos pentagramas inferiores

    (unidos por uma chave), se encontram a harmonia e a melodia das duas primeiras partes da

    msica (A e A2), e um trecho da segunda (B), tal como esto registradas no Songbook

    Bossa Nova vol II.. No pentagrama superior est a transcrio de sua interpretao deste

    trecho, extrada da gravao contida no CD: Johnny Alf ao vivo Eu & a Bossa (1999, Rob

    filmes)19.

    17 Esse termo ser melhor explicado ao longo do trabalho. 18 Sua harmonizao abordada exclusivamente mais adiante. 19 A frmula de compasso, no entanto, foi alterada, pois na referida edio, a msica est escrita em 2/2 e no exemplo est em 2/4. Isto se deve ao fato de suas mais recentes verses dessa msica serem em tempo de samba rpido, sendo a escrita em 2/4 mais corriqueira nesses casos (o caso selecionado, est por volta de 120 BPMs). A verso de 1961, contida no disco Homnimo, interpretada como um samba mdio, em aproximadamente 90 BPM, no sendo propriamente um tempo de samba-cano lento, que tradicionalmente escrito em 2/2, mas bem mais prximo, no entanto. Na realidade, no que tange a frmulas de compasso, percebem-se costumes e convenes circunstanciais, pois na prtica o contedo sonoro no muda, apenas a relao matemtica que o representa. Portanto, para nossa finalidade, ser privilegiada a escrita em 2/4 para os sambas e suas variaes.

  • 26

    Exemplo 2: Trecho de Rapaz de bem (CD Eu & a Bossa 1999)

  • 27

    Percebe-se ao longo de todo o trecho, o constante deslocamento das frases,

    principalmente atrasando-as. A nica antecipao ocorre no compasso 8, logo aps um

    atraso da frase

    Um aspecto importante deste exemplo, a no existncia de um padro e tambm a

    utilizao de tempos comtricos, que se fazem notar logo no comeo (comp. 1 e 2), no fim

    de A e comeo de A2 (comp. 15 20), e no comeo de B (comp. 32 39), revelando a

    categoria de quem sabe que balano no obtido nica e exclusivamente atravs de

    sncope.

    O exemplo seguinte um pequeno trecho extrado da gravao de Rapaz de Bem de

    1961. o comeo de A2 (corresponde aos compassos 17 24 do ex. anterior), e, a no ser

    pelo atraso, demonstra uma grande diferena, pois, ao contrrio do primeiro, este bem

    sincopado na primeira frase.

    Na segunda frase (comp. 5 8) ele no atrasa, mas muito interessante a forma

    com que varia a melodia principal (vide exemplo anterior), de uma forma bem jazzista em

    cima da II V7, utilizando saltos arpejando o acorde menor, e fixando duas tenses fortes

    para o dominante (#5 e #4), conferindo a esta passagem uma grande dose de dissonncia.

    Exemplo 3: Trecho de Rapaz de bem 1961

  • 28

    Composies harmonia e melodia

    Na condio de cantor e instrumentista, Johnny pde alimentar sua vertente

    compositora a partir dos ensinamentos contidos e explorados em seu repertrio. Rapaz de

    bem, uma das primeiras, como j demonstrado, ilustra bem essa faceta, mas existem vrias

    outras que contm caminhos interessantssimos de serem brevemente abordados aqui, em

    uma pequena, mas ilustrativa seleo

    Antes porm, sero feitas algumas consideraes sobre suas predilees

    harmnicas.

    Johnny utiliza muito em suas composies, a progresso dois cinco (II - V7), de

    formas variadas quanto ao tipo de II (IIm7, IIm7b5, II7) e quanto s tenses utilizadas no

    V7, muitas vezes com a clara inteno de contrariar as tenses mais esperadas para o

    movimento (tal qual o trecho citado anteriormente, do standard Darn that dream). Estas

    tenses podem estar contidas na melodia, ou apenas indicadas na cifra, revelando suas

    predilees por dissonncias.

    A progresso II - V7 - que pode ser entendida como um esqueleto, ou resumo do

    sistema tonal - por ele aproveitada como mdulos independentes (no apenas como II -

    V7 da tonalidade da cano), que vo ora preparando acordes dentro da tonalidade da

    msica (preparaes secundrias), ora simplesmente se sucedendo, sem que haja

    necessariamente uma resoluo, ou uma lgica e derivam a partir da coerncia com o

    motivo meldico. Em vrias de suas composies, as II - V7 vo modulando tanto, que

    literalmente viajam para longe da tonalidade original da cano, porm a ligao com o

    motivo meldico to lgica, que tal recurso no se revela gratuito e forado, s se

    percebendo a distncia com a tonalidade inicial, ao se retomar o tema. Na verdade no

    existe necessariamente um esquema fixo a uma tonalidade. Literalmente: tudo pode

    acontecer.

    Algumas situaes de II - V7, no entanto, so mais corriqueiras. Um exemplo a

    realizada sobre o IV de uma tonalidade maior Ex. / C7M / Fm7 Bb7 / C7M /etc. - ou

  • 29

    sobre a prpria tonalidade maior, no intuito de transform-la momentaneamente em menor

    (drico) Ex. / C7M / Cm7 F7 / C7M / etc.

    Tanto o II como o V7, podem estar sendo representados por substituies, tal qual o

    IIb7 substituindo o V7, ou o V7sus4(9,13) substituindo o IIm7.

    Aps um acorde 7M, muito comum a insero de um IV7 deste, dando uma idia

    blues, j que a stima menor deste IV7 a tera menor do acorde anterior Ex. aps um

    C7M vem um F7, cuja stima menor mi b, que por sua vez a tera menor do C7M,

    caracterizando sua blue note.

    Johnny gosta muito de lidar com a progresso IVm I7M, que constitui a cadncia

    plagal menor, ou cadncia subdominante menor. Costumeiramente, porm, substitui o IVm

    pelo VIIb7 (ou usa os dois, resultando uma II - V7, citada acima), ou ainda o VIb7M, e por

    vezes o IIb7M.

    Muitas vezes tais situaes esto disfaradas por alguma inverso na tnica do

    acorde, como em Eu e a brisa e Foi tempo de vero, onde no segundo compasso h o IVm6

    - uma inverso do VIIb7, com o baixo na 5 (2 inverso) - porm mantm o baixo na tnica

    (I), realizando um baixo pedal.

    Em relao s melodias, existe um procedimento caracterstico interessante,

    presente na maioria de suas msicas: o motivo meldico, geralmente curto, apresentado

    como uma frase, e seu desenvolvimento se d atravs da repetio de sua figura rtmica,

    sendo as notas adaptadas ao caminho harmnico estabelecido, como que transpostas. Em

    outras palavras: a frase meldica vai se adaptando s situaes harmnicas que se sucedem,

    podendo se dissociar completamente do motivo inicial em termos tonais, porm mantendo

    sua figura rtmica. Se pensarmos no primeiro motivo (frase) como sendo a pergunta, e no

    segundo como sua resposta, esta seria a repetio da pergunta, porm com outras notas,

    por estar em um novo contexto harmnico. Msicas que ilustram essa caracterstica so:

    Ns, Iluso toa,, O que amar, Mais um som, Rapaz de bem, Fim de semana em

    Eldorado, E a, Eu e a brisa, entre outras. rara a ocorrncia de melodias extensas, tal

    como acontece nos choros, onde a melodia passa contnua atravs de vrias cadncias e na

    maioria das vezes h uma distino mais complexa entre as perguntas e respostas.20.

    20 Embora Carinhoso (Pixinguinha / Joo de Barro) um clssico do choro-cano seja muito semelhante, na primeira parte, ao estilo meldico de Johnny Alf. A segunda parte contudo, ilustra muito bem a referida diferena.

  • 30

    Uma msica sua que foge a esta regra justamente um choro: Choratina,

    estruturada em trs partes, com harmonia bem mais rebuscada que os tradicionais

    (principalmente na 3 parte), mas com melodia bem ao estilo. Outra que tambm exceo

    Seu Chopin desculpe, que baseada em motivos curtos, porm diferentes entre si. Quem

    sou eu - uma de suas msicas mais bonitas - tambm traz uma melodia diferenciada, que

    embora uniforme ritmicamente em tercina - segue de forma contnua, como

    desenvolvimento do curto motivo inicial, interpolando-o eventualmente. Particularmente

    interessante a quarta aumentada bem enfatizada, melodizando a palavra charada, no

    acorde dominante da tnica (Quem sou eu..? Curiosa charada, que tem por conceito

    voc...).

    Exemplo 4: Trecho de Quem sou eu?

    Esse tipo de efeito outra forte caracterstica meldica das composies de Alf: o

    gosto por aproveitar as tenses dos acordes, assim como dissonncias no to comuns a

    acordes dominantes, como nonas e quartas aumentadas.

    Quem sou eu tambm uma de suas raras canes que mantm os movimentos

    harmnicos baseados em uma tonalidade s.

    Geralmente as pessoas indagam aos compositores o que vem primeiro: a letra ou a

    msica? Alf sempre responde que no h uma regra, depende da inspirao, vai

    saindo.... Mas e quanto melodia e a harmonia? Qual vem primeiro? Ele tambm fornece

    a mesma resposta (comunicao pessoal), mas trata-se de uma pergunta intrigante, pois

    existem msicas em que ele parece se guiar por experincias de progresses harmnicas, s

    quais preenche com a melodia; em outras h a sensao clara de a melodia ter sido

    harmonizada, de ele se guiar por um motivo meldico. Resumindo: algumas de suas

  • 31

    composies remetem a clara impresso de a melodia ter vindo antes, enquanto outras

    parecem ter sido fruto de uma proposta harmnica a priori, onde se adequou uma melodia a

    posteriori.

    Um estudo mais aprofundado acerca de seu perfil compositor haveria de ser

    realizado, para inferirmos suas reais intenes, independente de suas descompromissadas

    declaraes. O que cabe aqui a observao de que existe uma inquietude em sua vertente

    criadora sobre possibilidades harmnicas e meldicas, transparecendo a idia de estar

    sempre a postos para experimentaes.

    Interessante, contudo, que tal atitude no se manifesta no que diz respeito

    diversidade de estilos rtmicos em sua obra, constituda essencialmente por compassos

    binrios ou quaternrios, em ritmo de samba, samba-cano e baladas. H algumas raras

    incurses por ritmos nordestinos, em composies cujas caractersticas harmnicas e

    meldicas lembram os afro-sambas, como as verses em Ijex de Oxum e Olhai (esta

    ltima com um toque pop e latino) presentes no disco Desbunde Total. Composies com

    frmula de compasso composto inexistem, mesmo os ternrios so bem incomuns (Com

    voz de plenitude, tambm contida em Desbunde Total, uma das raras), assim como

    mudanas rtmicas no meio das canes (a no ser em circunstncias oferecidas pelo

    arranjador envolvido na gravao). Eh mundo bom ta, a nica composio sua em

    compasso de cinco tempos (5/4). H tambm a gravao, no disco Ns, de Outros povos,

    msica em compasso de 7 tempos (7/8), porm de autoria de Milton Nascimento e Mrcio

    Borges. Fora essas minoritrias situaes, suas aventuras no campo rtmico so, sem

    dvida, mais modestas, restringindo-se mais ao mbito da performance, pois em seu estilo

    interpretativo que as surpresas e inovaes se revelam.

    Plenilnio (udio em anexo), uma composio sua de 1968, contida no LP (CD)

    Ns de 1973, uma de suas msicas engavetadas. H pelo menos dez anos, nunca

    tocada ao vivo. Ao ser deparada via partitura, contida no songbook: O melhor de Johnny Alf

    (VITALE. 2004 ,pg. 56), revelou-se uma msica diferente, de harmonia e melodia difcil de

    assimilar, muito intrigante, misteriosa, cheia de modulaes, com caractersticas modais -

    sobretudo Frgio. So perceptveis nesta cano, influncias diferentes das de outras

    composies, que a fazem soar como o jazz modal dos anos 60, particularmente com a

    msica do saxofonista Wayne Shorter (estilo bem evidenciado na gravao original, que

  • 32

    tem uma introduo e inseres de sax soprano bem ao seu estilo, tocada por Vitor Assis

    Brasil, com arranjo de Egberto Gismonti). Tambm relembra a vanguarda sincrtica de

    Milton Nascimento e o teor psicodlico que abraava a MPB no fim dessa mesma dcada.

    Enfim, ao ser indagado sobre o que o tinha inspirado nesta msica, se havia alguma outra

    referncia intencional, como a havia composto, etc., obteve-se um ...fui fazendo... como

    resposta (comunicao pessoal!)

    importante salientar que nem todas as suas msicas contm necessria e

    predominantemente, a fluncia meldica e harmnica de teor inesperado, diferenciado,

    dissonante ou at mesmo complicado, o que demonstraria talvez um inconformismo, ou

    um rompimento com estruturas tradicionais, num arroubo de vanguarda intencional e

    racional. Pelo contrario, algumas de suas composies contm, ou aproveitam, frmulas

    estruturais e harmnicas tpicas de sambas, ou sambas-cano tradicionais, como por

    exemplo a j citada Quem sou eu, Mais um som e Pisou na bola21. Johnny insere

    eventualmente uma ou outra variao, mas que no entanto no descaracterizam os

    contornos de antecessores como Noel Rosa, Dorival Caymmi ou Ary Barroso. Tambm

    no foge de cadncias harmnicas mais singelas - como a I7M Vim7 IIm7 V7 I

    (comeo de O que amar) - apesar de constantemente inserir surpresas, como quem diz:

    Esse caminho legal, mas vamos por esse outro lado aqui que tambm d!... , e a nos

    fica a impresso de ouvi-lo emendar:: Viu, como foi legal tambm!?.

    Seu interesse por progresses harmnicas, traduzido nos sinuosos caminhos de suas

    harmonias e melodia - foi ilustrado por uma conversa antes de um show de tributo

    Dolores Duran, ocasio em que haveria o revezamento com outros msicos e cantoras,

    onde revelou: Eu gosto mesmo de acordes..., de harmonia..., se eu pudesse colocaria um

    acorde para cada nota da melodia! (comunicao pessoal)

    Mais adiante ser enfocada a performance de Johnny ao harmonizar (acompanhar),

    que obviamente envolve seu perfil de harmonizao ao compor, .porm ao se apresentar ao

    vivo, ele muitas vezes muda os acordes originais de suas canes, como por exemplo, em

    vez de um IIm7b5 (cifrado na partitura), ele aplica um IIm7 (com 5 justa), ou um

    V7(9+,11+); ou ainda em vez de uma tnica menor, ele pe um 7M. Devido a sua grande

    21 As duas ltimas esto contidas no CD Mais um som (a faixa-ttulo, assim como Quem sou eu, constam tambm no songbook: O melhor de Johnny Alf)

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    facilidade em vincular melodia e harmonia, ele muda o teor de sua interpretao harmnica,

    assim como brinca com modulaes, ou as usa de acordo com a condio de sua voz. Eu e

    a brisa e Iluso toa, por exemplo so comumente transpostas meio ou um tom abaixo,

    quando ele est meio rouco e cansado.

    Introdues

    Iluso toa contm um outro elemento digno de nota, que reflete muito bem sua

    habilidade em transitar entre a harmonia e a melodia: a introduo.

    Na maioria das vezes e principalmente antes de baladas, Johnny insere uma

    introduo apenas com piano e voz, que pode ter sido composta anteriormente para essa

    finalidade, como a de Iluso toa22, Quem sou eu23 e O que Amar, - todas inclusive com

    letra. Eventualmente a faz com banda, quando h uma previamente escrita ou arranjada,

    como Plexus (introduo instrumental para Rapaz de bem). Muitas vezes ele simplesmente

    as inventa, cantarolando uma melodia (sem letra, tipo tchu r r r..., l l r l...

    mesmo!) e conectando a uma harmonia de improviso, brincando com modulaes, at

    engrenar na msica, fazendo com que a banda entenda e o siga, sem ter nada previamente

    ensaiado ou estipulado.

    Essas introdues, compostas ou de improviso, possuem riqueza harmnica e

    originalidade dignas de um estudo mais aprofundado, como por exemplo a de Quem sou eu,

    que desenvolvida em tonalidade maior, situada no quinto grau da que est a msica.

    Alguns aspectos sobre a de Iluso toa sero discorridos, por esta ser considerada, alm

    de exemplar, genial e intrigante