Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

32
1. INTRODUÇÃO 1.1. Questões de ordem geral: alfabetização e escola na modernidade ocidental No estado actual de conhecimentos, tudo indi- ca que são duas as questões fundamentais que explicam o arranque com algum vigor dos pro- cessos de alfabetização e escolarização na Euro- pa e no Ocidente a partir do século XVI: referi- mo-nos à Reforma protestante e à Contra Refor- ma católica, por um lado, e ao aumento do co- mércio europeu e mundial a partir da expansão marítima por outro, o qual inicia um período de mudança que se estende pela Revolução Indus- trial e pela construção em termos contemporâ- neos do conceito de Estado Nação. Na verdade, são numerosos os testemunhos (ver entre outros, Furet & Ozouf, 1977; Houston, 1988; Graff, 1991) do impacto que teve no relan- çamento da leitura e escrita a grande ruptura do mundo cristão levada a cabo por Lutero, que promovendo a interiorização da religião, defen- dendo a leitura directa dos textos religiosos e tra- duzindo tais textos para o alemão vernacular, deu origem a que o movimento de evangelização protestante do século XVI se tivesse cruzado com um intenso esforço de alfabetização, com ou sem escola, nas regiões mais tocadas pela Reforma. Três tipos de questões explicam o sucesso das estratégias alfabetizadoras luteranas: a) a existência a partir de meados do século anterior de uma forma de potencialização e difusão da mensagem escrita através da in- venção e popularização da Imprensa; b) O verdadeiro espírito de evangelização de que a Europa protestante primeiro, e a Europa católica de seguida, se fez eco. c) A complacência e cumplicidade dos pode- res de Estado das regiões que aderem à 163 Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 163-194 Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos Nacionais e estudos de caso ANTÓNIO CANDEIAS (*) EDUARDA SIMÕES (**) (*) Departamento de Ciências da Educação da Fa- culdade de Ciências Sociais e Humanas da Universi- dade Nova de Lisboa. Membro da UIPCDE. (**) Licenciada em Psicologia e aluna do Mestrado em Psicologia da Educação no Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

Transcript of Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

Page 1: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

1. INTRODUÇÃO

1.1. Questões de ordem geral: alfabetização eescola na modernidade ocidental

No estado actual de conhecimentos, tudo indi-ca que são duas as questões fundamentais queexplicam o arranque com algum vigor dos pro-cessos de alfabetização e escolarização na Euro-pa e no Ocidente a partir do século XVI: referi-mo-nos à Reforma protestante e à Contra Refor-ma católica, por um lado, e ao aumento do co-mércio europeu e mundial a partir da expansãomarítima por outro, o qual inicia um período demudança que se estende pela Revolução Indus-

trial e pela construção em termos contemporâ-neos do conceito de Estado Nação.

Na verdade, são numerosos os testemunhos(ver entre outros, Furet & Ozouf, 1977; Houston,1988; Graff, 1991) do impacto que teve no relan-çamento da leitura e escrita a grande ruptura domundo cristão levada a cabo por Lutero, quepromovendo a interiorização da religião, defen-dendo a leitura directa dos textos religiosos e tra-duzindo tais textos para o alemão vernacular, deuorigem a que o movimento de evangelizaçãoprotestante do século XVI se tivesse cruzadocom um intenso esforço de alfabetização, comou sem escola, nas regiões mais tocadas pelaReforma.

Três tipos de questões explicam o sucesso dasestratégias alfabetizadoras luteranas:

a) a existência a partir de meados do séculoanterior de uma forma de potencialização edifusão da mensagem escrita através da in-venção e popularização da Imprensa;

b) O verdadeiro espírito de evangelização deque a Europa protestante primeiro, e aEuropa católica de seguida, se fez eco.

c) A complacência e cumplicidade dos pode-res de Estado das regiões que aderem à

163

Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 163-194

Alfabetização e escola em Portugal noséculo XX: Censos Nacionais e estudosde caso

ANTÓNIO CANDEIAS (*)EDUARDA SIMÕES (**)

(*) Departamento de Ciências da Educação da Fa-culdade de Ciências Sociais e Humanas da Universi-dade Nova de Lisboa. Membro da UIPCDE.

(**) Licenciada em Psicologia e aluna do Mestradoem Psicologia da Educação no Instituto Superior dePsicologia Aplicada.

Page 2: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

Reforma, que por um lado se libertam datutela de Roma e por outro aproveitam otrabalho de alfabetização evangelizadoralevado a cabo pelas igrejas nacionais co-mo um factor de controlo social sobre aspopulações que tutelam.

Mas o surto de alfabetização protestante nãose limita às zonas em que a Reforma triunfa, epor todo o centro da Europa as comunidades pro-testantes agem da mesma forma e com o mesmovigor, atitude que irá ser vista como um desafioàs autoridades e igrejas prevalecentes, que numaluta pelo controlo as reprimem por um lado, e,por outro, aceitam o desafio utilizando armas si-milares. Por outras palavras, a Contra Reformatambém utiliza as letras para a evangelização,sobretudo nas zonas em que se sente mais amea-çada, como é por exemplo, o caso em algumasregiões francesas durante os séculos XVI eXVII.

A Reforma, no entanto, não é a única explica-ção plausível para a ascensão progressivanalguns casos, e rápida noutros, da cultura escri-ta na Europa e Ocidente.

O ciclo expansionista europeu a partir do sé-culo XVI, que lança as raízes da mundializaçãodo comércio e da economia irá, de forma desi-gual e com ritmos diferentes conforme as regi-ões, enterrar as sociedades de raiz medieval, elançar as bases para um surto de crescimentoexponencial até ao século XX.

O cruzamento entre a acumulação de capitalprivado ou de Estado, com o surto de racionalis-mo e desenvolvimento científico e técnico doOcidente nos séculos XVI, XVII e XVIII, iráestar na origem de sociedades mais sofisticadas,competitivas e conflituais, progressivamente as-sentes no tecido urbano, que necessitam de for-mas de controlo e de gestão mais complexas doque anteriormente. A generalidade dos casosestudados mostra-nos que em situações destetipo, a escrita, como elemento de racionalização,organização e controlo social é potencializada,senão a curto, pelo menos a médio e longo pra-zo.

Assim sendo, religião e capitalismo consti-tuem-se como dois elementos poderosos do re-lançamento da escrita, a qual se tornará progres-sivamente na base cultural fundamental em que a

partir do século XVI, as sociedades ocidentaisassentam.

1.2. Processos de transição da alfabetizaçãopara a escolarização

Quais as razões, quais as formas como seespalha a escrita do século XVI ao século XVIII,e porque é que isso é pertinente no caso que pre-tendemos estudar?

Os dados disponíveis mostram-nos que o sur-to escolar-alfabetizador que arranca no séculoXVI, pode ser visto como uma luta pelo controlopolítico e religioso das populações europeias dasregiões em que a Reforma ou se mostrou domi-nante ou se mostrou desafiante, mas pela formaque tomou, mostra também, e isto será mais ver-dadeiro do século XVII em diante, que houveem muitas regiões, em muitas comunas, aldeias,vilas e cidades, vagas de escolarização e alfabe-tização cujas origens se devem encontrar naspróprias populações.

Se o sentimento religioso quer de católicosquer de protestantes não pode ser ignorado nes-tas vagas, que em muitos sítios, só de formamuito ténue é que eram controladas pelas igrejas,a vontade individual e colectiva de fazer parte deum mundo que se abria, aparece-nos de uma for-ma muito marcada em muitas destas pequenasescolas cujos professores eram, com assenti-mento do pároco, contratados e pagos pelosconselhos de aldeia e pelas famílias (ver entreoutros, e de novo, Furet & Ozouf, 1977; Graff,1991).

Não estamos aqui a falar dos Colégios, cujosobjectivos e públicos eram outros, mas de esco-las ou formas de alfabetização populares, comcurrículos imprecisos e diversificados em quepontificavam sobretudo a instrução religiosa, aleitura e a escrita, em vernáculo ou em latim, eque abrangendo sobretudo crianças, não as defi-niam de uma forma tão precisa como o farão nosséculos seguintes, os critérios de idade sendoainda vagos; de professores como o que Furet eOzouf (1977, p. 83) nos descrevem, que calcor-reavam as quintas isoladas do século XVIII bre-tão, ensinando os alunos um a um ou dois a dois,no campo, o último domingo do mês sendo des-tinado à colecta do ordenado; ou dos pastoresprotestantes escandinavos que ensinavam a leitu-ra aos adultos e sobretudo às mulheres do cam-

164

Page 3: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

po, ao mesmo tempo que controlavam o que elasliam, e faziam delas as alfabetizadoras e cate-quistas dos maridos e dos filhos; do mestre es-cola da cidade, que por sua iniciativa e com apermissão do pároco abria uma aula de primeirasletras, enfim de toda uma série de formas deprestação educativa, não estandardizadas, con-troladas nalguns casos, vigiadas mais de longenoutros, pelas autoridades e igrejas católicas ouprotestantes, e com sucessos diversificados se-gundo as regiões da Europa e Américas euro-peias dos séculos XVI, XVII e XVIII.

As questões fundamentais deste surto dealfabetização que percorre o Ocidente a partir doSéculo XVI, aparecem-nos de uma forma cadavez mais clara à medida que nos vamos aproxi-mando do Século XIX: trata-se de formas deconstrução da conformidade religiosa e cívicapor um lado, e de forma de construção da mobi-lidade social por outro. Estas última questão, ado papel das letras na construção da mobilidadesocial parece tornar-se mais nítida com a pro-gressiva desagregação da ordem social do Anti-go Regime, com a revolução industrial, com ocrescimento dos novos pólos de actividade eco-nómica e política que são as cidades, e queatraem cada vez mais homens e mulheres embusca de futuros pessoais mais ambiciosos.

Ir para a cidade, para o Colégio, e para asAméricas, eis o que cada vez mais se encontrapor detrás e como resultado das escolas e daalfabetização informal do Antigo Regime. Subirna vida, construir o futuro, adaptar-se às novasformas de vida e de trabalho das cidades, são im-pulsos que cada vez mais passam por caminhossinuosos de escolaridades não estandardizadas,com períodos, métodos e conteúdos de aprendi-zagem decididos individualmente ou em família,de forma autónoma, ao sabor das necessidades ede objectivos precisos e concretos.

A passagem para a educação estandardizada,estatal e obrigatória far-se-á de forma lenta du-rante todo o século XIX e princípios do séculoXX, e representará o triunfo da noção de EstadoNação com a substituição progressiva dasestratégias individuais e de grupo, decididas emfunção de interesses concretos na vida das pes-soas, por estratégias colectivas, nacionais, deci-didas por grupos restritos e impostos à genera-lidade da população em nome do bem da Nação.

À medida que o século XIX avança, cada vez

mais crianças serão obrigadas a frequentaremescolas do Estado ou por ele controladas, cujoscurrículos serão cada vez mais similares até setornarem praticamente iguais, no interior decada país primeiro, e à medida que o século XXse aproxima, cada vez mais iguais em todo oOcidente, como nos faz notar Yun-Kyung Cha(Cha, in Meyer, Kamens, & Benavot, 1992, pp.63-73).

Não frequentar esta escola do Estado, que àmedida que o tempo avança se vai polvilhandode regras, de exames e de mecanismos de con-trolo e de disciplina (ver entre outros, Foucault,1975; Bouillé, 1988), representa cada vez mais aexclusão do corpo nacional e a entrada no limbodo analfabetismo.

Mesmo assim, e durante um período de transi-ção que durará conforme o tempo que a cons-trução dos Sistemas Educativos nacionais durar,formas de apropriação e utilização da escola e dealguns dos saberes por ela veiculados, exercidasautonomamente por partes do seu público, co-existirão com percursos escolares estandardiza-dos e definidos a partir do centro (ver Candeias,1994; 1996; no prelo), e este período de transi-ção estará no coração do nosso trabalho.

2. O CASO PORTUGUÊS E A SUA INSERÇÃONAS TENDÊNCIAS GERAIS DE

ESCOLARIZAÇÃO E ALFABETIZAÇÃO

2.1. Questões prévias

Os estudos existentes sobre o caso português,mostram-nos duas coisas essenciais:

a) que a implementação do Sistema Educa-tivo em Portugal, mesmo se definido pre-cocemente, se estendeu por um período detempo superior a um século, sendo só emmeados da década de 50 do século XX quetodas as crianças com idades compreendi-das nos parâmetros da lei se encontravamefectivamente matriculadas na escola (Car-valho, 1986; Nóvoa, 1992; Candeias, noprelo). A lentidão deste ritmo de escolari-zação, cujas origens e causas têm sidoobjecto de alguma discussão (Candeias,1994, 1996; Ramos, 1988, 1993; Reis,

165

Page 4: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

1988, 1993) colocou de uma forma clara,Portugal entre os países menos escolariza-dos e alfabetizados do mundo ocidental daaltura (ver entre outros, Cipolla, 1969;Graff, 1991).

b) que o período de passagem do Século XIXpara o Século XX até pelo menos à décadade 60 deste último, foi um período típicode transição como o que antes referimos,caracterizado por ritmos e formas de alfa-betização e escolarização definidos emfunção de uma mescla entre interesses es-pecíficos relativos à mobilidade social eadaptação ao mercado de emprego porparte dos povos, e uma continua aindaque irregular pressão por parte das elitespara a imposição de um modo de escola-rização estandardizado característico douniverso escolar Ocidental, que estava naaltura, em vias de se mundializar (Can-deias, 1996).

Uma análise aos Censos Populacionais quevão de 1890 a 1950, mostram-nos com efeito,que as idades de escolarização e alfabetização departes substanciais da população portuguesa,são tardios em relação à norma que fixava a es-colaridade obrigatória entre os 7 e os 11 ou entreos 7 e os 13 anos conforme as épocas, e que onúmero de alfabetizados crescia quer em percen-tagem quer em números absolutos muito paraalém de tais idades (Candeias, 1996; no prelo).

Estes dados permitem-nos lançar a hipótesede que para uma parte importante da populaçãoportuguesa, a adaptação ao mercado de empregoe as estratégias pessoais de mobilidade socialeram tanto ou mais importantes do que as leisestatais de escolaridade obrigatória. Tambémnos permite compreender que a aquisição de taiscompetências era feita, para uma parte substan-cial da população, de forma não institucional, ouseja, recorrendo a mestres ou escolas privadas eoutros agentes de alfabetização que se coloca-vam fora da órbita dos poderes instituídos ou emescolas estatais mas de formas irregulares e des-continuas.

Tal facto é ilustrado por Eduarda Simões(Simões, 1998), através da recolha de testemu-nhos sobre a escola e a sua articulação com o tra-balho, tempos livres e modos de organização doquotidiano, em duas gerações de uma freguesia

do Concelho de Ferreira do Zêzere, uma nascidana década de 20 e outra nascida na década de 80.

No decorrer deste trabalho, a autora reconstruipercursos de alfabetização e de escolarização detrês gerações da freguesia antes citada, nascidasa primeira entre os anos de 1888 e 1914, a se-gunda entre os anos de 1926 e 1936 e a terceiraentre os anos de 1945 e 1969, nas quais se tor-nam evidentes as diferenças nas tipologias de re-lacionamento de tais gerações com a cultura es-crita.

Este tipo de aproximação às questões dospercursos e imagens sobre a escola baseados emmetodologias Etno-Históricas e com recurso àreconstrução de quotidianos e histórias de vida, àsemelhança de outros trabalhos de que destaca-mos os de Raul Iturra (1990), Ricardo Vieira(1992), Filipe Reis (1992) e Stephen Stoer e He-lena C. Araújo (Stoer & Araújo, 1992) tem-semostrado de uma utilidade suprema, não só co-mo complemento do trabalho sobre séries esta-tísticas relativas aos dados Censitários, mastambém como uma via de aproximação própria eautónoma face ao trabalho em que estamos em-penhados.

Assim, a continuação deste trabalho passaráessencialmente pelo desenvolvimento de duasquestões que consideramos fundamentais para acompreensão das relações da população portu-guesa com um modo de cultura escrita:

a) a análise dos ciclos de alfabetização e deescolarização dos portugueses, entre osfinais do século XIX, e a década de ses-senta do nosso século, baseando-nos so-bretudo nos Censos Populacionais;

b) um estudo de caso centrado em duas gera-ções de uma freguesia de Ferreira do Zê-zere, que nascidas nos períodos compreen-didos entre 1926 e 1936 e na década de oi-tenta, permite no entanto um recuo até ge-rações nascidas entre os anos de 1888 e1914. Trata-se do primeiro de um conjuntode estudos de caso em curso, que procu-ram cobrir ainda que parcialmente várioscontextos geográficos e sociais portugue-ses.

166

Page 5: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

2.2. Ritmos e formas de acesso à cultura es-crita dos portugueses no século XX: oque nos mostram os Censos Populacio-nais de 1900 a 1960

Todos os dados disponíveis sobre a alfabetiza-ção e a escolarização na Europa e no Ocidentedurante os séculos XIX e XX, e embora a suafiabilidade seja apenas aproximativa, parecemconvergir no facto de apontar o caso portuguêscomo um caso de singular lentidão na afirmaçãode um modo da cultura escrito como modo fun-damental de funcionamento social, por compara-ção com sociedades do mesmo espaço geográ-fico e cultural.

Não nos iremos debruçar sobre as causas detal «atraso» português, devido essencialmente aduas razões:

a) existem já um sem número de textos quereflectindo estudos de campo e reflexãoteórica se debruçam sobre esta questão(ver, entre outros, Candeias, 1994, 1996;Ramos, 1988, 1993; Reis, 1988, 1993; enoutra perspectiva, Magalhães, 1994,1996);

b) cremos também que uma vez estabelecidosalguns parâmetros que explicam de umaforma geral as razões porque em Portugal,por comparação com outras sociedadeseuropeias, a escrita tardou tanto em seinstitucionalizar, a melhor maneira decompreender esta questão, é tentar perce-ber o modo como os portugueses se foramligando a uma forma de cultura que setornou dominante e massificada a partir definais do século XIX no espaço cultural doOcidente.

Tentar perceber as relações que se foram es-tabelecendo entre as populações portuguesas e aescrita durante estes dois séculos, passará assimpor um olhar sobre números que se repartemdesigualmente por sexos, classes de idade, lugarde residência, e que mudam com o tempo, mos-trando-nos ritmos desiguais e condicionados poruma mescla difícil de discernir, e que se joga en-tre vontades próprias de mobilidade social, re-sistências a modos de vida sugeridos pelas elites,e tentativas de imposição por parte do Estado deestratégias de desenvolvimento que só parcial-mente são seguidas e acatadas pelo povo.

Os números e a sua análise podem-nos fazerpensar que estes ritmos se tornam visíveis atra-vés deles, mas aqui, as histórias das vidas e doslocais ajudam-nos ganhar um sentido de intimi-dade que não raro parece desconstruir as grandesconclusões tiradas de uma massa de dados quepor vezes é difícil de gerir.

Pensamos pois, que a investigação neste cam-po se joga na tensão existente entre estas duasformas de abordagem, a das visões macro sociaisque se estiram no espaço de séculos e recorrem anúmeros referentes a populações num âmbitonacional ou pelo menos regional, e o estudo e oseguimento de vidas de pessoas, de famílias e defreguesias, que sendo mais localizadas e restritasno tempo, nos deixam compreender o que fre-quentemente os grandes números ocultam.

De qualquer das maneiras a massa de dadosexistentes sobre os modos e os ritmos de implan-tação da escrita na Europa e no Ocidente, per-mitem-nos estabelecer, com muitas cautelas ealguma reserva, alguns pontos cruciais em redordos quais estas relações se articulam e que ire-mos de seguida resumir.

Assim ao que tudo indica, poderemos dar co-mo assente, no estado actual da investigação so-bre este tema, os seguintes pontos:

a) as sociedades com uma penetração fortedo protestantismo, são em geral, nos finaisdo século XIX, mais alfabetizadas do queaquelas em que a religião católica e orto-doxa predominam;

b) as sociedades mais dinâmicas do ponto devista económico, com processos fortes deindustrialização em curso ou situadas emorlas próximas de tais processos, são emmeados e finais do século XIX, tambémelas mais alfabetizadas do que aquelas emque as estruturas do Antigo Regime se en-contram mais solidamente ancoradas;

c) do ponto de vista geográfico, o «núcleoduro» da alfabetização europeia encontra--se no Norte e Centro-Norte da Europa, oSul, e os extremos Leste e Oeste sendomenos alfabetizados do que este «núcleoduro».

d) parece existir uma tendência que sobrepõefactores religiosos, económicos e geográ-ficos com alfabetização, o que, apesar detodos os cuidados a ter com generaliza-

167

Page 6: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

ções, sugere uma relação entre estes facto-res combinados e o crescimento da alfabe-tização e da escolarização.

e) apesar de a coincidência não ser total, so-ciedades com graus de alfabetização maisintensas, tendem a escolarizar-se mais ce-do do que aquelas em que a penetração dacultura escrita é mais débil, e isto indepen-dentemente das legislações nacionais sobreeducação e em particular, sobre a obrigato-riedade de frequência escolar;

f) apesar de estas tendências se prolongaremno tempo, o século XX vai assistir a casosde sucesso de alfabetização e sobretudo deescolarização que quebram em parte estastendências antes assinaladas, e que se de-vem a factores políticos e económicosmuito dependente de opções de Estado, ca-so entre outros de uma parte dos paísesdos Balcãs, dos regimes que em 1918 e em1945 se tornam socialistas, e também dealgumas sociedades do Centro-Sul da Eu-ropa, como se poderá constatar do Quadro1.

g) o caso português é, durante mais de umséculo, segundo todos os dados disponí-

veis quer se tratem de dados de origemnacional ou externa, um caso singular dedupla periferia no contexto europeu: peri-feria face ao «núcleo duro» da alfabetiza-ção, e no decorrer do nosso século, peri-feria face aos limites Sul, Leste e Oesteque historicamente foram menos im-pregnados pela cultura escrita.

O Quadro 1 que de seguida expomos, comtodas as inexactidões inerentes a este tipo decifras, reflecte o essencial das tendências queacabamos de referir.

As cifras indicadas falando por si, resta-nosdizer que tais cifras não são isoladas, antes con-firmando as tendências que antes assinalámos.

Mas mais do que a comparação dos dadossobre Portugal com outras sociedades do mesmoespaço geográfico e cultural, os quais iriam re-petir o que sobressai no Quadro anterior, inte-ressa-nos perceber a forma como a sociedadeportuguesa foi construindo laços com a escrita,assim como os ritmos e as maneiras como taisrelações se foram estabelecendo.

Como entrada nesta temática, propomo-nosapresentar e discutir um quadro referente à evo-

168

QUADRO 1Cálculo da alfabetização na Europa entre 1850 e 1950, a partir de Censos, taxas de alfabetização

de recrutas e condenados, e assentos matrimoniais

1850 1900 1950

Países Nórdicos, Alemanha 95% aprox. 98% aprox. 98%Escócia, Holanda e Suiça

Inglaterra e País de Gales 70% aprox. 88% aprox. 98%

França, Bélgica e Irlanda 55% 80% aprox. 98%

Áustria e Hungria 35% 70% aprox. 98%

Espanha, Itália e Polónia 25% aprox. 40% aprox. 80%

Rússia, Balcãs e Portugal aprox. 15% aprox. 25% U.R.S.S. - aprox. 90%;Bulgária e Roménia - 80%

Grécia e Yugoslávia - aprox. 75%Portugal - aprox. 55%

in Johansson, citado por Graff, 1991, 375

Page 7: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

lução das taxas de alfabetização da populaçãoportuguesa entre os anos de 1900 e 1960.

Este período de tempo que escolhemos pare-ce-nos fundamental devido sobretudo a duas ra-zões:

a) os dados referentes aos recenseamentosefectuados no Século XIX, os de 1864,1878 e 1890, fornecendo dados importan-tes para a compreensão da temática aquianalisada, partem de critérios diferentesentre si, que por vezes os torna de difícilcomparação com os dados mais recentesdo século XX. De qualquer das formas, es-tes Censos não podem ser ignorados noâmbito mais geral de uma investigaçãosobre os processos de alfabetização e esco-larização em Portugal, (ver, de novo, Can-deias, 1996 e no prelo), mas parece-nosdeslocada a sua apresentação neste traba-lho.

b) todos os estudos já anteriormente referen-ciados apontam este período como o perío-do fundamental em que se joga de formadecisiva a implantação de um modo decultura escrita em Portugal, nele sendopatentes como à frente se verá, os diferen-tes estágios deste percurso.

Antes de apresentarmos e discutirmos estequadro, pensamos ser necessária alguma infor-mação prévia, ainda que resumida, sobre algunsaspectos que consideramos pertinentes na suaconstrução e posterior análise.

O primeiro destes aspectos é o de que nos de-vemos lembrar que o período de tempo que vaide 1900 a 1960, é atravessado por três regimespolíticos: a Monarquia Constitucional, que ter-mina os seus dias no ano de 1910; a 1.ª Repúbli-ca instaurada em 1910 e derrubada pelo Golpede Estado Militar do 28 de Maio e o EstadoNovo, institucionalizado em 11 de Abril de 1933pela entrada em vigor da Constituição Política daRepública Portuguesa, e que nas suas várias fa-ses irá durar até 1974.

Esta questão torna-se pertinente ao perceber-mos que os períodos de transição de um paraoutro regime político devem ser olhados com al-guma desconfiança, visto que é por vezes de-tectável uma tendência para a desvalorização doperíodo anterior e o enaltecer do regime vigente,

uma velha e pertinaz tradição na política portu-guesa.

Procurámos em relação a este período e ba-seando-nos nas informações possíveis de seremrecolhidas nos 7 Censos realizados neste tempo,construir taxas de alfabetização da populaçãocom idades iguais ou superiores a 7 anos e de se-guida, estabelecemos as taxas de alfabetizaçãodos grupos de idade dos 7-14 anos, dos 15-19anos, dos 20-24 anos, dos 30-34 anos dos 40-44anos e dos 50-54 anos, excepção feita ao ano de1950, em que a partir dos 20-24 anos as infor-mações nos são dadas por intervalos de idade dedez anos, pelo que optámos por não os apresen-tar neste Quadro.

Segundo os critérios inscritos nos própriosCensos, e que foram expostos e discutidos emtrabalhos anteriores (Candeias, 1996; no prelo),sabemos que até 1930, alfabetos são os que de-claram saber pelo menos ler, e que em 1960,com início provável em 1940, para se ser consi-derado alfabeto era necessário pelo menos terfrequentado uma escola.

Pensamos que deixámos claro que este tipo dedados deve ser visto com alguma cautela, tratan-do-se de meros indicadores a que se juntarão ou-tro tipo de elementos que nos permitam melhorcompreender os movimentos de alfabetização eescolarização, e isto é tão verdadeiro para os da-dos que se referem aos portugueses como aqualquer outro tipo de dados referentes a outrospovos e sociedades.

De qualquer das formas, os resultados são osapresentados no Quadro 2.

Uma rápida análise destes resultados permite--nos perceber como foi lenta a construção deuma sociedade letrada em Portugal.

Na verdade, nos primeiros 60 anos deste sé-culo, a taxa de alfabetização dos portuguesescom idades iguais ou superiores a 7 anos, passade 26% para cerca de 70%, um ganho que nãochega aos 50%.

Mas os números sendo o que são, permitem--nos apesar de tudo uma análise mais fina do quese passou neste período de 60 anos.

Na verdade podemos constatar que em geral,o período correspondente ao Estado Novo foimais profícuo na aceleração da alfabetizaçãoem Portugal do que o período anterior: de 1900 a1930, a percentagem de portugueses com idadesiguais ou superiores a 7 anos que declaram saber

169

Page 8: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

ler, passa de 26% para 38%, um ganho de alfabe-tizados de 12%; no período que vai de 1930 a1960, os portugueses das mesmas faixas etáriasdeclarados como alfabetos, passam dos 38% an-tes mencionados para 70%, o que corresponde aum aumento de 32% de alfabetizados, mais dodobro do período anterior.

Não estando aqui em causa a comparaçãoentre os méritos político-educativos da 1.ª Re-pública e do Estado Novo, visto que só em parteé que as questões de ordem política influenciameste tipo de números, permitimo-nos apesar detudo, assinalar a contradição entre estes dados eo que durante anos foi sendo propagado pelashistoriografias de uso corrente que se tornaramdominantes até há bem pouco tempo.

Mas estes dados ainda nos mostram outro tipode tendências, as quais consideramos capitais natentativa de compreender a forma como os por-tugueses acederam às letras durante este período.Na verdade, algo que é aparentemente surpreen-dente, e que só se detecta se procedermos a umaanálise destes números por classe etária, é ofacto de até 1940, as classes de idade entre os 7 eos 14 anos apresentarem resultados que são dos

mais baixos por comparação com as outras clas-ses de idade expostas.

Tal facto seria muito pouco provável se o mo-do fundamental de acesso à cultura escrita porparte dos portugueses fosse a escola. Na verda-de, sendo este o caso, seriam sempre as classesde idade mais jovens que apresentariam taxas dealfabetização mais elevadas.

Poderemos então pensar que a forma comouma parte substancial dos portugueses acedemàs letras até perto de meados deste século, passapor caminhos não inteiramente consonantes como modelo escolar dominante na Europa e noOcidente a partir dos finais do século XIX, ouseja, a «escola de massas» do Estado, laica,gratuita e obrigatória.

Para melhor percebermos estes ritmos e tipo-logias de acesso à alfabetização por parte dosportugueses neste período de tempo, fomos, combase nos Censos disponíveis, reconstruir umacoorte populacional nascida entre os anos de1906 e 1910, e que por conseguinte teriam entre10 e 14 anos em 1920, entre 20 e 24 anos em1930, entre 30 e 34 anos em 1940, entre 40 e 44anos em 1950 e entre 50 e 54 anos em 1960, efomos tentar perceber como é que esta popula-

170

QUADRO 2Percentagens de alfabetização da população de idade igual ou superior a 7 anos,e sua distribuição por classes de idade entre os 7 e os 54 anos entre 1900 e 1960

1900 1911 1920 1930 1940 1950 1960

Alfabetos com idades 26% 31% 34% 38% 48% 60% 70%iguais ou superiores a7 anos

7-14 anos 20% 26% 31% 33% 56% 77% 97%15-19 anos 29% 35% 40% 45% 56% 68% 91%20-24 anos 30% 35% 41% 44% 56% 68% 80%30-34 anos 30% 34% 37% 45% 48% * 70%40-44 anos 27% 30% 34% 39% 46% * 61%50-54 anos 22% 26% 30% 34% 39% * 48%

Fontes: Censo da população do Reino de Portugal no 1.º de Dezembro de 1900; Censo da população de Portugal no 1.º de Dezembrode 1911; Censo da população de Portugal - Dezembro de 1920; Censo da população de Portugal - Dezembro de 1930;Recenseamento Geral da população no Continente e Ilhas Adjacentes em 12 de Dezembro de 1940; Recenseamento Geral dapopulação no Continente e Ilhas Adjacentes em 15 de Dezembro de 1950; Recenseamento Geral da população às 0 horas de 15 deDezembro de 1960.

Page 9: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

ção, se relacionou com a alfabetização duranteesta parte da sua vida.

Verificamos por estes dados o que tínhamosnotado antes: o ganho de alfabetizados, em nú-meros brutos e não só em percentagens, ascendeaté aos 20-24 anos e desce ligeiramente a partirdesta idade, mas mesmo assim aos 30-34 anosesta população ainda tem mais alfabetizados doque aos 10-14 anos.

Ou seja, dos 10-14 anos para os 20-24 anos,perdem-se recenseados mas ganham-se alfabe-tos, dos 20-24 para os 30-34 anos voltam-se aperder recenseados e também alfabetizados, masestes são ainda assim, em termos brutos, e claro

está, em percentagens também, mais numerososdo que na idade dos 10-14 anos.

Em termos de percentagens de alfabetizadosem cada classe de idade, o interessante destacoorte, consiste no facto de tais percentagens sóatingirem os valores mais altos nas idades com-preendidas entre 30 e os 54 anos, o que como emtrabalho anterior tínhamos verificado, (Candeias,1996) se deveria quer ao facto de o movimentode alfabetização se prolongar no tempo fora daescolaridade, quer provavelmente, a uma maiortaxa de mortalidade e/ou de emigração entre osnão alfabetizados.

Por outras palavras, por um lado, os ritmos de

171

QUADRO 3Seguimento segundo o número de recenseados e de alfabetos de uma coorte populacional deidades compreendidas entre os 10-14 anos no Censo de 1920 e 50-54 anos no Censo de 1960

1920 Declarados alfabetos percentagem de alfabetos

Recenseados entre os 10 e os 14 anos 1920 1920Total - 682.578 243.134 Total - 37%Masc. - 347.854 136.606 Masc. - 39%Fem. - 334.724 106.528 Fem. - 32%

1930

Recenseados entre os 20 e os 24 anos 1930 1930Total - 625.635 273.687 Total - 44%Masc. - 303.461 157.602 Masc. - 52%Fem. - 322.174 116.025 Fem. - 36%

1940

Recenseados entre os 30 e os 34 anos 1940 1940Total - 556.636 266.953 Total - 48%Masc. - 267.017 150.838 Masc. - 56%Fem. - 289.619 116.115 Fem. - 40%

1960

Recenseados entre os 50 e os 54 anos 1960 1960Total - 481.429 229.953 Total - 48%Masc. - 224.277 127.409 Masc. - 57%Fem. - 257.202 102.203 Fem. - 40%

Fontes: Censo da população de Portugal - Dezembro de 1920; Censo da população de Portugal - Dezembro de 1930;Recenseamento Geral da população no Continente e Ilhas Adjacentes em 12 de Dezembro de 1940; Recenseamento Geral dapopulação às 0 horas de 15 de Dezembro de 1960.* O Censo de 1950 não foi tido em conta devido ao facto de as classes de idade de referência no mesmo Censo terem sido alteradas.

Page 10: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

alfabetização dos portugueses até à década de 40estendem-se por períodos da sua vida que ultra-passam a idade da escola, e por outro, as pessoasmais alfabetizadas provavelmente teriam umaesperança de vida superior à das não alfabetiza-das e/ou emigravam menos, o que teria natural-mente a ver com a distribuição social da alfa-betização e a relação entre grupos sociais e taxasde mortalidade e/ou movimentos migratórios.

Devemos no entanto acrescentar, que esta re-lação entre alfabetização e esperança de vidae/ou emigração não está confirmada por nenhumtipo de estudo, afigurando-se apenas como umaexplicação plausível, embora parcial, para ocrescimento da percentagem de alfabetos à medi-da que as coortes vão envelhecendo.

Vimos assim, que as idades em que de umaforma evidente os ciclos de alfabetização erammais fortes eram as compreendidas entre os pe-ríodos anteriores aos 10-14 anos e os 20-24, eperdendo algum fôlego a partir daqui, tudo indi-caria no entanto que uma parte substancial dosportugueses continuaria a procurar as letras umavez ultrapassada a idade dos vinte anos.

Para tornarmos esta questão mais clara cons-truímos seis pequenas coortes, a dos que teriam10-14 anos em 1900 e 20-24 em 1911, o que in-felizmente o adiamento do Censo de 1910 devi-do à revolução republicana não permitiu, o mes-

mo se passando com os que teriam 10-14 em1911 e deveriam ter 20-24 em 1920. Livres des-tes problemas, avançámos para as outras quatropequenas coortes, as de 1920-1930, 1930-1940,1940-1950 e 1950-1960 e o que encontrámos foio apresentado no Quadro 4.

Por este Quadro poderemos verificar que osganhos de alfabetizados entre os 10-14 anos e os20-24 anos são sempre positivos até à última pe-quena coorte, ou seja, a respeitante aos que em1950 teriam idades compreendidas entre os 10 eos 14 anos e que em 1960 teriam idades compre-endidas entre os 20 e os 24 anos, altura em que omovimento de ganho de alfabetizados de umpara outro destes grupos de idades se inverte.Por outras palavras, a população que tem idadescompreendidas entre os 10-14 anos em 1950,tem em números brutos, mais alfabetizados nesteano do que dez anos depois, o que significa quea escola, frequentada em idades consideradasnormais, passa a partir desta altura a sobrepor-sea outras formas de alfabetização.

A interpretação que damos a este conjunto dedados que temos vindo a expôr e a comentar, éconsonante com as hipóteses que temos susten-tado até aqui:

a) até à primeira metade do século XX a for-ma de acesso dos portugueses à cultura es-crita, é decidida no seio dos grupos sociais

172

QUADRO 4Número de alfabetos ganhos ou perdidos entre os 10-14 anos e os 20-24 anos, para os anos de

1900-1911, 1911-1920, 1920-1930, 1930-1940, 1940-1950 1950-1960

1900 1911 1920 1930 1940 1950 1960

10-14 anosRecenseados 580.881 635.966 682.578 646.267 803.356 799.693Alfabetos 140.606 204.907 243.122 269.072 480.679 604.062

20-24 anosRecenseados 511.517 515.709 625.635 630.682 761.703 705.204Alfabetos 178.184 208.377 273.687 350.939 516.551 560.873

Fontes: Censo da população do Reino de Portugal no 1.º de Dezembro de 1900; Censo da população de Portugal no 1.º de Dezembrode 1911; Censo da população de Portugal - Dezembro de 1920; Censo da população de Portugal - Dezembro de 1930;Recenseamento Geral da população no Continente e Ilhas Adjacentes em 12 de Dezembro de 1940; Recenseamento Geral dapopulação no Continente e Ilhas Adjacentes em 15 de Dezembro de 1950; Recenseamento Geral da população às 0 horas de 15 deDezembro de 1960.

Page 11: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

como a família ou por impulsos indivi-duais que se prendem à mobilidade sociale à adaptação às exigências profissionais, aescola podendo ser usada, mas com umaenorme liberdade por parte das popula-ções. Trata-se de ritmos e tipologias de al-fabetização não estandardizadas, e por-tanto não escolarizadas, que anteriormentecaracterizámos como «Alfabetização vo-luntária e informal» (Candeias, 1996), ca-racterística das formas pré-modernas derelação entre as populações ocidentais e acultura escrita.

b) A partir da década de 50 alfabetização eescola confundem-se cada vez mais, e seráatravés da escola e das regras e currículospor ela imposta, isto é, pelo Sistema Edu-cativo, que o grosso dos portugueses ace-dem às letras. Ou seja, será a partir da dé-cada de 50 que a escola se inscreve como

algo de absoluto e de normal na juventudeportuguesa, passando-se assim de uma for-ma de alfabetização «voluntária e infor-mal» para uma forma de relação com acultura escrita que poderíamos caracterizarcomo de «escolarização imposta e estan-dardizada» característica da modernidadeeducativa, primeiro nas culturas ocidentaise depois no Mundo.

A rápida evolução da escolaridade juvenilem Portugal, que se processa entre a década dequarenta deste século e a de sessenta, mas so-bretudo entre 1950 e 1960, ilustra o que antesdissemos (Quadro 5).

Por este Quadro poderemos perceber váriascoisas, a primeira sendo a rápida evolução domovimento de escolarização entre os anos de1940 e 1960 nas crianças em idade de frequênciada «escola primária», ou seja com idades entreos 7 e os 9 anos.

173

QUADRO 5Taxas de frequência escolar: percentagens diferenciadas entre as crianças com idades

compreendidas entre os 7 e os 9 anos que são declaradas como a) sabendo ler, b) frequentando umgrau de ensino, c) possuindo um grau de ensino, nos Censos de 1940, 1950 e 1960

Censo de 1940 Total Sabem ler Frequentam a escola Possuem diploma

Total de crianças recenseadas 492.726 212.954 165.661 5.862entre os 7 e os 9 anos

Percentagens 43% 33% 1%

Censo de 1950

Total de crianças recenseadas 460.742 361.830 335.606 832entre os 7 e os 9 anos

Percentagens 78% 73% 0.2%

Censo de 1960

Total de crianças recenseadas 510.265 494.971 483.184 7.309entre os 7 e os 9 anos

Percentagens 97% 95% 1%

Cálculos a partir de: Recenseamento Geral da população no Continente e Ilhas Adjacentes em 12 de Dezembro de 1940;Recenseamento Geral da população no Continente e Ilhas Adjacentes em 15 de Dezembro de 1950; Recenseamento Geral dapopulação às 0 horas de 15 de Dezembro de 1960.

Page 12: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

De facto, em 1940 apenas 33% das criançasnestas idades frequentavam a escola e em 1960serão 95%, ou seja, a quase totalidade das crian-ças desta classe de idade.

Mas mais do que isso, em 1940, das 212.954crianças que eram declaradas como «sabendoler» entre as idades dos 7 e os 9 anos, 47.293, ouseja, 22% delas ou já não frequentava a escolaou teria aprendido a ler fora dela, tais percen-tagens baixando para 7% em 1950 e em 1960, só2% destas crianças se encontravam nessa situa-ção.

A escolarização, ainda que curta e incipiente,era em 1960, um dado adquirido e natural nascrianças portuguesas e era a primeira vez nesteséculo que tal sucedia.

Estamos pois, na década de sessenta do séculoXX, no fim de um longo ciclo de institucionali-zação da escola, um ciclo começado em 1844com as leis de Costa Cabral sobre a obrigatorie-dade escolar, um ciclo que durou em Portugalcerca de 116 anos até se completar.

Tentaremos de seguida, e através de um estu-do de caso, compreender a mesma questão, a dasrelações entre a vida, o trabalho, o lazer e a esco-la, recorrendo a um acompanhamento mais por-menorizado e intimo de um extracto populacio-nal rural.

2.3. Um estudo de caso: alfabetização, escola,dinâmicas sociais e processos de mu-dança em quatro gerações da freguesiado Beco, Concelho de Ferreira do Zêzere

2.3.1. Apresentação do estudo

Como antes foi dito, esta parte do trabalho re-fere-se a um estudo de caso que teve lugar nafreguesia do Beco, uma das freguesias do Con-celho de Ferreira do Zêzere, o objectivo inicialtendo sido a análise evolutiva do estatuto dacriança em duas gerações rurais – avós e netos,as quais na realidade não tinham nenhum laço deparentesco entre si, mas cujas datas de nascimen-to se enquadravam em datas que tornariam taislaços possíveis.

Desde cedo estendemos a dimensão do traba-lho através da investigação relativa aos percursosescolares e profissionais das gerações anterioresàs que constituíam o alvo inicial da investigação,

pelo que, embora de formas diferentes, acabá-mos por englobar nesta pesquisa quatro geraçõesdesta freguesia, nascidas entre os anos de 1888 e1985.

A questão que inicialmente nos guiou foi aseguinte:

O que mudou e o que ficou da vida e dasimagens sobre ela construídas por duas ge-rações de crianças rurais, nascidas namesma localidade e nela tendo vivido evivendo, entre os anos de 1926 e 1936 e en-tre os anos de 1985 e 1988, tendo por basea Escola, a Família, o Trabalho e os Tem-pos Livres (Simões, 1998, p. 42).

Assim, para as quatro gerações que acabámospor trabalhar, mas de forma mais metódica eorganizada para as gerações de avôs e netos, fo-ram analisadas quatro questões que de seguidaexpomos:

a) tipologias de Rotinas do Quotidiano, emque se procura analisar transformações demodos de vida quotidianamente organiza-dos;

b) a Imagem de Escola, tentando-se por umlado perceber a maneira como a escola erae é vista e vivida por ambas as gerações, epor outro, detectar tipologias diferenciadasde geração para geração no que diz respei-to às formas de acesso à cultura escrita.Neste caso, e como antes foi afirmado, es-tendemos o trabalho para gerações anterio-res às que são o alvo principal deste estu-do, o que na economia deste artigo acaboupor se tornar num dos seus pontos prin-cipais.

c) a Imagem de Actividades de Produção li-gadas ao meio familiar, tendo em conta ainfluência que este tipo de tarefas exerceunos sujeitos das duas gerações, estandosubjacente o tipo de família e economiadominantes em cada um dos momentoshistóricos;

d) a Imagem de Tempos Livres como formade gestão de tempos disponíveis e auto-geridos.

O que de facto nos interessou nesta parte dotrabalho, foi a tentativa de compreender atravésdo estudo evolutivo destas categorias, as mudan-

174

Page 13: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

ças e as permanências que se relacionam comtransformações de modos de vida quotidiana-mente organizados em duas gerações, e a sua re-lação com os modos de uso e acesso à cultura es-crita.

Assim sendo, além dos trabalhos historiográ-ficos sobre a evolução das formas de consolida-ção de um modo de cultura escrita, os quais ser-viram de pano de fundo ao desenvolvimento des-te estudo, somos também devedores de outros ti-pos de contributos e de linhas de investigaçãoque gostaríamos ainda que resumidamente desalientar.

Em primeiro lugar gostaríamos de sublinhar aimportância que teve para nós a obra de MarieJosé Chombart de Lauwe, que durante uma vidaelegeu como centro das suas atenções a temáticainfantil nas suas variadas componentes.

Baseada em décadas de uma riquíssima eprofícua investigação esta autora, entre muitasoutras coisas, salienta a existência de três pilaresapoiados nos quais a vida da criança em idadeescolar decorre e se desenvolve: o meio escolar,o meio familiar e o meio envolvente, quer de or-dem extra-escolar quer de ordem extra-familiar(Chombart de Lauwe, 1987a, 1987b). O percursopercorrido por esta autora, as conclusões cuida-dosas com que vai temperando a sua obra e asmetodologias empregues no seu trabalho servi-ram-nos de guia neste estudo.

Gostaríamos também de realçar a importânciados trabalhos que se filiam na História Oral, co-mo contributo para a construção de um conheci-mento mais abrangente das dimensões, compo-nentes e relações envolvidas em estudos que in-tegrem uma vertente histórica (entre outros, Vi-digal 1996).

Ao analisarmos relatos de experiências, rela-tos vivos, aspectos do presente integrados nosseus modos de vida, utilizámos abordagens deraiz etnográfica que Stephen Stoer e Helena C.Araújo integram no que denominam de «etno-grafia crítica» e que permitem «... aliar ‘agênciahumana’ com ‘estrutura social’» (Stoer & Araú-jo, 1992, p. 23). Somos também, amplamente de-vedores da forma como Raul Iturra (1990, entreoutros), Filipe Reis (1992) e Ricardo Vieira(1992) abordaram as relações entre educação,ensino e crescimento sem se importarem muitocom o papel que a escola tem nestes processos,quando muito realçando o desajustamento entre

uma escola de raiz urbana e crianças educadasem meios rurais.

Por fim, a informação recolhida foi tratadaatravés dos processos de «análise de conteúdo»tendo sido de importância primordial para nós otrabalho teórico de L. Bardin (Bardin, 1977).

2.3.2. Amostra e procedimentos

Participaram neste estudo 40 sujeitos, distri-buídos por dois grupos, um constituído por 20idosos e o outro por 20 crianças, ambos os gru-pos podendo ser enquadrados no que generica-mente designamos por «classes populares».

Cada um destes grupos era constituído por 10sujeitos do sexo feminino e 10 sujeitos do sexomasculino.

Os idosos tinham idades compreendidas entreos 60 e os 70 anos e era condição necessária paraserem escolhidos, que tivessem passado as suasinfâncias, entre os 8 e os 11 anos, na referida fre-guesia.

Quanto às crianças, elas frequentavam os 3.º e4.º anos das duas únicas Escolas de 1.º Ciclo doEnsino Básico da freguesia do Beco, e tinhamidades compreendidas entre os 8 e os 11 anos.

De cada escola foram escolhidas 10 criançaspara a amostra, independentemente do sexo.

A maneira como procedemos à recolha de in-formações foi diferente conforme se tratasse dasub-população idosa ou das crianças.

No que diz respeito à primeira destas sub-po-pulações privilegiámos a construção de um guiãode entrevista que nos orientasse num processosemi-directivo de recolha de informação.

Assim, e a partir de entrevistas abertasefectuadas a seis sujeitos idosos, três homens etrês mulheres, procurámos encontrar indicadoresatravés de fragmentos de respostas e procedemosà construção das categorias e sub-categorias,que serviram de base à construção de um guiãopara 20 entrevistas semi-directivas. Do mesmomodo testámos a validade e fidelidade do instru-mento.

A partir dos dados obtidos nas entrevistas se-mi-directivas, recolhemos a informação relativaaos progenitores destes sujeitos, procurando es-tabelecer comparações na forma como evoluíramos níveis de escolaridade e as actividades profis-sionais, de uma geração para outra.

No que respeita à população mais jovem o

175

Page 14: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

processo de recolha de informação foi mais di-versificado.

Desta forma, foi-lhes solicitado o preenchi-mento de folhas de diário referentes a uma se-mana, de 2.ª Feira a Domingo, onde se fazia re-ferência a vários períodos do dia. Esta tarefa erafeita em casa, por indicação da respectiva profes-sora. Seguidamente, cada criança escreveu doistextos, de acordo com os temas «Os meus Tem-pos Livres» e «Os meus jogos e brincadeiras».

A partir das produções escritas, numa pré--análise, foram encontradas unidades de registosignificativas tendo em conta as categorias já en-contradas na população de idosos, e tal comopara este grupo, procedeu-se à elaboração de 20entrevistas semi-directivas às crianças, de acordocom um guião semelhante ao já referido.

No final das entrevistas, as quais, e tal comopara o grupo dos idosos, tiveram lugar nas suascasas, recolheu-se informação respeitante à esco-larização dos pais e às suas actividades profissio-nais, de forma a estabelecer quadros comparati-vos com a escolarização dos idosos e dos proge-nitores dos idosos.

Como forma de obtenção de mais informaçãosobre os quotidianos infantis, e em particular noque diz respeito à sua vertente escolar, deslocá-mo-nos várias vezes às suas salas de aula, onde,e com o acordo das professoras, recolhemos da-dos suplementares para uma análise mais fide-digna de certas unidades de registo.

Com base nos dados obtidos nos dois gruposda amostra, foram registadas as frequências enalguns casos as percentagens, associadas acaracterísticas relativas às épocas em estudo,procedendo-se em seguida a uma comparaçãoentre as descrições dos quotidianos de ambas asgerações.

No que respeita aos resultados deste estudo,optámos por analisá-los em dois tempos: o pri-meiro refere-se à evolução dos níveis de alfabe-tização e de escolaridade cruzados com as pro-fissões, de três gerações desta freguesia nascidasentre 1888 e 1969; o segundo refere-se à análisecomparativa entre os quotidianos, as imagens deescola, as actividades produtivas e o lazer entreas chamadas «geração de avôs» e «geração denetos».

2.3.3. Análise dos dados referentes à evoluçãodos níveis de alfabetização e de escola-ridade em três gerações da freguesia doBeco

Os idosos da amostra por nós recolhida, têmas suas raízes numa geração nascida no períodocompreendido entre os anos de 1888 e 1914, pe-ríodo que coincide com o fim da MonarquiaConstitucional e o eclodir da 1.ª República. Tra-tando-se da primeira geração cujas relações coma escrita serão por nós investigadas, ainda queindirectamente pois só através dos seus filhos éque poderemos recolher as informações que nosinteressam, ela será designada por «geração dosbisavôs».

Ao nível das competências literácitas destaprimeira geração, é encontrado algo que se apro-xima do que Justino Magalhães designa poruma lógica de verticalização, traduzida numa di-ferenciação/distinção face à situação de alfabeti-zado ou analfabeto, e de onde ressalta o perfil doalfabetizado pré-escolarizado (Magalhães, 1996,p. 441).

Tal como este autor afirma, ao alfabetizadopré-escolarizado é conferido um perfil em que sesalientam a capacidade de leitura, descodificaçãoe interpretação de mensagens contextualizadas,detendo ainda, a possível competência de regis-tar de forma escrita, outras mensagens sujeitas atradução, como que mediadoras entre a escrita ea oralidade.

Dado que a aprendizagem da escrita, de umaforma geral, sucede à da leitura, embora para al-guns elas tenham lugar simultaneamente (Ma-galhães, ibidem), um largo número de aprendizesficou-se apenas pela competência da leitura,conferindo à escrita um nível de realização infe-rior à primeira.

No que respeita a esta «geração dos bisavôs»nascida entre os anos de 1888 e 1914, 25 de umapopulação total de 39, visto que nada se sabesobre um dos pais, eram considerados analfabe-tos (cerca de 64% da população, 10 homens e15 mulheres) e os restantes 14 (36%, 9 homens e5 mulheres) tinham habilitações que variavamentre um diploma de 3.ª ou 4.ª classe, ou o «sa-ber ler, ou ler e escrever».

Destes 14 alfabetizados e/ou escolarizados,apenas 5 eram mulheres das quais três tinhamobtido diplomas de 3.ª ou 4.ª classe o que estan-

176

Page 15: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

do de acordo com as tendências que apontam pa-ra a primazia do masculino no acesso à escritanas fases iniciais da sua difusão, realça tambéma persistência nos meios rurais do virar do séculode um tipo de sociedade marcadamente patriar-cal.

Em relação às profissões, vemos que as três«bisavós» diplomadas são consideradas «do-mésticas», enquanto as restantes, analfabetas oualfabetizadas, além de também serem «domésti-cas» trabalham o campo como lavradoras ou ma-deireiras. Claramente, neste caso, o diploma su-gere um determinado status.

De igual modo, os quatro «bisavôs» que obti-veram diplomas, são homens de ofícios como ode marceneiro, pedreiro e barbeiro. Nos restantesque frequentavam a escola sem serem diploma-dos, alfabetizados de forma informal ou simples-mente analfabetos, encontramos um carvoeiro,um pedreiro, dois serradores e dez agricultores//jornaleiros.

Embora a introdução da escolaridade obriga-tória tenha tido lugar em Portugal no ano de

1844, uma parte desta geração de bisavôsnascida entre 1888 e 1914, entra no mundo dasletras de forma autónoma, recorrendo ou não àescola local, na tropa, interagindo com colegas,ou ainda em casa de familiares onde o conheci-mento das letras chegara, servindo-se deste saberde forma ajustada e regulada em relação às pró-prias necessidades.

O Quadro 6 resume a situação antes descrita.Estas são as raízes dos idosos da nossa amos-

tra, a segunda geração aqui em estudo e que porconveniência passaremos a designar por «gera-ção dos avôs», nascida entre a terceira e a quartadécada deste século, mais precisamente, entre1926 e 1936.

Nos anos que vão de 1934 a 1947, período áu-reo do salazarismo, teriam eles idades compreen-didas entre os 8 e os 11 anos, idades em que nor-malmente frequentariam a «escola primária».

Este período, tal como é afirmado por Antó-nio Nóvoa, justapõem-se à «construção naciona-lista da educação», um esforço por parte do re-gime na sedimentação de uma escola nacional

177

QUADRO 6Competências literácitas e profissões da geração dos bisavôs, formas e tempos de obtenção

Cap. Lit. Masc. Profissão Fem. Profissão Freq.

Analfabeto 10 7 agricultores/ 15 13 domésticas/ 25jornaleiros agricultoras1 carvoeiro 2 domésticas/1 pedreiro madeireiras1 serrador

Alfabeto sem escola 4 2 agricultores/ 1 1 doméstica/ 5jornaleiros agricultora

1 agricultor/serrador

1 serrador

Escola sem diploma 1 1 agricultor/ 1 1 doméstica/ 2jornaleiro agricultora

Diploma período normal 4 1 marceneiro 3 3 domésticas 7de escola (3.ª ou 4.ª classe) 2 pedreiros

1 barbeiro/comerciante

in Simões, 1998, p. 85.

Page 16: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

ajustada ao modelo mais militante do EstadoNovo (Nóvoa, 1992).

Prosseguindo a análise através dos quadrosgenealógicos, observa-se que a maioria dos su-jeitos da geração dos avós em cujos pais, um pe-lo menos fosse diplomado, obtêm igualmente,por volta dos 11 ou 12 anos, um diploma.

Idêntica situação se verifica quando os paiseram alfabetizados, mesmo sem serem diploma-dos.

O universo dos filhos de casais analfabetosera mais heterogéneo em termos de nível de es-colaridade.

Nenhuma destas pessoas quando jovens, sen-tiam ter perspectivas de trabalho futuro que fos-se diferente dos trabalhos com que diariamenteconviviam. Os seus destinos pareciam estar mar-cados nas rugas dos seus pais. Ser como eles,numa espécie de inércia pré-determinada:

«...Ninguém dizia: vais estudar para ser istoou aquilo ... mas era sempre bom aprender...»

Era importante saber. A possibilidade de fre-quentar a escola por algum tempo, pouco quefosse, o facto de aprender «...duas letras...», eraalgo bastante valorizado para estes sujeitos:

«...Gostava muito da escola ... ainda hoje,quando escrevo uma palavra, olho o Céu e digo:Deus dê o Céu a quem tanto sacrifício teve parame mandar ensinar duas letrinhas ... se não fossea minha mãe que Deus tem...»

É assim que, em idade escolar, esta geração deavôs, à excepção de um dos seus, uma mulher,frequenta a escola, de formas algo irregulares écerto, mas tendo sido obtidos no decorrer das su-as vidas, embora para alguns já bem depois daidade escolar, 15 diplomas da 3.ª e 4.ª classe.

E diz-nos a idosa, que outrora menina teria si-do a única que não frequentara a escola a não serao sábado para aprender a Doutrina:

«...Ai! a minha Escola foi sempre andar poresse campo fora ... sempre a trabalhar na fazenda... nunca frequentei a Escola (...) nunca memandaram para lá...»

Como dissemos antes, dos que a frequentaramnem todos obtiveram o diploma e dos que o obti-veram, alguns fizeram-no em adultos. Assim, oi-to sujeitos, quatro mulheres e quatro homens fre-quentaram-na por pouco tempo. Em termos prá-ticos, quase não sabiam ler nem escrever e as ne-cessidades de cada um continuavam a sobrepôr--se ao que a lei obrigava:

«...andei pouco tempo na escola, tinha tam-bém uma irmã gémea que era demente e eu tinhaque olhar por ela...»

«...porque era rapariga. Os meus irmãos ra-pazes, esses foram...»

«...mas as raparigas mais velhas, essas, fica-vam em casa ... não as deixavam evoluir ... eramais para serem donas de casa...»

Estas crianças vão crescendo e os temposvão mudando. Em idade adulta e entrando nadécada de 50, parece existir uma procura de cer-tificações escolares, como se essa fosse a únicaforma de garantir um dos novos empregos que seiam criando e que rompiam finalmente com odestino da lavoura.

Surge o motorista e a modista e para quemquer ou precisa de tirar a carta de condução, odiploma de 4.ª classe é necessário.

Deste modo, na geração dos avôs que cresceuna freguesia do Beco, da idade escolar para aidade adulta o analfabetismo começa a tornar-seinviável, as formas de alfabetização informaltêm que ser sancionadas por um diploma e dasoito pessoas que não o tinham obtido em criança,seis fazem-no em adulto.

Mas nem tudo é adquirido, e duas das mulhe-res que tinham aprendido a ler e a escrever na es-cola, com o tempo e a falta de uso, acabam porperder em adultas o que tão custosamente teriasido adquirido em criança, tornando-se de novoincapazes de ler uma letra ou de escrever umapalavra.

O Quadro 7, de novo ilustra o que antes foidescrito.

Pode-se assim concluir que, nesta geração aque chamámos dos «avôs», em idades fora dotempo escolar, já como adultos, perderam-seduas alfabetizadas e a ganharam-se seis diplo-mados, o que nos mostra que apesar do progres-so evidente face à geração anterior, o acesso àescrita, à escola e aos diplomas por ela confe-ridos nas idades previstas pela lei, ainda estavamlonge de ser a regra na freguesia do Beco.

Por outras palavras, apesar de apenas exis-tirem neste universo composto por vinte pessoastrês analfabetas, duas das quais se tornamanalfabetas já depois de frequentarem a escola,apenas nove destas pessoas a frequentaram e ter-minaram, tendo obtidos os seus certificados de3.ª ou 4.ª classe, no tempo hoje considerado nor-mal para o efeito.

178

Page 17: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

As diferenças no acesso à escolaridade emfunção do sexo, mantêm-se fortes nesta geraçãode avôs, ao verificarmos que os dez homensobtêm um diploma de ensino primário, apesar dequatro o fazerem em idade adulta, e apenas cin-co mulheres obtêm o mesmo diploma, duas dasquais num período pós escolar.

Finalmente e comparando as duas gerações,nota-se um progresso notável na alfabetização deuma para outra geração. Com efeito, a taxa deanalfabetismo baixa de 64% na geração dos bi-savôs para 15% na geração dos avôs.

A este progresso não será estranha as diferen-ças encontradas nas profissões da geração dosbisavôs e dos avôs.

Na verdade, dos pais e mães da geração dosavôs, trinta dos trinta e nove indivíduos, entrehomens e mulheres, tinham profissões ligadas aocampo, quer se tratasse de agricultores jornalei-ros, agricultores serradores, serradores, domés-ticas agricultoras ou domésticas madeireiras e sónove tinham profissões mais urbanas e «profis-sionais», como o pedreiro o marceneiro o carvo-

eiro o barbeiro e no caso das mulheres, a domés-tica.

Os seus filhos, e sobretudo os filhos-homensmudaram claramente de estatuto, as dez profis-sões encontradas sendo todas ligadas a profis-sões mais ou menos urbanas. Quanto às filhas,nesta geração de avós, elas mantém-se na suageneralidade agarradas a um estatuto interno àcasa e ao trabalho agrícola, oito delas sendo clas-sificadas como domésticas agricultoras, as ex-cepções sendo uma modista e outra domésticaapenas.

Parece evidente destas transformações pro-fissionais que se registam de uma para outra ge-ração, que a exploração da terra como meioúnico de subsistência se vai tornando cada vezmais difícil, e este facto vai empurrando os ho-mens na busca de outras profissões e ofícios en-quanto as mulheres continuam ligadas à explora-ção da parcela familiar.

Estas diferenças claras nos caminhos percor-ridos por homens e por mulheres, justificam porum lado a as diferenças encontradas nas habilita-

179

QUADRO 7Competências literácitas e profissões da geração dos avôs, formas e tempos de obtenção

Cap. Lit. Masc. Profissão Fem. Profissão Freq.

Analfabeto sem escola 1 1 doméstica/ 1agricultora

Analfabeto com escola 2 2 domésticas/ 2agricultoras

Escola sem diploma 2 2 domésticas/ 2agricultoras

Diploma período normal 6 marceneiro 3 3 domésticas/ 9de escola (3.ª ou 4.ª classe) pedreiro

barbeirocantoneirosapateiro

carpinteiro/agricultor

Diploma adulto (3.ª ou 4 3 pedreiros 2 1 modista 64.ª classe) 1 motorista 1 doméstica

in Simões, 1998, p. 92.

Page 18: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

ções escolares entre sexos, ou seja uma clara su-bida nas certificações escolares dos homens emrelação às mulheres e reforçam o estatuto subor-dinado da mulher na estrutura social da Fregue-sia do Beco.

O homem torna-se detentor de um ofício,consegue ler e o seu círculo social encontra-se navila ou na cidade, enquanto a mulher continua atrabalhar de sol a sol na lavoura, tratando dosfilhos e da casa, movendo-se num círculo maisrestrito no qual a leitura e a escrita desempe-nham papéis menores.

Nunca se podendo extrapolar estes números eestas conclusões para o todo nacional ou mesmoregional, o que parece certo, apesar do que antesfoi dito, é o facto de que na freguesia do Beco doConcelho de Ferreira do Zêzere, as décadas detrinta, quarenta e cinquenta se saldaram por umincremento evidente da alfabetização, construídaainda de forma pouco estandardizada, mas recor-rendo cada vez mais à procura de habilitaçõesformais sancionadas pela escola do Estado, o queestá longe de ser o caso na geração anterior. Re-pare-se a este respeito, como de uma para outrageração desaparece a categoria do «alfabetizadosem escola» e aparece a do «Diploma em idadeadulta».

Assim sendo, tudo indica que a erosão das ba-ses de uma sociedade rural muito ligada à agri-cultura de subsistência, e a consequente moder-nização dos tecidos sociais e profissionais, de-sempenham um papel importante senão mesmoprimordial na ascensão da escolarização e alfa-betização destes povos, embora com reflexosprofundamente diferentes quer se trate de ho-mens ou de mulheres.

Passemos pois à geração seguinte.As crianças que encontraremos no fim deste

estudo de caso, têm as suas raízes numa geraçãode pais que nasceu entre as décadas de 40 e 60deste século, mais concretamente entre 1945 e1969.

Como se pôde perceber numa parte anteriordeste trabalho, entre a década de 50 e a décadade 60, estava estabelecida na prática e não ape-nas na lei a obrigatoriedade de as crianças fre-quentarem a escola, e a partir desta altura, oacesso às letras vai-se fazendo, na generalidadeda população portuguesa, através da escola e deuma forma normalizada, ou seja, nas idadesconsideradas normais e com os resultados tam-

bém normais, que passam pela obtenção de di-plomas de escolaridade primária.

É nestes tempos, verdadeiras antecâmaras davertiginosa década de setenta, que o fundamentalda «geração dos pais» como será designada apartir daqui, frequenta a escola e acede às letras.

Apenas um pai e uma mãe são dados comoanalfabetos, um dos pais frequentou a escola massem nela ter obtido o respectivo diploma, dezpais e dezassete mães têm um diploma de escola-ridade primária obtido na infância, um paiobteve o mesmo diploma em idade adulta e setepais e duas mães têm estudos pós primários.

O Quadro 8 resume o que antes dissemos.Como se compreende pelo Quadro antes ex-

posto, o nível de escolaridade subiu em relação àamostra populacional anterior, o mesmo aconte-cendo, embora apenas em parte, à estrutura pro-fissional desta «geração dos pais». Assim, doisindivíduos desta amostra, um homem e umamulher, são analfabetos, nunca tendo frequen-tado a escola, um deles frequentou-a mas semnela ter obtido um diploma, e todos os restantes,em número de 37 obtiveram pelo menos um di-ploma da «Instrução Primária». Destes últimos,sete prosseguiram estudos pós primários e umdos que se ficou pelo diploma básico, obteve-ojá enquanto adulto.

Ou seja, dos quarenta indivíduos referencia-dos, só quatro é que não tiveram uma escolari-dade considerada pelos padrões actuais, «nor-mal», e a categoria dos «que se tornaram analfa-betos» em adultos desaparece. Repare-se no en-tanto, que de forma geral, se trata de uma escola-ridade curta, com trinta dos trinta e sete escolari-zados a ficarem-se pelo diploma de «InstruçãoPrimária».

As diferenças de habilitações entre homens emulheres esbatem-se mas persistem: das vintemulheres desta amostra, apenas duas têm estudospós primários, percurso seguido por sete ho-mens.

A tendência é pois para a escolaridade em ida-des normais se tornar um dado adquirido nestageração, na freguesia do Beco, mas a duraçãodos estudos empreendidos continua a variar como sexo.

Quanto à estrutura profissional dos homensencontramos três tipos de situações: trabalhado-res indiferenciados, profissões tradicionais eproprietários ou empresários.

180

Page 19: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

As duas primeiras são dominantes, e entre tra-balhadores da construção civil (9), pedreiros,carpinteiros e madeireiros (5) encontramos asprofissões de catorze dos vinte homens destaamostra. Dos seis outros homens, quatro são em-presários agrícolas, um agricultor e outro comer-ciante.

Em relação à geração anterior, a «geração dosavôs», apenas há a acrescentar além do trabalhona construção civil, as profissões de empresárioe de comerciante, os progressos em termos doestatuto profissional não variando muito de umapara outra geração.

No que respeita às mulheres, o tipo de ocupa-ção preponderante continua a ser, em 1996, al-tura em que estes dados foram recolhidos, a de«dona de casa/agricultora». De facto das vintemulheres que fazem parte da amostra, quinzecontinuam amarradas à parcela familiar e cincodistribuem-se por ocupações de serviços (1) e naindústria local como operárias da indústria ali-mentar (4).

Assim, os homens desta «geração dos pais»,tal como os homens da geração anterior conti-nuam a ter profissões essencialmente urbanas e

pouco qualificadas em geral, embora se notemalguns progressos neste domínio, enquanto asmulheres, e à semelhança da geração anterior secircunscrevem na sua maioria à casa e aos tra-balhos agrícolas da parcela familiar.

Por outras palavras, no que diz respeito à es-trutura profissional desta amostra e à sua ligaçãocom os níveis de habilitação adquiridos, po-demos constatar que a escola se impôs como umdado adquirido mas a estrutura profissional nãoparece ter sido qualitativamente alterada por es-tes progressos da escolarização, progressos essesque são apenas modestos.

Tendo em conta as três gerações aqui analisa-das, ficamos sobretudo com a sensação de que asmudanças mais interessantes se dão da primeirapara a segunda geração, ou seja, da «geração dosbisavôs» para a «geração dos avôs».

Na verdade, aquilo que nos parece ser real-mente marcante em termos de mudanças, e en-trando em conta com as três gerações analisadasé a erradicação do analfabetismo enquanto situa-ção dominante da estrutura social da freguesiado Beco e o surgimento da escola como algo defundamental nas estruturas de vida, e isto acon-

181

QUADRO 8Competências literácitas e profissões da geração dos pais, formas e tempos de obtenção

Cap. Lit. Masc. Profissão Fem. Profissão Freq.

Analfabeto 1 constr. civil 1 doméstica/ 2agricultora

Escola sem diploma 1 constr. civil 1

Diploma período normal 10 3 carpinteiros 17 13 domésticas/ 27de escola (3.ª ou 4.ª classe) 3 constr. civil agricultoras

1 comerciante 3 indústria1 madeireiro alimentar

1 pedreiro 1 num lar1 agricultor

Diploma adulto (3.ª 4.ª classe) 1 constr. civil

Estudos pós primários 7 4 empresários 2 1 doméstica/ 93 constr. civil agricultora

1 ind. alimentar

in Simões, 1998, p. 107.

Page 20: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

tece na transição da «geração dos bisavôs» paraa «geração dos avôs». A partir daqui, vemos opapel institucional da escola reforçar-se da gera-ção dos avôs para a geração dos pais, mas umavez atingido este patamar, os progressos parecemser lentos.

No entanto, se analisarmos de forma indepen-dente a evolução dos percursos de alfabetiza-ção/escolarização de homens e de mulheresconstatamos que as diferenças são assinaláveis enão se enquadram totalmente no que antes disse-mos, como o Quadro 9 poderá mostrar.

Na verdade, se no que concerne aos dados nasua totalidade, o momento decisivo parece jogar-se na transição da «geração dos bisavôs» para a«geração dos avôs», ao analisarmos a amostrafeminina isoladamente, constatamos que a evo-lução da alfabetização/escolarização é mais lentaque dos seus homólogos masculinos, e que é da«geração dos avôs» para a «geração dos pais»que acontece aquilo que para os homens se tinha

dado na geração anterior: a totalidade da amos-tra, com uma única excepção, torna-se escolari-zada e está habilitada com pelo menos o diplomada «Instrução Primária».

Resumindo os dados que nos parecem maisimportantes da análise destas três gerações, po-deríamos concluir o seguinte:

a) Como é normal, quer a alfabetização quera escolaridade evoluem num sentido posi-tivo da primeira para a terceira destas ge-rações. Por outras palavras, não só o anal-fabetismo, embora persista em pequenasbolsas até aos nossos dias, tem tendência adesaparecer, como a escolaridade se vaiimpondo, estandardizando e o nível dehabilitações vai aumentando, ainda quede forma modesta.

b) Esta evolução em termos de escolarizaçãotem ritmos diferentes para os homens e pa-ra as mulheres, sendo mais precoce no ca-so masculino. Nos homens, o momento de-

182

QUADRO 9Variação das competências literácitas enquanto adultos, na freguesia do Beco, Concelho de

Ferreira do Zêzere: a «geração dos bisavôs», nascidos entre 1888/1914, a «geração dos avôs»,nascidos entre 1926/1936 e a «geração dos pais», nascidos entre 1945/1969

Bisavôs Avôs Pais(1888/1914) (1926/1936) (1945/1969)

MasculinoAnalfabetos 53% (10) 0% (0) 5% (1)

Alfabetizados 26% (5) 0% (0) 5% (1)Diplomados/estudos pós primários 21% (4) 100% (10) 90% (18)

Total 100% (19) 100% (10) 100% (20)

FemininoAnalfabetos 75% (15) 30% (3) 5% (1)

Alfabetizados 10% (2) 20% (2) 0% (0)Diplomados/estudos pós primários 15% (3) 50% (5) 95% (19)

Total 100% (20) 100% (10) 100% (20)

Analfabetos 64% (25) 15% (3) 5% (2)(Masculino + Feminino)

Literatos 36% (14) 85% (17) 95% (38)(Masculino + Feminino)

Total 100% (39) 100% (20) 100% (40)

In Simões, 1998, p. 118.

Page 21: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

cisivo encontrar-se-á na transição da «ge-ração dos bisavôs» para a «geração dosavôs», nas mulheres as grandes diferençasencontrar-se-ão na passagem da «geraçãodos avôs» para a «geração dos pais».

c) No decorrer destas três gerações, a estru-tura profissional desta amostra varia deforma diferenciada conforme o sexo, e es-te facto além de reflectir a persistência deestratificações sociais ligadas ao género,parecem tornar evidentes as relação entreestatuto social, ocupação profissional enível de habilitações literárias. Na verda-de, no caso masculino e na transição dageração dos bisavôs para a geração dosavôs, as ocupações profissionais evoluemde profissões rurais em que predominam o«agricultor-jornaleiro» para profissõesurbanas ligadas aos ofícios, a evoluçãosendo mais lenta a partir daqui. No querespeita às mulheres a sua condição de«doméstica-agricultora» pouco muda nodecorrer destas três gerações.

Passaremos de seguida a uma breve análisedos dados relativos à comparação entre a «gera-ção dos avôs» e a «geração dos netos».

2.3.4. Análise comparativa dos dados referen-tes aos quotidianos, imagens de escola,actividades produtivas e lazer em duasgerações da freguesia do Beco: avôs enetos

Pensamos que não é possível compreender opapel que a escola desempenhou e desempenhana vida das pessoas, sem compreender o mundoque as envolve.

Assim sendo, as mudanças que do ponto devista histórico assinalam o incremento da alfabe-tização e da escola no Ocidente, e no caso quenos interessa, em Portugal, não devem nem po-dem ser isoladas das outras mudanças que vãomarcando a vida.

Desta forma, aquilo que nos moveu nestaparte do trabalho foi a tentativa de compreendero que significava em termos de vida, de quoti-dianos, de brincadeira e de escola, ter entre 8 e11 anos de idade na transição da década de trin-ta para a de quarenta deste século (1934-1947) e

em 1996, no mesmo sítio, ou seja, na já familiarfreguesia do Beco.

A maneira como os dados que de seguidaapresentaremos foram recolhidos e tratados estãoexpostas numa outra parte deste artigo, restando-nos apenas dizer que eles fazem parte de umtrabalho mais vasto ainda em fase de implemen-tação, pelo que a sua apresentação e discussãoserá apenas parcial e resumida, de forma ailustrar os processos de investigação ainda emcurso.

O primeiro tipo de dados que gostaríamos deexpor, ainda que de forma parcial, pois a suaextensão não se coaduna com as dimensões des-te artigo, referem-se à reconstrução de tipologiasde quotidianos diferenciados entre «avôs» e«netos», que constituem na nossa opinião, a ba-se a partir da qual podemos partir para a as ou-tras dimensões analisadas nesta parte do traba-lho.

Para facilitar a comparação dos dados do queseria no caso dos avôs, um dia típico da sua vidaquando tinham idades compreendidas entre os 8e os 11 anos, e no caso dos netos um dia típicoda sua vida actual, a informação recolhida foiagrupada em cinco categorias: Manhã, Lanche(avôs)-Almoço (netos), Tarde, Ceia (avôs)-Jantar(netos) e Deitar.

Por manifesta falta de espaço, iremos apenasexpôr os dados relativos à «Manhã» (Quadro10).

Os resultados desta averiguação sobre os«quotidianos tipo» nestas duas gerações, aindaque expostos apenas parcialmente, sugerem aexistência de profundas diferenças, por um lado,e alguma continuidade por outro, entre os modosde vida das crianças da freguesia do Beco nasdécadas de trinta e de quarenta e os modos de vi-da das crianças da mesma localidade nos nossosdias.

Na verdade este tipo de dados permite-nosvislumbrar a maneira como se constituem e arti-culam as relações entre a escola, o lazer e o tra-balho produtivo em ambas as gerações, mas naimpossibilidade de mobilizarmos todos os dadosreferentes aos quotidianos, passaremos a outrotipo de informações que nos ajudam a completaras imagens implícitas neste quadro.

Através delas percebemos que ambas as gera-ções têm períodos mais ou menos longos do seuquotidiano ocupados com o que poderíamos

183

Page 22: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

classificar como «trabalho produtivo», ou seja,actividades que se relacionam com a economiadoméstica e que a não serem efectuadas pelascrianças, requereriam a contratação de mão deobra assalariada para o fazer.

A diferença entre as duas gerações, é que no

caso dos avôs tal tipo de tarefas era, na maioriados casos, diária e sistemática enquanto que nocaso das crianças de hoje, as tarefas produtivas,embora regulares, são em menor número e vistaspor elas como trabalho normal de ajuda em casa.

O papel que «avôs» e «netos» atribuem ao

184

QUADRO 10Comparação das tipologias de quotidiano de 2.ª a 6.ª feira, referentes apenas ao período da

manhã, nas gerações de «avôs» e «netos» de acordo com as sub-categorias estabelecidas

Manhã: Avôs Manhã: Netos

Acordar 7h/antes do sol nascer; acordar 8h (despertador/a mãe);lavar a cara e as mãos; lavar, vestir;

Refeição desenjua; sopas de café; refeição pequeno-almoço; copo de leite,sardinha assada com broa e pão com tulicreme; leite com

café; restos da ceia; chocolate e torradas; café com leitee pão com manteiga;

Vestuário saca da pulgueira para a chuva; vestuário Kispo para o frio e chuva;descalços/tamancos/botas; botas/sapatos/agasalhos;

a roupa era lavada e vestida nooutro dia;

Trabalho (para alguns); tratar da criação percurso/escola carrinha/a pé (se moram perto);e porcos/pastar cabras; com mochila/cesta do almoço

com termo; na brincadeira;

Percurso/Escola descalços/a pé/1h 30 para escola 9 hohas - entradaalguns; com mala de

linhagem; na brincadeira;

Escola 9 horas - entrada professora ajuda/ensina a trabalhar(imagem) na escola;

Professora respeito; dar educação/ aulas fichas de avaliação/desenhos/(imagem) instruir/castigos; trabalhos; jogos para aprender/

grupos de trabalho; confortável/ambiente acolhedor;

Aulas rituais (bandeira, foto- intervalo 10h30-11h; pão com tulicreme,grafia, crucifixo); cartilha pacote de leite; brincar (quemmaternal/contas/ditado/ se portou mal não brinca);leitura; desconforto/frio;

aulas 11h30-12h; fichas matemática/língua portuguesa.

in Simões, 1998, p. 75.

Page 23: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

«trabalho produtivo» nos seus quotidianos decrianças no caso dos primeiros, e actuais no casodos últimos, é ilustrado pelo Quadro 11.

Deste Quadro se percebe que o trabalho pro-dutivo era visto como fundamental na economiadoméstica das famílias a que pertenciam a maio-ria dos indivíduos da geração dos avôs da fre-guesia do Beco, enquanto que no caso dos netos,o seu trabalho parece ser encarado como umcomplemento dos proventos familiares no sentidoem que aliviam o trabalho dos adultos e dispen-sam a contratação eventual de assalariados. Noentanto, e as entrevistas mostram-no, este traba-lho das crianças da geração dos netos também seinscreve nos restos de uma tradição de educaçãocamponesa em que todos trabalham desde criançae em que o lazer é visto de forma negativa.

Repare-se, mais uma vez, nas diferenças exis-tentes quanto a este «item», entre rapazes e rapa-rigas. Juntando as duas amostras, verificamosque nove rapazes trabalham de forma sistemáticanos dois períodos de tempo analisados, estandodoze raparigas na mesma situação. Uma análisemais extensiva do tipo de trabalhos executadospor rapazes e raparigas mostraria quer «especia-lizações» conforme o sexo, quer também a exis-tência de domínios de trabalho comuns, mas oesforço físico necessário para o cumprimento dastarefas atribuídas a ambos os sexos seriam seme-lhantes.

No entanto e como antes dissemos e o Quadro

anterior nos mostra, as diferenças eram impor-tantes de uma para a outra geração.

A comparação entre os tipos de tarefas ruraisexecutadas por avôs e netos e sobretudo a fre-quência com que são mencionadas nas entrevis-tas, tendo em conta que o número de indivíduosde cada sub-amostra é igual (20), ilustra tais di-ferenças (Quadro 12).

Por outras palavras, o número de referênciasencontradas sobre as actividades produtivasrurais no discurso das pessoas pertencendo à«geração dos avôs» é mais do dobro do númerode referências ao mesmo tipo de actividadesque se encontram no discurso das crianças da«geração dos netos».

Sendo assim, os dados de que dispomos sobreo papel que o trabalho ocupa na estruturação dosquotidianos destas duas gerações, fazem-nossupor que ele agirá como a peça central no tipode relações que se estabelecem com as outrasduas categorias por nós investigadas, ou seja, olazer e a escola.

Inquiridas sobre o tempo de que dispunhampara brincar, ambas as amostras nos dão respos-tas diferentes, conforme se verá no Quadro 13.

Podemos por aqui verificar que as represen-tações produzidas por ambas as gerações sobre otempo de que dispunham para brincar é substan-cialmente diferente, com quinze das vinte pes-soas da «geração dos avôs» a acharem que ounão brincavam ou brincavam pouco, enquanto

185

QUADRO 11Distribuição do trabalho produtivo de acordo com o género, na geração dos avôs e dos netos

Avôs Masculino Feminino Total Freq.

Trabalho Sistemático 8 9 17Trabalho Esporádico 2 1 3

Total 10 10 20

Netos

Trabalho Sistemático 1 3 4Trabalho Esporádico 9 7 16

Total 10 10 20

in Simões 1998, p. 142.

Page 24: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

que para os netos, não existem referências aofacto de «não brincarem» e apenas nove das vin-te crianças acham que brincam pouco.

Como seria de esperar as diferenças em fun-ção do género existem de forma marcada na «ge-

ração dos avôs», as mulheres achando que brin-caram menos do que os homens, mas atenuam-seou desaparecem na «geração dos netos» destafreguesia do Beco.

Um quotidiano decididamente marcado pelo

186

QUADRO 12Tipo de actividades rurais nas gerações dos netos e dos avôs e frequência com que são citadas

durante as entrevistas

Netos Frequência Avôs Frequência

Semear 11 Regar 15Plantar 8 Pastar gado 13

Tratar dos animais 7 Roçar mato 11Colheitas 6 Semear 10

Regar 3 Carregar lenha 10Cavar 3 Tratar dos animais 10

Adubar 2 Colheitas 10Roçar mato 2 Cavar 8

Embalar fruta 2 Sachar 6Pastar gado 2 Apanha da azeitona 4

Limpar currais 1 Vindima 3Carregar lenha 1 Desfolhar milho 3

Limpar currais 3

Total referências Total referências48 106

in Simões 1998, pp. 127, 136.

QUADRO 13Representações sobre o tempo disponível para brincar na «geração dos avôs»

e na «geração dos netos»

Avôs Masculino Feminino Total Freq.

Não brincavam 0 3 3Brincavam pouco 6 6 12

Brincavam bastante 4 1 5Total 10 10 20

Netos

Não brincam 0 0 0Brincam pouco 4 5 9

Brincam bastante 6 5 11Total 10 10 20

in Simões 1998, p. 157.

Page 25: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

trabalho, fazia com que boa parte das pessoasque constituem a «geração dos avôs» não vissema escola como «um trabalho», apesar desta ima-gem variar com o sexo (Quadro 14).

Como se percebe por este Quadro, para amaioria da amostra, a escola não era associadaao trabalho, ou seja, por comparação com aactividade doméstica e agrícola em que os seusquotidianos decorriam, a escola não era sentidacomo a actividade «central» da sua infância.

No entanto, e mais uma vez, se escutarmos oque cada sexo nos diz separadamente, as diferen-ças são importantes. De facto nenhuma mulherachou que a escola tivesse sido o trabalho funda-mental da sua infância, ou que o tipo de activida-des desenvolvidas na escola pudesse ser compa-rada com os tipos de trabalho agrícola e domés-tico que enxameavam a sua vida, enquanto queos homens se repartem igualmente pelas duasopiniões.

Esta diferença nas representações entre ho-mens e mulheres da «geração dos avôs» refe-rente à relação existente entre escola e trabalho,dever-se-á provavelmente ao cruzamento entre omenor grau de escolaridade das mulheres faceaos homens e o grau de intensidade do trabalhoprodutivo em cada sexo.

Por outras palavras, quem passa menos tempona escola e mais tempo no campo e em casa atrabalhar, terá tendência a construir uma imagemmais ligeira e agradável daquilo que se exige naescola e tenderá a vê-la como algo de marginalna sua vida e o facto de estas crianças acharemque a escola não pode ser considerada como tra-balho poderá não ser mais do que o reflexo de

quotidianos mais duros e fechados por compara-ção com os seus colegas do sexo masculino.

No que respeita às crianças que em 1996 ti-nham idades compreendidas entre os 8 e os 11anos as representações sobre a «dureza» compa-rativa entre os trabalhos escolares e o trabalhoprodutivo conhece novas nuances, mas mantem-se, embora de forma atenuada, a tendência femi-nina para caracterizar a escola como menos asso-ciada ao trabalho (Quadro 15).

Em relação à geração dos que poderiam ter si-do seus avôs, a diferença fundamental consisteno facto de as crianças desta geração acharemque quer o trabalho escolar quer o trabalho pro-dutivo devem ser encarados como «trabalho», asdiferenças residindo no facto de serem mais oumenos trabalhosos conforme se trate de uma oude outra destas actividades.

Trata-se assim, por parte dos netos, de umaimagem mais construída sobre ambas as activi-dades, e em especial sobre o trabalho escolar, re-flexo provável de uma escolaridade mais firme-mente interiorizada e vivida por comparaçãocom a «geração dos avôs». Por outro lado, ofacto de esta escolaridade e os problemas a elaassociada estarem a ser sentidas no presentedestas crianças, e mais não serem do que umamemória no caso da geração anterior, poderátambém ter influenciado as diferenças encontra-das de uma para outra geração.

De qualquer das formas, excepção feita aoque antes referimos, existem similitudes entre asimagens que ambas as gerações construem sobrea relação escola-trabalho: a escola é em geralmenos associada ao trabalho e considerada me-

187

QUADRO 14Formas de representação da relação escola-trabalho na geração dos Avôs

Masculino Feminino Total Freq.

Escola considerada como trabalho 5 0 5

Escola não considerada como trabalho 5 10 15

Total 10 10 20

in Simões 1998, p. 129.

Page 26: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

nos «trabalhosa» do que as actividades produti-vas e as meninas são mais enfáticas do que osmeninos nesta opinião.

Mas as parecenças desvanecem-se quandocomparamos alguns aspectos que fazem parte doquotidianos escolar nas duas gerações. Veja-se,por exemplo, quando e com quem se faziam e sefazem os «trabalhos de casa» nas duas gerações(Quadro 16).

De uma geração para a outra, os «trabalhos decasa» deixam de ser feitos à noite e sem apoios,para passarem a ser feitos à tarde e com a prová-vel ajuda da mãe ou de irmãos mais velhos. Es-tas mudanças parecem reflectir, por um ladoquotidianos mais normalizados face ao que

entendemos serem as rotinas diárias ideais dascrianças, com o dia para estudarem e a noite parase distraírem (verem a novela?!), e por outro, ofacto de na «geração dos netos» a escolarizaçãodas mães e dos irmãos serem dados adquiridosque possibilitam a existência de apoios na execu-ção dos T.P.C, o que como vimos antes não seriao caso da «geração dos avôs».

Sublinhando que o que aqui expusemos maisnão é do que o tratamento ainda incompleto deuma suma de dados em análise, gostaríamos, noentanto de tentar organizar os traços que nosparecem fundamentais desta pesquisa sobre osquotidianos e imagens de escola trabalho e lazerem duas gerações que por conveniência apelidá-

188

QUADRO 15Formas de representação da relação escola-trabalho na geração dos Netos

Masculino Feminino Total Freq.

Trabalho escolar e produtivo equivalentes 1 2 3

Trabalho escolar mais trabalhoso 3 0 3

Trabalho produtivo mais trabalhoso 6 8 14

Total 10 10 20

in Simões 1998, p. 137.

QUADRO 16Os T.P.C. em ambas as gerações: horários e apoios

Avôs Netos

T.P.C. feitos à noite 18 2T.P.C. feitos à tarde 1 18

Total 19 20

T.P.C. feitos com ajuda 3 18T.P.C. feitos sem ajuda 16 2

Total 19 20

in Simões 1998, p. 143.

Page 27: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

mos de «geração dos avôs» e «geração dos ne-tos».

A primeira questão que gostaríamos de salien-tar é a do papel que o trabalho ocupa em ambasas gerações, não se tratando apenas de saber emqual delas ele está mais presente.

Na verdade, na geração dos avôs, o trabalhoprodutivo, como se percebe da reconstrução dosquotidianos que elaborámos e só parcialmenteexpusemos, é central na vida diária da sua gera-ção, estruturando as suas relações com a vida.Por outras palavras, nesta geração brinca-sequando se está a pastar o gado e se esculpe umaflauta ou se encontram outros jovens pastores nomesmo prado, trabalha-se de manhã antes de seir à escola e volta-se a trabalhar quando dela sevem. A escola é interrompida ciclicamente se-guindo o curso dos trabalhos agrícolas, a tolerân-cia da mestra face a esta dissonância de ritmosentre a escola e o campo é paga em géneros pro-vindos da criação ou das hortas, e fora deste es-paço de trabalho, os únicos momentos em que separece sentir uma verdadeira pausa estão relacio-nados com a religião. A missa aos Domingos eos feriados e festas religiosas assumem um papelque aparentemente é de verdadeira ruptura face aesta labuta quotidiana que atropela tudo, in-clusive a escola, e que só parece parar ao somdos sinos da aldeia.

No entanto, para as pessoas desta geração queconstituem a nossa amostra, a escola, e indepen-dentemente das relações que com ela tiveram, éum desejo. Um desejo nem sempre possível decumprir, mas um desejo, o desejo de algo de no-vo que rompa com um destino que parece imu-tável nas suas meninices mas que efectivamentecomeça a mudar à medida que vão crescendo eque a civilização urbana se infiltra nos espaçosrurais.

Assim sendo, a escola, uma escola fria e dura,recheada de momentos de verdadeira violênciafísica que leva algumas crianças a abandonarem--na ou a dela terem uma memória por vezes som-bria, esta escola, é apesar de tudo sentida comoalgo de benigno e agradável face à dureza da vi-da que levam.

Por vezes, sente-se também no discurso destesidosos um verdadeiro tributo à magia das letras,coisas estranhas que pouco têm a ver com osseus quotidianos de criança, para muitos sóvindo a fazer sentido em adultos, e que sentem

como uma dádiva, porque nesta geração nem to-dos tiveram a oportunidade de aprender a ler eeles sabem-no bem.

Assim, correndo o risco de exagerar o traço,pensamos que esta escola embebida de «doutrinacatólica», austera e muito fria no Inverno, comcrucifixos, retratos dos «Senhores Presidentes» eonde pontificam professoras majestosas capazesde bondades discretas e de alguns destemperos,esta escola é sentida por muitos dos que a vive-ram como tendo tido um papel emancipatório nasua vida, ao abrir uma frincha através da qualeles puderam antever outras vidas que não as quetinham.

Na geração dos netos tudo parece mudar deforma radical, mas por baixo da superfície aindase adivinham alguns traços do passado.

O que muda é muita coisa, a começar na te-levisão a cores, no Tulicreme ao pequeno almo-ço, nos «quispos» e mochilas, nos autocarros daCâmara e da Junta que vão buscar as criançasque moram longe e muda também a impondera-bilidade da escola típica da geração anterior.

Por outras palavras, para a geração dos netos asociedade de consumo está bem enraizada, a es-cola é inevitável e aparece como algo que se ins-creve naturalmente na vida infantil, destino ba-nal e não escolhido e como tal menos «sentido».É uma escola mais doce e mais «pedagógica»por comparação com a anterior, aquecida e maisconfortável, com professoras que se adivinhammais jovens senão na idade pelo menos na atitu-de, e é a escola que substitui o trabalho comocentro da vida destas crianças. Mas não nosdeixemos embalar pelas diferenças: das vintecrianças que fazem parte da amostra com quetrabalhámos, metade, ou seja dez delas, já«chumbaram» ou foram «retidas», encontrando-se numa situação de insucesso escolar cujasproporções ultrapassa largamente a média nacio-nal.

Libertos do trabalho sistemático, o lazer e abrincadeira ocupam mais espaços na sua vida enas suas casas encontrar-se-ão uma profusão debrinquedos que embora pouco estimados porquerapidamente estragados e substituídos ao ritmodas modas televisivas, fariam ainda assim corarde espanto e inveja os meninos dos anos 30-40.

A escola substitui assim o trabalho domésticoe rural que deixando de ser o vértice em redor doqual se organiza a vida, não desaparece dos dias

189

Page 28: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

destas crianças. O seu trabalho insere-se emformas de vida em que a agricultura e a pecuáriadeixaram de ser as actividades económicas prin-cipais destas famílias, mas continuam a ser im-portantes quer como complementos na economiadoméstica, quer, e isto sente-se mais do que sevê, como prolongamentos de uma cultura de al-deia enraizada nas gerações anteriores e que setransmite, ainda que de forma temperada, àscrianças dos nossos dias.

Este prolongamento do rural na cultura destascrianças, um rural provavelmente mais integradoe perto do urbano do que o «rural» das décadasde trinta e quarenta, marca ainda assim forte-mente o seu «ethos», e fará com que as conclu-sões aqui esboçadas tenham que ser complemen-tadas por trabalhos semelhantes em ambientesurbanos.

A segunda questão que gostaríamos de salien-tar aqui é a forma como o género emerge de umaforma incontornável nesta temática dos quotidia-nos relacionados com a escola, o lazer e o traba-lho em ambiente rural.

As mulheres da «geração dos avôs», em meni-nas trabalhavam mais, brincavam menos e ti-nham menos possibilidades de ir à escola e denela se manterem por algum tempo do que oshomens da sua geração quando eram meninos.

Mais presas à casa e mais ruralizadas que osseus maridos, eram o esteio que mantinha a es-pinha dorsal de uma cultura camponesa, à custade um lugar que se torna verdadeiramente subal-terno na estrutura familiar, e quase que podería-mos dizer, periférico na estrutura social, à me-dida que o urbano se vai tornando preponderantena sociedade.

Este papel de camponesa guardiã do passado ede pessoa subalterna e distante do mundo das le-tras, é transmitido ainda que de forma mais ate-nuada às suas filhas como vimos na parte ante-rior deste trabalho, e ainda se adivinha na gera-ção das netas.

Estas, apesar de todas as mudanças que se dãonas sociedades contemporâneas, e das evidênciasque aqui e ali vão mostrando que a distância re-lativa aos seus irmãos se vai encurtando porcomparação com as gerações anteriores, conti-nuam a trabalhar mais e a brincarem menos queos meninos da sua idade. Nas cidades e na classemédia, basta olharmos para as provisões de re-cém licenciados que todos os anos saem das Uni-

versidades e Escolas Politécnicas, para per-cebermos a forma como elas compensam emadultas o que lhes falta na meninice. Mas o quese passará no futuro das meninas que não vivemna cidade e que não são filhas de classe média?

3. CONCLUINDO: ALFABETIZAÇÃO E ESCOLAATRAVÉS DOS CENSOS,

ESTUDOS DE CASO E QUOTIDIANOS

A primeira questão que gostaríamos de salien-tar aqui é a de de que embora a tentação de ex-trair conclusões seja grande, a exiguidade daamostra, a sua localização, e no que respeita aospercursos de alfabetização e de escolarização dos«bisavôs», a maneira como as informações fo-ram obtidas, constituem um sério limite ao esta-belecimento de certezas. Mais trabalhos destetipo têm que ser feitos e eles devem ser cruzadoscom pesquisa documental mais próximo do que éo trabalho tradicional na história e na sociologiahistórica. Se a análise crítica dos Censos Popu-lacionais se aproxima deste tipo de percurso,gostaríamos aqui de salientar a seriedade de tra-balhos como os realizados por Rui Ramos(1988) e sobretudo por Justino Magalhães(1994), entre outros, mas não muitos.

Por outro lado, a maneira como investigámosos quotidiamos das duas gerações que nos ser-viram de referência, recorrendo às imagens pro-duzidas pelas pessoas face ao que viveram, obri-ga-nos a estabelecer uma distância entre repre-sentação e realidade, uma distância que emboratambém não esteja ausente do documento escritoe tenha a vantagem de erigir os tradicionais figu-rantes da história em actores principais, devematizar as conclusões a estabelecer.

Assim sendo, os pontos seguintes, mais doque conclusões são a organização de temáticasque resumem e problematizam o resultado destetrabalho, sendo pontos a desenvolver e a questio-nar no decorrer deste processo de investigação.

3.1. Da alfabetização para a escolarização

Os Censos mostram-nos que a forma como osportugueses se relacionam com a cultura letradadurante este século, segue essencialmente duastipologias: uma tipologia que releva sobretudode uma lógica alfabetizadora, e isto independen-

190

Page 29: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

temente de boa parte de tal processo se passar naescola e uma tipologia que poderemos caracteri-zar de escolarizada.

Os números, as coortes e o seguimento dequatro gerações de uma freguesia, mostram-nosquanto ao primeiro aspecto, que durante umaparte do século XX, muitos portugueses nãoaprendem a ler e a escrever, e dos que o fazem,uma parte substancial fá-lo fora da escola ouapenas a usa parcialmente, escolhendo as partesdela que lhes interessam, em idades em que es-tão disponíveis para o fazerem ou em alturas dasua vida em que necessitam imperiosamente dedela tirarem instrumentos que a melhorem. Istopassa-se exactamente como se não houvesse leisque fazem da frequência escolar durante um de-terminado leque de idades um imperativo legalsancionado pelo Estado, e nós sabemos que taisleis existem e se sucedem desde pelo menos1844.

No entanto, os Censos Populacionais mos-tram-nos, e o acompanhamento do percurso dealfabetização e escolarização em pessoas que serepartem por quatro gerações de uma freguesiarural portuguesa parecem confirmar, os proces-sos de alfabetização informal e desajustados fa-ce à lei, vão-se tornando subalternos face a umaescolarização estandardizada que lentamente vaiencaminhando todas as crianças para a escola doEstado, remetendo o analfabetismo para casospontuais e tornando rara a figura do «alfabetiza-do que nunca foi à escola». O período em que sedá o arranque final deste processo de escolariza-ção, é sem dúvida, no caso português, o períodoque compreende as décadas de quarenta, cin-quenta e sessenta deste século, com destaque pa-ra as duas últimas.

3.2. O campo e a escola

Estas décadas representam também o começodo fim de uma sociedade assente no mundo ru-ral, e todos os estudos nos mostram relações di-ferenciadas entre alfabetização e escola por umlado e sociedades rurais ou urbanas por outro.

O estudo comparativo de quotidianos e as su-as relações com a escola o trabalho produtivo e olazer, entre uma «geração de avôs» nascida entreos anos de 1926 e 1936 e uma «geração de ne-tos» nascidos entre os anos de 1985 e 1988, mos-tram bem como as sociedades rurais tradicionais

têm dificuldade em assimilar e integrar os pro-cessos de escolarização do mundo contemporâ-neo, um mundo essencialmente urbano.

Na verdade, modos de vida que se regem peloSol e pelas estações, com épocas de trabalhointenso e continuado, e em que a sobrevivênciaobriga a que todos se ocupem da agricultura e dapecuária, são tremendamente difíceis de se com-patíbilizar com modos de vida que pressupõemuma disponibilidade diária e regular por parte decrianças que ocupam o seu tempo a trabalhar.

Mas mais do que os tempos diferenciados dosmundos escolares e rurais, a difusão e massifica-ção da escola só parece fazer sentido em socie-dades em que a mobilidade social é possível eprovável, e no deve e haver da vida das pessoasdas muitas freguesias do Beco do princípio doséculo, muitos pais terão sentido que era maisútil o trabalho agrícola dos seus filhos do queprovável a melhoria da sua vida por via da esco-la.

Como nos mostram muitos dos testemunhosdos que eram crianças entre 1934 e 1947, os fi-lhos, ou seja eles próprios, mesmo sem grandesesperanças de mudarem de vida, sentiam-seatraídos pela escola, suspeitavam que por ela po-deriam ver nesgas de outras coisas, e muitos sóviram cumpridas essas esperanças em idadeadulta, quando as mudanças se aceleraram.

Neste contexto, diríamos que a escola cumpriaaqui o papel de desagregador de um modo devida, mas que só se conseguiu implantar nocampo quando a cultura camponesa das aldeiasdeixou de ser a cultura dominante, submergidaque foi pela influência das cidades. Neste con-texto, as escolas começaram a ter sentido e asoportunidades de através delas mudar de vida,tornaram-se reais. Este facto, juntamente com aspressões históricas por parte das elites no sentidode tornar a escola universal, acabou por levar aesmagadora maioria das crianças portuguesas,rurais ou urbanas, a frequentarem-na e a nela ti-rarem os respectivos diplomas.

3.3. Os homens, as mulheres e a escola numcontexto de mudança social

Os estudos de caso, mas também os Censos,mostram-nos que, pelo menos no campo, os ho-mens chegaram primeiro às letras e à escola doque as mulheres, e que isto além de provavel-

191

Page 30: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

mente reflectir uma estrutura social de contornospatriarcais, se dá por vários mecanismos que secruzam. Um deles é o de uma utilização dos re-cursos familiares que obedecem a decisões pa-ternas em que o futuro dos filhos é desde cedoencaminhado para percursos que se relacionamcom a economia doméstica. Neste caso são qua-se sempre as mulheres-filhas que ficam em casaaté casarem, e que além de se ocuparem da edu-cação dos irmãos, ajudam na lavoura e na duralide da casa camponesa da primeira metadesdeste século.

Para estas mulheres, frequentemente a escolaé uma utopia ou uma experiência breve e semcontinuidade.

Dos filhos-homens, caso haja recursos unsvão estudar e outros aprenderão ofícios urbanosque facilitam a relação com o mundo das letras.

Assim, com uma agricultura que torna inviá-vel o sustento das famílias, mas que é importantecomo complemento económico e assegura acontinuidade dos modos de vida rurais, os ho-mens urbanizam-se e deixam numa posição maisrecuada as mulheres, presas às lides, à lavouraou ao que dela resta, à criação e à educação dosfilhos.

Por outras palavras, os homens, ao assegura-rem o papel de intermediários entre o exterior,onde estão os ofícios, a aldeia, as vilas, as cida-des, a emigração e o trabalho operário assalaria-do, e o interior da casa, onde estão os restos deuma agricultura de subsistência fechada e quecada vez produz menos daquilo que é necessáriopara o bem estar familiar, inserem-se na parte daeconomia mais dinâmica e integrada nos circui-tos urbanos que desde o século XVIII se vãotornando dominantes no modo de vida Ociden-tal. Trata-se de segmentos da sociedade e do tra-balho que se inserem em formas de vida de que aleitura e a escrita fazem parte e compreende-seassim o avanço com que os homens chegam àalfabetização e à escola face às mulheres.

Mas a «escola de massas e do Estado», ou se-ja a escola contemporânea, é um reflexo de umasociedade urbana, e a sua extensão a todo o paísrepresenta um primado do urbano sobre o rural,ou pelo menos ocupa o espaço deixado por umrural que se vai desagregando. Assim sendo, noEstado Nação Ocidental contemporâneo, o anal-fabetismo feminino tem cada vez menos sentidosem que isso signifique necessariamente a igual-

dade de posições perante a vida entre homens emulheres.

Significa no entanto, igualdade de direitos ede obrigações, e este facto em conjunto com aprogressiva integração das mulheres no mercadode trabalho, acaba por tornar obsoleto o analfa-betismo feminino.

Por outras palavras, e mesmo correndo o riscode nos repetirmos, os homens, mesmo os ho-mens que ocupam profissões e posições sociaissubalternas chegam primeiro do que as mulheresaos sectores económicos modernos e isto consta-ta-se no estudo de caso que levámos a cabo eajuda a explicar as diferenças existentes nospercursos de alfabetização e escolarização mas-culinos face aos femininos.

3.4. Censos, estudos de caso e quotidianos:para que serve tudo isto?

Finalmente, muitas destas conclusões seriampossíveis sem o recurso a estudos de caso, sem aconjunção entre o trabalho sobre os Censos e oseguimento atento de uma comunidade durante oespaço de um século, mas a visibilidade dada pe-los testemunhos das pessoas dá-lhes uma subs-tância mais espessa e essa espessura é cada vezmais o centro da investigação em Ciências So-ciais e Humanas.

A continuação deste trabalho está actualmenteem curso com o prolongamento da análise dosCensos Populacionais, e com o lançamento demais estudos de caso que se debruçam quer ain-da sobre freguesias rurais, quer sobre freguesiasurbanas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

a) CensosCenso da população do Reino de Portugal no 1.º de De-

zembro de 1900. Lisboa: Imprensa Nacional, 1905.Censo da população de Portugal no 1.º de Dezembro de

1911. Lisboa: Imprensa Nacional, 1913.Censo da população de Portugal - Dezembro de 1920.

Lisboa: Imprensa Nacional, 1923.Censo da população de Portugal - Dezembro de 1930.

Lisboa: Imprensa Nacional, 1934.Recenseamento Geral da população no Continente e

Ilhas Adjacentes em 12 de Dezembro de 1940.Lisboa: Imprensa Nacional, 1945.

192

Page 31: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

Recenseamento Geral da população no Continente eIlhas Adjacentes em 15 de Dezembro de 1950.Lisboa: Tipografia Portuguesa, 1952.

Recenseamento Geral da população às 0 horas de 15 deDezembro de 1960. Lisboa: Instituto Nacional deEstatística.

b) EstudosBardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições

70.Bouillé, M. (1988). L`école histoire d`une utopie?

Paris: Rivages.Candeias, A. (1994). A situação educativa portuguesa:

raízes do passado, dúvidas do presente. AnálisePsicológica, 11 (4), 591-607.

Candeias, A. (1996). Ritmos e formas de alfabetizaçãoda população portuguesa na transição de século: oque nos mostram os Censos Populacionais compre-endidos entre os anos de 1890 e 1930. EducaçãoSociedade e Culturas, 5, 39-63.

Candeias, A. (1998). Alfabetização informal e autóno-ma e escolarização imposta: Os ritmos e as formasde acesso à cultura escrita no Portugal do princípiodo século. In Actas do 1.º Encontro Luso Brasileirode História da Educação. Lisboa: S.P.C.E.

Candeias, A. (no prelo). Ritmos e formas de acesso àcultura escrita das populações portuguesas noséculos XIX e XX: dados e dúvidas.

Carvalho, R. (1986). História do ensino em Portugal.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Cha, Y. (1992). The origins and espansion of PrimarySchool Curricula: 1800-1920. In J. Meyer, D. Ka-mens, & A. Benavot (Eds.), School knowledge forthe masses – World models and national PrimaryCurricular categories in the Twentieth Century(pp. 63-73). Londres: The Falmer Press.

Chombart de Lauwe, M.-J. (1987a). Temps libre et loi-sirs. In M. Manciaux, S. Lebovici, O. Jeanneret, A.Sand, & S. Tomkievicz (Eds.), L´enfant et sa santé(pp. 399-409). Paris: Doin Editeurs.

Chombart de Lauwe, M.-J., Bonnin, Ph., Mayeur, M.,Perrot, M., Rieunier, C., & de la Soudière, M.(1987b). Espace d’enfants. La relation enfant-en-vironnement, ses conflits. Cousset: Editions Delval.

Cipolla, C. (1969). Instrução e desenvolvimento noOcidente. Lisboa: Editora Ulisseia.

Foucault. M. (1975). Surveiller et punir. Naissance dela prison. Paris: Éditions Gallimard.

Furet, F., & Ozouf, J. (1977). Lire et ecrire. L`alphabé-tisation des français de Calvin à Jules Ferry.Paris: Les Éditions de Minuit.

Graff, H. J. (1991). The legacies of literacy. Continui-ties and contradition in Western culture and so-ciety. Bloomingtona and Indianapolis: Indiana Uni-versity Press.

Houston, R. A. (1988). Literacy in early modern Euro-pe. Culture and education 1500-1800. Singapore:Longman.

Iturra, R. (1990). Fugirás à escola para trabalhar a ter-ra. Ensaios de antropologia social sobre o insu-cesso escolar. Lisboa: Escher.

Magalhães, J. (1994). Ler e escrever no mundo rural doAntigo Regime: um contributo para a história daalfabetização e da escolarização em Portugal.Braga: Universidade do Minho, Instituto de Educa-ção.

Magalhães, J. (1996). Ler e escrever no mundo rural doAntigo Regime: Um contributo para a história daalfabetização e da escolarização em Portugal. Aná-lise Psicológica, 14 (4), 435-445.

Nóvoa, A. (1992). A «Educação Nacional». In J. Ser-rão, & A. H. de Oliveira Marques (Eds.), NovaHistória de Portugal, Vol. XII, Portugal e o EstadoNovo, coordenação de Fernando Rosas (pp. 455-519). Lisboa: Editorial Presença.

Ramos, R. (1988). Cultura de alfabetização e cultura deanalfabetismo em Portugal: uma introdução à his-tória da alfabetização no Portugal contemporâneo.Análise Social, 24, 103-104, 4,5, 1067-1145.

Ramos, R. (1993). O método dos pobres: educação po-pular e alfabetização em Portugal (séculos XIX eXX). Colóquio Educação e Sociedade, 2, 41-68.

Reis, F. (1992). Educação ensino e crescimento: o jogoinfantil e a aprendizagem económica em VilaRuiva. Lisboa: Escher.

Reis, J. (1988). O analfabetismo em Portugal numaperspectiva comparada: algumas reflexões. In 1.ºEncontro de História da Educação em Portugal –Comunicações (pp. 75-79). Lisboa: Fundação Ca-louste Gulbenkian.

Reis, J. (1993). O analfabetismo em Portugal no séculoXIX: uma interpretação. Colóquio Educação e So-ciedade, 2, 13-40.

Simões, E. (1998). Análise evolutiva de quotidianosinfantis, dinâmicas sociasis e processos de mudan-ça em duas gerações diferentes: avós e netos. Mo-nografia de licenciatura em Psicologia, InstitutoSuperior de Psicologia Aplicada, Lisboa (não pu-blicada).

Stoer, S., & Araújo, H. (1992). Escola e aprendizagempara o trabalho num país da semi periferia euro-peia. Lisboa: Escher.

Vidigal, L. (1996). Os testemunhos orais na escola:História oral e projectos pedagógicos. Porto: Edi-ções ASA.

Vieira, R. (1992). Entre a escola e o lar. Lisboa: Es-cher.

RESUMO

O objectivo deste artigo é o de contribuir para acompreensão da forma como durante este século, seconstruiram em Portugal os processos de alfabetizaçãoe de escolarização.

Na primeira parte, comparamos as taxas de alfabe-

193

Page 32: Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos ...

tização e de escolarização portuguesas com as mesmastaxas referentes a outras sociedades europeias e de se-guida analisamos e discutimos os resultados forneci-dos pelos Censos Populacionais compreendidos entreos anos de 1900 e 1960, concluindo que até à primeirametade deste século os portugueses acederam ao mun-do das letras de uma forma autónoma e informal, ne-gligenciando em parte as formas de escolarização es-tandardizadas.

Na segunda parte deste artigo, introduzimos umestudo de caso referente a uma freguesia rural de Fer-reira do Zêzere, analisando os percursos de alfabeti-zação e de escolarização em três gerações nascidas en-tre 1888 e 1969, e relacionando tais percursos com ogénero, estatuto social e formas de mobilidade social.

Procurámos também fixar e comparar as imagenssociais relativas à escola e à sua relação com o traba-lho, tempos livres e rotinas do quotidiano em duas ge-rações («avós» e «netos»), tentando demonstrar quequestões relativas à evolução dos processos dealfabetização e de escolarização têm que necessaria-mente ser relacionadas com transformações sociais eeconómicas mais gerais e complexas.

Palavras-chave: História da educação, escolariza-ção, alfabetização.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to understand and ana-

lyse the ways literacy and schooling were implemen-ted in the Portuguese society during the twentieth cen-tury.

In the first part of it, we compared the Portugueseliteracy and schooling rates whit other European coun-tries and societies, and then analysed and discussed thedata given by the Portuguese population Census from1900 to 1960, concluding that until the fourth decadeof this Century an important part of Portuguese peoplebecame literate autonomously, i.e. not using compul-sory school in a standard way.

In the second part of this paper we studied popula-tion samples of three generations of a rural village ofPortugal, the freguesia do Beco in Ferreira do Zêzere,that were born between 1888 and 1969, reconstructingthe evolution of their literacy and schooling levels andrelating it with professional mobility, gender andsocial status.

We also tried to establish the social images ofliteracy, school and their relationship with child`swork, leisure and daily routines in two generations(grand parents and grand sons) and analyse thechanges that occurred in this period of time, showingthat the process of schooling and literacy has to beunderstood under a broader social and historic pers-pective in which literacy rates and their evolution areonly one of the aspects to be considered.

Key words: History of education, literacy, scho-oling.

194